GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE

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GLOBALIZAÇÃO, IDENTIDADE E DIFERENÇA EM ARTIGO CIENTÍFICO.

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  • GLOBALIZAO, IDENTIDADEE DIFERENA

    Paula Montero

    RESUMOTrata-se de uma reflexo sobre o lugar terico e poltico da diferena no mundo contempor-neo. O artigo volta brevemente ao passado para mostrar como a percepo ocidental dadiferena sempre se constituiu em um modo de definir o Outro pela sua inferioridadeintrnseca. Em seguida, aborda a prpria antropologia, cincia que se ps como objeto oconhecimento da diferena cultural, a fim de analisar que tipo de compreenso da diferenasua emergncia tornou possvel. Por fim, discute a noo de identidade como conceitoantropolgico e sua capacidade explicativa quanto aos fenmenos contemporneos dereafirmao das diferenas culturais.Palavras-chave: globalizao; antropologia; identidade; diferena.

    SUMMARYThis is a reflection on the theoretical and political place of difference in the contemporaryworld. Beginning with a brief glimpse at the past, the article shows how Western perceptionsof differences always developed as a way of defining the Other in terms of his intrinsicinferiority. The author then proceeds to discuss anthropology as a scientific field in which therecognition of cultural difference developed as its main object, analyzing the kind ofunderstanding of difference that this field's emergence made possible. Finally, the articleexamines the notion of identity as an anthropological concept and its explanatory value inrelation to current trends that reassert cultural differences.Keywords: globalization; anthropology; identity; difference.

    Introduo

    Vou me permitir aqui voltar mais uma vez ao tema, talvez excessiva-mente debatido, da globalizao. Suas principais teses j foram amplamentedebatidas pela literatura desta ltima quinzena de anos para que seja precisovoltar a elas. Mas o que me interessa pensar a partir desse tema no osurgimento de culturas globais, nem tampouco o desaparecimento deculturas tradicionais. Proponho-me, ao contrrio, a discutir o modo como asrelaes globais repem o problema das diferenas.

    No resta dvida de que este final de sculo se encerra, para o bem oupara o mal, sob a marca do que muitos pensadores passaram a chamar de

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    fenmeno da "globalizao". O termo carrega mltiplas significaes, o quefacilitou seu uso ao mesmo tempo indiscriminado e pouco preciso. Processohistrico, acontecimento econmico, senso comum, ideologia ou conceito, a"globalizao" parece ter-se tornado tema obrigatrio do mundo acadmico epalavra de ordem do marketing poltico. De qualquer modo, este emaranha-do de lugares-comuns, ideologias e teorias de curto flego que a questosuscita, pela sua reiterao infinita, deve ser lido como o sintoma de um novo"mal-estar da civilizao", para retomar a expresso freudiana (Freud, 1971),um dos avatares de Thanatos a propulsar boa parte da agitao presente, suascontradies e angstias. Qual seria, pois, a natureza desse mal-estar?

    O jornalista Clvis Rossi, em matria sobre a desvalorizao abrupta damoeda tailandesa, o baht, em julho deste ano, expressou de maneira, a meuver, exemplar a natureza deste mal-estar: "Quer dizer que, alm de todos osproblemas que j tenho", esbravejou ele, "preciso me preocupar tambmcom o baht?". Rossi fala do ponto de vista de uma gerao para a qual omundo parecia imenso, inesgotvel, no qual as capitais de pases nuncavisitados ou sequer imaginados eram "mero verbete de aula de geografia Afeganisto, capital Cabul" (Folha de S. Paulo, 04/07/97, p. 1/2).

    O sentimento que domina, pois, o mundo moderno o da supressofsica da distncia, dando-nos a sensao de que "nenhum lugar longedemais". Ou, dito na formulao de Anthony Giddens, que diz respeito maisdiretamente ao tema que propomos desenvolver aqui, "com a globalizaodos ltimos cinqenta anos, a experincia social se modificou de tal maneiraque o que h de mais ntimo e de mais distante esto agora, de sbito,diretamente conectados" (1990, p. 123).

    Essas questes interpelam diretamente uma disciplina como a antro-pologia, que se gestou e consolidou dentro de um horizonte epistemol-gico marcado pela distncia cultural. A compresso do tempo e do espaogeogrfico, ao suprimir o isolamento relativo de algumas comunidades,tende a ser vista como uma ameaa s culturas tradicionais. Muitos dosestudiosos da globalizao a tratam como um processo histrico orientadopara a integrao progressiva das culturas, em cujo horizonte estaria, paraalguns, a emergncia de uma "sociedade global". A globalizao estariapois, aparentemente, colocando em risco a prpria disciplina antropolgi-ca, que tem por objeto o estudo das especificidades culturais. Apesar detodas as crticas que se possam fazer a tal formulao, o fantasma dahomogeneizao global da cultura que freqenta incontveis estudossobre a cultura de massa como o livro de enorme sucesso de GeorgeRitzer (1993) sobre a "McDonaldizao" do mundo nos obriga arepensar ao mesmo tempo o lugar da diferena cultural no mundocontemporneo e o lugar da diferena como objeto de reflexo no interiorde nossa disciplina. Se o encurtamento das distncias uma experinciareal, as teorias da "americanizao" do mundo no do conta dos meca-nismos de reposio das diferenas. Nesse contexto particular, cabe antropologia enfrentar o desafio de compreender o fenmeno da persis-tncia das diferenas culturais em um mundo cada vez mais global.

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    Parece-nos pois oportuno nos perguntarmos aqui de que maneira isso vemsendo realizado. Uma vez que no cabe, no escopo deste ensaio, empre-endermos um estudo de caso, pensamos poder contribuir para o avanona compreenso desta questo mediante o exame do modo como nossadisciplina imaginou e conceituou a diferena cultural.

