Gol de Placa

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Gol de placa Com time bem escalado, seletiva latino americana do mundial Young Chef apresenta alguns dos melhores cozinheiros de até 30 anos Por Isabel Raia e Tulio Silva Fotos Ricardo D’Angelo e RJ Castilho “Não adianta um time de futebol ter um bom centroavante, se não há trabalho em equipe que o ajude a chutar a bola ao gol”, diz Laurent Suaudeau. O francês, radicado no Brasil há mais de 30 anos, contextualizava as necessidades para se tornar um bom chef de cozinha. Coordenando a seletiva latino americana do mundial Young Chef 2015, campeonato promovido pela marca de água de luxo San Pellegrino, ele pôde acompanhar de perto o trabalho de uma nova leva de craques das panelas. Na capital paulista, a etapa selecionou a peruana Maria José Jordan, do restaurante Amaz, em Lima, como representante regional para disputar, junto a outros 19 cozinheiros de todos os cantos, o título de melhor novo chef do mundo. E, no mesmo sentido como dizia Laurent, Renata De Stefano, gerente da Nestlé Waters, também comparava a equipe, muito bem preparada, a de um grupo de jogadores da paixão continental. “Que sejamos um time de futebol sul-americano e, feito equipe, possamos dar apoio e suporte ao vencedor”, diz. Um dos jurados do evento, o paulistano Alex Atala, dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, ficou muito contente com o resultado da competição. “O nível dos participantes é impressionante. Tudo estava muito equilibrado, inclusive com brasileiros muito bem posicionados. Não nos foi apresentado nenhum prato mediano, pelo contrário”, diz o chef brasileiro. A mesma surpresa foi esboçada por Mitsuharu Tsumura, chef do peruano Maido. “Esses ‘young chefs’ não são tão jovens assim. Eles já são verdadeiros cozinheiros. Tudo estava tão bom, todos tão bem qualificados, que fica difícil

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Jovens chefs da América Latina se encontram na capital paulista para concorrer a vaga mundial**Escrito em parceria com Isabel Raia

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Gol de placa

Com time bem escalado, seletiva latino americana do mundial Young Chef apresenta alguns dos melhores cozinheiros de at 30 anos

Por Isabel Raia e Tulio SilvaFotos Ricardo DAngelo e RJ Castilho

No adianta um time de futebol ter um bom centroavante, se no h trabalho em equipe que o ajude a chutar a bola ao gol, diz Laurent Suaudeau. O francs, radicado no Brasil h mais de 30 anos, contextualizava as necessidades para se tornar um bom chef de cozinha. Coordenando a seletiva latino americana do mundial Young Chef 2015, campeonato promovido pela marca de gua de luxo San Pellegrino, ele pde acompanhar de perto o trabalho de uma nova leva de craques das panelas.

Na capital paulista, a etapa selecionou a peruana Maria Jos Jordan, do restaurante Amaz, em Lima, como representante regional para disputar, junto a outros 19 cozinheiros de todos os cantos, o ttulo de melhor novo chef do mundo. E, no mesmo sentido como dizia Laurent, Renata De Stefano, gerente da Nestl Waters, tambm comparava a equipe, muito bem preparada, a de um grupo de jogadores da paixo continental. Que sejamos um time de futebol sul-americano e, feito equipe, possamos dar apoio e suporte ao vencedor, diz.

Um dos jurados do evento, o paulistano Alex Atala, dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, ficou muito contente com o resultado da competio. O nvel dos participantes impressionante. Tudo estava muito equilibrado, inclusive com brasileiros muito bem posicionados. No nos foi apresentado nenhum prato mediano, pelo contrrio, diz o chef brasileiro.

A mesma surpresa foi esboada por Mitsuharu Tsumura, chef do peruano Maido. Esses young chefs no so to jovens assim. Eles j so verdadeiros cozinheiros. Tudo estava to bom, todos to bem qualificados, que fica difcil escolher, afirma. Alm de esbanjarem muita tcnica, fiquei feliz em constatar que eles esto resgatando, mais do que apenas os ingredientes de seus pases, as habilidades milenares de coco, que de outra forma seriam perdidas, afirma.

