Governo de Cristina Kichner perde base política e socialvendas do Brasil caiu 9,7% ante igual mês...

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Luiz Fernando da Silva Lamericas.org Maio de 2014 GOVERNO DE CRISTINA KICHNER PERDE BASE POLÍTICA E SOCIAL

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Luiz Fernando da Silva

Lamericas.org

Maio de 2014

GOVERNO DE CRISTINA KICHNER PERDE

BASE POLÍTICA E SOCIAL

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Governo de Cristina Kichner perde base política e social:

ajustes econômicos e descontentamento social

Luiz Fernando da Silva1

O kirchenerismo demonstra crescente debilidade política, depois de sua

terceira vitória nas eleições presidenciais de 2010. Esse fato se manifesta em três

dimensões: a) ainda que mantenha maioria na câmara de deputados e no senado,

o governo sofreu grande derrota nas eleições de outubro de 2013, b) dissidência

de setores sindicais que apoiavam o kirchnerismo e duas greves gerais ocorridas

em 2012 e 2014; c) crescente perda de sua base política partidária e parlamentar.

O aspecto nevrálgico desse cenário político reside na crise econômica no país,

que reproduz as linhas gerais da crise capitalista internacional. De maneira

semelhante a outros países da região, na Argentina são altos e descontrolados os

índices inflacionários, persiste a queda da atividade econômica, e aumenta

continuamente a dívida pública (interna e externa). Nesse quadro, o governo

optou por realizar uma série de ajustes econômicos antipopulares, especialmente

centrado em corte de subsídios e política de arrocho salarial. Além do mais, nesses

últimos meses ocorreu uma reaproximação com Fundo Monetário Internacional

(FMI), relação que estava rompida desde 2007, com o objetivo dessa instituição

endossar as negociações argentinas com os bancos internacionais do Clube de

Paris. Para isso, como a história nos lembra, é necessário seguir a cartilha ortodoxa

daquela instituição.

Os problemas para o governo de Cristina Kirchner acentuaram-se a partir de

2012, quando os reflexos da crise capitalista internacional expressaram-se mais

intensamente no país. O vencimento dos juros e amortizações da dívida externa

alcançaram cerca de U$$ 12 bilhões em 2012; a redução da produção de

automóveis, especialmente pela queda de demanda brasileira2, não parou desde

1 Docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Graduado em História, Mestre e Doutor em Sociologia pela UNESP, com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires (UBA). Coordena o grupo de pesquisa “América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura” (CNPq) e o Portal Lamericas.org. 2 Em declínio desde o início da crise cambial argentina, em 2012, o intercâmbio comercial tem piorado mês a mês, sobretudo nos manufaturados. No primeiro bimestre de 2014, as vendas brasileiras ao vizinho recuaram 12%, para US$ 2,37 bilhões. A fatia argentina nas vendas nacionais caiu de 8,5% para 7,4%. As

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então. Nas áreas rurais, a grande seca daquele ano impôs significativa diminuição

das exportações de comoditties agropecuárias. Por fim, a desastrosa política

energética desembocou no déficit energético que causou um dispêndio anual em

importações de gás e gasolina por volta de U$$ 12 bilhões de dólares. Corolário

desse cenário, a alta inflacionária descontrolada levou o governo a priorizar

medidas de ajuste antipopulares para reduzir os gastos públicos e manter aquecida

a economia para os setores empresariais.

Entre os ajustes para controlar a inflação, Cristina tentou limitar os reajustes

de salários abaixo do nível inflacionário, nas “paritárias” (campanhas salariais), a

partir de 2012.

Nos anos do kirchnerismo, os reajustes salariais estiveram acima da inflação,

sendo que nos últimos anos os reajustes ficaram acima de 30%, enquanto a

inflação girava em torno de 25%. Certamente que esses números são estimativas

oficiais, mas existem denúncias sobre as manipulações dos índices inflacionários.