    No entanto, tendo em vista que o problema da diferena no apenascontemporneo, parece-me interessante recuperar as principais representa-es da diferena que alimentaram o imaginrio ocidental antes e depois daemergncia da antropologia, imagens muitas delas ainda imensamentemobilizadoras de nosso senso comum. essa viagem pois que me proponhoempreender aqui. Os portulanos que para ela desenhei nos faro navegarbasicamente em duas direes: rumo ao passado, para demonstrar que, seo fenmeno da percepo e classificao da alteridade universal, apenaso Ocidente construiu, consistentemente, ao longo da histria de suaexpanso, julgamentos sobre o Outro que visaram submet-lo e localiz-loem posio de inferioridade; e rumo teoria, para demonstrar que apercepo da alteridade em termos de diferenas de cultura relativamenterecente, pois supe um processo intelectual no qual se d um deslocamentoda classificao da alteridade1 do reino da natureza para o campo doscostumes. A partir da nos perguntaremos que tipo de compreenso dadiferena tornou possvel a emergncia da antropologia disciplina quetomou o Outro como objeto de sua reflexo e qual hoje o estatuto dadiferena como conceito, ou, dito de outra maneira, qual seria hoje seupoder explicativo.

    claro que a leitura proposta aqui, tanto da histria quanto da teoria,ser uma leitura interessada. Olho para o passado a partir da problemticado presente, na qual se percebe com clareza uma apropriao poltica dojogo das diferenas, para propor que as representaes no so simples-mente expresses simblicas de realidades materiais, mas sobretudo apre-sentaes, como diria Bourdieu (1989), das realidades que se quer aomesmo tempo conhecer e dominar.

    Este ensaio est portanto dividido em quatro partes. Na primeira,retomo rapidamente o modo como a Europa, em diferentes momentos desua expanso, foi construindo imagens sobre as culturas diferentes da sua brbaros, pagos, hereges, selvagens de modo a classific-las e situ-las em uma ordem hierrquica na qual esses seres estavam destinados a serdominados.

    Na segunda, procuro demonstrar que a possibilidade de conhecer aalteridade nela mesma e no apenas como projeo do olhar europeu emerge quando se completa o processo intelectual que a desloca do reinoda natureza, da coisa dada, para o reino dos costumes, da evoluo e dahistria.

    Na terceira, retomo os dois grandes modelos fundadores da disciplinaantropolgica o evolucionismo e o funcionalismo como formas depensamento que se propem ao conhecimento objetivo do Outro. Procura-rei demonstrar que, embora essas teorias se propusessem a conhecer a

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    (1) Estou diferenciando aqui asnoes de alteridade e diferen-a cultural, esta ltima consti-tuindo-se em uma maneira par-ticular de se perceber a alteri-dade.

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    diferena, cada uma delas recuperou ao seu modo, na idia de "homemprimitivo" com a qual operam, as imagens do perodo anterior, projetandosobre a alteridade um novo etnocentrismo ao organiz-la em termos dediferenas raciais ou ao essencializ-la como tradio.

    Na quarta e ltima parte, focalizo o problema contemporneo dadiferena, agora trabalhado na chave das identidades. Retomarei a noo deidentidade como conceito perguntando sobre o modo como ela designa, nointerior da disciplina antropolgica, um estatuto para a diferena, ou, dito deoutra maneira, atribuindo-lhe um poder explicativo.

    As imagens do Outro

    Desde que as sociedades existem, mantm relaes entre si. No possvel pois conceber uma cultura to isolada que no tenha nenhumaespcie de relao com as outras. Se isto um axioma, dele decorre que apercepo da alteridade um fenmeno universal. Isto significa que todasas culturas constrem categorias para conhecer, classificar e pensar o Outro.Mas, ainda que a percepo da alteridade seja um fenmeno universal,podemos nos perguntar se os diferentes sistemas de classificao socomparveis entre si. claro que responder a esta questo nos levaria paramuito longe dos objetivos deste ensaio, mas estudos pontuais parecemindicar que uma das particularidades dos esquemas de pensamento ociden-tais a de conceber o Outro como inferior com a finalidade especfica desubmet-lo. Em interessante artigo sobre as imagens de identidade ealteridade dos Piaroa, Joana Overing (1992) avana a hiptese de que,embora os discursos sobre a alteridade dos Piaroa e dos ocidentaiscontenham elementos semelhantes (especialmente a idia de monstruosida-de, do Outro como ser violento, canibal ou incivilizado), os dois sistemasdiferem radicalmente. Para os Piaroa a alteridade objeto de desejo e temor.Fascinam-nos os poderes criativos do Outro, sua potncia, sem o benefcioda qual no possvel garantir a fertilidade. Assim, enquanto o interesse dosPiaroa pela alteridade est fundado no seu desejo de completude, que exigea incluso dos poderes de outros seres na vida social, o discurso eurocn-trico sobre o Outro est voltado, ao contrrio, para a justificao danecessidade de dominar o Outro.

    Com efeito, a histria do Ocidente nos oferece muitos exemplos dessetipo de conscincia: a expanso das civilizaes greco-romanas, os desco-brimentos ibricos, a formao dos grandes imprios coloniais e, hoje, amundializao so momentos particularmente interessantes para capturar omodo imaginrio como o Ocidente concebeu poderosas imagens para oaprisionamento do Outro em posies de inferioridade. Em todos essesmomentos proliferou uma interrogao jurdica, teolgica e/ou filosficaque procurou legitimar a submisso do diferente. Vale a pena percorrermosrapidamente esse repertrio, pois ele nos interessa de duas maneiras: por

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    um lado, porque o eco dessas imagens ainda se faz sentir perigosamente nomodo como costumamos domesticar as diferenas; por outro, para perce-bermos a mutao que se realiza medida que nos afastamos do perodoclssico a compreenso das diferenas vai progressivamente sendotransferida do domnio da natureza para o campo dos costumes e, portanto,da histria, o que constitui uma mudana radical no modo ocidental depensar as diferenas.

    Jess Contreras e Joan Bestard (1987) foram, a meu ver, os antroplo-gos que melhor sintetizaram os vrios modos como o Ocidente concebeu asdiferenas quando teve que se deparar com culturas mais ou menosestranhas sua. As noes de "brbaros", "pagos", "selvagens" e "primiti-vos", que do ttulo obra desses autores, so imagens que espelham bema cosmologia que orientou a percepo eurocntrica do Outro nos grandesmomentos de expanso territorial da Europa2.

    O conceito de "brbaro" nos foi legado pela Antigidade grega. Deincio, o termo designava simplesmente os povos no-gregos, considera-dos estrangeiros. Mas j no sculo IV predominou a percepo pejorativado termo; os autores gregos comearam a qualificar como "brbaros" ospovos que diferiam deles como os asiticos por no demonstraremapreo pela polis, pela lngua helnica e pelos ideais literrios e artsticosdas cidades-estados. O conceito de barbrie aqui diz, pois, da inferiorida-de do Outro: o brbaro est fora do domnio da lei e , portanto, no-humano.

