Ginzburg

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GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes. O quotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. O estudo critico a apresentar assenta na leitura da fundamental obra de Carlo Ginzburg, denominada “O Queijo e os Vermes”. A obra, datada de 1976, relata-nos, em termos genéricos, a história de um simples moleiro que, em pleno século XVI, foi perseguido pela Inquisição dado o conteúdo, considerado herético, das suas ideias. Esta obra fundamental para o estudo da história cultural e das mentalidades foi, no entanto, recebida com bastante cepticismo. Carlo Ginzburg, autor de obras como “Os Andarilhos do Bem”, “História Noturna” e “Mitos, emblemas e sinais”, renova o espírito que dá vida à micro-história, relegando para segundo plano a história das elites e a sua consequente abordagem estrutural. A micro-história, como bem demonstra Ginzburg neste estudo paradigmático, releva o estudo sobre as camadas subalternas, em vez de manusear as grandes figuras, os grandes factos; é, sem dúvida, o reaparecer da história narrativa e a história dos indivíduos. Neste sentido, a presente obra transpõe-nos para o universo mental do século XVI, figurado pela personagem principal, Domenico Scandella. No entanto, Ginzburg, fiel aos seus princípios de fazer uma narrativa que subleve as dimensões política e cultural- sociológica, consegue formular um texto que demonstre quão importante e real foi a circularidade entre as aquisições da cultura popular e da cultura aristocrática. Pese embora abordar esta confluência de acções entre a cultura de elite e a cultura considerada popular, Ginzburg considera o caso de “Menocchio” como sendo um uma figura que não é representativa do seu enquadramento social, ou seja, rejeita a possibilidade de se fazerem raciocínios indutivos em relação à temática em questão. Deste modo, a ideia do autor é analisar o fluxo cultural das classes subalternas a partir de um estudo micro- histórico da vida de Menocchio e construir alicerces na

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GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes. O quotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

            O estudo critico a apresentar assenta na leitura da fundamental obra de Carlo Ginzburg, denominada “O Queijo e os Vermes”. A obra, datada de 1976, relata-nos, em termos genéricos, a história de um simples moleiro que, em pleno século XVI, foi perseguido pela Inquisição dado o conteúdo, considerado herético, das suas ideias.

            Esta obra fundamental para o estudo da história cultural e das mentalidades foi, no entanto, recebida com bastante cepticismo. Carlo Ginzburg, autor de obras como “Os Andarilhos do Bem”, “História Noturna” e “Mitos, emblemas e sinais”, renova o espírito que dá vida à micro-história, relegando para segundo plano a história das elites e a sua consequente abordagem estrutural.

            A micro-história, como bem demonstra Ginzburg neste estudo paradigmático, releva o estudo sobre as camadas subalternas, em vez de manusear as grandes figuras, os grandes factos; é, sem dúvida, o reaparecer da história narrativa e a história dos indivíduos. Neste sentido, a presente obra transpõe-nos para o universo mental do século XVI, figurado pela personagem principal, Domenico Scandella. No entanto, Ginzburg, fiel aos seus princípios de fazer uma narrativa que subleve as dimensões política e cultural-sociológica, consegue formular um texto que demonstre quão importante e real foi a circularidade entre as aquisições da cultura popular e da cultura aristocrática. Pese embora abordar esta confluência de acções entre a cultura de elite e a cultura considerada popular, Ginzburg considera o caso de “Menocchio” como sendo um uma figura que não é representativa do seu enquadramento social, ou seja, rejeita a possibilidade de se fazerem raciocínios indutivos em relação à temática em questão. Deste modo, a ideia do autor é analisar o fluxo cultural das classes subalternas a partir de um estudo micro-histórico da vida de Menocchio e construir alicerces na composição de uma definição correcta para o conceito de cultura popular.