De qualquer maneira, isso permitiu, até o ano de 2012, o apoio integral da Central

Geral dos Trabalhadores (CGT), conduzida pelo burocrata sindical Hugo Moyano,

e da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), presidida pelo kirchnerista

Hugo Yasky.

Essa consolidação da base de apoio governamental foi possível também por

causa da institucionalização de inúmeros líderes populares e de esquerda em cargos

dentro do aparelho de Estado. Além das burocracias sindicais, o kirchnerismo

logrou nesse trajeto, desde 2003, trazer para si o apoio de setores de diversos

movimentos sociais piqueteiros (desempregados), que se constituíram desde a

década de 1990, contrários às políticas neoliberais do então presidente Carlos

importações da Argentina encolheram 23%. O total de importações e exportações entre os parceiros está em declínio: em janeiro, teve o pior resultado desde o início de 2013. Em fevereiro, a média diária de vendas do Brasil caiu 9,7% ante igual mês de 2013, para US$ 1,16 bilhão. A Argentina tem papel essencial na estratégia comercial brasileira, já que absorve boa parte dos manufaturados. Em 2013, a Argentina comprou US$ 19,6 bilhões e vendeu US$ 16,4 bilhões ao Brasil. Vide: Mauro Zanatta, “Brasil tenta novo acordo com Argentina. Missão brasileira vai a Buenos Aires propor uma 'operação salvamento' do comércio, com pagamento em moeda local, sem uso de dólares”, O Estado de São Paulo, 11 de março de 2014. www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=impresso,brasil-tenta-novo-acordo-com-argentina,1139421,0.htm

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Menem (1989-1998) e da curta gestão de Fernando De La Rua (1998-2001).

Também conseguiu apoio de direções independentes e da esquerda surgidas nas

lutas sociais: a líder das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, diversos setores

piqueteiros e inúmeras direções sindicais surgidas em períodos mais recentes

contrárias à burocracia sindical da CGT e CTA.

De qualquer modo, a partir de 2012, a presidenta rompeu o acordo com o

movimento sindical argentino, tentando limitar os acordos salariais entre grêmios

(sindicatos) e empresas a índices abaixo da inflação. Esse fato levou ao

rompimento político de setores sindicais com o governo. Em junho daquele ano,

o setor sindical da CGT Alcorza, liderado pelo poderoso burocrata Hugo Moyano,

convocou uma greve de caminhoneiros que deixou sem combustível várias regiões

do país.

A greve geral em 10 de abril de 2014 expôs novamente o distanciamento de

setores sindicais em relação ao governo. Foi convocada no final de março pelas

oposicionistas CGT Alcorza, liderada por Hugo Moyano, CGT Azul e Branca, por

outro burocrata do setor de hotelaria e alimentos, Luis Barrionuevo, e também

pela CTA Opositora, liderada por Pablo Micheli. Basicamente, a reivindicação

girou em torno de reajustes salariais entre 30% e 32%, e manutenção dos

subsídios3 ao gás, gasolina e transportes.

A paralisação concentrou-se no sistema de transportes (metrô, trens, ônibus

e transportes de carga), além de ocorrerem inúmeros piquetes em regiões centrais

de Buenos Aires e outras regiões argentinas encabeçados por setores da esquerda

sindical, e possibilitou de fato uma real greve geral, nunca ocorrida no governo

dos Kirchner.

Para o ministro do Trabalho, Carlos Tomada, houve somente uma impressão

de paralisação que foi produzida “pelos piquetes dos partidos de esquerda”4; além

disso, afirmava que não seria modificada nenhuma linha da política econômica

oficial. Em resposta à paralisação nacional, o governo manteve-se inflexível na

maneira de combater a inflação por meio de mais medidas antipopulares, como o

3 Veronica Smink, “Argentina: el paro que retó al gobierno de Cristina Fernández”, BBC Mundo Argentina, 10de abril de 2014. www.bbc.co.uk/mundo/noticias/2014/04/140409_argentina_paro_general_vs.shtml 4Clarin, “Arranca el paro sindical contra la inflación y el ajuste”, 10/04/2014. www.clarin.com/politica/Arranca-paro-sindical-inflacion-ajuste_0_1117088752.html

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corte de subsídio ao gás e à gasolina, além da decisão de manter os reajustes

salariais abaixo da inflação.