    Aos poucos, com a expanso do macednio de Alexandre o Grande(356-323 a.C), comeou-se a produzir uma distino entre raa e culturagregas, j que a lgica do imprio incorporava cultura grega povos atento tidos como brbaros. A extenso da cultura grega para outraspopulaes deslocou a percepo do antagonismo entre povos (gregos ebrbaros) para a oposio entre a civilizao grega e a barbrie. Esta antteseentre "civilizao" e "barbrie", repetida ininterruptamente desde a Antigi-dade at a Idade Mdia, trouxe para a Idade Moderna os preconceitosgregos contra sociedades no-urbanas, sem comrcio ou moeda, sempropriedade e no articuladas territorialmente.

    A dicotomia civilizao/barbrie comeou a erodir-se a partir dodesenvolvimento de filosofias humanistas tais como o cristianismo, cujamensagem propunha a unidade moral e espiritual de todos os homens. Essanova espiritualidade oferecia a possibilidade de uma confraternizao doshomens baseada na comunidade religiosa oecumene , que ignora asfronteiras da polis, da classe ou da tribo.

    Paulo de Tarso foi o primeiro apstolo a romper, no incio da era crist,a regra de que o Evangelho devia dirigir-se exclusivamente aos judeus;pregando aos no-judeus, ele ampliou a Igreja para os pagos (Puech,1985). Mas a distncia moral que separava a civilizao da barbrie nodesapareceu com o cristianismo romano; ela se reps para outros povos,que ento passaram a constituir-se em uma ameaa ao imprio romano. Osnovos brbaros eram agora os invasores do Imprio os povos germanos.

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    (2) Nesta seqncia o textoacompanha a anlise de Con-treras e Bestard (1987) acercadas diferentes vises dos euro-peus sobre o Outro americanocom a finalidade de pensar aconstituio histrica do objetoda antropologia,

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    A Europa medieval herdou o conceito greco-latino de barbrie, masidentificou o brbaro ao pago. A adoo do cristianismo por quase todasas naes europias deslocou a imagem da barbrie para os inimigos da fpersonificados pelos eslavos, vikings, prussianos, germanos e sarracenos. interessante observar que o esforo de classificao e diferenciao desteOutro no-cristo se fazia no sentido de poder qualificar corretamente osdireitos desses povos perante a lei crist. Os canonistas diferenciavam,assim, trs categorias de brbaros, separando os cismticos e os herticos,submetidos s leis da Igreja, dos infiis ou sarracenos, que mereciam apenasa guerra e a morte.

    A questo dos direitos dos infiis no teve tempo para desenvolver-se,tendo sido abortada prematuramente pela invaso otomana e mongol, queisolou a Europa do Oriente. No entanto, com o incio da expansoportuguesa pelo Atlntico e pelas costas da frica, ela ganhou novaatualidade e se tornou uma das questes jurdico-polticas mais importantesdo sculo XVI. Francisco de Vitoria e Bartolomeu de Las Casas, porexemplo, preocuparam-se em definir os termos da humanidade americanade modo a sedimentar um consenso em torno de seus direitos liberdade,da necessidade de sua converso e da legitimidade de sua escravizao.

    O descobrimento da Amrica, pelo modo como obrigou os europeusa classificar e descrever um mundo natural e humano desconhecido, deumargem a uma profunda revoluo no modo de perceber o Outro. Mas essatransformao no foi imediata. Isto porque, alm de terem demoradoalguns anos para perceber que a Amrica no fazia parte do mundo atento conhecido, os europeus para l levaram esquemas de percepoherdados da Antigidade clssica e sua viso medieval do fantstico e domonstruoso. claro que a percepo do Outro como monstruoso no era anica; ela convivia com descries mais "objetivas" que viajantes e comer-ciantes produziam sobre as civilizaes orientais. Peter Hulme (1995, p. 368)avana a hiptese de que seria possvel identificar duas grandes cadeias dediscurso no modo como os europeus descreviam culturas alheias: uma, quese elaborava a partir das experincias no Oriente, cifrada a partir de termostais como opulncia, Catai, Grande Khan, navios mercantes, e outra que,projetando-se sobre as sociedades selvagens, se organizava em torno deimagens ligadas principalmente miragem do ouro e ao fascnio que exerciao canibalismo. A ns tocou-nos, pois, esta ltima. Laura de Mello e Souza(1987), ao tratar da feitiaria nos tempos coloniais, chama a ateno para apouca "objetividade" que caracterizava as descries dos europeus sobre omundo selvagem, uma vez que "os olhos europeus procuravam a confirma-o do que j sabiam, relutantes ante o reconhecimento do outro". Era umapoca em que ouvir (o que se desejava conquistar) "valia mais do que ver",pois a convico da presena do ouro e de seres monstruosos era sempreanterior experincia.

    Apesar disso, o sculo XVI no colocou em dvida a possibilidade desalvao dos indgenas; o debate entre Seplveda e Las Casas em Valladolidem 1550 e o Conclio de Trento (1546-63) tomaram como suposto a idia de

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    uma humanidade una, j estabelecida pela bula Sublimis Deus de Paulo III,que descrevia os ndios como "verdadeiros homens".

    Mas o que sobressai nas consideraes dos antigos e dos primeirosconquistadores do sculo XVI sobre as diferenas naturais e humanas adificuldade de identificar no homem americano um Outro e reconhec-locomo diferente. A operao simblica que regia a percepo da alteridadebuscava uma traduo constante do desconhecido para o conhecido.Nesse sculo, e ainda no seguinte, predominava a convico da universa-lidade das normas sociais e do alto grau de unidade cultural. Esses autoresseguiam as tradies bblica e/ou aristotlica, acreditando na fixidez dasespcies e na imobilidade da natureza, cuja variedade j estaria determi-nada de antemo. Assim, o padro descritivo predominante buscava noOutro o seu equivalente: os observadores no estavam interessados emdescrever objetivamente a alteridade e identificar nela as diferenas cultu-rais; tratava-se antes de avaliar o comportamento dos povos para justamen-te eliminar essa alteridade e colocar esses perturbadores homens nosesquemas de classificao baseados na Bblia e nos autores gregos. Aperplexidade e insolncia exposta no olhar de Montaigne quando descre-ve o canibal esse Outro situado no ponto mais extremado da alteridade , desse ponto de vista, paradigmtica: duvidando da barbrie doscostumes do homem americano, Montaigne observa: "Por certo, em rela-o a ns so realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossash to grande diferena que [ou brbaros] eles o so ou [brbaros] somosns" (1980, p. 105).

