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GPS UBUNTU: SABERES E ARTEFATOS ETNOMATEMÁTICOS NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA COLÔNIA DO PAIOL EM MINAS GERAIS
Reginaldo Ramos de Britto1 Luiz Carlos Narciso2 Karine Beatriz O. Silva3 RESUMO
Neste trabalho descrevo projeto pedagógico em desenvolvimento na Escola Estadual Prof. Cândido Motta Filho, em Juiz de Fora (MG). Trata-se de uma experiência intitulada de Grupo de Pesquisas Sociais (GPS) Ubuntu, que se desenvolve no âmbito de uma política educacional proposta pela Secretaria de Estado da Educação de (MG), que instituiu os NUPEAAs (Núcleos de Pesquisa e Estudos Africanos, Afrobrasileiros e da Diáspora) em escolas da rede estadual. O projeto GPS Ubuntu é formado por um grupo de 12 alunos (as) do segundo ano do ensino médio, pesquisadores (as). O título deste trabalho é uma referência à uma das fases deste projeto, que envolve o trabalho de campo dos pesquisadores (as), estudantes da educação básica, na Comunidade Quilombola Colônia do Paiol, em Bias Fortes (MG). Suas orientações teórico-metodológicas se ancoram na Etnomatemática, D’Ambrósio (2001), Educação Matemática Crítica, Skovsmose (2001, 2008), além das contribuições de Frankenstein e Powell (1997). Palavras chave: Saberes e artefatos etnomatemáticos, Educação Matemática Crítica, Comunidade quilombola, olhar decolonial.
1. INTRODUÇÃO
Meu aproximar com ideia de trabalhar com projetos pedagógicos surgiu a mais de
10 anos no contexto das salas de aula na disciplina de matemática. Foi desta forma, que
criamos os GPSs Grupo de Pesquisas Sociais formados por alunos da Educação básica.
A estruturação do Grupo de Pesquisas Sociais e exemplos de atividades de
investigações pedagógicas desenvolvidas por ele, já foram socializadas com a
comunidade acadêmica, em trabalhos como de Britto et al (2017). Por fim, o trabalho
com projetos é resultado de nossa inquietação diante dos intermináveis “Por quês?” de
nossos alunos sobre a “utilidade”, em suas vidas cotidianas, dos temas trabalhados em
1 Me. Educação Matemática e Bacharel em Ciências Humanas (UFJF). Vinculado à área de Ciência e Tecnologia da
ABPN. Professor de Matemática da Educação Básica. Membro do NIDEEM/UFJF- Núcleo de Investigação,
Divulgação e Estudos em Educação Matemática. 2 Aluno Pesquisador do GPS Ubuntu aluno da rede estadual de ensino de Minas Gerais. 3 Aluna Pesquisadora do GPS Ubuntu aluno da rede estadual de ensino de Minas Gerais.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
salas de aula de Matemática. Além disso justifico-o como uma reação a “ausência”, na
prática Escolar, dos elencados temas transversais descritos nos, então, Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs). Esta iniciativa vai também ao encontro dos propósitos do
processo de ensino e aprendizagem, em especial, aqueles elencados como próprios da
matemática e das competências por eles propiciadas, sobretudo, ao que nos interessa,
“reconhecer que a Matemática é uma ciência humana, fruto das necessidades e
preocupações de diferentes culturas, em diferentes momentos históricos...”. (p. 265)4
Desenvolvidas inicialmente na Escola Municipal Gabriel Gonçalves da Silva, aos
poucos as ações do GPS foram se materializando na prática escolar nas salas de aula
em que atuava na rede pública estadual, na escola Professor Cândido Motta. A partir de
2013, aproximadamente, devolvemos algumas investigações pedagógicas nesta escola:
traçamos o que chamamos de quadro religioso da comunidade escolar, identificando não
apenas aspectos quantitativos, mas desvelando o modo como os adeptos das
orientações religiosas presentes na instituição, se posicionavam em relação a temas
polêmicos na atualidade; discutimos o que temos chamado de medidas matemáticas de
democracia, na análise do sistema eleitoral brasileiro, numa pesquisa que se ocupou em
conhecer o nível de informação dos membros da comunidade escolar sobre nosso
sistema eleitoral. Mas é em 2015 que o GPS Cândido passa a existir formalmente. Em
