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Globalização e Educação: Uma Introdução Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres (Do Livro: “Globalização e Educação – Perspectivas críticas”- org. Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres / Porto Alegre:2004, Artmed Editora, pp. 11-25) DA EDUCAÇÃO NO ILUMINISMO À EDUCAÇÃO GLOBALIZADA: IDÉIAS PRELIMINARES Este livro reúne um grupo notável de autores internacionais para discutir a questão de como a globalização está afetando a política educacional em vários Estados ao redor do mundo. Os autores apresentam visões bastante diferentes sobre a "globalização". Para alguns deles, o termo refere-se ao surgimento de instituições supranacionais, cujas decisões moldam e limitam as opções de políticas para qualquer Estado específico; para outros, ele significa o impacto avassalador dos processos econômicos globais, incluindo processos de produção, con- sumo, comércio, fluxo de capital e interdependência monetária; ainda para outros, ele denota a ascensão do neoliberalismo como um discurso político hegemônico; para uns, ele significa principalmente o surgimento de novas formas culturais, de meios e tecnologias de comunicacão globais, todos os quais moldam as relações de afiliação, identidade e interação dentro e através dos cenários culturais locais; e para outros, ainda, a "globalização" é, principalmente, um conjunto de mudanças percebidas, uma construção usada pelos legisladores para inspirar o apoio e suprimir a oposição a mudanças, porque "forças maiores" (a competição global, respostas a exigências do FMI e do Banco Mundial, obrigações para com alianças regionais, e assim por diante) não deixam "nenhuma escolha" ao Estado, além de agir segundo um conjunto de regras que não criou. É claro que cada um dos autores cita a complexa interação entre esses fatores diversos, atribuindo- lhes diferentes pesos e relações. Solicitamos que cada autor se concentrasse em um conceito que consideramos central para entender o impacto específico da globalização sobre as políticas e práticas educacionais, conceitos que têm sido repensados e redefinidos neste contexto global (real e percebido), que são: "neoliberalismo", "Estado", "reestruturação", "reforma", "administração", "feminismo", "identidade", "cidadania", "comunidade", "multiculturalismo", "novos movimentos sociais", "cultura popular" e o "local" (em oposição/relação ao "global"). De forma clara, eles refletem não apenas mudança de conceitos, mas também mudanças nas relações, nas práticas e nos arranjos institucionais. O foco deste livro é analisar como o repensar essas idéias básicas 1

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Globalizao e Educao:Uma Introduo

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Globalizao e Educao: Uma Introduo

Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres

(Do Livro: Globalizao e Educao Perspectivas crticas- org. Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres / Porto Alegre:2004, Artmed Editora, pp. 11-25)DA EDUCAO NO ILUMINISMO EDUCAO GLOBALIZADA: IDIAS PRELIMINARES

Este livro rene um grupo notvel de autores internacionais para discutir a questo de como a globalizao est afetando a poltica educacional em vrios Estados ao redor do mundo. Os autores apresentam vises bastante diferentes sobre a "globalizao". Para alguns deles, o termo refere-se ao surgimento de instituies supranacionais, cujas decises moldam e limitam as opes de polticas para qualquer Estado especfico; para outros, ele significa o impacto avassalador dos processos econmicos globais, incluindo processos de produo, consumo, comrcio, fluxo de capital e interdependncia monetria; ainda para outros, ele denota a ascenso do neoliberalismo como um discurso poltico hegemnico; para uns, ele significa principalmente o surgimento de novas formas culturais, de meios e tecnologias de comunicaco globais, todos os quais moldam as relaes de afiliao, identidade e interao dentro e atravs dos cenrios culturais locais; e para outros, ainda, a "globalizao" , principalmente, um conjunto de mudanas percebidas, uma construo usada pelos legisladores para inspirar o apoio e suprimir a oposio a mudanas, porque "foras maiores" (a competio global, respostas a exigncias do FMI e do Banco Mundial, obrigaes para com alianas regionais, e assim por diante) no deixam "nenhuma escolha" ao Estado, alm de agir segundo um conjunto de regras que no criou. claro que cada um dos autores cita a complexa interao entre esses fatores diversos, atribuindo-lhes diferentes pesos e relaes.

Solicitamos que cada autor se concentrasse em um conceito que consideramos central para entender o impacto especfico da globalizao sobre as polticas e prticas educacionais, conceitos que tm sido repensados e redefinidos neste contexto global (real e percebido), que so: "neoliberalismo", "Estado", "reestruturao", "reforma", "administrao", "feminismo", "identidade", "cidadania", "comunidade", "multiculturalismo", "novos movimentos sociais", "cultura popular" e o "local" (em oposio/relao ao "global"). De forma clara, eles refletem no apenas mudana de conceitos, mas tambm mudanas nas relaes, nas prticas e nos arranjos institucionais. O foco deste livro analisar como o repensar essas idias bsicas sugere mudanas fundamentais na maneira como as sociedades esto elaborando polticas e prticas educacionais. Apesar de ser uma obra centralmente terica, estas discusses contm implicaes especficas e concretas para a forma como a educao est mudando, e dever mudar, em resposta a circunstncias novas. Este trabalho crtico no sentido de que os autores recusam- se a aceitar como algo determinado as formas especficas que a globalizao tem assumido, e questionam com ceticismo quem so os vencedores e os perdedores sob esse novo conjunto de regras. No momento em que a "globalizao" (concebida de determinada forma) tornou-se um discurso ideolgico que move a mudana, devido urgncia e necessidade de responder a uma nova ordem mundial, queremos apresentar uma admoestao aos entusiastas da globalizao e sugerir que, mesmo que essas mudanas ocorram, elas podem mudar de maneiras diferentes, mais justas e equitativas. De acordo com a nossa opinio, os educadores, em particular, devem reconhecer a fora dessas tendncias e enxergar as suas implicaes para moldar e limitar as escolhas disponveis de polticas e prticas educacionais, enquanto tambm resistem retrica da "inevitabilidade" que freqentemente motiva a prescrio de certas polticas.

Uma forma de reexaminar a aparente inevitabilidade da globalizao situar o debate contemporneo numa perspectiva histria. De fato, algo parece estar mudando no campo da educao, e essas mudanas tm ocorrido por um perodo bastante longo. Na perspectiva do Iluminismo, nada pode ser mais personalizado, mais ntimo e local, do que o processo educacional em que as crianas e os jovens amadurecem num espao de aquisio e aprendizagem de sua cultura familiar, regional e nacional. Antes da instituio da educao pblica, a educao da elite era conduzida por tutores que trabalhavam com seus pupilos de forma altamente personalizada. A educao da mente, das capacidades e dos talentos do indivduo era um princpio bsico. Em um contexto de classe diferente, para crianas de famlias rurais ou de operrios, a educao ou a formao tambm era uma questo pessoal, gerida pelas famlias e comunidades locais. Encaixar-se em uma comunidade, seja ela uma cultura e forma de vida local ou nacional, pode ser visto como o imperativo educacional que relaciona esses contextos.