    Da natureza para os costumes

    Os pensadores do sculo XVIII tm o projeto de fundar uma cinciado homem, projeto para o qual colaboram viajantes e filsofos. A leitura dasnarrativas do passado adquire uma nova dimenso quando a Ilustraopassa a compreender a histria em termos do desenvolvimento do espritohumano. Tal histria enfatiza as semelhanas entre os povos, exigindo dospensadores desse sculo que reduzam o problema de suas diferenas. Issofoi realizado pela projeo da histria e das diferenas para o reino danatureza.

    As teses poligenistas como as de Voltaire visam demonstrar, contra ateologia, que a semelhana dos costumes de diferentes povos no resultavade sua origem comum (Ado e Eva), mas de uma identidade de natureza detoda a humanidade. A idia de uma natureza humana universal poisfundamental nesse momento, e se constri na chave da natureza: autorescomo De Paw, Bouffon e Montesquieu inauguram uma reflexo preocupadaem observar os mecanismos que relacionam o homem ao seu meio natural.Mas tambm as diferenas se explicam pelos mecanismos naturais anoo de clima aparece como um conjunto de elementos fsicos que atuam

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    no organismo, nas diferenas fsicas, produzindo diferenas raciais, noscostumes e nas leis. Desaparece pois o selvagem como singularidadeextica; ele se transforma na expresso ordenada da natureza humana, nohomem dos primrdios da humanidade, o nosso primitivo. Por meio doolhar do viajante filsofo sobre a variedade humana se constri a uniformi-dade, um espao homogneo no qual a histria aparece regida peloprincpio da identidade da natureza humana. Contra as figuras da imagina-o do perodo anterior, os pensadores do sculo XVIII propem auniformidade da natureza. A questo da alteridade se coloca agora em outropatamar: preciso fazer desaparecer a singularidade extica para encontraro homem universal. Rousseau critica a insensibilidade da literatura deviagens que se prende observao exterior das singularidades, quando preciso ir alm de todo conhecimento do mundo exterior para conhecer ohomem. Essa mesma idia se expressa na to citada frase de seu "Ensaiosobre a origem das lnguas": "Para estudar o homem, preciso dirigir o olharpara longe; preciso em primeiro lugar observar as diferenas, paradescobrir as propriedades".

    O final do sculo XVIII teve, pois, papel primordial na elaborao dosfundamentos de uma "cincia do homem". Os pensadores ilustradosinauguraram a possibilidade de aplicar os mtodos das cincias naturais cincia do homem. No entanto, o modelo de conhecimento assim constitu-do supunha ordenar a diferena resduo incmodo desta humanidadeuniversal em uma cadeia de seres homognea. Para os historiadoresilustrados, as diferenas de costumes podiam ser lidas como um grandemapa da humanidade no qual estavam inscritas as vrias etapas de suaevoluo. Assim, para superar a percepo da diferena como resduo einstitu-la como o foco da reflexo, ainda seria preciso romper com odiscurso antropolgico do sculo XVIII, fundado em uma concepo dehistria natural. Esta ser a tarefa do historicismo evolucionista, com suainveno do primitivo como ancestral do civilizado.

    O evolucionismo do sculo XIX foi o primeiro a reconhecer aracionalidade das prticas e das crenas das sociedades selvagens. Onde ateoria das luzes freqentemente apenas vira supersties, a antropologiaemergente reconheceu costumes cujo sentido podia ser compreendido pelacomparao. As imagens da diferena que o sculo XVIII deixara forammudando radicalmente medida que se desenvolveu a antropologia comodisciplina. A introduo do conceito de cultura como um elemento especi-ficamente humano e que se sobrepe na explicao da sua conduta aosdeterminantes climticos, materiais e biolgicos desloca a diferena danatureza para os costumes. Mas essa j a histria da antropologia cientfica,histria por demais conhecida para que merea ser retomada aqui.

    Essa rpida (e perigosa) viagem por quase trs mil anos de histria nosserviu at aqui para colocar em evidncia alguns pontos fundamentais queinteressam ao nosso argumento inicial:

    i) Embora a alteridade tenha sido sempre para os homens objeto decuriosidade e reflexo, seu reconhecimento como diferena cultural uma

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    atitude absolutamente moderna, que inaugura a possibilidade (e necessida-de) de um conhecimento positivo e emprico do Outro.

    ii) Os diversos pressupostos que organizaram essa percepo doOutro em momentos anteriores, elaborando as imagens do brbaro, pago,selvagem, definiram um Outro a ser conquistado. Como bem observou Lvi-Strauss (1976) em "Raa e histria", a atitude mais antiga frente diversidadede culturas no a de compreenso, mas a de repdio.

    iii) No contexto de uma nova expanso civilizatria expansocolonial da Europa sobre a frica e outros continentes no sculo XIX nasce a antropologia moderna, que se caracteriza por uma ruptura radicalcom relao ao pensamento filosfico anterior na medida em que incorpora,pela primeira vez, os hbitos e costumes prprios do Outro, na mesmaescala de humanidade do homem ocidental. Nesse processo, o pensamentotransforma o selvagem em primitivo momento primeiro de nossa prpriasociedade e chave para a decifrao do enigma de nossas origens.Completa-se o movimento que desloca a alteridade da natureza para acultura, tornando-a no mais imutvel e dada, mas sujeita ao movimento dahistria. apenas nesse momento que a alteridade pode ser concebida emtermos de diferenas de costumes e ganhar o estatuto de objeto epistemo-lgico. apenas nesse momento que se pode postular a diferena de culturacomo objeto de conhecimento emprico.

    Assim, se em todos os tempos houve colonizao, foi somente nosnossos dias que se inventou a colonizao "cientfica", na qual a medida doprogresso deixa ser imaterial o desenvolvimento das idias, como nosculo XVIII e se torna a capacidade de produo de bens materiais, bemcomo a existncia de relaes sociais cada vez mais complexas, de modoque se pudessem estabelecer etapas de desenvolvimento que levariam passagem da brutalidade animal selvageria, da selvageria barbrie, dabarbrie civilizao (Lclerc, 1973). Desse modo, se verdade que emtodos os tempos houve colonizao, apenas a colonizao cientfica"desenvolvimentista" exigiu o conhecimento emprico dos povos quepretendia domesticar e isto, me parece, uma novidade.

    Tendo nossa viagem chegado a bom porto, cabe-nos agora perguntar:a antropologia emergente, que, por oposio ao pensamento teolgico efilosfico de momentos anteriores, se ps como problema o conhecimentopositivo da diferena no plano da cultura, ter sido capaz de conhec-la?