2016 nos envolvemos uma pesquisa sobre a história do bairro onde localiza-se a escola
o São Benedito, utilizando como base documental o acervo do setor de memória da
Biblioteca Municipal Murilo Mendes, em Juiz de Fora. Em 2017 com o desenvolvimento
da Campanha Afro-consciência, da Secretaria de Estado da Educação (MG), onde se
incluem, a criação e desenvolvimento dos os NUPEAAs - Núcleos de Estudo e Pesquisas
Africanas, Afrobrasileiras e da Diáspora - o GPS Cândido passa a se denominar GPS
4 Documento da Base Nacional Curricular Vomum (BNCC). Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site.pdf> Acesso em: 25 jun. 2018.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
Ubuntu, ocupando-se desde então sobre o estudo em exame no presente trabalho. Isto
posto, chegamos ao projeto em exame neste trabalho.
2. JUSTIFICATIVA
De um modo mais amplo, como elemento justificaticador, pode-se aludir à
necessidade de desconstrução de um olhar eurocêntrico para a prática pedagógica.
Falta-nos ainda na educação brasileira uma matriz curricular que considere a
contribuição de povos diversos para a produção do conhecimento científico, tanto na
educação básica, ainda que lá este cenário represente um lugar que tem avançado neste
sentido, quanto principalmente no ensino superior, que é o habitat de formação dos
formadores.
Assim, uma vez iniciada minha trajetória como professor, a partir de um modelo
europeu de escola faltava-me, aquilo que o processo de des-reconstrução5 foi aos
poucos se instalando em minha prática profissional e pedagógica tem realizado,
conhecer e embeber-me das contribuições das vozes de povos até então silenciados,
quando se reflete sobre a produção da ciência e também dos saberes escolares. Povos
como os indígenas e os africanos e todas as subjetividades constituídas que
acompanham seu modo de ver o mundo e conceber o conhecimento e a ciência
tradicionalmente negligenciados. No entanto deve-se reconhecer que muitas, e
espalhadas vozes, ações e programas intentam resgatar tais contribuições que têm se
desenvolvido em várias partes do mundo.
São inúmeros os discursos produzidos sobre o negro no Brasil que se construiíram
em uma via de mão dupla, ou seja, desqualificando-os para o exercicio da cidadania e
para o trabalho assalariado e até mesmo como seres humanos e incentivando, em sua
substituição, tanto como trabalhador quanto para povo da nova nação republicana, em
5 Uso este neologismo digamos assim, para denotar que não se trata de construir de novo algo em mesmas bases e sim de alterar, ampliando, os fundamentos epistêmicos de construção anteriormente utilizados.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
favor do imigrante europeu. Discursos como o de Oliveira Viana (apud Domingues, 2004,
p.260):
O negro puro nunca poderá assimilar completamente a cultura ariana, mesmo os seus exemplares mais elevados: a sua capacidade de civilização, a sua civilizabilidade, não vai além da imitação, mais ou menos perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco.
Mas por que um Grupo de pesquisas na sala de aula de matemática e por que a
temática racial? Podemos inicialmente constatar que na história, como área de
conhecimento e disciplina escolar, já há algum tempo se difundi a necessidade de
promover uma reconstrução crítica do olhar, para podermos perceber a invisibilidade a
que eram levados os não brancos no processo “civilizatório”, nas ciências exatas, em
particular na matemática pura, fomos e ainda somos feitos a imagem e semelhança do
colonizador, branco, europeu. Aprendemos a pensar sob o ponto de vista do colonizador
criando, assim, caminhos de pensar e observer o mundo numa perspectiva cartesiana e
positivista. Mesmo na História da Matemática, nos cursos de licenciatura, a própria
estruturação dos livros textos, denotavam o lugar de África, que aparecia sempre
personificada apenas no Egito e, mesmo assim de um modo que não nos permitia sequer
perceber a verdadeira identidade continental deste país.