A perda de base política e social kirchnerista também é possível verificar nas

eleições legislativas de 27 de outubro de 2013, que confirmaram a perda de apoio

social da presidenta Cristina Fernandéz de Kirchner. Não conseguiu obter dois

terços de parlamentares na Câmara, dificultando assim o trânsito de projetos

governamentais no parlamento e, principalmente, a mudança na carta

constitucional que permitiria a Cristina sua segunda candidatura à reeleição em

dezembro de 2015. Apesar disto, ainda manteve maioria simples nas duas casas

(Câmara e Senado).

Soma-se a essa crescente desconfiança popular no governo, os saques a

pequenos comércios e residências que atingiram cidades como Córdoba, Chaco,

Catamarca, Neuquén e Río Negro, além do blecaute energético que deixou mais

de 800 mil pessoas sem luz elétrica em Buenos Aires, no final de 2013.

A crise econômica argentina

Para tentar evitar o crescimento do déficit público, o governo de Cristina

Kirchner determina três eixos econômicos centrais: a) mantem a política de

reajustes salariais abaixo da inflação; b) a partir de abril cortou parte dos subsídios

ao gás e à energia elétrica, o que significa aumento do reajuste das tarifas; c)

continua e amplia o congelamento dos preços das mercadorias de primeira

necessidade, por meio do acordo com empresas chamado Preços Cuidados5, e

iniciou uma campanha contra o ágio e a especulação.

Em meados de março de 2014 veio à tona a informação que o governo

preparava um plano de corte dos subsídios de gás e energia elétrica. Cerca de

metade dos usuários de gás no país teriam o benefício cortado. 3.200 milhões de

famílias (42%) seriam atingidas com os cortes de subsídios de gás. Em área

5 A lista de Preços Cuidados envolve 302 produtos que vão desde alimentos até produtos de limpeza e perfumes, classificados em dez categorias. Inicialmente eram 102 produtos, no acordo assinado com as empresas em janeiro de 2014, aos quais foram acrescentados 194 em abril. Também foram concedidos reajustes de 3,2% aos preços desses produtos. www.ieco.clarin.com/difundio-nueva-lista-Precios-Cuidados_0_1117688634.html

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metropolitana e províncias de Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba, haveria corte no

subsídio em 50% para quem consumisse anualmente entre 1.000 e 2.000 metros

cúbicos. Para aqueles que consumem anualmente mais de 2.400 metros cúbicos

perderiam os subsídios. O corte ao subsídio à energia elétrica alcançaria cerca de

750 mil famílias.

Além disso, a Argentina sinaliza a retomada de negociações com o FMI,

como é possível entender a partir da participação do ministro da Economia, Axel

Kicillof, na reunião semestral dessa instituição6, ocorrida em Washington, em abril

passado. Desde 2007, a Argentina não aceitava supervisão anual do FMI, como

prevê o dispositivo da Carta do organismo (artigo IV). Argentina e outros cinco

países mantêm essa posição: Venezuela, Equador, Somália, Eritreia e Egito.

A participação de Kicillof nessa reunião indica nitidamente a decisão do

governo argentino na reaproximação com o FMI, visto que o país precisa do seu

aval para realizar a negociação com seus credores internacionais localizados no

Clube de Paris. O país negocia nesse período uma dívida de $ 10 bilhões de

dólares. O Fundo é o avalista principal de tais negociações e, somente concede

seu apoio quando o país cumpre algumas medidas em suas economias, tais como

diminuição do déficit público, controle da inflação etc.

O aval positivo do organismo veio pela voz do seu funcionário, Alejandro

Werner, diretor do FMI para América Latina, na abertura da reunião semestral, ao

realizar uma série de elogios às medidas adotadas na política econômica argentina.