Mais adiante, quando a escola foi moldada como instituio pblica, permaneceu essa noo de responsabilidade local e familiar pela formao. A idia de que as escolas agiam in loco parentis, reforada por estruturas polticas que sustentavam o controle da comunidade sobre o processo escolar, situou o aprendiz em uma relao com necessidades imediatas e familiares de aprendizagem: necessidades de identidade, afiliao, cidadania e papis de trabalho que respondiam a um contexto prximo. Mesmo em sistemas escolares pblicos centralizados e nacionalizados, a mesma dinmica pode ser encontrada. invocada em um nvel diferente: as polticas impem conformidade e identificao com uma tradio nacional, uma comunidade maior e um contexto mais amplo de cidadania e responsabilidade social, mas, ainda assim. no qual as condies de afiliao baseiam-se na proximidade e homogeneidade relativa (embora, nesse caso, brechas entre o local e o nacional possam se abrir e ainda o fazem).

As implicaes desse processo educacional, especificamente medida que ele se torna uma preocupao pblica, vo alm do objetivo de desenvolver o self individual. Como a economia da educao nos diz, a educao do pblico tem custos e benefcios para a sociedade mais ampla e, assim, no apenas uma despesa. mas um investimento. Dessa forma, as implicaes polticas da educao superam as condies de um indivduo a ser educado e constituem um conjunto estratgico de decises que afetam a sociedade maior, de onde vem a importncia da educao como poltica pblica e o papel do Estado (ver Raymond Morrow e Carlos Torres, neste volume).2

Este processo dialtico de formar o indivduo como um self e um membro de uma comunidade mais ampla acarreta, como uma premissa da tradio ocidental, a necessidade de preservar os tesouros da civilizao dentro do processo de socializao dos membros de cada gerao nova, tornando-se um imperativo ainda maior medida que o Estado-nao se torna o lugar, cercado por fronteiras, onde o processo pedaggico governado. Os sistemas organizados de educao operam sob a gide de um Estado-nao que controla, regula, coordena. comanda, financia e certifica o processo de ensino e aprendizagem. No de surpreender que um dos principais propsitos de um sistema educacional projetado dessa forma seja criar um cidado leal e competente.

A questo que enfrentamos agora : at que ponto o esforo educacional afetado por processos de globalizao que ameaam a autonomia de sistemas educacionais nacionais e a soberania do Estado como regente soberano em sociedades democrticas?3 Ao mesmo tempo, de que maneira a globalizao est mudando as condies fundamentais de um sistema educacional que tem por premissa integrar-se em uma comunidade caracterizada pela proximidade e a familiaridade? As origens, natureza e dinmica do processo de globalizao so, portanto, um foco de preocupao para os filsofos educacionais, socilogos, aqueles que desenvolvem o currculo, professores, legisladores, polticos, pais e muitos outros envolvidos com o esforo educacional. Os processos de globalizao, seja como forem definidos, parecem ter conseqncias srias na transformao do ensino e da aprendizagem, pois estes tm sido compreendidos dentro do contexto de prticas educacionais e polticas pblicas que possuem um carter altamente nacional.

Muitas outras questes reaparecem nessas reflexes. Como podemos definir a globalizao? A globalizao "real" ou ser ela simplesmente uma ideologia? Se a globalizao for uma tendncia inexorvel, como isso afeta a economia poltica dos pases e, assim, sua cultura e educao? De que maneira aes no sentido de uma reestruturao econmica esto afetando sistemas educacionais ao redor do mundo? Existe uma organizao e agenda educacional internacional que possa criar outra hegemonia em currculo, instruo e prticas pedaggicas, de um modo geral, assim como em polticas que dizem respeito ao financiamento escolar, pesquisa e avaliao? Ser que esses fatores e resultados so simtricos e homogneos em suas implicaes para todos os pases e regies? De que maneira a globalizao est relacionada com o processo contnuo de luta poltica em diferentes sociedades? Essas so algumas das questes centrais que os autores que colaboraram com este livro buscaram responder.

REESTRUTURAO ECONMICA E A TENDNCIA PARA A GLOBALIZAODe maneira a capturar a essncia da ao social, devemos reconhecer a cumplicidade ontolgica, conforme sugeriram Heidegger e Merleau- Ponty, entre o agente (que no um sujeito ou uma conscincia e nem o mero executante de um papel ou aquele que cumpre urna funo) e o mundo social (que nunca uma simples "coisa", mesmo que deva ser construdo desta forma na fase objetivista da pesquisa). A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, em coisas e em mentes, em campos e em habitus, fora e dentro dos agentes. E quando o habitus encontra um mundo social do qual o produto, ele se sente "como um peixe na gua", no sente o peso da gua e considera o mundo ao seu redor como algo bvio.4Os padres de reestruturao econmica global, que emergiram no final da dcada de 1970, desenvolveram-se juntamente com a implementao de polticas neoliberais em muitas naes. Naquela poca, as administraes capitalistas estavam em apuros, no que diz respeito aos lucros, com os trabalhadores lutando para manter o salrio alto e os concorrentes estrangeiros pressionando para reduzir os preos. medida que a economia esfriava, as rendas estatais no conseguiam cumprir com os gastos sociais, e os contribuintes comeavam a expressar um certo ressentimento para com aqueles que se beneficiavam mais da renda estatal (a burocracia estatal, beneficirios da previdncia social, instituies que recebiam subsdios estatais, e assim por diante). Isso levou a um rompimento do consenso em torno da viabilidade e valor do Estado de bem-estar social. O Estado afastou-se de seu papel corno rbitro entre o trabalho e o capital, aliando-se ao capital e forando os trabalhadores adotar uma postura defensivas

A reestruturao econmica refletiu urna tendncia mundial caracterizada, no mnimo, pelos seguintes elementos:1. a globalizao da economia no contexto de urna nova diviso internacional do trabalho e a integrao econmica de economias nacionais (corno os mercados comuns emergentes e os acordos comerciais);6

2. o surgimento de novas relaes e acordos comerciais entre naes, e entre classes e setores sociais dentro de cada pas, e o surgimento de novas reas, especialmente em pases desenvolvidos, onde a informao e os servios tm-se tornado mais importantes que o setor industrial;

3. a crescente internacionalizao do comrcio, refletida na crescente capacidade de conectar mercados de forma imediata e de transferir capital atravs de fronteiras nacionais (atualmente, 600 importantes empresas multinacionais controlam 25% da economia mundial e 80% do comrcio mundial);

4. a reestruturao do mercado de trabalho, com o salrio fixo sendo substitudo em muitos cenrios por remunerao por trabalhos realizados, e o poder dos sindicatos enfraquecido pelo relaxamento ou pela falta de cumprimento da legislao trabalhista;

5. a reduo de conflitos entre capital e trabalho, principalmente devido a fatores como o aumento do nmero de trabalhadores excedentes (desempregados ou sub-empregados), a intensificao da competio; a reduo da margem de lucro, menos contratos de trabalho com proteo da legislao trabalhista e a institucionalizao de estratgias segundo o "conceito de equipe";