Nesse contexto, o imaginário criado e recriado em relação a África é resultante de
um processo evolucionista e de hierarquização, elaborado pelo europeu, que coloca as
contribuições das culturas do continente negro, num cenário primitivo. Não nos permitem
por exemplo saber/conhecer que o Teorema de Pitágoras talvez não se referisse a um
conhecimento originalmente de sua autoria, e fosse mesmo já conhecido pelos africanos
cerca de mil anos antes do nascimento do próprio Pitágoras. A história europeia, da
Matemática ajeita as coisas considerando que mesmo nesta última hipótese, a
matemática africana (egípcia) era considerada, pelo colonizador que é quem nos conta
a história, como “primitiva”, desvantajosa, complexa e dedicada apenas a problemas
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práticos. Sendo assim, os processos pedagógicos nas salas de aula de matemática se
encontram bastante impregnados de modos cartesianos e positivistas ao tratar do
conhecimento dos povos e culturas subalternizadas.
A despeito de importantes e significativos avanços no sentido da desconstrução
do domínio de uma episteme eurocentrada em nossos sistemas de ensino, e de sua
reconstrução em bases epistemológicas multiculturais, o ambiente da sala de aula de
matemática parece, em alguma medida, ainda impermeável. A grosso modo as aulas
ainda seguem a rituais tradicionais em que:
Primeiro, o professor apresenta algumas ideias e técnicas matemáticas e, depois, os alunos trabalham com exercícios seleccionados. Ele também observou que existem variações nesse mesmo padrão: há desde o tipo de aula em que o professor ocupa a maior parte do tempo com exposição até aquela em que o aluno fica – a maior parte do tempo envolvido com resolução de exercícios (COTTON, apud Skovsmose,2008, p.15)
O Grupo de Pesquisas Sociais (GPS) constitui-se, assim numa prática pedagógica
preocupada com a o fato da matemática ser uma “linguagem de poder”6 e de possuir
poder formatador e desse modo nossa preocupação está na qualidade de nossa
democracia. Sua vertente o GPS Ubuntu, seguindo as mesmas preocupações, direciona
seu olhar para a democracia racial7, perspectivada a partir da sala de aula de
matemática, em várias de nossas atividades. A Escola Cândido Motta, localiza-se no
Bairro São Benedito na região leste de Juiz de Fora, MG. Trata-se de uma região de
6 Observação de SKOVSMOSE, Ole. Educação Matemática Crítica: A questão da democracia. 3. ed. Campinas (SP): Papirus, 2001. 7 Democracia Racial está diretamente relacionada com a problemática do racismo e discriminação, e sugere que o Brasil conseguiu lidar e resolver esses problemas relacionados ao racismo e ao preconceito. o mito da democracia racial ganhou corpo nos anos 1930, dentre outras coisas, pelas publicações do antropólogo e educador Gilberto Freyre. Disponível em: <https://www.portalraizes.com/democracia-racial/> Acesso em: 29 jun. 2018.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
expressiva população negra, com representatividade assemelhada a da região da Escola
Gabriel, onde se desenvolvem as ações do grupo coirmão do GPS Ubuntu.
3. O CENÁRIO TEÓRICO DE NOSSOS PRESSUPOSTOS
A partir do contexto descrito até aqui, a Educação Matemática Crítica passa
naturalmente a representar uma importante orientação teórico-metodológica para as
ações do do GPS Ubuntu, na Escola Cândido Motta. As ideias e conceitos de materacia,
já descrito, abstrações para pensar, abstrações concretizadas, empowerment, cenário
para investigação e ambientes para aprendizagem, além de competências democráticas,
fazem parte do léxico e campo semântico que envolve as atividades de investigações
realizadas nas ações pedagógicas nestes grupos e nestas escolas. Estas proposições
ou até mesmo categorias de análise, como dissemos, foram desenvolvidas e discutidas
por Skovsmose (2001,2008).