Werner considera corretas as medidas de ajustes econômicos para combater a

elevação do endividamento público argentino. Em decorrência da queda de

reservas monetárias do país, o governo argentino teria agido com medidas

apropriadas flexibilizando o câmbio, subindo a taxa de juros e cortando os

subsídios: “Todas vão em direção correta”, “cremos que são as políticas

apropriadas para frear a pressão que estava tendo na balança de pagamento.

Agora também as autoridades estão se concentrando na contenção dos efeitos da

inflação”7.

6 Paula Lugones, “El FMI elogió la devaluación y la quita de los subsídios”, Clarin, 12/04/2014. www.clarin.com/politica/FMI-elogio-devaluacion-quita-subsidios_0_1118888157.html 7 Idem.

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O trajeto do kirchnerismo

O “kirchenerismo” mantem-se no governo desde 2003. O falecido Néstor

Kirschner venceu a eleição presidencial em 2003; depois sua esposa elegeu-se em

2007; e em outubro de 2010, Cristina Kirchner logrou sua reeleição com 54% dos

votos válidos. Essa corrente política dentro do Partido Justicialista, que durante o

período foi hegemônica, sofreu contínuas pressões políticas fosse pelos setores do

agronegócios, industriais, capital financeiro e, nos últimos dois anos, pelos

trabalhadores que realizaram duas greves gerais (2012 e 2014).

O governo kirchnerista segue as características que evidenciamos em outros

trabalhos: governo de Frente Popular que mantem traços de nacionalismo,

especialmente no discurso, e ancorado em propostas chamadas

“neodesenvolvimentistas”. Diferentemente de outros governos da região, Néstor

Kirchner não é originado de lutas e movimentos sociais (populares e sindicais)

contra as políticas neoliberais.

A história de Néstor e Cristina Kirchner é de militantes estudantis próximos

aos montoneros que, logo após a formação profissional na Faculdade de Direito

da Universidade de La Plata, transferem-se para a província de Santa Fé onde

fazem carreira como advogados8. Em 1991, Néstor foi eleito governador de Santa

Fé pelo Partido Justicialista, e reeleito em 1995 e 1999. Cristina, por sua vez,

tornou-se senadora da República. Em nenhum momento soma-se a essa história

qualquer resistência contra as políticas privatizadoras de Carlos Menem. Pelo

contrário, como governador da província, Kirchner apoiou a privatização da

petroleira PDVSA em sua região. Néstor torna-se candidato do peronismo em

razão de um vazio político entre os justicialista.

Após a queda de Fernando de La Rua, em dezembro de 2001, o Partido

Justicialista não tinha candidato para as eleições de 2003. O PJ estava em

8 Sobre a trajetória do casal Néstor e Cristina Kirchner, vide o livro das jornalistas Valeria Garrone e Laura Rocha, Néstor Kirchner. Um muchacho peronista y la oportunidade del poder, Buenos Aires: Ed. Planeta, 2003. Para uma análise sobre os Kirchner, a partir de uma perspectiva kirchenerista, vide o trabalho do sociólogo Julio Godio, El tempo de Kirchner. El devenir de uma “revolución desde arriba”, Buenos Aires: Letra Grifa, 2006.

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frangalhos em decorrência do período Menem. O presidente provisório Eduardo

Duhalde, senador e presidente do PJ, por sua vez, não podia se candidatar porque

estava com sua imagem política debilitada, pois acionou os aparatos repressivos

contra os movimentos sociais em 2002. Nessa situação Kirchner, então

governador de Santa Cruz, conseguiu o aval de Duhalde para disputar como

candidato as eleições presidenciais daquele ano. Duhalde tinha como esperança

que poderia controlar politicamente o seu recém aliado. Nestor vai para disputa

de segundo torno com 20% de votos contra o ex-presidente Carlos Menem, que

conseguira 28% dos votos, mas desistiu de disputar o segundo turno em razão da

impossibilidade eleitoral. A estratégia de Menem era clara: sabia que não

conseguira ganhar no segundo turno e não queria fortalecer seu rival.