6. a mudana de um modelo de produo fordista rgido para um modelo baseado na flexibilidade maior no uso da fora de trabalho, na prescrio do trabalho, nos processos de trabalho e mercados de trabalho, na reduo de custos e na maior velocidade em transferncia de produtos e informaes de um local do globo para outro;

7. a ascenso de novas foras de produo, com a indstria mudando de um modelo industrial mecnico para um modelo governado pelo microchip, pela robtica, e por mquinas automticas e auto-reguladoras, o que, por sua vez, levou ao surgimento de uma sociedade de informao high- tech baseada no computador;

8. a crescente importncia da produo intensiva de capital, que resulta na desespecializao e no desemprego de grandes setores da fora de trabalho,

situao esta que leva a um mercado de trabalho polarizado, composto de um pequeno setor altamente especializado e bem remunerado, por um lado, e um grande setor pouco especializado e mal remunerado, por outro;

9. o aumento da proporo de empregados avulsos e do sexo feminino, muitos dos quais trabalham atualmente em seus lares;

10. o aumento no tamanho e importncia do setor de servios, s custas dos setores primrio e secundrio; e

11. o crescente abismo financeiro, tecnolgico e cultural entre os pases mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos, sendo a nica exceo os pases "recm-industrializados".7

A reestruturao econmica tambm refletiu uma profunda crise fiscal, e as redues oramentrias que afetam o setor pblico resultaram na reduo do Estado de bem- estar social e na crescente privatizao dos servios sociais, de sade, habitao e da educao. Verifica-se uma reestruturao da relao Estado/trabalhador, de modo que o salrio social (gastos pblicos distribudos na forma de benefcios sociais) diminui s custas de salrios individuais. Como resultado disso, a sociedade foi segmentada em dois setores: um protegido ou includo pelo Estado, e outro desprotegido e excludo. A reestruturao econmica levou a um modelo de excluso que deixa de fora setores amplos da populao, particularmente as mulheres que vivem na pobreza em pases desenvolvidos e em desenvolvimento.

Esses elementos de reestruturao econmica tm ocorrido de forma concomitante com a tendncia para a globalizao. De modo contrrio previso de Marx e Engels, a globalizao da economia produziu uma unificao do capital em escala mundial, enquanto trabalhadores e outros grupos subordinados tornam- se mais fragmentados e divididos. De fato, a reestruturao neoliberal est operando atravs da dinmica impessoal da competio capitalista em um mercado comum que progressivamente desregulado, aumentando o impacto local das tendncias globais. Os Estados torram-se cada vez mais internacionalizados, no sentido de que suas agncias e polticas ajustam-se aos ritmos da nova ordem mundial.

Conforme afirmamos, a reestruturao econmica levou a uma crescente proletarizao e desespecializao do emprego. Embora a alta tecnologia seja apresentada como a soluo para muitos problemas econmicos, ela no contribuiu para elevar o padro de vida da maioria das pessoas. Mesmo que alguns empregos estejam sendo criados em indstrias de alta tecnologia, esses empregos encontram-se princpalmente nas reas burocrticas ou de montagem, que pagam salrios abaixo da mdia e no exigem muitas habilidades, ou em empregos que envolvem servios pessoais. Como no de surpreender, a categoria mais importante de criao de empregos nos Estados Unidos na ltima dcada foi o campo dos servios pessoais, incluindo categorias de empregos to variadas quanto instrutores de ginstica e de sade at servios de segurana privada.Outra mudana evidente que, com a implementao de polticas neoliberais, o Estado demitiu-se de sua responsabilidade de administrar os recursos pblicos para promover a justia social, a qual est sendo substituda por uma f cega no mercado (por exemplo, nos apelos por mais privatizaes de escolas, por "escolhas" e vales) e pela esperana de que o crescimento econmico gere um excedente para ajudar o pobre, ou que a caridade privada assuma aquilo que os programas estatais deixam de fora. Apesar dos apelos da direita para desmantelar ou reduzir o tamanho do Estado, observadores cticos da reduo estatal afirmam que a principal questo no o tamanho do Estado, ou os seus gastos, mas a forma de suas intervenes e investimentos, seja para promover o bem-estar e a igualdade, por um lado, seja para subsidiar o crescimento de empresas por meio de incentivos fiscais ou por meio da rubrica dos "gastos militares", por outro. O Estado neoliberal, particularmente nas sociedades mais desenvolvidas, e nos pases em desenvolvimento que lutam para imit-las, caracteriza-se por redues drsticas em gastos sociais, pela destruio desenfreada do ambiente, por revises regressivas do sistema fiscal, limites frouxos para crescimento empresarial, ataques amplos contra o trabalho organizado e mais gastos com "infra-estrutura" militar.

As empresas esto se tornando to poderosas que muitas esto criando programas educacionais ps-secundrios e vocacionais prprios. A Burger King abriu "academias" em 14 cidades norte-americanas, e a IBM e a Apple esto contemplando a idia de abrir escolas devido ao lucro que estas produzem. A Whittle Communications (uma empresa cujos principais proprietrios so a Time Warner e a British Associated Newspapers) no apenas fornece antenas parablicas e aparelhos de televiso em troca de publicidade para mais de 10 mil escolas (o projeto Channel One), como tambm est planejando abrir mil escolas com fins lucrativos para atender a 2 milhes de crianas dentro dos prximos dez anos Alm disso, as empresas norte-americanas gastam aproximadamente 40 bilhes de dlares a cada ano, aproximando-se dos gastos anuais totais de todas as faculdades e universidades de graduao eps-graduao, para treinar e educar seus funcionrios atuais. J em meados da dcada de 1980, a Bell and Howell tinha 30 mil estudantes em sua rede de ensino ps-secundrio e a ITT possua 25 instituies ps-secundrias." Diz-se que a AT&T sozinha realiza mais funes de educao e formao do que qualquer universidade no mundo.12

Esse processo de privatizar a educao est ocorrendo no contexto de novas relaes e arranjos entre naes, caracterizado por uma nova diviso global do trabalho, uma integrao econmica de economias nacionais (mercados comuns de livre-comrcio e assim por diante), a crescente concentrao do poder em organizaes supranacionais (como o Banco Mundial, o FMI, a ONU, a Unio Europia e o G-7), e aquilo que chamamos de "internacionalizao" do Estado.

A mobilidade do capital d aos capitalistas, particularmente aos especuladores financeiros, uma grande vantagem sobre o Estado, por si s um produto da revoluo industrial e no equipado, de muitas maneiras, para lidar com as demandas bsicas do mundo ps- industrial. A especulao com moedas nacionais e a profecia auto-realizvel da legitimidade do "crdito" internacional contriburam para a formao de um terreno movedio para os pases que tentam colocar em ordem sua economia. Os dias que precederam a preparao deste livro presenciaram crises srias na Rssia, nas Filipinas, na Malsia e em outras economias emergentes da Asia, que repentinamente perceberam que as regras do jogo econmico global estavam mudando enquanto tentavam jogar de acordo com elas.

