Gonçalo M Tavares
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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa
Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho
Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado
JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio
David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira
Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
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Contos Digitais DN
A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo
Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.
Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: A Moeda
Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto
Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso
ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com
© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora
ISBN: 978-989-8507-05-1
Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o
consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta
proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de
acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
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sobre o autor
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Gonçalo M. Tavares
Nasceu em Luanda, em 1970, mas vive em Portugal desde os 3 anos de idade. A sua
estreia literária deu-se em 2001, com O Livro da Dança , e desde aí não tem parado depublicar, de granjear leitores e reconhecimento nacional e internacional: 30 livros
numa década, do romance à poesia, passando pelos contos, o ensaio e o teatro; varia-
díssimos prémios; edições em mais de 40 países.
Recebeu, entre outros, o Prémio José Saramago 2005, o Prémio LER/Millennium bcp
2004 e o Prémio Portugal Telecom de Literatura 2007 (Brasil) pelo romance Jerusalém
(2004); o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco com água, cão, cavalo, cabeça
(2006); o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do
jornal Expresso com o livro O Senhor Valéry (2002); o Prémio Revelação de Poesia daAssociação Portuguesa de Escritores com Investigações. Novalis (2002). Mais recentemen-
te, pelo romance Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007) recebeu o Prémio de Melhor
Livro Estrangeiro publicado em França em 2010, e com Uma Viagem à Índia (2010) o
Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores 2011.
Em termos internacionais, podemos ainda destacar o Prémio Internacional Trieste
2008 (Itália) e o Prémio Belgrado Poesia 2009 (Sérvia).
Um pouco por todo o mundo, os seus livros têm dado origem a variadíssimos projetos
artísticos, arquitetónicos e académicos.
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A Moeda— • —
Gonçalo M. Tavares
Vass Kartopeck dobrou-se pela segunda vez para pegar na moedinha.
De novo! — exclamou.
A rapariga riu-se.
Num certo sentido, Vass Kartopeck estava doente. Manchas incómodas espalha-
vam-se por baixo dos olhos e ao nível do pescoço, obrigando-o a pequenos gestos para
acalmar aquilo que designava como sendo “um espantoso fervor no rosto”.
Numa noite já afastada no tempo — há alguns meses — a rapariga, depois do amor, e
com uma certa perversidade controlada, começou a contar as pequenas manchas escuras:
um, dois, três, quatro...
Está rico, senhor! — troçara — Mais de catorze manchas!
Kartopeck não parava agora de esfregar com a mão direita, sobretudo as manchas
debaixo dos olhos.Na presença da sua mãe, na consulta anterior, o médico dissera:
São manchas, simplesmente, que quer que faça? Se considerar que a boa apresenta-
ção física é sintoma de saúde, então vossa excelência estará doente. Se não, esqueça: as
manchas são feias, é claro, mas há quem, sem elas, esteja mais marcado.
Nessa altura, saiu do consultório ajudando a mãe; esta nada compreendera: há muito
havia perdido as capacidades mínimas que permitem a uma existência ser autónoma. Um
homem de rosto deformado ajuda uma velha — pensou, instintivamente, Vass Kartopeck,
tentando abstrair-se do olhar dos senhores da cidade com que se iam cruzando.Dias depois começara o tal fervor na pele: as manchas ardiam calmamente , em lume
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brando, dizia Kartopeck.
A rapariga, no entanto, não parara de troçar. Depois de mais uma oferta generosa ,
ainda no quarto, ela experimentara os limites da paciência do senhor Kartopeck. Primeiro
contara as moedas recebidas em voz alta, colocando-as num pequeno monte: um, dois,
três, quatro, cinco... Quando o monte desmoronava — o que aconteceu várias vezes — a
rapariga retomava a contagem: um, dois, três, quatro... Eram catorze moedas.
Esta contagem seguira-se — com um pequeno intervalo — à contagem das manchas
no rosto, daí o sorriso obsceno da rapariga.
Onze manchas — disse ela, primeiro.
E segundos mais tarde, disse:
14 moedinhas! — E sorriu para o senhor Vass Kartopeck.
Kartopeck trajava de um modo rude e era evidente que não permitia influências
excessivas da cidade no seu modo de vestir. Tudo o resto poderia ser visto como causaou efeito deste pormenor. Kartopeck raramente descia ao centro, e quando o fazia não
deixava de se sentir indisposto, prolongando acidamente um discurso negativo sobre os
movimentos e os hábitos que a turbulência do centro exigia aos cidadãos.
Algumas pessoas com quem se cruzava multiplicavam-se em gestos de uma rapidez
quieta e não produtiva que espantava o seu olhar observador. Aqueles homens tentavam
resistir à desordem e ao facto de não dominarem o tempo — nem o seu século, nem
aquele dia em particular — afundando-se num conjunto de rituais que envolviam braços
levantados, dedos esticados a chamar a atenção de um meio de transporte mais rápido,tanto burburinho, mas no fundo tudo aquilo não passava de uma espécie de exibição de
possibilidades, vindas de corpos claramente habituados a aceitar, e não a exigir. Assim
pensava Vass Kartopeck, que no seu pequeno mundo — insignificante para aquela gente,
é certo — se habituara a mandar.