            Numa abordagem conjuntural, a obra de Ginzburg situa-nos no século XVI. A Europa Ocidental, auxiliada pela recente invenção da imprensa, concentrou-se em “pensar” o fenómeno religioso, tendo para isso sido fundamentais os contributos de Martinho Lutero, Erasmo de Roterdão e muitas outras figuras da elite cultural que se debruçaram sobre as virtudes e os defeitos da sua Igreja. Neste sentido, a coerência da “respublica christiana” estás prestes a estilaçar com o movimento da Reforma Luterana e as suas devidas consequências. Do anonimato em 1517, quando afixou as suas teses na capela de Wittenberg até ao conhecimento europeu da sua figura e ideias em 1521, Lutero propagou um clima de tensão religiosa, que se agravou com a actuação bastante repressiva do Tribunal do Santo Ofício. Assim, podemos dizer que em 1532, em Monterreale, Menocchio acordou para o mundo e viu uma Europa, não já unida, mas dividida pela pluralidade confessional e pelas ressonâncias políticas de que essa conjuntura favorecia.

            A personagem recuperada por Carlo Ginzburg nasceu, de facto, em 1532, na aldeia de Monterreale, situada na zona italiana do Friuli. Moleiro de profissão, Menocchio chegou ainda a exercer o cargo de magistrado nalgumas aldeias ao redor.

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            O moleiro, no século XVI, era considerado como um importante elemento social e de convívio. De facto, o moinho era um lugar de encontros e de relações sociais; um lugar de intensas trocas de ideias entre os intervenientes, que suscitava discussões sobre as diversas dimensões da sociedade.

            Foi neste quadro conjuntural que a figura de Domenico Scandella começou a suscitar alguma preocupação nas hostes eclesiásticas que, impulsionadas pelo militarismo católico aprovado na assembleia tridentinam queriam reaver as almas perdidas pela Reforma Protestante. Durante 51 anos, Menocchio levou uma vida perfeitamente normal como cidadão de Monterreale, dedicado às suas actividades de sustento e formando a sua família. No entanto, em 1583, o simples moleiro é chamado ao Santo Ofício no sentido de se justificar perante a acusação de ter proclamado palavras que iam contra a ortodoxia católica e que roçavam o tom herético. Delienemos as suas ideias e, posteriormente, concretizemos a sua riqueza cultural.

            Especificamente, o que o Tribunal do Santo Ofício queria era uma explicação da cosmologia desenhada por Menocchio para uma compreensão das diversas entidades existentes e o seu quadro de acção. O título desta obra resume um pouco das ideias de Menocchio. No entanto, o que Menocchio afirma é que “segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo com como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade  quis que aquilo fosse Deus e os Anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado dessa massa (...)”.[1] Esta é a metáfora essencial que modela todo o pensamento de Menocchio.

            No perfil de Menocchio, Ginzburg foi feliz em sublinhar que este moleiro não tinha receio em discutir as suas ideias, ou seja, era um homem que sabendo apenas ler, escrever e somar, tinha uma capacidade crítica verdadeiramente feroz e reveladora de categorias mentais extremamente interessantes e que se vão revelar em todo o seu processo inquisitorial, no seu confronto com os inquisidores.

            Na consciência do moleiro, não era a sua catolicidade que tinha sido posta em causa na sua chamada ao Santo Ofício, mas sim uma definição dos compostos espirituais, doutrinais e teológicos que a compunham. Desde logo, fazendo eco de vozes mais ligadas à elite cultural, Menocchio fez críticas ferozes ao luxo e à ostentação da Igreja, criticando também a opressão exercida pela hierarquia eclesiástica, sobretudo, depois de Trento.

            No entanto, o mundo, na própria cosmologia do moleiro, não tinha sido criado por Deus, mas sim por meio da matéria, logo, não admite a ideia de um Deus criador. Como constatámos na leitura, a religião de Menocchio assenta em pressupostos materialistas e panteístas, claramente definidos a partir duma característica essencial que move todo o pensamento camponês: a ideia de que Menocchio, apoiado pelas suas categorias mentais que nos revelam a cultura camponesa, transformou os principais dogmas em imagens e categorias fantasiosas que correspondiam à sua realidade. Ginzburg concluiu que esta é “tradição, profundamente radicada nos campos europeus, que explica a persistência tenaz de uma religião camponesa, intolerante quanto aos dogmas e cerimónias, ligada aos ciclos da natureza, fundamentalmente pré-cristã.”[2] Ainda no materialismo do moleiro, realçar

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que era um materialismo religioso, mas confinado ao seu círculo de pessoas, sem ter locais de pregação definidos.