Conforme afirmou Korten, a influncia empresarial sobre o Estado exercida de forma indireta, por meio de liderana intelectual, incutindo nos legisladores um novo conjunto de valores e impondo limites sobre a variedade de opes do Estado, o que representa uma estratgia mais eficaz para mudar prioridades polticas do que a ameaa explcita de sanes punitivas.13 Esses novos valores, habilmente refletidos nas agendas neoconservadora e neoliberal (ver Michael W. Apple, neste volume),14 promovem menos intervenes estatais e maior confiana no mercado livre, e ainda mais atrativos para auto-interesses individuais do que para direitos coletivos. David Held afirma que "a internacionalizao da produo, das finanas e de outros recursos econmicos est inquestionavelmente erodindo a capacidade de qualquer Estado individual de controlar o seu futuro econmico.... Empresas multinacionais podem ter uma base nacional clara, mas seu interesse est, acima de tudo, na lucratividade global. O pas de origem interessa pouco para a estratgia empresarial".15 De maneira clara, a crescente integrao da economia direciona-se rumo a um mundo sem fronteiras e proporciona evidncias considerveis da reduo da capacidade dos governos nacionais controlarem as suas economias ou definirem seus objetivos econmicos nacionais.16

Em resumo, existem mudanas nos nveis econmico, poltico e cultural da sociedade, as quais tendem a promover e reforar uma perspectiva mais global sobre as polticas sociais. No nvel econmico, esses fatores incluem mudanas em relaes comerciais (grupos como o GATT, ou o G-7, que promovem a reduo de impostos de importao, tarifas e normas; e a formao de zonas de "livre-comrcio", como o NAFTA ou a Unio Europia); mudanas em processos bancrios e de crdito (sistemas de crdito mundiais como o Visa, caixas eletrnicos, cmbio e fluxo de capital e mercados financeiros que so realmente globalizados); a presena de agncias de financiamento internacionais (como o FMI e o Banco Mundial); mudanas nos fatores da produo que levaram ascenso de novas indstrias "ps-fordistas" (a economia do conhecimento, o setor de servios, as indstrias tursticas e culturais); a presena de corporaes globais que no sejam ligadas (ou leais) a qualquer base ou fronteira nacional; a mobilidade da mo-de-obra e a mobilidade de companhias que colocaram os sindicatos na defensiva; novas tecnologias (para transmisso de dados, capital e publicidade); e novos padres de consumo (s vezes chamado de "McDonaldizao" do sabor rpido, padronizado e orientado para a convenincia antes da qualidade), juntamente com novas estratgias de publicidade e marketing que promovem aquilo que George Ritzer chama de "meios de consumo" (shopping centers, canais de compras, compras on-line e crdito fcil).17

Em nvel poltico, o Estado-nao sobrevive como uma instituio medial, longe daqueles que so impotentes, mas limitado por tentar equilibrar quatro imperativos: (1) respostas ao capital transnacional; (2) respostas a estruturas polticas globais (por exemplo, a Organizao das Naes Unidas) e outras organizaes no-governamentais; (3) respostas a presses e demandas domsticas, de modo a manter a prpria legitimidade poltica;'B e (4) respostas a suas necessidades e seus interesses internos. A maioria das iniciativas polticas, incluindo polticas educacionais, formada na matriz dessas quatro presses, centrada no Estado-nao, no mais concebido como um agente soberano, mas como um rbitro que busca equilibrar uma variedade de limitaes e presses internas e externas. Fatores econmicos, como a dvida externa, a crise fiscal do Estado, ou a criao de entidades regionais como a Unio Europia, apresentam profundas implicaes polticas e econmicas19. Nesse contexto, as presses sobre o Estado-nao estimularam uma questo de teoria poltica que perdura h muito tempo: ser o Estado uma esfera pluralista para a disputa de grupos de interesses rivais, ou um terreno no-neutro, refletindo um conjunto de limitaes e preocupaes que atribuem um peso especial s demandas de interesses sociais especficos? Fica claro para ns que tem ocorrido uma mudana pronunciada com relao a essa questo, indo alm de vises puramente estatizantes da poltica, para incluir um foco em novos terrenos de contestao poltica, em novos atores polticos, como em movimentos sociais globais (aquilo e Falk chama de "globalizao de baixo para cima"), e a constituio daquelas que so, com _feito, sociedades civis transnacionais (ver Douglas Kellner, neste volume).2

Finalmente, em termos culturais, mudanas nos meios de comunicao globais (TV a cabo, satlites, CNN, Internet); cultura comercial (McDonald's, Nike, cores da Benneton); maior mobilidade, com setores de viagens turismo bastante ampliados; mudanas em tecnologias de comunicaes; distribuio mundial de filmes, televiso e produtos musicais; maior presena e visibilidade de religies globais que mudam rituais locais, transformando-os em rituais transnacionais; ou o mundo global dos esportes, tanto com relao a eventos competitivos (e espetculos), como as Olimpadas ou a Copa do Mundo, como tambm, de maneira significativa, com relao ao marketing esportivo (vesturio, tnis, equipamentos), patrocnio/publicidade, e apostas e loterias glob:ais, todos mostram os desafios que confrontam as sociedades que buscam reconciliar seus valores locais e tradicionais com a crescente globalizao de culturas que no as suas.

Apesar dessas mudanas inegveis, contudo, os efeitos da globalizao s vezes tambm so exagerados. Qualquer bom observador ou viajante do mundo ir notar que o chamado processo de globalizao" no to global. Vastos segmentos do mundo permanecem quase intocados por muitas dessas dinmicas da globalizao. O que temos visto uma segmentao (mundial) entre a cultura globalizada por exemplo, a prevalncia de um habitus urbano e cosmopolita e o resto do mundo, que enxerga poucos dos benefcios (at onde eles existem) do acesso ao mercado global ou a culturas cosmopolitas. Da mesma forma, como observado anteriormente, a assero de algo chamado "globalizao" freqentemente usada para reforar a sua "inevitabilidade" e, dessa forma, para suprimir tentativas de resistir a ela, e, mesmo assim, muitas tentativas de contrabalanar os processos de globalizao esto ocorrendo ao redor do mundo, como nos campos da ecologia e do gerenciamento de recursos.21

QUESTES CRTICASO conhecimento em si no conquista a incerteza, mas produz incertezas com as quais ningum jamais teve a experincia histrica de lidar.22

Embora a forma e direo gerais das mudanas recm-mencionadas no sejam mais objeto de disputa, permanecem ainda desacordos considerveis com relao natureza e extenso dessa coisa chamada "globalizao". Quanto mais aprendemos sobre ela, maiores as incertezas a respeito das suas conseqncias. Essas questes se tornam ainda mais desafiadoras, medida que avanamos das mudanas amplas com as quais temos lidado para reas especficas de poltica e prtica, como a educao. Reunimos aqui diversas questes crticas que, conforme nos lembra Giddens, refletem as novas incertezas que as discusses sobre a globalizao trouxeram luz. Elas servem para introduzir vrios temas centrais que sero abordados nos captulos deste livro.