Mas nem s de flores era feito esse mar, e as caractersticas da Gerao Y eram gritantes e incomodavam alguns. Entre esses, Mateus Godoy, gerente de planejamento da Nestl Waters, no gostou do baixo qurum de inscries brasileiras. Organizar um evento como esse muito difcil. Quando percebemos que havia pouca inscrio proveniente do Brasil, comeamos a ligar e convidar pessoalmente os jovens cozinheiros para participar do evento. A primeira coisa que eles perguntavam era o valor monetrio que iriam ganhar, diz.

E a crtica a esses meninos tambm do prprio Atala. Em um restaurante, o trabalho lento, mas o jovem no percebe isso e quer se destacar rapidamente. Aconselho sempre que se prefira um estgio longo, em um nico restaurante, onde ele possa aprender e ganhar vivncia em todas as reas, do que os costumeiros estgios curtssimos em um monte de endereos. Para entender o funcionamento de uma casa leva tempo. Agora, quando aparece uma chance como a dessa competio, em que nomes iro se destacar, at por que o mercado est de olho, no haver participao falta de viso, afirma.

Mais famoso chef brasileiro, Atala apresentava o problema da ansiedade da juventude, vida por aventura, mas ainda imatura para tanto. Esse jovem que pula de galho em galho vai sofrer mais. S a rotina de uma cozinha capaz de ensin-lo a improvisar, a saber o que possvel e o que no . No existe resultado imediato e, quando paro para pensar em tantos talentos que se perderam por falta de experincia, fico triste em constatar que muitos mataram a prpria carreira, afirma.

Campeonatos como o Young Chef so o momento ideal para que ansiosos cozinheiros consigam o reconhecimento que merecem, visto que uma vitrine para mostrar o trabalho e a disciplina na cozinha. O concurso faz parte da profisso e tem que ser encarado com tranquilidade e jogo de cintura. Quem ganha em concurso se destaca. belssima a aprendizagem e no se pode deixar levar pelos holofotes que esto por ai e pela vontade de apenas ganhar dinheiro, afirma Laurent.

Atividades como esta precisam ser fomentadas e os jovens, instigados a participar. Entre os motivos apontados pelo chef francs est a criteriosidade. Muito das premiaes atuais foram dominadas por uma mdia sem critrios que utiliza uns seis atores de novela para julgar o que bom e o que ruim. Aqui, o que vale outra coisa. Quem ganha um campeonato o faz por ter melhor aplicao de trabalho, preparo psicolgico e por ter aprendido corretamente o meti da profisso.

Meio de campo

Apita o juiz e dada a largada para o primeiro tempo da competio. A cada quinze minutos um cozinheiro entra em jogo para mostrar seu talento e tentar uma vaga na final.

Dando o chute inicial, o mexicano Salvador Carrillo, que trabalha no restaurante La Leche, de Puerto Vallarta, fez um atum com diferentes molhos em que a apresentao remetia arte abstrata. Fiz o prato pensando na liberdade na cozinha. Usei uma superfcie grande e disponibilizei os ingredientes de uma forma que no igual para todos, porque cada cozinheiro diferente. Usei uma prancha, que no possui bordas, para mostrar que no existem limitaes. A profisso livre e adaptvel, disse.

Diferente da cultura brasileira, Salvador j est acostumado a participar de concursos, pois acredita que estas atividades ajudam a sair da rotina e da zona de conforto.

Passa a bola. Luis Kwok assume o posto a frente das panelas para preparar uma receita que funde suas duas culturas, chinesa e mexicana. No comando do restaurante da famlia, Asian Bay, na Cidade do Mxico, ele decidiu fazer barriga de porco com guioza e mesclou sabores ao temperar a carne com mel. Fiz a carne da forma tradicional mexicana e depois cozi de modo chins. J para o guioza, que tradicional no Oriente, escolhi um recheio com sabores da terra das pimentas, afirma.

Porm, a presso foi a grande adversria de Kwok durante o preparo. Na primeira competio mundial, o chef se mostrou inseguro ao trocar muitas vezes de equipamentos e, ao final, atribuiu a eles a falta de textura da pancetta. No estava acostumado com os utenslios daqui. J fiz esse prato muitas outras vezes e com bastante crocncia, mas hoje faltou coco.