    Na verdade, como veremos a seguir, as duas grandes teorias fundado-ras da antropologia o evolucionismo e o funcionalismo , embora sepropusessem, cada uma a seu modo, a conhecer a diferena, criaram por suavez novas imagens sobre o Outro; imagens estas que, de certa maneira,perpetuaram aquelas do perodo anterior, projetando sobre a alteridade umnovo etnocentrismo, quando o homem primitivo colocado no estgioinferior de uma escala de raas, ou quando sua cultura essencializada emtermos de etnias ou tradio. A antropologia do sculo XIX inventou, comobem observa Adam Kuper (1988), a "sociedade primitiva" e seu modelo, jclaramente codificado no final do sculo passado, permaneceu vivo nas

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    teorias antropolgicas at os anos 50. Vejamos pois, rapidamente, como aimagem do primitivo elaborada pelo evolucionismo e pelo funcionalismoantropolgico projetou sobre a alteridade uma nova forma de desconheci-mento.

    O etnocentrismo cientfico: o Outro como primitivo

    Se foi preciso esperar o sculo XIX para que a alteridade se deslocasseao plano da cultura, e se tornasse diferena a ser conhecida, como foi quea antropologia emergente "conheceu" a variedade?

    Para responder a esta questo terei que alterar o registro de minhareflexo. At aqui acompanhamos as imagens que os europeus produziramsobre os outros, mostrando como elas classificaram e localizaram asdiferenas observveis e imaginadas no interior de uma cosmologia hierar-quizada em que o homem e sua razo se tornavam senhores da natureza eda barbrie. Agora, trata-se de analisar as imagens que a prpria teoriaantropolgica produziu. Ao pretender conhecer este homem primitivo e/ousimples, os dois grandes modelos cientficos predominantes no sculopassado e at meados deste o evolucionismo e o funcionalismo,respectivamente incorporaram elementos presentes nas imagens anteri-ores. Paradoxalmente, o mesmo movimento intelectual que funda a possi-bilidade do conhecimento das culturas diferentes da nossa o faz a partir deparmetros comparativos que so evidentemente ocidentais, repondo oetnocentrismo em um novo patamar.

    Vejamos ento como essa observao pode ser demonstrada no casoespecfico dessas teorias.

    O evolucionismo

    Ao considerar as convices dos feiticeiros um sistema filosficosincero, mas falso, os positivistas tornam a opacidade das crenas condiode sua inteligibilidade terica. Isto significa que somente a teoria antropo-lgica seria capaz de compreender a racionalidade oculta nessas crenas.Dessa maneira, o que se constituiria como racional no sentido prprio dotermo seria a reconstruo terica da cultura primitiva que a antropologiarealiza, e no a cultura nativa nela mesma. A racionalidade desta ltima spode ser reconhecida, portanto, como uma racionalidade conferida: na suaexistncia emprica as crenas nada sabem (Lclerc, 1973). A tese daunidade do homem, assim formulada, lana fora pois as diferenas,asfixiando pelo novo etnocentrismo a reposto os objetivos comparativistaspresentes no incio. Reaparecem sob outras roupagens as imagens deselvageria e barbrie presentes nos discursos anteriores.

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    A construo da idia de raa talvez tenha sido a imagem maispervasiva e convincente da percepo da diferena no mundo contempor-neo; foi o modo como a cincia do homem emergente elaborou, nocontexto da colonizao, o reordenamento das diferenas. Por mais de umsculo, at pelo menos a II Guerra Mundial, uma enorme gama deespecialistas, bilogos, naturalistas, mdicos, criminalistas deu sua contri-buio conceituao das diferenas humanas em termos de raa. Autorescomo Jean e John Comaroff (1991, p. 98) mostraram como a racializao dasdiferenas foi um processo que se desenvolveu no contexto dos encontroscoloniais e da expanso missionria. Segundo esses autores, no debate queteve incio no sculo XIX as cincias da vida estavam preocupadas emposicionar o homem no reino da natureza, e para faz-lo era preciso definirsuas relaes com as outras espcies naturais. Na epistemologia da poca,enraizada no contraste entre o animado e o inanimado, a vida animal erafoco de uma reflexo que buscava conhecer as propriedades da vida emgeral. Nesse contexto, postulou-se o homem como a encarnao daperfeio, j que ele foi o nico capaz de fazer uso da razo para descobrirsua prpria essncia. Pode-se definir essa proposio como a pedra detoque que permitiu conceber a idia de natureza humana, noo que separao homem da besta, as pessoas das coisas inanimadas, e torna anmala todaforma de pensamento que, como a mentalidade pr-lgica caracterizada porLvy-Bruhl, restabelece essa confuso.

    Mas "natureza humana" um conceito por demais abstrato. O quefazer com a variedade emprica que a experincia nos dava como certa? Paradar razo a essa "verdade" dos sentidos, as cincias da vida preocuparam-se em ordenar essa variedade em hierarquias por meio da instituio de uma"grande cadeia dos seres". A nova biologia nascente ser o instrumentoordenador da essncia da vida. Nomeando e observando as diferenas entrehomens, significadas a partir de sua aparncia fsica, ela fez nascerhierarquias que ordenassem as diferentes faculdades e funes dos seres.Em meados do sculo XIX, o estudo das diferenas humanas se desenvolveua partir da convico, a esta altura firmemente estabelecida, de que se podiadividir a humanidade em raas bem distintas. Um desenvolvimento decisivodessas teorias foi a associao da raa a tipos humanos. Credita-se aobotnico sueco Lineu o estabelecimento de princpios taxonmicos nascincias biolgicas que serviram de base ao mais famoso sistema classifica-trio dos tipos humanos europeu, asitico, africano e americano apartir de suas qualidades intrnsecas: engenhoso, criativo, preguioso,arbitrrio etc. Johann-Friedrich Blumenbach (1752-1840), conhecido comoo "pai" da antropologia fsica, foi o primeiro a definir trs tipos raciais caucasiano, mongol e etope , mais tarde acrescidos de mais dois americano e malsio. Inmeras outras tipologias e subtipologias prolifera-ram a partir desse modelo. A concepo de raa como tipo biolgico serefora na medida em que a antropologia fsica se institucionaliza na Europaao longo da segunda metade do sculo. A cor se associa ento idia deevoluo. Com efeito, alm da pequena estatura, da feira, da promiscuida-

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    de e violncia, uma das caractersticas consensuais do homem primitivo foisua cor de pele. Tylor, por exemplo, hierarquiza as culturas em termos desaturao de cor da mais escura mais clara , escolhendo suasunidades culturais (australiana, taitiana, asteca, chinesa, italiana) no interiordo espectro conhecido de raas humanas (Stocking, 1987, p. 235).