O então novo presidente da República, portanto, assumiu a Presidência

muito fragilizado politicamente. A situação revolucionária de 2001 não tinha se

apagado e os movimentos sociais continuavam mobilizados. A alternativa para

Kirchner foi radicalizar suas propostas, especialmente o discurso nacionalista,

acelerando os processos contra os militares torturadores, realizando concessões

para os movimentos sociais, especialmente com subsídios e reajustes salariais acima

da inflação, e reprimindo as elevações de preços nos supermercados. E,

principalmente, construindo sua base de sustentação política em torno de

movimentos e lideranças sindicais, populares e de esquerda política.

Como historicamente acontece no país, a acirrada disputa pela renda da

terra, decorrente das potencialidades naturais das terras argentinas, manteve-se.

Não é diferente essa situação na Venezuela com a renda petrolífera. A diferença

da Argentina é que nesse país desenvolveu-se um setor industrial não somente

local, mas também transnacional.

É ilustrativa da disputa da renda da terra as lutas sociais desencadeadas no

ano de 2008, pelos setores envolvidos com o agronegócios. Ocorreu uma queda

de braço entre o governo e o setor ligado aos pecuaristas e agricultores de soja,

uma complexa estrutura econômica envolvendo inúmeras frações da burguesia,

ligadas à exportação de commodities. No período, a reivindicação dessas frações

da burguesia argentina encontrava-se na eliminação das retenções de impostos de

importações que chegava a cerca de 27% do que era exportado. As paralisações

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agrárias seguiram-se durante o ano, criando problemas de desabastecimento.

Depois dos acontecimentos, os acordos diferenciados com as frações do

agronegócios possibilitaram uma divisão entre tais setores e o refluxo daquelas

mobilizações.

Crise econômica e crise no kirchnerismo

As eleições de outubro de 2013, como anteriormente comentei, significaram

grande derrota para as pretensões de Cristina Kirchner. Cristina objetivava

reformar a constituição federal, para que pudesse novamente se candidatar à

eleição presidencial de 2015. Para isso, necessitava 2/3 de parlamentares no

Congresso. A Frente para a Vitória (FPV), no entanto, obteve 32,50% dos votos,

o que lhe possibilita uma maioria simples de 132 cadeiras na Câmara de Deputados

e no Senado também manteve maioria9. Neste sentido a FPV segue como primeira

maioria nas duas casas e conservará seu peso político. A derrota eleitoral da Frente

para a Vitória (FPV), no entanto, foi contundente, levando por terra suas

pretensões.

Nessa nova situação, abriu-se o espaço político para os setores opositores ao

kirchenerismo, tanto de direita, ao exemplo do PRO e da FR e anti-K do Partido

Justicialista, como também abriu-se novo cenário para a esquerda socialista por

meio da Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT). Vejamos por partes.

Além disso, o governo perdeu as eleições legislativas em seu principal

reduto, a província de Buenos Aires e outros grandes redutos, como Córdoba,

Santa Fé e Mendonza.

Tal situação abriu um cenário de indefinições e disputas dentro do

kirchenerismo e no Partido Justicialista sobre os possíveis candidatos à presidência

da República em 2015. O candidato de oposição a Cristina Kirchner a deputado

federal, Sérgio Massa, prefeito de Tigre, província de Buenos Aires, obteve cerca

de 43% dos votos. Sua base política encontra-se constituída por ex-kircheneristas,

9 “El Frente para la Victoria perde legislativas em províncias clave, pero mantieve control del Congreso”, Rebelión, 28-10-2013.