Ao ouvir o chamado para assumir a bancada, o brasileiro Fbio Bernardini, que trabalha no mexicano Pujol e veio representando o pas da Amrica Central, decidiu esperar um pouco, pegou a faca somente aps terminar calmamente seu caf.

Comecei na cozinha por acidente, pois morava com um chef na Nova Zelndia e ele me chamou para trabalhar. Conforme o tempo foi passando, percebi que era isso o que queria e passei a me dedicar 16 horas por dia vida em restaurantes, diz.

Em meio a chefs, livros e panelas, Fbio aprendeu tudo o que sabe e sentiu a necessidade de participar do concurso. Eu no vim competir, cozinhar no uma disputa para mim, uma experincia. Estar na cozinha trocando conhecimentos como estar em um laboratrio da gastronomia, afirma.

A receita escolhida por ele foi um tutano com galetas de massa de arroz, pois o cozinheiro decidiu focar na textura dos alimentos, levando em considerao o que gosta de comer e preparar.

Em uma vertente diferente aos demais, Diego Stefan apresentou uma sobremesa. Minha dieta completamente base de acar e chocolate, raramente como algo salgado. Tambm gosto de desafios e riscos, e sei que este ser um deles, afirma.

Apesar disso, mexicano que trabalha no restaurante El Puerto, em Playa Del Carmen, no se define como confeiteiro. H algum tempo longe das competies, Diego se mostrava tranquilo e disposto a conversar durante o preparo de sua receita, at que se atrapalhou com a temperatura do congelador e teve que correr para recuperar a textura perdida. Ao final, exibiu uma sobremesa com diferentes tramas, como espuma de chocolate com coentro e abacaxi com aafro.

Na contra mo dos jogadores anteriores, o brasileiro Matheus Vimieiro chegou concentrado ao local da partida. De poucas palavras, o recm-formado no curso de Gastronomia mostrou humildade e seriedade, caractersticas essenciais para figurar entre os melhores desta etapa. No podemos nos iludir por um concurso, muito legal participar, mas a realidade na cozinha de muito trabalho, ainda falta muita tcnica a aprender, muita vivncia, muita experincia. Estou s comeando, diz.

Para a receita, Matheus focou em ingredientes que representassem as origens mineiras. O frango com ora-pro-nbis e pequi possua perfeito equilbrio de sabor, alm de bela apresentao. Usei elementos da minha terra. Quando vi o concurso tive a certeza de que eu queria mostrar a minha raiz, a minha cultura. Falar do pequi me deixou muito feliz, afirmou

Apesar de no ter vencido desta vez, o representante do Brasil est com as malas prontas para iniciar o estgio no Laguiole, do renomado chef francs Michel Bras, onde pretende adquirir mais experincia para, em breve, levar uma taa nao brasileira.

Segundo tempo

O juiz apita e termina a primeira etapa. No caso, a arbitragem estava por conta de Laurent Suaudeau. Para ele, o incio de competio foi marcada por um pouco de confuso. No adianta um cozinheiro querer ser criativo se no conhece as bases e os mtodos. Senti que alguns participantes tinham dificuldade na organizao da cozinha, apresentavam fichas tcnicas complicadas e exagero de produtos. preciso otimizar o uso dos ingredientes, no pedir um frango inteiro para usar s as coxas, afirma. E no vejo problema em dizer isso, afinal, meu papel como professor ensinar o respeito a natureza, a compaixo, o amor ao prximo e, claro, dar porrada quando necessrio.

Iniciando a segunda batelada de provas, Gabriela Lugo, do Gourmet MX, na mexicana Villahermosa, preparou o Puchero tabasqueo, interpretao costumeira feita na regio de Tabasco, no sudeste do pas latino. Aproveitando apenas algumas bases da tradio espanhola, Gabriela incrementou o preparo com inmeros tipos de legumes sazonais de seu pas, caso da malanga e da chayote um tipo de mandioca e outro de abbora, respectivamente.