Pela segunda vez estava em frente do médico. Tinham passado apenas seis meses e
entretanto ocorrera um facto absolutamente relevante: o falecimento da sua mãe.
Kartopeck entrou no consultório com a rapariga e os dois sentaram-se à espera.
A empregada reconheceu-o e, depois de um rápido olhar, perguntou:Está pior?
Sim, murmurou Kartopeck.
As manchas haviam aumentado de tamanho e uma cor acinzentada — sem paralelo
no mundo da saúde — surgia desde o ponto central de cada mancha. Por estar treinada a
ver o que assusta, a funcionária do consultório disfarçou perfeitamente o esgar de rejeição
que todos, por instinto, faziam, quando, pela primeira vez, e de surpresa, contactavam
com aquele rosto. A desordem de há meses ganhara uma forma, digamos, monstruosa.
Como se o desarranjo da pele, após uma hesitação inicial, tivesse finalmente avançado
para uma outra forma de expressão, que já não era humanamente educada . O rosto de
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Kartopeck tornara-se horrendo, impróprio, como se de facto ele cometesse uma indeli-
cadeza em relação às outras pessoas. Se estivesse nu, em plena sala de espera, Kartopeck
não causaria maior rejeição moral. A fealdade do seu rosto entrara já no campo do
pecado, abandonara o das falhas físicas.
Claro que a rapariga que o acompanhava também não passou despercebida. O modo
de vestir evidenciava duas coisas: não era da cidade e era uma prostituta. Mesmo sentada
ela não parava de se mexer, de compor a saia, num gesto perfeitamente despropositado
de pudor, gesto que cheirava a falso, pois era sincronizado com um olhar excitado que
varria toda a sala de espera; e todos os que ali se encontravam eram envolvidos por esse
olhar. Ela sentia-se radiante por estar ali.
O desconforto que aquele casal provocava nas outras pessoas ganhou em pouco
tempo uma dimensão significativa. Com uma desculpa de última hora, uma das senhoras
que esperava consulta levantou-se e saiu.A sua mãe?
Morreu — respondeu Kartopeck, que estava já em pé, preparado para entrar. — Há
dois meses — acrescentou.
A funcionária baixou os olhos, por inabilidade cometera uma indiscrição.
Mas de dentro chamaram. Chegara a vez de Vass Kartopeck.
A rapariga ficou à espera na sala, por ordem do médico. Ela sorria. O médico ter-se
dirigido a si, especificamente, causara-lhe um enorme impacto — mesmo que proibindo-
-a de entrar.Esse rosto está pior! — disse, de imediato, lá dentro, o especialista.
E sentaram-se.
Mas tenho aqui as suas análises — continuou. — Não há qualquer problema de saúde.
O senhor Kartopeck não está doente. Isso é claramente um problema exterior que não
veio de dentro do organismo, nem há qualquer motivo para suspeitar que caminhe para
lá. É desagradável estar a ficar com o rosto deformado, mas da parte da medicina só lhe
podemos recomendar alguns produtos para acalmar a irritação da pele, e só o podemos
tranquilizar: não morrerá um minuto mais cedo por ter assim o rosto.Kartopeck estava aliviado: nas últimas semanas construíra um cenário mental onde
a degradação do seu exterior correspondia a uma sentença de morte. Tinha mesmo
ensaiado o modo corajoso de reagir à frase que previa ouvir: Tem apenas seis meses de vida!
Os comentários apaziguadores do médico foram assim recebidos como quem recebe
uma grande notícia. Uma vitória!
A consulta foi rápida. À saída, antes de o médico abrir a porta, Vass Kartopeck,
tentando mostrar a sua gratidão, enfiou a mão direita no bolso e tirou uma moeda que
estendeu na direcção do médico. Este recusou, com um afastamento delicado do braço,
e, controlando a vontade de soltar uma gargalhada, sorriu.
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Na cidade não se oferecem moedas aos médicos — disse. — Guarde-a para si.
Vass Kartopeck, envergonhado, escondeu logo a moeda na sua própria mão fechada:
era um labrego, absolutamente um labrego!, e mais uma vez isso ficara à vista de todos.
Sou um imbecil, murmurou para si próprio.
Felicidades — disse o médico, para os dois.
Foi depois já em plena rua, a menos de duzentos metros do ponto onde, no chão,
estava assinalado o centro da cidade, que Kartopeck deixou cair pela segunda vez a moeda
que trazia na mão.
De novo! — exclamou Kartopeck, irritado consigo próprio.
E a rapariga riu-se.
fim
in Best European Fiction 2011
( Dalkey Archive Press — Versão traduzida para Inglês)
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
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