Também como uma decorrência natural, a Etnomatemática entra em cena como
importante orientação para este estudo uma vez que se estrutura, justamente sobre o
pressuposto de que povos diferentes:
Têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido instrumentos de reflexão de observação, instrumentos teóricos e, associados a esses, técnicas, habilidades (teorias, techné, ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender (matema), para saber e fazer como resposta necessidades de sobrevivência e de transcendência, em ambientes naturais, sociais e culturais (etnos) os mais diversos. (D’AMBRÓSIO,1996, p.27)
Considerando o contexto urbano, e mesmo o modo de vida associado a grupos
sociais específicos, pode-se afirmar também que a Etnomatemática é um importante
instrumento para desconstrução de paradigmas. Ela se refere a um olhar antropológico
trazido para o campo de ensino e aprendizagem duro como o da matemática e:
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Not only refers a specific ethnic, national, or racial group, gender, or even profissional group, but also to a cultural group defined by a philosophical and ideology perpective. The social and intellectual relations of individuals to nature or the world and to such mind-dependent, cultural objects as productive forces influence hat are products of the mind labeled mathematical ideas. (FRANKENSTEIN AND POWELL, 1997, p.173).
O cenário do espaço de pesquisa como o das comunidades tradicionais
quilombolas como a Colônia do Paiol são, deste modo, o lugar e território de
singularidades etno-cultuais propicio ao estudo de saberes etnomatemáticos. Estes
ambientes não só proporcionarão a nossos alunos a possibilidade de construção de suas
trajetórias escolares, sobre bases epistemológicas mais ricas, como também e talvez
principalmente, lhes possibilitarão questionar modos habituais, cristalizados, que
envolvem assimetrias sociais e raciais, com as quais lidamos cotidianamente.
Assim como D’Ambrósio (2004), acreditamos que:
É hora de adotarmos novas propostas historiográficas e epistemológicas que permitem lidar com a difícil tarefa de recuperar, na história das ciências e da tecnologia, o equilíbrio triangular que deve resultar da mescla de tradições indígenas, europeias e africanas na cultura latino-americana. (D’AMBRÓSIO,2004, p.41).
No trabalho de campo na comunidade quilombola o que se processa é um contato
com a ancestralidade africana, mediado por uma descendência que em tese mantém-se com
status privilegiado de preservação de cultura e costumes. Assim o que se procura é conhecer
e identificar modos, peculiares de vida e de interpretação do mundo. Portanto é
imprescindível não perdermos de vista que:
A aquisição e elaboração do conhecimento se dá no presente, como resultado de todo um passado, individual e cultural, com vistas às estratégias de ação no presente e projetando-se no futuro, desde o futuro imediato até o de mais longo prazo, modificando assim a realidade e incorporando a ela novos fatos, isto é, “artefatos” e “mentefatos”. (D’Ambrósio,2005, p.108).
