Grande Consumo | Dez 14 | Entao e Online?

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Então e online? Pedro Miguel Silva Associate Partner da Deloitte [email protected] “Então e Espanha?” Há quase uma década atrás participei num projecto de implementação de sistemas numa empresa portuguesa que aspirava, na altura, a ter uma presença relevante em Espanha. Em cada reunião de “steering”, destinada a discutir cenários e validar soluções, surgia a inevitável pergunta do CEO: “Então e em Espanha, como vai ser?”. No início ficávamos constrangidos a olhar uns para os outros: não havia compras, produção ou logística em território espanhol, pelo que os processos implementados nestas áreas não se aplicavam, e as vendas em Espanha representavam menos de 10% do total da empresa. Mas fomos percebendo que o tema era importante para o senhor e, a cada nova reunião, íamos melhor preparados para a inevitável pergunta: “Então e Espanha?”. No contacto diário com a organização percebi que o tema seria também recorrente em reuniões internas. Alguns colaboradores pareciam quase programados para, em qualquer reunião, abordar o “tema espanhol”. Mesmo nas sessões pouco animadas, em que percorríamos dezenas de fluxos de processo, as pessoas pareciam despertar sempre que o país vizinho era mencionado. Não que parecesse existir particular entusiasmo pelo tema mas toda a gente sabia que o chefe ia perguntar como iam funcionar as coisas lá e toda a gente queria ter a resposta pronta. Não penso que esta organização fosse particularmente avessa ou propensa à mudança. Como na maior parte das empresas, penso que as pessoas preenchiam o seu dia-a-dia com as rotinas e comportamentos que haviam observado em outros antes delas. Habitam o que o sociólogo alemão Niklas Luhmman chama um sistema auto-referencial, em que as decisões e os comportamentos da organização se reproduzem de forma recursiva, com referência a decisões e comportamentos anteriores. No caso desta empresa em particular, ela não pensou em si própria de raiz como sendo “ibérica”, pelo que era requerido um estímulo externo continuado para fazer evoluir a identidade (ou, neste caso, a “nacionalidade”) da organização. O negócio em Espanha não evoluiu como esperado e, após mudança da administração, a empresa fechou mesmo o escritório de vendas que mantinha em Madrid. Mas durante o tempo que lá estive percebi que o pensamento da organização se tinha vindo a “iberizar” e que qualquer acção ou decisão da empresa tinha sempre esse contexto presente porque (i) essa era a vontade da gestão de topo e (ii) essa vontade era comunicada de forma clara e repetida a todos os níveis da organização. “Então e online?” Entre 29 de Setembro e 1 de Outubro passados decorreu em Paris a 8.ª edição do World Retail Congress, o principal evento mundial dedicado aos retalhistas e aos temas que têm maior presença na respectiva agenda. No evento deste ano, que a Deloitte novamente patrocinou, ficou particularmente claro quais são as preocupações e prioridades das maiores empresas de retalho mundiais. Temas que ocuparam em anos anteriores um espaço significativo do congresso - como “supply chain”, sustentabilidade e internacionalização – estiveram em claro segundo plano na edição de 2014. Na verdade mais de metade das 60 sessões do congresso deste ano foram dedicadas a um de dois temas. OPINIÃO n.º30/2014 | NOVEMBRO/DEZEMBRO 28

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Então e online?

Pedro Miguel Silva Associate Partner da Deloitte

[email protected]

“Então e Espanha?”Há quase uma década atrás participei num projecto de implementação de sistemas numa empresa portuguesa que aspirava, na altura, a ter uma presença relevante em Espanha. Em cada reunião de “steering”, destinada a discutir cenários e validar soluções, surgia a inevitável pergunta do CEO: “Então e em Espanha, como vai ser?”.No início ficávamos constrangidos a olhar uns para os outros: não havia compras, produção ou logística em território espanhol, pelo que os processos implementados nestas áreas não se aplicavam, e as vendas em Espanha representavam menos de 10% do total da empresa. Mas fomos percebendo que o tema era importante para o senhor e, a cada nova reunião, íamos melhor preparados para a inevitável pergunta: “Então e Espanha?”.No contacto diário com a organização percebi que o tema seria também recorrente em reuniões internas. Alguns colaboradores pareciam quase programados para, em qualquer reunião, abordar o “tema espanhol”. Mesmo nas sessões pouco animadas, em que percorríamos dezenas de fluxos de processo, as pessoas pareciam despertar sempre que o país vizinho era mencionado. Não que parecesse existir particular entusiasmo pelo tema mas toda a gente sabia que o chefe ia perguntar como iam funcionar as coisas lá e toda a gente queria ter a resposta pronta.Não penso que esta organização fosse particularmente avessa ou propensa à mudança. Como na maior parte das empresas, penso que as pessoas preenchiam o seu dia-a-dia com as rotinas e comportamentos que haviam observado em outros antes delas. Habitam o que o sociólogo alemão Niklas Luhmman chama um sistema auto-referencial,