Muito emocionada, explicava ter utilizado a lngua bovina por ela pertencer a um povo que gosta de contar histrias. Comecei a estudar gastronomia por que queria aprender a preparar esse puchero, que minha me fazia. E ainda que eu no tenha filhos (para passar o costume), toda vez que eu cozinho eu deposito tanto amor no prato, que como se ele se tornasse meu rebento, afirmava, com lgrimas nos olhos.

Ainda escondido na competio, o Peru mostrou as caras por meio do chef Aaron Chlimper, do restaurante IK, em Lima. Utilizando como tema The sea (ou O mar, em traduo livre), ele preparou prato com forte influncia contempornea. Tenho uma paixo gigante pela comida e pelos frutos do mar. Por ter morado quatro anos em Barcelona, e trabalhado um desses com o Ferran Adri, cozinhei algumas referncias da gastronomia tecnoemocional, afirma. Entre essas, o bolo de sifo, feito uma espuma cozida em micro ondas contrapunha-se textura das vieiras e do caviar de azeite.

E as famosas coquilles saint-jacques tambm estiveram presentes no prato Sea and earth (Mar e terra, em traduo livre) do paulistano Alex Iwamura. Um desafio como o dessa competio muito grande, ainda mais quando o tema livre e o cozinheiro pode preparar o que quiser, sem limitaes. Ento eu tentei focar na minha histria e apresentar o terroir da Mata Atlntica, diz. Sous-chef do restaurante Kinoshita, na capital paulista, ele ainda harmonizou referncias da ilha de Hokkaido, no Japo, terra de seus avs. Pensando da teoria do menos mais, vou apresentar pupunha, vieiras de Picinguaba (litoral norte de So Paulo), gema de ovo orgnico e azeite de shis. Tudo com o mnimo de contato e de coco, para valorizar ingredientes to ricos, afirma.

Bola de ouro

Quieta, com o fone de ouvido a postos e a ficha tcnica em mos, Maria Jose Jordan, do limeo Amaz, no Peru, ouvia um punk pesado enquanto repassava os ingredientes da sobremesa Tcnica imortal. Longe de tudo, e de todos, a confeiteira punha em campo concentrao e boa organizao. Na bancada da cozinha mais afastada da Escolada Arte CulinriaLaurent, a diviso dos ingredientes era clara, em polos que concentravam cada etapa do preparo da guloseima. A delicadeza e a beleza da gastronomia atenta na ajuda de um cozinheiro.

Mas a calma de Maria Jose, todavia, foi posta prova durante o preparo de um caramelo. Preciso estar muito atenta quando fao esse doce. Ele um preparo que queima fcil e, um defeito meu, cometer tal pecado algumas vezes, afirma. Com termmetro em riste, ela ia temperando o acar quente.

Em So Paulo, a famosa cena do puxa, estica e enrola, repetida exausto na hora de preparar uma bala, podia ser presenciada atravs das mos cuidadosas (e enluvadas) da peruana.

Ctricos, alecrim e gim eram os ingredientes mais celebrados na sobremesa que ia sendo finalizada. A cozinha, perfumada pelos aromas de um bolinho que acabava de sair do forno e que seria grelhado a seguir, era palco de uma dana entre o clssico e o moderno. E bailando essa valsa louca, at mesmo o gim afeioava-se com as misturas. Primeiro rtulo Premium da bebiba base de zimbro, e produzido no Peru, o GinCa era ingrediente-base na receita de uma espuma. Eram as riquezas dos Andes e da Amaznia tambm presentes.

Eu trabalhei durante muito tempo no nova-iorquino WD-50, de Wylie Dufresne, em Manhattan. E a maioria das tcnicas que empreguei na minha sobremesa eu aprendi l. Fiquei muito triste quando soube da notcia de que o restaurante havia fechado e por isso resolvi cristalizar todo esse aprendizado na sobremesa Tcnica imortal. Foi a forma que encontrei de mostrar que, ainda que as coisas hoje sejam muito transitrias, que portas esto sempre abrindo e fechando, as experincias que carregamos, e os ensinamentos que temos com nossos mestres, duram para sempre, afirma Maria Jose, emocionada e contentssima com a vitria que lhe deu um lugar na final, junto a outros 19 cozinheiros. Ela ser a representante latino-americana e nica mulher. Que o peso seja apenas do som alto que ela escuta para se concentrar.