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Uma das temáticas tradicionalmente negligenciadas nos currículos escolares
certamente é aquela que se pode genericamente chamar de questão racial brasileira e
há muitas maneiras de nomear o que está no cerne desta ausência. Pode-se chamá-la
de racismo; identificá-la como resultante da Ideologia do branqueamento; descrevê-la
como um dos processos contemporâneos da colonialidade do poder. Podemos ainda
nos referir ao projeto em análise neste trabalho, alinhando-o à aqueles que se propõem
a descolonizar os currículos, portanto o que construímos é um olhar decolonial para
prática pedagógica nas salas de aula de matemática. Cada uma destas perspectivas,
anteriores envolve, um olhar descrito por um ou mais autores, pesquisadores e
pesquisadoras. Utilizamos a denominação olhar decolonial para descrever esta proposta
pedagógica dado que ela se afeiçoa, ao conjunto de práticas, de estratégias e de
metodologias com as quais se fortalece a construção das resistências e das insurgências
(WALSH, 2013, p. 20). A colonialidade do poder por sua vez refere-se a:
Um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal. (QUIJANO, 2010, p.73)
O ambiente propiciado pela Etnomatemática e pela Educação Matemática
Crítica, tem se materializado no espaço teórico e metodológico, privilegiado para o
desenvolvimento de ações investigativas acadêmicas e/ou pedagógicas, que propiciem
a emergência do tema do racismo e correlatos em nossos espaços escolares. Nesse
contexto, a educação matemática tem se constituído numa área de múltiplos olhares e:
Uma área que se impõem, construindo seu discurso, advogando pela interdisciplinaridade, certamente não pode impunimente basear-se em
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parâmetros radicados em concepções de ciência que não reconhecem (ou negam ou dificultam) o diálogo entre áreas. (GARNICA,1999, p.61).
Na verdade, já a algum tempo, sobretudo no campo da produção acadêmico-
científica, tem se fortalecido um interesse crescente sobre o papel social e político da
Educação Matemática. No entanto para o espaço deste trabalho, poderíamos apenas
citar alguns poucos exemplos. Além da Etnomatemática de D’Ambrósio (2001) e a
Educação Matemática Crítica de Skovsmose (2001), temos as preocupações de
pesquisadores como Frankenstein e Powell (1997), que já naquela oportunidade,
desafiavam o eurocentrismo na educação matemática8, sinalizam para a necessidade
de se questionar um modus habitual de conceber o conhecimento e de organização do
currículo escolar. É por esta razão que inscrevemos este minicurso como um modo de
questionar o mito da democracia racial que nos impele a naturalizar as assimetrias
sociais (e étnico-raciais) em práticas cotidianas. Somos herdeiros de uma escola
construída sobre o mito da onipotência do conhecimento eurocêntrico que “persiste e
influência o currículo escolar, mesmo em uma disciplina supostamente neutra como a
matemática” (Ibidem, 1997, p.02)9.
A Ideologia do branqueamento por sua vez, representou um modo peculiar como
o Brasil pois fim ao problema do negro no pós-abolição. Trata-se da tese “aceita pela
maior parte da elite nacional no período entre 1889 e 1914 (...) baseada no pressuposto
da superioridade branca” (SKIDMORE, 2012, pp.110-111). De algum modo as
instituições modernas, como o caso da mídia impressa analisada neste minicurso,
cumprem reificado, o papel da Ideologia do branqueamento.
Em termos de considerações finais nesta parte teórica, devemos dizer que o
cenário da própria experiência de um trabalho que envolve a sala de aula de matemática,
8 Uma alusão e tradução livre ao título do livro organizado por estes autores: Ethnomatematics: Challenging Eurocentrism in Mathematics Education.
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transposta a outros espaços - o território de uma comunidade tradicional quilombola -
alimentado por aportes e reflexões teóricas importantes como as que vimos até aqui, já
cumpriram parte significativa dos propósitos de des-reconstrução curricular como
sinalizamos ao longo do texto. Mais do que isso, o que está por vir nas relações que se
estabelecerão na parte do trabalho que envolve o campo, certamente enriquecerão
nossas e já demonstram frutos como pretendemos mostrar nas descrições do primeiro
contato com a comunidade do paiol.
4. O TRABALHO NO CAMPO: PRIMEIRAS INDICAÇÕES E CAMINHOS
Ainda que a colonialidade, seja algo distinto do colonialismo como afirma Quijano
(2010), e que o último represente um processo formal de dominação que é levado a
termo com o fim dos regimes escravocratas, em alguma medida, as relações de
dominação colonial se estendem contemporaneidade reificadas, como é parte do modus
operandi de quaisquer orientações ideológicas.