Quais so as origens da globalizao? Teoricamente, um dilema central se devemos localizar as origens da globalizao contempornea em torno de 1971-1973, com a crise do petrleo, que promoveu diversas mudanas tecnolgicas e econmicas direcionadas para encontrar fontes substitutas para matrias-primas estratgicas e buscar novas formas de produo que consumissem menos energia e trabalho. De maneira alternativa, como fizeram alguns autores deste livro, podemos localizar as origens da globalizao h mais de um sculo, com mudanas nas tecnologias de comunicao, nos padres de migrao e nos fluxos de capital (por exemplo, como aqueles afetados pelo processo de colonizao do Terceiro Mundo).

Uma questo importante para muitos observadores se estamos enfrentando uma nova poca histrica, a configurao de um novo sistema mundial, ou se essas mudanas so significativas, mas no sem precedentes, com paralelos, por exemplo, nas mudanas semelhantes que ocorreram no final da Idade Mdia. Nossa viso sobre esse tema, todavia, no uma questo de escolher entre uma ou outra opo. Estamos em uma nova poca histrica, uma nova ordem global, em que as velhas formas no esto mortas, mas as novas ainda no esto inteiramente formadas. David Held sugere em Democracy and global order, por exemplo, que estamos em uma nova "Idade Mdia global", um perodo que reflete que, apesar de ainda terem vitalidade, os Estados- nao no podem controlar suas fronteiras e, portanto, esto sujeitos a todo o tipo de presses internas e externas.

Alm disso, mesmo que essa nova ordem global mostre o fim da soberania do Estado- nao, essa situao apresenta impactos diferenciais, de acordo com a sua posio na ordem mundial: Estados unificados em alianas regionais, como o NAFTA e a Unio Europia; Estados emergentes ou intermedirios, como o Brasil, a Coria, a ndia e a China; Estados menos desenvolvidos, como a Argentina, a Hungria, o Chile e a Africa do Sul; Estados em desenvolvimento, incluindo muitos na Amrica Latina, Asia e Africa; e Estados subdesenvolvidos, em um estado de dependncia extrema, como o Haiti, alguns Estados da Amrica Central, Moambique, Angola e Albnia. O impacto e o significado da "globalizao" no apenas so duvidosos, como tambm podem operar de maneira diferente em vrias partes do mundo e, em certos contextos, ter pouco impacto. Aqui, mais uma vez, a globalizao, em si, no um fenmeno unificado e global.

Assim, apesar de a globalizao poder refletir um conjunto de mudanas tecnolgicas, econmicas e culturais bastante definidas, a forma de sua importncia e suas tendncias futuras no esto determinadas. Conforme observamos, a especificidade histrica desse processo no garante necessariamente um impacto simtrico e homogneo ao redor do mundo. Essa narrativa da globalizao bastante diferente da narrativa neoliberal, um discurso que tira vantagem dos processos histricos de globalizao para valorizar certas receitas econmicas sobre como operar a economia (atravs do livre-comrcio, des- regulamentao, e assim por diante) e, por implicao, receitas sobre como transformar a educao, a poltica e a cultura.

Alm das narrativas dicotmicas sobre a globalizao. Certas dualidades so recorrentes na literatura a respeito deste tema. Em uma distino de influncia ampla, existem duas foras principais em operao na ascenso da globalizao: a globalizao de cima para baixo, um processo que afeta principalmente as elites dentro e atravs de contextos nacionais, e a globalizao de baixo para cima, um processo popular que fundamentalmente emerge das organizaes de base da sociedade civil.23 Este contraste ressalta uma importante dinmica poltica (e ajuda a formar uma conveniente e esperanosa imagem de luta e resistncia em escala global), mas o seu uso disseminado obscurece as formas pelas quais essas duas tendncias no so inteiramente independentes uma da outra. Por exemplo, os grupos "de cima" e "de baixo" tendem a se fundir em determinadas organizaes no-governamentais; e os movimentos populares "de baixo" ainda podem ser percebidos, em certos contextos, como uma imposio "de cima".

Ainda assim, outras dualidades prevalecem: entre o global e o local; entre dimenses econmicas e culturais da globalizao; entre a globalizao, vista como uma tendncia para a homogeneizao em torno de normas e culturas ocidentais (ou, de forma ainda mais limitada, norte-americanas) e vista como uma era de maior contato entre culturas diversas, levando a um crescimento em hibridez e novidade; e entre os efeitos materiais e retricos da globalizao ou, como pode ser colocado, entre a globalizao e a "globalizao". Finalmente, h a questo de se a globalizao uma "coisa boa": ser ela um benefcio para a causa do crescimento, da igualdade e da justia econmica, ou ser prejudicial? Ela promove o compartilhar cultural, a tolerncia e um esprito cosmopolita, ou produz apenas a iluso dessa compreenso, uma apreciao consumista imperturbvel, como em um parque temtico da Disney, que suprime questes de conflito, diferena e assimetrias de poder?

Para ns, nenhuma dessas questes captura as sutilezas ou dificuldades dos temas que esto em jogo. Todas elas apontam uma escolha fcil entre alternativas polares, tipos "bons" e "ruins" de globalizao, em vez de uma situao conflituosa de tenses prolongadas e escolhas difceis. Uma reconsiderao ou, em muitos casos, um desafio direto a esse tipo de dicotomia simples ir aparecer seguidamente em todo o livro. Consideramos que isto central para compreender a globalizao em toda a sua complexidade e ambigidade.

Quais so as caractersticas cruciais da globalizao? luz de muitos desses debates, pode ser extremamente arriscado estabelecer uma descrio das caractersticas da globalizao que afetam a educao de forma mais rigorosa, mas elas parecem envolver, pelo menos:

em termos econmicos, uma transio de formas fordistas a ps-fordistas de organizao do local de trabalho; um aumento na publicidade nos padres de consumo internacionalizados; uma reduo de barreiras ao fluxo livre de mercadorias, trabalhadores e investimentos entre fronteiras nacionais; e, conseqentemente, novas presses sobre os papis do trabalhador e do consumidor na sociedade;

em termos polticos, urna certa perda da soberania do Estado-nao ou, pelo menos, a eroso da autonomia nacional e, conseqentemente, um enfraquecimento da noo de "cidado" como um conceito unificado e unificante, um conceito que possa ser caracterizado por papis, direitos, obrigaes e status precisos (ver Capella, neste volume);

em termos culturais, uma tenso entre as maneiras como a globalizao produz mais padronizao e homogeneidade cultural, enquanto tambm produz mais fragmentao com a ascenso de movimentos locais. Benjamin Barber caracterizou essa dicotomia no ttulo de seu livro, Jihad vs. McWorld;24

contudo, uma terceira alternativa terica identifica uma situao mais conflituosa e dialtica, com a homogeneidade e a heterogeneidade culturais aparecendo de maneira simultnea no cenrio da cultura. (s vezes, essa fuso, e tenso dialtica, entre o global e o local denominada "o global".25)

GLOBALIZAO E A RELAO ENTRE O ESTADO E A EDUCAO

Em termos educacionais, existe uma compreenso crescente de que a verso neoliberal da globalizao, particularmente da forma implementada (e ideologicamente defendida) por organizaes bilaterais, multilaterais e internacionais, reflete-se em uma agenda educacional que privilegia, se no impe de modo direto, certas polticas de avaliao, financiamento, padres, formao de professores, currculo, instruo e testes. Diante dessas presses, so necessrios mais estudos sobre as respostas locais para defender a educao pblica contra a introduo de mecanismos de mercado para regular as trocas educacionais e outras polticas que busquem reduzir o patrocnio e o financiamento estatal e impor modelos de administrao e eficincia emprestados do setor empresarial como um arcabouo para a tomada de decises envolvendo a educao.26 Essas respostas educacionais so conduzidas principalmente pelos sindicatos de professores, pelos novos movimentos sociais e por intelectuais crticos, expressadas com freqncia em oposio a iniciativas em educao, tais como os vales, ou subsdios pblicos para escolas privadas e paroquiais.