            Por outro lado, Menocchio recusou-se a atribuir ao homem um princípio imaterial como a alma, provocando intrinsecamente a identificação do homem com o mundo, mas também o mundo com Deus. Como Menocchio afirmou, “as minhas opiniões saíram da minha própria cabeça”.[3] Mas não terá sido influenciado por alguma bibliografia, onde construiu as suas ideias e um sistema de categorias mentais, quer da abordagem ao fenómeno religioso quer ao fenómico cosmogónico, deveras específico?

            Apesar de afirmar que a sua mente produziu as suas ideias, Ginzburg encontrou elos de ligação entre as suas ideias e livros que o próprio Menocchio confessou ter lido. Os mais importantes foram: “Bíblia (em língua vulgar)”, “Il Fioretto della Bibbia”, “Il Lucidario della Madonna”, “História del Giudicio”, “Il Cavalier Zuanne de Mandavilla”. A maior parte destas obras não estavam em conformidade com as condições financeiras do moleiro. Não nos esqueçamos de que se tratam de livros impressos, refinados estética e caligraficamente. Ora, se não compravam, como se efectuava o acesso à sua leitura? Os dados recolhidos por Ginzburg indicam uma rede de leitores que conseguiram superar o obstáculo dos recursos financeiros exíguos, passando os livros de mão em mão, e perpetuando o conhecimento e a difusão destas obras. No entanto, o choque entre a página impressa e os conteúdos da cultura oral provocaram em Menocchio uma redefinição das categorias mentais do deu pensamento. Assim, Menocchio teve a tendência para reduzir a religião à moralidade, ou seja, o amor ao próximo permanecia como um preceito religioso e o verdadeiro cerne da crença religiosa. Esta religião simpificada de Menocchio encontra também paralelos, segundo o autor, com os meios da alta cultura, que tinham a tendência em reduzir a religião a uma realidade puramente humana, unida a um vínculo moral ou político.

            No fundo, o que se nota nos discursos de Menocchio é que são profundos, que houve uma deliberada filtragem da página escrita, mas fundamentada em categorias culturais profundamente enraizadas no universo oral. O próprio Ginzburg afirma que “a ideia de cultura como privilégio fora gravemente ferida (com certeza não eliminada) pela invenção da imprensa.”[4]

            No entanto, Ginzburg encontrou nos discursos de Menocchio algumas inconguências filosóficas que o levam a explicar a maior parte das suas contradições e incertezas na maneira como expôs o seu universo mental aos inquisidores. Ora, a causa para esta incoerência, segundo o autor, está na terminologia que Menocchio empregou para se explicar. Rodeada de conceitos pertença do cristianismo, de ideias fundadas e revistas pelos neo-platónicos e de moções confinadas à filosofia escolástica, o que Menocchio procurava verdadeiramente exprimir era o seu materialismo elementar, institivo e geracional entre os camponeses. Ou seja, é extremamente interessante verificar a personagem que temos em estudo. Dotado de mecanismos que o enculturaram, Menocchio é um homem do seu tempo, mas também do seu espaço. Entregue ao materialismo com que foi gerado, Menocchio consegue, a partir das suas leituras e das suas conversas, aprofundar as suas categorias mentais, sem, no entanto, deixar de evidenciar alguma desordem ao nível das ideias e da sua argumentação.

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            No entanto, é de realçar a sua complexidade linguística, com recursos constantes a uma visão metafórica e esrilística que, de certo modo, impressiona os inquisidores. Por outro lado, é muito interessante verificar a forma como o nosso moleiro transpõe as verdades e figuras centrais da religião por meio duma linguagem que evoca a experiência quotidiana, mas que revela uma extraordinária liberdade de pensamento.

            Um outro aspecto a analisar é o confronto de ideias entre Menocchio e as ideias reformistas geradas no 1º quartel século XVI. Menocchio, em relação às ideias fundamentais da Reforma Luterana, não tinha qualquer apreço, ou seja, para ele tanto presdestinação como justificação pela fé não tinham qualquer significado. O mesmo se pode dizer da sua relação com os grupos anabaptistas. No entanto, Menocchio, à semelhança de Lutero, era também crítico em relação ao estado da hierarquia eclesiástica, concordando que se devia efectuar uma profunda renovação moral do clero e uma modificação incisa das doutrinas. Neste sentido, existe um paralelismo com as teses luteranas, mas que não ultrapassa o estricto campo da crítica generalizada. De certo modo, notamos a ideia de uma acentuada imobilidade das imagens do passado que prefiguram o quadro mental do moleiro e que entram em confronto com a ideia, divulgada pela fortíssima corrente utópica do século XVI, do sonho de um mundo novo.