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setores do Partido Justicialista e também do sindicalismo burocrático. Ex-chefe de

gabinete de Néstor Kirchner, Massa pretende disputar as eleições presidenciais de

2015. Sérgio Massa seria exemplo disso, pois consegue apoio em principais

lideranças da indústria, bancos e agropecuária. De outro lado, Daniel Scioli, ex

vice-presidente e governador de Buenos Aires, apresenta proposta de transição

política ordenada. Nas eleições realizadas, por sua vez, Scioli submeteu o discurso

da FPV à perspectiva da “mão dura” pela segurança pública, deixando de lado

temas como a relação do narcotráfico com o aparelho de estado.10

Por outro lado, outros setores conservadores lograram também vitórias

significativas, como o PRO em Buenos Aires, com a eleição para o senado de

Gabriela Michetti contra o candidato oficialista Daniel Filmus. Desta maneira, o

governador da capital federal e dirigente do PRO, Maurício Macri, aumenta suas

possibilidades como presidenciável. Por fora da estrutura justicialista, por sua vez,

Macri, com a consolidação eleitoral obtida na capital federal poderá ter papel

político importante na inclinação para apoio a uma das tendências no PJ.

Nesse cenário político consolidou-se política e eleitoralmente propostas de

esquerda que tiveram boa votação nas eleições de 2013. Conseguiu cerca de 1.400

milhão de votos, sendo que a FIT (Esquerda Socialista, Partido dos Trabalhadores

Socialista, Partido Operário e independentes) obteve aproximados 1.200 milhão

de votos. A votação obtida pela FIT reside centralmente no trabalho político

sistemático que seus militantes desenvolvem há décadas nos sindicatos operários

contra a burocracia sindical e nas lutas por demandas concretas e organização

trabalhista, nas regiões fabris e nos bairros de concentração operárias e populares,

como também no meio estudantil11.

A postura contra os partidos tradicionais e contra o kirchenerismo, apoiando-

se em demandas econômicas concretas para os trabalhadores, permitiu a FIT

ampliar sua base eleitoral. Isso ocorreu justamente no momento em que o

kirchenerismo encontra-se em profunda crise e com acentuadas divisões internas,

incoporando cada vez mais medidas de ajustes econômicos antipopulares.

10 Franck Gaudichaud, entrevista com Claudio Katz e Eduardo Lucita, “Um nuevo escenario com la izquierda”, Rebelión, 29-10-2013. 11 Guilherme Almeyda, “Lo nuevo y lo viejo em las eleciones argentinas”, Rebelión, 31-10-2013.

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A esquerda socialista argentina tem grande incidência no movimento

operário e sindical, como também estudantil. No entanto, logrou também espaço

eleitoral, fenômeno que ocorreu em poucos momentos históricos. Desta maneira,

a FIT conquistou três deputados nacionais, um deputado na capital federal e dez

representantes em legislaturas locais. A soma de votos obtida pela esquerda

ultrapassou a participação da esquerda em outras eleições, ao exemplo da Frente

do Povo (FREPU) e a Esquerda Unida (IU) – aliança entre o MAS e o PC, na década

de 198012.

Diante do quadro social e político crítico para o Governo de Cristina

Kirchner, a base política governista tenta demonstrar unidade e apoio ao

kirchenerismo. Por exemplo, com a consigna “Mais democracia e mais Estado com

mais organizações populares”, diversos partidos políticos, agrupações sociais e

sindicatos ligados ao governo lançaram o Espaço Convocatória Popular, com o

objetivo de “aprofundar os grandes êxitos obtidos e fortalecer o projeto nacional

e popular que lidera a presidenta Cristina Kirchner”13. Diz o documento: “Estamos

convencidos de que devemos recriar as utopias e consolidar os avanços que nos

conduziram até aqui, o que implica aprofundar os grandes êxitos obtidos,

promovendo mudanças estruturais para ampliar a democracia e conseguir mais

igualdade, assim como fortalecer a organização popular que as concretize. Por

isso, assumimos nossa parte na construção de uma base política e social para

assegurá-lo”. E finaliza afirmando: “O fazemos com o objetivo de fortalecer o

projeto nacional, popular, democrático e latino americanista que lidera a

presidenta Cristina Fernandez de Kirchner.”