Isso apresenta um problema peculiar para anlise. Devido ao fato de que as relaes entre o Estado e a educao variam de forma to dramtica de acordo com a poca histrica, as reas geogrficas, os tipos de governo e as formas de representao poltica, e entre as diferentes demandas de diferentes nveis educacionais (fundamental, secundrio, educao superior, de adultos, continuada e educao no- formal), qualquer alterao drstica nas formas de governana (por exemplo, a instalao de uma ditadura militar que governe por vrios anos antes de permitir a volta da democracia) pode ter mltiplos efeitos complexos e imprevisveis sobre a educao. Essa situao exige uma anlise histrica mais matizada a respeito da relao entre o Estado e a educao. Essa problemtica dificultada ainda mais pela tendncia que discutimos anteriormente: a eroso da autonomia do Estado em tudo o que importante, inclusive em questes que dizem respeito s polticas educacionais.27

Por exemplo, consideremos brevemente a situao na Amrica Latina. Desde o momento em que as guerras civis terminaram, h mais de um sculo e meio (culminando no processo de organizao nacional da dcada de 1880), os sistemas educacionais foram criados juntamente com o estabelecimento das fronteiras dos pases. A constituio de Estados-nao incluiu a criao de fortes exrcitos e a promulgao de constituies nacionais baseadas nos princpios da Carta Magna britnica, da Revoluo Norte- Americana e da Revoluo Francesa, e assim expressam uma fundamentao fortemente liberal. Dessa forma, pelo menos trs formaes estatais predominaram na experincia latino- americana durante o ltimo sculo e meio. (As excees a isso foram, claro, perodos de interveno militar, ditaduras militares e revolues que costumam alterar a forma democrtica liberal do Estado.) Essas trs formas do Estado incluram o Estado liberal, promovendo a educao liberal (digamos, da dcada de 1880 at a crise de 1929 em certos pases, ou at a Segunda Guerra Mundial na maioria dos pases); o Estado desenvolvimentista (da dcada de 1950 at a de 1980), em que houve um padro consistente de modernizao (embora, s vezes, modernizao "forada" por regimes autoritrios), com um papel central desempenhado por reformas educacionais baseadas no modelo do capital humano; e a constituio de diferentes formas de estado neoliberal e polticas educacionais neoliberais.28

Em sntese, a partir de uma perspectiva histrica, essa conexo complexa entre a educao e o Estado apresenta um problema para a anlise da relao entre eles. No existe uma forma nica de associao entre essas instituies, e assim no existe um modo nico em que elas sero afetadas pelas condies da globalizao. Do ponto de vista econmico, as presses das condies de austeridade impostas externamente (por exemplo, a condio para emprstimos do FMI) podem levar a redues brutais nos gastos com educao; em outros contextos, o desejo por maior competitividade econmica e produtividade pode levar a maiores gastos com educao. Do ponto de vista poltico, alguns contextos nacionais iro organizar a educao em torno de uma concepo revitalizada de nacionalismo e lealdade do cidado (talvez em reao s lealdades tribais ou outras formas de lealdade); em outros contextos, uma noo de cidadania cosmopolita pode prevalecer, encorajando viagens, estudos de lnguas estrangeiras e tolerncia multicultural. Do ponto de vista cultural, algumas naes iro aceitar, e at mesmo encorajar, uma confiana maior na mdia, na cultura popular, ou novas formas de comunicao e informtica, como uma janela atravs da qual possam compreender o seu lugar no mundo global; em outros contextos, essas mesmas tendncias daro lugar a um aumento em estreiteza mental, suspeio e resistncia a influncias externas. Um livro como este pode apenas dar incio ao processo de explorar a diversidade desse tipo de respostas globalizao, por meio de contextos nacionais variados, e a diversidade de relaes entre o Estado e a educao, que geram princpios, polticas e prticas educacionais luz dessas novas condies.

OS DILEMAS DA GLOBALIZAOSer que a globalizao meramente deletria, ou existem caractersticas positivas associadas a suas prticas e sua dinmica? J tentamos desafiar essa estrutura simples de julgamento. Duas caractersticas que podem ser denominadas "positivas" so a globalizao da democracia ou, no mnimo, uma forma peculiar de democracia liberal (mais uma democracia de mtodo do que uma democracia de contedo);29 e a prevalncia e expanso de uma crena em "direitos humanos" e no crescimento de organizaes que os tentam monitorar e proteger. Para aqueles que tm suficiente sorte de viver em certos setores da sociedade, a globalizao est associada a um padro de vida mais elevado, no apenas pela disponibilidade de itens de consumo, mas tambm pelas ocasies para viajar e para manter um contato enriquecedor com outras culturas do mundo.

Os "males" mais bvios da globalizao so o desemprego estrutural, a eroso da mo-de-obra organizada como fora poltica e econmica, a excluso social e um aumento no abismo entre ricos e pobres dentro das naes e, especialmente, ao redor do mundo. Certas pessoas associam a globalizao a um aumento na insegurana urbana, devido progressiva violncia urbana, com a presena crescente de movimentos de fora do territrio e de fora do Estado que impedem o desenvolvimento internacional e podem representar ameaas srias contra a segurana, a paz, a estabilidade e o desenvolvimento (como o trfico de drogas, mfias, comrcio de armas de destruio em massa, ou organizaes terroristas).

Mas ser que possvel separar os benefcios dos males? De fato, no sero os "benefcios" para uns, "males", do ponto de vista de outros? De certa forma, o modelo para esse tipo de julgamento no deve ser simplesmente uma questo de se a globalizao est ou no "acontecendo mesmo", mas da globaliza- co de que formas e nos termos de quem? Diversos pases em desenvolvimento, como a China e a Malsia, tm-se tornado cada vez mais receosos com a globalizao e tm buscado formas de restringir os seus efeitos sobre 3 seu modo de vida nacional. Ainda assim, ao mesmo tempo, eles desejam alguns dos benefcios da participao em uma economia global e da troca de mercadorias e de informao. Uma importante questo atual o nvel em que as sociedades sero capazes de escolher as formas e o grau de participao em um mundo global; ou se, como outras barganhas faustianas, no existe uma alternativa intermediria.