    O funcionalismo

    Mas se a antropologia, nas suas diferentes variantes evolucionistas,teve grande importncia enquanto um quadro de interpretao para amarcha da humanidade em direo ao progresso, como instrumento decolonizao teve um papel relativamente menor (L'Estoile, 1997). Ao proporsimplesmente civilizar os indgenas, ela estimulava, certo, o estudo de suasprticas, mas no oferecia nenhum meio positivo de mudana, a no ser umquadro de referncia para medir o estado deplorvel dos nativos. Oferecerinstrumentos de conhecimento adequados ao governo das sociedadesprimitivas talvez tenha sido um dos feitos mais importantes para o sucessoda antropologia funcionalista. Ela se torna possvel quando se percebe, cadavez mais claramente, que ser preciso adaptar a colonizao s condieslocais. No contexto antiuniversalista da Administrao Indireta inglesa nova doutrina colonial que se impe entre as duas grandes guerras e propeo desenvolvimento das sociedades africanas a partir das instituies indge-nas , a antropologia funcionalista formulada por Malinowski e Radcliffe-Brown que reconhece o poder de coeso social dos costumes aparente-mente brbaros passa a ocupar uma posio privilegiada ao se auto-representar como porta-voz dos interesses indgenas.

    A pesquisa de campo e a descrio monogrfica condio mesmada emergncia da antropologia moderna se d, pois, como tarefa adescrio das condies de existncia anteriores colonizao (que devemser descritas antes do desaparecimento dessas culturas) e a descrio doimpacto da colonizao sobre as culturas indgenas (aculturao). SegundoLeclerc (1973), as prticas de investigao fundadas na pesquisa de campo,ao permitir uma ruptura com a histria do tipo evolucionista e com amitologia, introduzem uma transformao relativa na imagem do "selva-gem". Vimos que no esprito evolucionista a tese da unidade do homemasfixiava a diferena, colocando-a no incio da evoluo. Embora voltadapara o conhecimento das condies concretas de existncia do primitivo, aviso evolucionista no abandona inteiramente a idia de uma unidadeconstitucional da natureza humana; ela apenas atenua seu carter monista,subdividindo essa unidade em uma multido de ramos distintos. Dessemodo, idia evolucionista de "civilizao" como "sociedade mais avana-da" se agrega um sentido novo: a civilizao comea a ser pensada como umprocesso autnomo; as culturas podem aceitar ou rejeitar esse caminho, quedeixar de ser percebido como destino comum e ltimo da humanidade.

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    claro que esta percepo s poder estabelecer-se no momento em quecomea a tornar-se evidente o fato de que ou os nativos eram incapazes decivilizar-se ou, simplesmente, eram resistentes civilizao (Leclerc, 1973).

    Conforme L'Estoile (1997), o deslocamento paradigmtico da antropo-logia vitoriana para a funcionalista trouxe como resultado prtico umarevalorizao das diferenas em detrimento do universalismo. A noo deespecificidades culturais que supe uma homologia entre raa, cultura,lngua e sociedade e a necessidade de sua proteo se consolidam noimaginrio antropolgico em perfeita sintonia com as exigncias do Imp-rio. A finalidade da poltica educacional britnica, tal como expressa por umdos primeiros formuladores da Administrao Indireta, Lord Lugard (1933),era "no a de eliminar as diferenas raciais, mas aceit-las como a verdadeirabase da educao africana, de encorajar o africano a ser orgulhoso de suaraa, a sentir que ele tem uma contribuio prpria a fazer para o progressodo mundo (...)".

    Podemos ento concluir que, enquanto as teorias evolucionistascriaram a oposio primitivo/civilizado para qualificar a distncia culturalque separava o nativo da metrpole, as teorias funcionalistas, ao propor quecada cultura particular pudesse ser portadora de uma especificidadeprpria, irredutvel e no-comparvel, ensejaram a construo de uma idiade etnia. Essa viso substantivista de cultura que funda imaginariamentegrupos tnicos discretos e homogneos, com lngua, hbitos, valores epsicologia prprios, vai dominar por muito tempo a reflexo antropolgica.Veremos a seguir que ser em continuidade a essa segunda imagem que asdiferenas comearo a ser tratadas como identidade. Esta observao nosleva, pois, de volta pergunta inicial de nossa reflexo: qual seria hoje olugar da diferena em um mundo cada vez mais global e como ela tem sidopensada pela antropologia contempornea?

    Da diferena identidade

    A distncia geogrfica e o suposto isolamento das culturas exticasforam, at muito recentemente, o modelo que sustentou a interpretaoantropolgica da diferena. No entanto, o encurtamento das distnciasculturais pela acelerao da comunicao e dos transportes e pela movi-mentao em massa de populaes em direo aos centros hegemnicos domundo fez disparar os alarmes dos que temiam o desaparecimento ou aaculturao (leia-se perda de autenticidade) dos povos que a antropologiaestuda. Estaria a antropologia correndo o risco de perder seu objeto?

    Na verdade, o que hoje espanta os que estudam a globalizao apersistncia, e mesmo a renovao, das diferenas em contextos de intensainterao social. Essa constatao obrigou a antropologia contempornea arepensar o modo, digamos, substancialista com que vinha tratando oproblema das diferenas culturais. A antropologia no precisa mais do

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    modelo, ilusrio, das sociedades primitivas, cujos princpios de sangue eterritorialidade se ajustavam to perfeitamente s noes de raa e naciona-lidade, organizadoras das diferenas e definidoras dos pertencimentos nassociedades ocidentais. Com efeito, ao associar um repertrio cultural a umgrupo social especfico, a interpretao antropolgica de inspirao funci-onalista contribuiu para reificar diferenas de cultura em identidadesempiricamente observveis. No modelo das sociedades primitivas, cultura,raa e etnia eram noes equivalentes e homlogas idia de nao,reservada s sociedades civilizadas.

    Mas no tardou muito para que as culturas primitivas pacientementedesconstrudas pelos antroplogos se tornassem atores sociais e passassema fazer uso dos conhecimentos antropolgicos para, em nome da etnia queas teorias haviam simbolicamente construdo, reivindicar, a favor ou contraos antroplogos, direitos polticos. Ao mesmo tempo, medida que vai sedesvanecendo a iluso antropolgica das sociedades isoladas, emerge oproblema ao mesmo tempo terico e poltico da identidade tnica. Sea noo de identidade pode ser compreendida como uma forma derepresentao coletiva que designa pertencimentos, a identidade tnica seruma maneira de nomear e ordenar as diferenas que toma como elementosde representao traos particulares de uma cultura.