Ainda consideram os objetivos práticos dessa rearticulação do campo

popular do kirchenerismo. O encontro teve um caráter eminentemente político,

com proposituras para a ação, “com a decisão de ocupar espaços e intervir nos

processos eleitorais que estão por vir para seguir avançando em melhorias sociais,

direitos dos trabalhadores, qualidade de vida e democracia. Ainda como objetivo

máximo, propõe realizarem uma mudança profunda na Constituição Federal que

12 Idem. 13 “Partidos e organizaciones sociales lanzaron convocatória popular ‘Mais democracia y más Estado’”, Página 12, 11/03/2014.

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permitiria consolidar os avanços que ocorreram nos últimos anos. A partir de

então, passariam a chamar outras organizações e dirigentes para discutir tais

propostas e “uma linha de ação, metas e continuidade” do novo espaço

Convocatória Popular.

Outro exemplo relacionado à ação kirchnerista, no sentido de evitar maior

perda de espaço político, também ocorreu com a constituição da Corrente

Nacional da Militância, que tenta articular as correntes kircheneristas, através do

ministro da Defesa, Agustín Rossi e o secretário de Assuntos Relativos às Malvinas,

Daniel Filmus. Em seu lançamento na província de São Luís, a Corrente apresenta

a proposta de trabalhar para que em 2015 a presidenta eleja “um companheiro

que represente este projeto nacional e popular, de justiça e inclusão social”, afirma

Rossi. As transformações realizadas na Argentina, desde 2003 teriam combinado

“conhecimento, capacidade e sobretudo muita audácia”, “por isso não vamos

permitir que arrebatem os sonhos atrás da profunda crise econômica e social que

o neoloiberalismo provocou no país”, pois “na Argentina estão dadas as condições

para seguir tendo crescimento econômico sustentado e inclusivo”.

Embora ocorra esse movimento no sentido da unidade, ainda assim, as

crescentes dissidências com o kirchenerismo parecem uma tendência bem mais

acentuada, dentro do Partido Justicialista.

No Partido Justicialista, por meio da Liga dos Governadores peronistas, é

costurado um acordo no sentido de fixar a data do próximo congresso do Partido,

além de esboçar a futura mesa dirigente e reaproximar os três governadores anti-

K – José Manuel de la Sota (Córdoba), Daniel Peralta (Santa Cruz) e Claudio Poggi

(São Luis). Essa mesa substituiria aquela que foi eleita e encabeçada em 2008 pelo

ex-presidente Néstor Kirchner. Essa ação política interna na vida partidária indica

a crescente perda de poder do kirchenerismo, e uma tentativa de retorno ao

chamado “peronismo clássico”.

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Considerações finais

O quadro político e econômico na Argentina parece dar pouca margem para

manutenção ou ampliação de políticas compensatórias que durante cerca de uma

década foram a principal energia para o kirchnerismo. O FMI retorna como

elemento central na orientação da política econômica do país. Por outro lado,

Cristina Kirchner ampliou o leque de concessões para os setores empresariais. De

fato, os Kirchner nunca tiveram uma real preocupação e ação política no sentido

de recuperar a economia argentina, desestruturada pelo período abertamente

neoliberal com as privatizações de ramos estatais importantes, como

comunicacional, transportes, energia, e também não recuperou as condições e

direitos trabalhistas que se mantiveram desestruturados.

A atual situação do governo argentino, em relação à perda de sua base social

e política, guardadas as particularidades, assemelha-se ao que vem acontecendo

em países como Venezuela e Brasil. Nesses países, com crescentes protestos e

descontentamento social, em decorrência da elevação da inflação e problemas

sociais estruturais, seus governos tendem a perder base de apoio nas populações.

Ao mesmo tempo vão se constituindo pólos políticos aglutinadores desses

descontentamentos sociais, seja no campo da oposição da direita, seja no campo

da oposição de esquerda socialista (operária e popular). Somente nesse próximo

período veremos com mais nitidez para onde essa tendência se desenvolverá. De

qualquer modo, no caso do Governo de Cristina Kirchner, são cada vez mais

estreitos seu espaço político, embora ainda mantenha maioria parlamentar.