De maneira semelhante, abaixo e alm do nvel nacional, existem movimentos claramente regionais e tradicionais para os quais a globalizao deve ser combatida vigorosamente. 0 surgimento de novos movimentos sociais e o papel de organizaes no-governamentais locais e internacionais exercem uma influncia que pode ser denominada contra-globalizao. Em certos casos, esses grupos so igualmente "globais" em carter (organizaes internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional; organizaes ambientalistas, como o Greenpeace; ou organizaes trabalhistas, como a OIT). Em outros casos, eles so antiglobalizao, profundamente resistentes interpenetrao econmica, poltica e cultural de diferentes sociedades e culturas (por exemplo, grupos regionalistas e fundamentalistas de vrios tipos). Enquanto a globalizao acontece de maneira clara, sua forma e contorno so determinados por padres de resistncia, alguns com intenes mais progressistas do que outros.

Ser possvel, ento, dar respostas gerais para a questo de como a globalizao est afetando as polticas e prticas educacionais ao redor do mundo? Conforme indicado em nossa discusso anterior, acreditamos que no pode haver uma resposta nica; as mudanas econmicas, polticas e culturais, nacionais e locais, so afetadas por tendncias de globalizao em uma variedade de padres e respondem de forma ativa a essas tendncias. De fato, como a educao uma das arenas centrais onde essas adaptaes e respostas ocorrem, ela ser um dos tantos contextos institucionais possveis. Assim, as respostas exigiro uma anlise cuidadosa das tendncias em educao, incluindo:

as atuais "palavras de efeito" populares (privatizao, escolha e descentralizao de sistemas educacionais) que dirigem a formao de polticas em educao e agendas de pesquisa baseadas em teorias de administrao e organizao racional (ver Michael Peters, James Marshall e Patrick Fitzsimons neste volume);

o papel de organizaes nacionais e internacionais no campo da educao, incluindo sindicatos de professores, organizaes de pais e movimentos sociais (ver Bob Lingard neste volume);30

o conhecimento contemporneo sobre as questes de raa, classe e gnero, e sobre o lugar do Estado na educao (o que levanta preocupaes com o multiculturalismo e a questo da identidade na educao, teoria crtica de raa, feminismo, ps-colonialismo, comunidades diaspricas e novos movimentos sociais (ver Jill Blackmore; Douglas Kellner, Allan Luke e Carmen Luke; Cameron McCarthy e Greg Dimitriadis; Fazal Rizvi; e Stephen Stoer e Luiza Corteso, todos neste volume).Questes quanto ao papel da pesquisa- ao participativa, da educao popular e da luta democrtica multicultural surgem como centrais nesses debates. Dessas perspectivas crticas, podem surgir novos modelos educacionais para confrontar os ventos da mudana, incluindo a educao no contexto de novas culturas populares e movimentos sociais no- tradicionais (e assim, o papel dos estudos culturais para compreend-los); novos modelos de educao rural para reas marginalizadas e a educao do pobre; novos modelos para a educao de imigrantes, para a educao de crianas de rua, para a educao de garotas e mulheres, em geral, mas particularmente no contexto de sociedades e culturas tradicionais que suprimem as aspiraes educacionais das mulheres; novos modelos de parcerias para a educao (entre o Estado, as ONGs, o terceiro setor e, em certos casos, as organizaes religiosas e privadas); novos modelos de alfabetizao de adultos e educao no-formal; novos modelos de relaes entre universidades e empresas; e novos modelos de financiamento educacional e organizao escolar (por exemplo, escolas charter).

Certas iniciativas de reforma tm sido apoiadas ativamente pela UNESCO e por outras agncias da ONU. Entre estas esto, por exemplo, reformas no sentido da alfabetizao universal e do acesso universal educao; qualidade educacional como um componente fundamental da igualdade; educao- para a vida toda; educao como um direito humano; educao para a paz, a tolerncia e democracia; eco-pedagogia, ou como a educao pode contribuir para o desenvolvimento ecolgico sustentvel (e assim, para uma eco- economia); e o acesso educacional a novas tecnologias de informao e comunicao (ver Nicholas C. Burbules, neste volume). Assim. pode-se considerar que a influncia da globalizao sobre as polticas e prticas educacionais tem efeitos mltiplos e conflitantes. Nem todos esses efeitos podem ser classificados simplesmente como sendo ou no benficos, e alguns deles esto sendo moldados por tenses e lutas ativas. Os ensaios apresentados neste livro iluminam tais dilemas em toda a sua complexidade.CONCLUSO: DILEMAS DE UM SISTEMA DE EDUCAO GLOBALIZADOEsperamos que os propsitos deste livro j estejam claros: em primeiro lugar, identificar, caracterizar e esclarecer alguns dos debates em torno do fenmeno da globalizao; e, em segundo, tentar compreender alguns dos efeitos mltiplos e complexos da globalizao sobre as polticas educacionais e a formao de polticas. A fim de sintetizar algumas das conseqncias da globalizao para as polticas educacionais, seguiremos a organizao anterior, dividida em trs partes: identificar alguns dos impactos econmicos, polticos e culturais.

No nvel econmico, porque a globalizao afeta o emprego, ela afeta um dos objetivos tradicionais bsicos da educao: a preparao para o trabalho. As escolas devero reconsiderar essa misso luz de mercados de trabalho instveis, em um ambiente de trabalho ps-fordista; novas habilidades e a flexibilidade de adaptar-se a novas demandas do trabalho e, portanto, mudar de emprego durante o decorrer da vida; e lidar com uma mo-de- obra internacional cada vez mais competitiva. Ainda assim, as escolas no esto apenas preocupadas em preparar os estudantes como produtores; cada vez mais, as escolas ajudam a moldar as atitudes e prticas do consumidor, rajadas pelos patrocnios empresariais instituies educacionais e para produtos curriculares e extracurriculares que confrontam os estudantes em seu cotidiano na sala de aula. Essa crescente comercializao do ambiente escolar tem-se tornado notavelmente impudente e explcita em suas intenes (como no caso do projeto de Chris Whittle, o Channel One, discutido anteriormente, que admite abertamente oferecer televisores grtis s escolas para expor as crianas dieta forada de comerciais em suas salas de aula lados os dias).

Os efeitos econmicos mais amplos da globalizao tendem a forar polticas educacionais nacionais em uma estrutura neoliberal que enfatiza impostos mais baixos; reduo do setor estatal e "fazer mais com menos"; aproximao das abordagens de mercado s escolhas escolares (particularmente por meio de vales); administrao racional de organizaes escolares; avaliao de desempenho (testes); e desregulamentao para encorajar novos provedores (incluindo provedores on line) de servios educacionais.31

No nvel poltico, uma questo repetida tem sido a limitao sobre a formao de polticas nacionais/estatais imposta por demandas externas de instituies transnacionais. Ainda assim, ao mesmo tempo que a coordenao e a troca econmica so cada vez mais reguladas, e medida que instituies mais fortes surgem para regular a atividade econmica global, com a globalizao tem havido uma crescente internacionalizao de conflitos, crimes, terrorismo e questes ambientais globais, mas com um desenvolvimento inadequado de instituies polticas para lidar com elas. Aqui, mais uma vez, as instituies educacionais podem ter um papel crucial a desempenhar ao abordarem esses problemas e a complexa rede de conseqncias humanas voluntrias e involuntrias que se seguiram ao crescimento de corporaes globais, da mobilidade global, das comunicaes globais e da expanso global. Em parte essa conscincia pode ajudar a produzir uma concepo crtica de educao exigida pela "cidadania mundial".