    Uma vertente importante do debate em torno das identidades coletivasse inaugura no contexto da construo dos Estados nacionais nasAmricas no sculo XIX e na frica na segunda metade do XX. Uma dascaractersticas desse tipo de identidade coletiva o fato de ele se forjar apartir de elementos culturais facilmente universalizveis, fazendo coincidirsimbolicamente uma cultura, um territrio e uma forma de organizaopoltica. As identidades nacionais se forjam, portanto, no sentido dadomesticao das diferenas e das particularidades. Ora, a intensificao dodeslocamento de populaes nestas ltimas dcadas da periferia do sistemacolonial para os centros hegemnicos leva o problema das diferenastnicas para o corao das sociedades industriais avanadas, onde o Estadoparecia ter sido capaz de integrar as diferenas. O que a antropologia havia

    . descrito, a partir do distanciamento geogrfico, em termos de etnia setransforma no interior das naes em reivindicao de etnicidade. Amultiplicao acelerada de reivindicaes de identidades etnicamentefundadas logo tornou evidente que a identidade, mais do que um conceitoexplicativo de um sistema cultural em si mesmo autntico, era umaperformance simblica capaz de realizar politicamente a realidade que sepropunha elucidar3.

    O caso africano foi, nesse particular, paradigmtico. O processo dedescolonizao da frica nos anos 50 provocou, como todos sabem, umadas mais graves crises da antropologia europia. Evans-Pritchard constatouque a antropologia havia se tornado um insulto nos novos Estadosindependentes e assim, prudentemente, aconselhava seus alunos a seapresentar como historiadores ou lingistas, pois estes tratam de "assuntosque no ofendem ningum" (1987, pp. 240-254). Que mal teria feito a

    (3) Ver a esse respeito Cunha,1985. Em sua definio de iden-tidade tnica a autora observaque " pela tomada de cons-cincia das diferenas, e nopelas diferenas em si, que seconstri a identidade tnica"(p. 200).

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    antropologia queles povos cujas tradies ela buscava resguardar contra asforas desagregadoras do desenvolvimento e do colonialismo? Haveria umdesacordo fundamental no modo como o problema da identidade secolocava para os antroplogos e para os nativos?

    L'Estoile, em seu interessante artigo sobre a relao das elites escola-rizadas africanas com a antropologia, nota que enquanto a ideologiavitoriana fazia dos volus os interlocutores privilegiados do europeu, j quetendo passado pelas escolas missionrias podiam apresentar-se comoaliados naturais da civilizao, o novo modelo colonial legitimado pelaantropologia funcionalista transformou o africano educado europia emum "destribalizado", uma "espcie de monstro sociolgico, duplamentedesadaptado, sua cultura de origem, da qual se separaram artificialmente,e da cultura europia, na qual no encontram lugar" (L'Estoile, 1997, p. 93).Com a nova filosofia colonial, o africano educado perde pois seu estatuto deinterlocutor privilegiado das autoridades europias, que passam a legitimaras chefias tribais percebidas como tradicionais.

    no interior desse contexto que se pode compreender melhor porque, apesar da boa conscincia da antropologia funcionalista quepretendia estar contribuindo para constituir as bases de um nacionalismoafricano orgulhoso de seu passado e dos valores de suas tradies , foicontra a autoridade das tradies (e contra as pretenses dos antroplogosde produzir a verdade sobre os africanos) que se empreenderam as guerrasde libertao nacional. O conhecimento antropolgico acumulado no bojodo movimento de expanso colonial acabara por gerar modelos culturais os Nuer de Pritchard, os Dogon de Marcei Griaule etc. que, implicitamen-te, pretendiam ser o espelho no qual este Outro poderia ter finalmenteacesso a sua identidade, a uma conscincia de si (como subordinado). Masa imensa e prodigiosa cultura imperial tambm foi apropriada pelos letradosnativos, que passaram a produzir outras imagens africanas, dissonantes coma dos antroplogos. L'Estoile observa que, ao criar um modelo da culturaafricana autntica, a antropologia funcionalista cauciona com o selo de suacincia uma forma particular de ser africano como a nica verdadeira (1997,p. 93). Ora, esse modelo interessou s autoridades tradicionais, que dele seserviram para reafirmar sua posio, mas desagradou aos nativos educados,para quem essa imagem ameaava sua reivindicao de representanteslegtimos da cultura africana. Essa observao revela o modo como, quandocolocado no contexto das condies histricas em que foi produzido, oprprio conhecimento antropolgico parte de um complicado jogo deforas no qual diferentes atores disputam entre si a legitimidade de poderfalar em nome da verdadeira identidade africana. A compreenso desse fatolevou os antroplogos a abandonar progressivamente uma compreensoessencialista de identidade para conceb-la como relacional.

    Um marco importante na reflexo sobre a identidade no bojo daantropologia europia foi sem dvida o seminrio organizado por Jean-Marie Benoist e dirigido por Lvi-Strauss no Collge de France em 1974-75.Mais do que as contribuies das vrias disciplinas para a "elucidao" do

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    problema da identidade, o que me parece mais interessante na iniciativadesse encontro foi o modo como Lvi-Strauss formulou as razes que omotivaram. "Por que ns os etnlogos nos colocamos o problema daidentidade?", pergunta-se, e a isso responde:

    Em razo dos ataques muito vivos que surgem, hoje em dia, contra aetnologia em seus princpios mesmos. Dizem-nos: a finalidade doetnlogo identificar as culturas diferentes e irredutveis a nossosprprios modos de pensar. Assim fazendo, nos dizem, vocs arrasam aoriginalidade especfica das outras culturas [...] fundindo-as nosmoldes de nossas categorias e classificaes, sacrificando sua origina-lidade [...] e sujeitando-as formas mentais prprias a uma poca e auma civilizao. [...] A antropologia seria um modo frentico deprojetar a qualquer preo uma identidade mentirosa a experinciasvividas que no so passveis de qualquer esforo de reflexo ouanlise (Lvi-Strauss, 1977: pp. 10, 330).

    Podemos perceber nestas palavras que o debate em torno da identi-dade faz aparecer um dos pontos mais sensveis da interpretao antropo-lgica que poderia ser resumido na seguinte indagao: possvel conhecero Outro sem, no processo mesmo do seu conhecimento, reduzi-lo aoMesmo?