em que as decisões e os comportamentos da organização se reproduzem de forma recursiva, com referência a decisões e comportamentos anteriores. No caso desta empresa em particular, ela não pensou em si própria de raiz como sendo “ibérica”, pelo que era requerido um estímulo externo continuado para fazer evoluir a identidade (ou, neste caso, a “nacionalidade”) da organização.O negócio em Espanha não evoluiu como esperado e, após mudança da administração, a empresa fechou mesmo o escritório de vendas que mantinha em Madrid. Mas durante o tempo que lá estive percebi que o pensamento da organização se tinha vindo a “iberizar” e que qualquer acção ou decisão da empresa tinha sempre esse contexto presente porque (i) essa era a vontade da gestão de topo e (ii) essa vontade era comunicada de forma clara e repetida a todos os níveis da organização.

“Então e online?”Entre 29 de Setembro e 1 de Outubro passados decorreu em Paris a 8.ª edição do World Retail Congress, o principal evento mundial dedicado aos retalhistas e aos temas que têm maior presença na respectiva agenda.No evento deste ano, que a Deloitte novamente patrocinou, ficou particularmente claro quais são as preocupações e prioridades das maiores empresas de retalho mundiais. Temas que ocuparam em anos anteriores um espaço significativo do congresso - como “supply chain”, sustentabilidade e internacionalização – estiveram em claro segundo plano na edição de 2014. Na verdade mais de metade das 60 sessões do congresso deste ano foram dedicadas a um de dois temas.

OPINIÃO

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OPINIÃOn.º30/2014 | NOVEMBRO/DEZEMBRO

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Primeiro, aos comportamentos de compra da nova geração de consumidores, vulgo “millenials”, que nunca habitaram a realidade prévia ao surgimento da Internet, dos “smartphones” e das redes sociais. A generalidade dos presentes reconhece que estes consumidores interagem com comunidades, marcas e espaços de retalho de uma forma que é diferente de gerações anteriores e, em grande medida, estranha à geração que actualmente gere a generalidade das empresas.Uma das sessões reuniu um painel de jovens com 18 a 23 anos para lhes perguntar o que mais valorizavam nas lojas que visitam. As respostas incluíam “a opinião dos meus amigos”, “acesso rápido a wifi”, “encontrar os artigos que pesquisei online” e “empregados que não me massacram (piggyback) com as promoções do mês; eu sei quais são, já as pesquisei antes”.Outra sessão interessante usou o exemplo de Bethany Mota, uma “video blogger” californiana de 19 anos, neta de portugueses, que comenta no Youtube desde os 14 as suas opções e compras de moda. Os seus vídeos geram cinco a 10 milhões de visualizações cada e tornaram-na um ícone de moda para adolescentes, levando a Aéropostale a lançar a sua própria linha de moda. Para “pre-millenials” como eu, Bethany pode parecer uma menina fútil e até um pouco irritante. Mas para o seu “target demographics” ela é um veículo de interacção com marcas muito mais confiável, e sobretudo mais genuíno, que qualquer campanha de TV ou vendedor de loja.O segundo tema mais discutido, que resulta do ponto anterior, é a necessidade das empresas melhorarem significativamente

o seu “footprint” digital. A “buzzword” do momento é “omnichannel”: mais do que encarar as tecnologias e plataformas de comunicação como novos canais de comunicação ou venda, é necessário adoptar uma perspectiva mais holística, encarando cada novo avanço como mais uma forma de manter a nossa marca actual e relevante para um universo mais abrangente de consumidores.Olhando para a forma como a generalidade das empresas que produz e comercializa bens de consumo se organiza, muito pouco do que escrevemos acima se encontra interiorizado pela organização. Na maior parte das empresas a presença digital - seja em dispositivos móveis, redes sociais ou “in-store” - é a preocupação diária para pouco mais do que meia dúzia de tecnófilos. A generalidade dos processos “tradicionais”, do planeamento de produção ao reaprovisionamento das lojas, é hoje suportada pelos mesmos dados, ferramentas e competências que há 10 anos atrás.Tal como um processo de internacionalização eficaz requer estímulos e competências externos para fazer evoluir a identidade de uma organização para “ibérica”, “europeia” ou até “global”, também a omnicanalidade precisa ser interiorizada e consistentemente comunicada pela gestão até que se auto-reproduza dentro da organização. Chegaremos então ao momento em que, em qualquer reunião operacional de logística, vendas ou finanças, surge persistentemente a questão: “Então e online, como vai ser?”

*o autor escreve pela grafia pré-acordo ortográfico da língua portuguesa