            Menocchio, tal como Lutero, não teve receio de expôr as suas teses perante o júri inquisitorial. Isso revela, antes demais, uma enorme força nas ideias que pretendia defender e uma capacidade crítica perene que o levaram a ser perseguido por este mecanismo de repressão. O universo político do séc. XVI, assente em ideias que gizavam a construção duma comunidade que era chefiada pelo rei mas que tinha ao seu redor uma pluralidade de agentes jurisdiccionais, faz-nos crer que Menocchio simboliza também a fortíssima voz de um desses agentes sociais. No entanto, o moleiro fá-lo duma forma verdadeiramente crítica e tendoem vista pontos concretos da sua cosmologia que o influenciaram na sua vivência, ou seja, Menocchio, ainda que camponês, sabia do que estava a falar.

            Voltando à narração dos factos, Menocchio é julgado pela Santa Inquisição e é condenado a usar uma indumetária que só os condenados vestiam, simbolizandoa sua infidelidade para com as directrizes da Igreja. No entanto, durante esse período, Menocchio voltou à carga com as suas ideias e, posteriormente, é novamente chamado a um segundo processo inquisitorial, dado considerar a religião uma realidade puramente humana, diria natural. No seguimento deste segundo processo, Domenico Scandella, denominado Menocchio, é condenado pelo inquisidor à execução, pena essa que é confirmada por Roma.

                        A obra de Carlo Ginzburg, em termos historiográficos, revela-nos uma série de premissas que é indispensável ter em conta. Em primeiro lugar, a ideia de que o trabalho historiográfico não está circunscrito apenas à elite que produziu documentos escritos. Posteriormente, a noção de que a massa camponesa não tem assinado um atestado de estupidez comunitária, mas que foi capaz, tal como as denominadas elites, de formular raciocínios abstractos e complexos acerca de temas considerados como alvo de estudo apenas pelos letrados. Nota-se uma abertura crítica, ao nível da cultura de elites e mais: o acto de recepção destas obras é oriundo tanto da cultura letrada como, à imagem do moleiro Menocchio, das camadas mais desconhecidas ao nível documental.

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            Numa abordagem à figura de Domenico Scandella, registo as importantes palavras de Renato Ribeiro: “porque em Menocchio importa menos o conhecimento que acaso tivesse, e mais a sede de conhecimento, a curiosidade - essa paixão que a Igreja e os poderes reprimiam, e que os renascentistas valorizavam. Tudo em Menocchio tenta entender, questionar. A Reforma e a Renascença podem tê-lo atingido de forma somente indirecta, à distância, mas vemos Menocchio agindo com base numa inspiração que retoma o que de melhor havia nas duas: o espírito de curiosidade da Renascença (...) e na Reforma o critério do livre exame.”[5]

            Finalizando, gostaria de tecer algumas considerações acerca da estrutura formal da obra de Carlo Ginzburg. Primeiro, sublinhar que é um estudo que foi desenhado com o intuito de agradar a “gregos e troianos”, ou seja, de reflexão e de rigoroso estudo para os especialistas, mas de uma narrativa envolvente e interessante para o público. Por outro lado, o autor consegue desenvolver historicamente a narrativa e, paralelamente, construir o edifício epistemológico de Menocchio, sem perder o fio narrativo e sem esmagar o leitor com informações que bloqueariam a fluidez do processo narrativo. No entanto, é pena que durante a narrativa não tenhamos noção dos pontos que dividem o texto, como vem descrito no índice e que nos poderiam auxiliar na compreensão do texto.

            Para além destas considerações, referir o quão envolvente se torna a leitura desta obra, não só pelo temas em questão, mas principalmente, pelo caso, sem precedentes, que nos revela Ginzburg, e a sua importância cultural numa correcta apreciação daquilo que foram as relações culturais do estracto popular da sociedade.

José Maria Ferreira