    Para responder a esse desafio lanado contra a antropologia, Lvi-Strauss prope uma crtica ao prprio conceito de identidade: em suahiptese, a identidade no corresponderia a nenhuma experincia substan-tiva, mas seria um foco virtual, um esforo de construo indispensvel explicao, mas cuja existncia seria puramente terica. Embora essaseparao entre modelo da identidade e experincia vivida da diferenaparea por demais radical, ela faz, a meu ver, avanar a reflexo antropo-lgica porque retira a noo de identidade do campo das essencialidades,obrigando-nos a pens-la do ponto de vista relacional.

    Mas, reconhecidamente, foi Fredrik Barth o autor que mais contribuiupara sedimentar a concepo relacional da identidade. Em texto de 1969,que inspirou inmeros estudos no Brasil, como os de Roberto Cardoso deOliveira, Manuela Carneiro da Cunha, Carlos R. Brando, Sylvia C. Novais,entre outros, o autor prope que os estudos sobre identidade se voltem paraa compreenso dos modos como as pessoas se auto-atribuem identificaes,deslocando o foco da anlise das relaes internas ao grupo para as relaesque se do nas fronteiras. Para Barth, a nfase tradicional nas diferenasculturais de lngua, religio, filiao etc. levava a uma classificao degrupos enquanto portadores naturais e espontneos de heranas culturaisque os distinguiriam empiricamente. Ora, as identidades no resultamespontaneamente do pertencimento emprico a uma cultura. Seriam, aocontrrio, conseqncia de um processo simblico de autodesignao de

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    traos culturais mesmo daqueles que podem ser fisicamente aferidoscomo ausentes que retira sua inspirao de um repertrio culturaldisponvel (prprio ou alheio). Desse modo, a continuidade de uma etniadepender da capacidade de um determinado grupo de manter simbolica-mente suas fronteiras de diferenciao, ou, dito de outra maneira, de suacapacidade de manter uma codificao permanentemente renovada dasdiferenas culturais que o distinguem dos grupos vizinhos.

    fcil perceber como essa maneira de abordar o fenmeno daidentidade o desloca do campo conceitual para o poltico: a identidade no mais definida como um modo de ser cuja natureza profunda precisorevelar, mas como um jogo simblico no qual a eficcia depende do manejocompetente de elementos culturais. No contexto da cena contempornea, aidentidade cultural e a diversidade se carregam pois de significadossimblicos capazes de mobilizar poderosamente e criar, sua imagem, osgrupos que elas designam. Com efeito, a etnicidade, esse modo particularde enunciar identidades, ganhou cada vez mais visibilidade na cena polticaporque capaz de combinar interesses e pertencimentos: ao operar sobreum leque tangvel de identificaes comuns facilmente reconhecveis comidas, lngua, msica, vesturio etc. , produz uma imagem verossmile convincente da realidade do grupo, criando lealdades afetivas e persona-lizadas. Vem dessas mesmas caractersticas sua enorme eficcia na compe-tio por direitos e espao social.

    A progressiva politizao da diferena, ou o deslocamento para oespao poltico dos modelos substantivistas que os antroplogos haviamconstrudo em suas anlises (as etnias), obrigou a reflexo antropolgicainteressada em compreender essa nova forma de conscincia que aetnicidade a descentrar sua reflexo do campo da cultura vista como umtodo homogneo capaz de ser compreendido em sua lgica interna,patrimnio de um grupo social produtor de sua identidade para o campodas relaes interculturais. Isto porque o entendimento at ento prevale-cente, fundado na idia de que os grupos tnicos so autnticos portadoresde uma cultura original, no d conta de situaes nas quais os traosconsiderados autnticos no esto presentes, enquanto a reivindicao deidentidade, ela mesma, est. Essa inadequao pode ser percebida noconceito de aculturao, usado como principal instrumento de anlise damudana cultural. Levou algum tempo para que a fragilidade do conceito deaculturao se tornasse evidente. Roberto Cardoso de Oliveira se defrontacom esse problema em seus estudos sobre a assimilao dos anos 60,quando percebe que o critrio da diferena entre culturas, fundado emrepertrio de traos culturais empiricamente observveis, no era capaz deexplicar a persistncia das identificaes tnicas em grupos onde essestraos estavam ausentes (Oliveira, 1976, p. 2).

    Se podemos definir a etnicidade como um modo particular deconscincia de si que legitima, a partir do uso simblico de elementosculturais, reivindicaes de direitos coletivos, caber antropologia noapenas interpretar o modelo cultural a partir do qual esses elementos

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  • GLOBALIZAO, IDENTIDADE E DIFERENA

    culturais ganham sentido, mas tambm compreender a lgica dos interessesque do poder de mobilizao (vida) a essas representaes (uso aqui anoo em seu duplo sentido: representao como imagem de si e comoporta-voz de um grupo). Esse pelo menos o projeto de conhecimento quese inaugura com o que se convencionou chamar de antropologia ps-moderna. No cabe delinear aqui suas variantes e mltiplas interpretaes.Mas talvez possamos afirmar que a inquietao comum dos trabalhoscontemporneos a de incluir, na imagem que a antropologia produz sobreo Outro, a reflexo sobre o modo como essa imagem foi produzida. Oantroplogo passa pois a disputar com diversos atores sociais o monoplioda representao legtima do Outro. Se isto verdade, no mais adiferena que interessa nela mesma, mas o jogo de foras que organiza ocampo de sua construo simblica.

    Quando se coloca a questo dessa maneira compreende-se melhorpor que a mundializao no leva a uma drstica reduo das diferenasculturais. Os que pensam a globalizao em termos da americanizao dasculturas reduzem a cultura ao consumo; os que colocam a questo emtermos da exportao do modelo do Estado democrtico nacional percebema ecloso das etnicidades como uma regresso patognica e irracional quedeveria ser extirpada. Ora, como bem observa Selim Abou (1981), asaspiraes tnicas se enrazam no desejo de reconhecimento e o fazemcriando formas sempre renovadas de tornar traos culturais etnicamentedistintivos. Se isto verdade, a pergunta a orientar nossa reflexo contem-pornea sobre a diferena deve afastar-se do projeto salvacionista dasidentidades que at to pouco tempo ocupou nossos espritos, para quepossamos legitimamente nos perguntar, no tanto qual a diferena, massobretudo a quem interessa a diferena.

    Recebido para publicao em3 de outubro de 1997.

    Paula Montero professora deAntropologia da USP e pesqui-sadora do Cebrap. J publicounesta revista "Cultura e demo-cracia no processo da globali-zao" (n 44).

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