Entre os moradores da comunidade Colônia do paiol e os da cidade de Bias
Fortes e a própria administração municipal, ainda que não se possa falar em dominação,
nossas primeiras observações nos dão conta da existência do que, preliminarmente,
vamos chamar apenas de indisposições. Já é possível considerarmos pelas falas de
alguns dos moradores da Colônia que são nas relações com “os de fora”, que se
represam boa parte dos problemas da comunidade.
Talvez possamos dizer que há elementos de colonialismo e colonialidade nestas
relações.
Lembremos que:
O colonialismo pode ser tomado como uma “estrutura de dominação/exploração onde o controlo da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial” (Quijano, 2010, p. 73)
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Se dominação, talvez seja um termo forte demais para descrever as relações que
se estabelecem entre a Colônia do Paiol e a cidade de Bias Fortes, pode-se aludir a uma
certa dependência da primeira em relação a segunda, aliada a uma forma intensa de
clivagem em bases raciais que se impõe tanto aos moradores da colônia, quanto aos “de
fora”, que é modo como os primeiros se referem aos moradores de Bias Fortes.
4.1 A VIAGEM ATÉ A COMUNIDADE COLÔNIA DO PAIOL
A negociação de nossa viagem para o trabalho de campo na Comunidade Colônia
do Paiol, fora intermediada pelo Prof. Leonardo Carneiro10 cerca de um mês antes dela
ocorrer. A Universidade Federal de Juiz de Fora, possui um Núcleo de Geografia Espaço
e Ação (NuGea), que tem como uma de suas linhas de pesquisa o tema Territorialidades
afro-brasileiras, coordenada pelo professor Leonardo. Há importante produção
acadêmico-científica baseada em estudos nesta comunidade quilombola e a UFJF, por
intermédio do referido núcleo, está organizando um banco de dados.
10 Professor do Departamento de Geociências e Programa de Pós-graduação em Geografia
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Figura 1: Vista parcial da Comunidade Quilombola Colônia do Paiol
Assim nossa primeira viagem ocorreu no dia 9 do mês de Junho de 2018 num
sábado depois de um processo longo de negociação do transporte. Foram praticamente
duas horas de viagem até a Comunidade Colônia do Paiol, localizada a
aproximadamente 80 km de Juiz de Fora e a 6 km do município de Bias Fortes, ao qual
está vinculada. O ônibus que nos levaria partiu da Escola Cândido no Bairro São
Benedito. Marcada para as 6:30 da manhã, conseguimos sair as 7:00, depois que todos
os pesquisadores e convidados, chegaram. Havia bastante expectativa por parte de
todos os integrantes do grupo de viagem, mas principalmente dos pesquisadores e
pesquisadoras. O tempo estava nublado e isto causou certa tensão quanto às condições
da estrada de “chão” que iríamos encontrar. O grupo que participou desta primeira
viagem de pesquisa foi composto por 19 pessoas sendo 12 pesquisadores (as) além de
professores (as), direção escolar e convidados.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
Parte do percurso da viagem se deu em estrada asfaltada e talvez uns 7km finais,
tenham sido percorridos em estrada de “chão”. Eu já havia estado na Comunidade a uns
anos atrás, como parte das atividades de uma especialização que cursara na UFJF e
que envolvia escolas e saberes de comunidades tradicionais. Foi neste primeiro contato
que decidi que traria os pesquisadores (as) do GPS, mas naquela oportunidade
intencionava trazer os alunos (as) pesquisadores (as) da educação básica do GPS da
Escola Gabriel, para um trabalho de campo. Quando desta primeira visita a comunidade,
ouvira de um morador da Colônia uma crítica que revelava uma certa tensão e cansaço
no contato, rotineiro, com pesquisadores e professores, na maior parte vinculados a
programas da UFJF. A fala do morador interpretada aqui uma vez que não a registrei,
indicava algo como: eles vêm, sugam de nós, vão embora e não nos dão nada em troca.