Finalmente, mudanas globais em cultura afetam profundamente as polticas, prticas e instituies educacionais. Particularmente em sociedades industriais avanadas, por exemplo, a questo do "multiculturalismo" assume um significado especial em um contexto global. De que maneira o discurso do pluralismo liberal que tem sido o modelo dominante para a educao multicultural em sociedades desenvolvidas que esto aprendendo a conviver com outras, dentro de um modelo de tolerncia e respeito mtuos estende-se a uma ordem global em que o leque de diferenas torna-se mais amplo, o senso de interdependncia e interesse comum mais atenuado, os fundamentos da afiliao mais abstratos e indiretos (se existirem de fato)? Com as crescentes presses globais sobre as culturas locais, ser papel da educao ajudar a preserv-las? De que maneira a educao deveria preparar os estudantes para lidarem com elementos de conflitos locais, regionais, nacionais e transnacionais, medida que culturas e tradies, cujas histrias de antagonismo podem ter sido mantidas parcialmente suspensas por Estados-nao fortes e poderosos, se desintegram, quando essas instituies perdem um pouco de sua fora e legitimidade? At que ponto a educao pode ajudar a sustentar a construo do self e, em um nvel mais geral, a constituio de identidades? Como pode o multiculturalismo, como movimento social, como educao para a cidadania e como filosofia anti-racista no currculo intervir na dinmica do conflito social que emerge entre as transformaes globais e as respostas locais?

Nesse contexto, por exemplo, os atuais debates sobre o bilingismo nos Estados Unidos so surpreendentemente limitados em seu contedo terico e sua viso poltica. Em uma perspectiva terica, realmente no faz sentido lutar contra o ensino e o aprendizado de diversas lnguas; na verdade, os estudantes necessitam desenvolver ainda mais proficincia do que o simples bilingismo. A experincia europia com jovens que so proficientes em vrias lnguas indica que essas habilidades facilitam a comunicao interpessoal, acadmica e social, expandem horizontes intelectuais e encorajam a apreciao e a tolerncia de culturas diferentes.

Nesse aspecto e em outros, o contexto global apresenta um tipo fundamentalmente diferente de desafio educao do que no modelo do Iluminismo. Ao passo que a educao anteriormente concentrava-se mais nas necessidades e no desenvolvimento do indivduo, com um olho voltado para ajudar a pessoa a se encaixar em uma comunidade definida por uma relativa proximidade, homogeneidade e familiaridade, a educao para viver em um mundo global amplia os limites da "comunidade" para alm da famlia, da regio, ou da nao. Atualmente, as comunidades de afiliao potencial so mltiplas, deslocadas, provisrias e mutveis.32 A famlia, o trabalho e a cidadania, as principais fontes de identificao na educao do Iluminismo, permanecem importantes, certamente, mas esto se tornando mais efmeras, comprometidas pela mobilidade (seja ela voluntria ou diasprica) e a competio com outras fontes de afiliao, inclusive a ampla variedade daquilo que pode ser chamado, segundo Benedict Anderson, de "comunidades imaginadas".33 Enquanto as escolas ou (antes delas) os tutores agiam in loco parentis, preparando os aprendizes para uma variedade relativamente previsvel de oportunidades e desafios futuros, as escolas de hoje confrontam uma srie de expectativas instantneas conflitantes e mutveis, dirigidas para imprevisveis caminhos alternativos de desenvolvimento e para pontos de referncia e identificao em constante alterao. Como resultado, objetivos educacionais que tm mais a ver com a flexibilidade e a adaptabilidade (por exemplo, em responder a exigncias e oportunidades de trabalho que variam rapidamente), com aprender como coexistir com o outro em espaos pblicos diversos (e, portanto, carregados de conflitos), e com ajudar a formar e sustentar um senso de identidade que possa permanecer vivel dentro de contextos mltiplos de afiliao, todos se tornam imperativos novos.

Para concluir, acreditamos que a maneira como esses novos imperativos educacionais so resolvidos em cenrios nacionais e culturais depende de dois importantes conjuntos de questes. O primeiro se, devido ao menor papel e influncia do Estado-nao em determinar polticas domsticas de forma unilateral e devido crise fiscal das receitas pblicas na maioria das sociedades, haver um declnio correspondente no compromisso do Estado com as oportunidades e a igualdade educacionais, ou se simplesmente haver uma maior virada em direo a modelos de mercado, privatizao e livre escolha, que enxergam o pblico como consumidores que iro apenas obter a educao pela qual possam pagar. De maneira mais ampla, ser que essas mudanas produziro um declnio geral no comprometimento cvico com a prpria educao pblica?

A segunda questo fundamental se os problemas que os sistemas educacionais experimentam atualmente, os quais no esto todos relacionados com os processos de globalizao, assinalam um dilema decisivo e sentido mais profundamente em sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento: a questo da governabilidade diante da crescente diversidade (e uma maior conscincia da diversidade); limites permeveis e uma exploso em mobilidade mundial; e meios de comunicao e tecnologias que criam outras condies as quais moldam a afiliao e a identificao. Qual o papel da educao para ajudar a moldar as atitudes, os valores e os entendimentos de um cidado democrtico multicultural que possa fazer parte deste mundo cada vez mais cosmopolita?Pelo menos algumas das manifestaes da globalizao como processo histrico chegaram para ficar. Mesmo que o tipo especfico de "globalizao" apresentado pela narrativa neoliberal possa ser visto como uma ideologia utilizada para justificar polticas que servem a determinados interesses e no a outros, o fato que parte dessa narrativa baseia-se em mudanas reais (e para ser justo, oportunidades reais, pelo menos para certas pessoas de sorte). As maneiras especficas como as pessoas falam a respeito da globalizao, hoje em dia, podem acabar por ser um modismo rpido, mas, como os captulos deste livro deixam claro, em um nvel mais profundo, algo est mudando nas reas da economia, poltica e cultura, que ir alterar de forma fundamental o terreno da vida pblica e privada. A educao pblica, atualmente, encontra-se em uma encruzilhada. Se permanecer da maneira usual, como se nenhuma dessas ameaas (e oportunidades) existisse, ela corre o risco de ser cada vez mais substituda por influncias educacionais que no so justificveis perante o domnio e o controle pblico. Segundo a nossa viso, o que est atualmente em jogo nada menos do que a sobrevivncia da forma democrtica de governo e o papel da educao pblica neste empreendimento.