Desde então, o curso ocorrera em 2015 e, portanto, já se vão três anos, decidi que se
algum dia voltasse com meus alunos pesquisadores, em trabalho de campo, na
comunidade do paiol, ofereceria algo em troca.
Figura 2: GPS Ubuntu na Comunidade Colônia do Paiol
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Assim que chegamos na Colônia, nos dirigimos para a Escola Municipal Prefeito
Joaquim Ribeiro de Paula onde se realizava uma festa junina e os alunos dançavam uma
quadrilha. Era sábado letivo na escola que é municipal e vinculada a rede de ensino de
Bias Fortes. Em contato telefônico no dia anterior, já sabia que encontraria lá a
personagem que vamos chamar de Joana.
5. CONSIDERAÇÕES: TEMÁTICAS OU EIXOS DE PESQUISA
Como se trata de pesquisa em projeto pedagógico em andamento, a partir deste
primeiro contato traçamos algumas linhas indicativas a prosseguir. São elas:
Educação: os alunos do fundamental I são atendidos na Escola, na própria
Colônia, enquanto os do ensino fundamental II, ensino médio e Educação de Jovens e
Adultos têm que se deslocar para escolas de Bias fortes; a maior parte dos professores
são de Bias Fortes, e apenas uma, pertence à Colônia, justamente a presidente da
Associação. A coordenadora pedagógica da escola da comunidade, embora resida em
Bias fortes, mostrou-se bastante informada quando a necessidade da caracterização da
instituição escolar como escola quilombola e nos relatou as ações pedagógicas que têm
Figura 3: GPS Ubuntu na Comunidade Quilombola Colônia do Paiol. Igreja Nossa Senhora do Rosário
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sido realizadas neste sentido. Este eixo é assim potencial para a sequência de nossos
estudos.
Posse da terra: A distribuição e regulamentação das terras do quilombo também
foi um problema levantado neste primeiro contato. O que se sugere é que o tamanho das
terras do quilombo está se reduzindo com o passar dos anos. Isto revela o importante
aspecto da resistência e posse da terra, como tema a ser discutido pelos pesquisadores
(as) do GPS Ubuntu.
Segurança: Há importantes relatos de atos de violência que “nos últimos tempos”
vêm ocorrendo na Colônia. A escola foi roubada várias vezes e os autores parecem ser
conhecidos por todos na localidade; algumas moradias foram incendiadas como
resultado de conflitos.
“Os de fora”: o registro deste tópico nos parece bastante importante pois a
referência aos “de fora” surgiu várias vezes em conversas com pelo menos três
moradores. Todos os problemas relativos à segurança descritos no tópico anterior, são
a eles creditados. Até mesmo o único relato de violência em cuja o autor é nascido na
Colônia, trata-se de um colono que fora morar em Juiz de fora uns tempos.
Relação com Bias fortes: A dependência da comunidade, em relação aos
aparelhos e dispositivos de proteção social, da cidade de Bias fortes é evidente. Não há
médicos nem enfermeiros na Colônia; não há postos policiais e as possibilidades de
comércio parecem reduzidas: Bias Fortes, Juiz de Fora.
As famílias e o território: Há vários comentários sobre as origens da comunidade
que se remetem a existência de uma fazenda com trabalho escravo em que o dono
passara, em testamento, suas terras a 9 de seus ex-escravos. Trata-se do fazendeiro
José Ribeiro Nunes (1890/1891)11 que concedia à: Tobias, Gabriel, Adão, Justino,
Quirino, Maria Creola, Camila Parda, Sebastião e Justiniano a posse das terras da
localidade do Paiol no então distrito de Quilombo, hoje Bias Fortes.
11 Informações extraídas a partir de narrativas dos mordadores.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
As sequências de nossas visitas ao campo seguirão em princípio estas linhas,
mas, como todo trabalho de cunho etnográfico, estas trajetórias provavelmente serão
reformuladas e a elas, outras, certamente se juntarão.
REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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