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2 GESTÃO DESCENTRALIZADA DOS SISTEMAS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA: DESAFIOS DE EFICIêNCIA E SUSTENTABILIDADE. TRêS ESTUDOS DE CASO André Uandela 1. Introdução No presente capítulo o autor pretende fazer uma análise sobre a provisão de serviços públicos de abastecimento de água pelos governos locais a nível dos distritos e municípios, no contexto da descentralização e desconcentração. A análise abarcará aspectos das políticas e estratégias do sector referentes à gestão e posse do património, os aspectos de sustentabilidade técnica e financeira dos sistemas, os níveis de serviços providenciados para os diferentes estratos sociais, bem como a capacidade técnica existente a nível local para uma gestão tecnicamente correcta dos serviços. A análise focalizará a provisão de serviços de abastecimento de água em aglomerados populacionais tais como as pequenas cidades ou vilas sede de um distrito, consideradas típicas das zonas rurais de Moçambique. Nestas a gestão do abastecimento de água é considerada da responsabilidade local e não central. Assim, este capítulo detém-se na análise dos pequenos e médios sistemas de abastecimento de água às vilas e pequenas cidades. A questão central a ser respondida é: até que ponto o processo de descentralização e desconcentração em curso no sector de águas contribui para a melhoria e sustentabilidade dos serviços prestados aos cidadãos e para uma participação efectiva destes na tomada de decisões importantes nos processos de gestão dos sistemas de água.

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2GEstÃo dEscEntralizada dos sistEmas dE abastEcimEnto dE ÁGua: dEsaFios dE EFiciência E sustEntabilidadE. três Estudos dE caso

André Uandela

1. introdução

No presente capítulo o autor pretende fazer uma análise sobre a provisão de serviços públicos de abastecimento de água pelos governos locais a nível dos distritos e municípios, no contexto da descentralização e desconcentração. A análise abarcará aspectos das políticas e estratégias do sector referentes à gestão e posse do património, os aspectos de sustentabilidade técnica e financeira dos sistemas, os níveis de serviços providenciados para os diferentes estratos sociais, bem como a capacidade técnica existente a nível local para uma gestão tecnicamente correcta dos serviços. A análise focalizará a provisão de serviços de abastecimento de água em aglomerados populacionais tais como as pequenas cidades ou vilas sede de um distrito, consideradas típicas das zonas rurais de Moçambique. Nestas a gestão do abastecimento de água é considerada da responsabilidade local e não central. Assim, este capítulo detém-se na análise dos pequenos e médios sistemas de abastecimento de água às vilas e pequenas cidades.

A questão central a ser respondida é: até que ponto o processo de descentralização e desconcentração em curso no sector de águas contribui para a melhoria e sustentabilidade dos serviços prestados aos cidadãos e para uma participação efectiva destes na tomada de decisões importantes nos processos de gestão dos sistemas de água.

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1.1 Aspectos teóricos e conceptuais

Dado que outros autores neste livro já abordaram de forma mais profunda alguns conceitos teóricos relevantes para a presente análise, nomeadamente no que diz respeito ao contexto macro, os tipos de abordagens sobre a descentralização, entre outros,27 neste capítulo vamos abordar os aspectos referentes aos serviços públicos e à sua gestão – uma das funções elementares de governos locais resultantes da descentralização.

Segundo Justen Filho (2006) definir serviço público é definir as funções do Estado, os limites da sua actuação e os limites da livre iniciativa. É portanto um conceito variável que reflecte a concepção política de cada sociedade. Assim, o serviço público pode ser definido como sendo toda a actividade desempenhada directa ou indirectamente pelo Estado, visando solver necessidades essenciais do cidadão, da colectividade ou do próprio Estado. É todo aquele que é prestado pela administração directa, indirecta ou por agentes delegados, sob normas e controles estatais, com o objectivo de satisfazer as necessidades colectivas. Os princípios inerentes ao serviço público são, de acordo com Shvoong, os seguintes:

• A continuidade: o serviço público deve ser permanente, não podendo ser interrompido, a não ser em hipóteses previstas na lei ou num contrato.

• A generalidade (também conhecido como princípio da impessoalidade): de acordo com este princípio todos os usuários que satisfaçam as condições legais fazem jus à prestação do serviço, sem qualquer discriminação, privilégio, ou abusos de outra ordem. O serviço público deve ser estendido ao maior número possível de interessados, e todos devem ser tratados igualmente.

• A eficiência: os serviços devem ser prestados com a maior eficiência possível. A eficiência reclama que o poder público se actualize relativamente aos novos processos tecnológicos, de modo que a execução seja mais proveitosa e com o menor dispêndio possível.

• A modicidade: os serviços públicos devem ser prestados a preços módicos, razoáveis, devem ser estabelecidos de acordo com a capacidade económica do usuário e com as exigências do mercado, evitando que o usuário com capacidades económico-financeiras baixas seja excluído do universo de beneficiários do serviço público.

De acordo com Justen Filho, e do ponto de vista institucional, os serviços públicos podem ser classificados em quatro categorias, nomeadamente:

• Serviços delegáveis e não delegáveis: serviços delegáveis são aqueles que pela sua natureza, ou pelo fato de disporem de um ordenamento jurídico,

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devem ser executados pelo estado ou por particulares colaboradores. Serviços não delegáveis são aqueles que só podem ser prestados pelo Estado directamente, pelos seus órgãos ou agentes.

• Serviços administrativos e de utilidade pública: são aqueles que o Estado executa para compor melhor sua organização. Os serviços de utilidade pública destinam-se directamente aos indivíduos.

• Serviços colectivos e singulares: são serviços gerais, prestados pela Administração à sociedade como um todo, sem um destinatário determinado e são mantidos através do pagamento de impostos. Serviços singulares são os individuais onde os usuários são determinados e são remunerados pelo pagamento de taxa ou tarifa.

• Serviços sociais e económicos: serviços sociais são os que o Estado executa para atender às necessidades sociais básicas e representam ou uma actividade propiciadora de comodidade relevante, ou serviços assistenciais e de protecção. Serviços económicos são aqueles que, por sua possibilidade de lucro, representam actividades de carácter mais industrial ou comercial.

Gerir serviços públicos tem sido um grande desafio para as sociedades em todos os tempos. Com o advento do estado moderno, as formas de gestão de serviços públicos têm vindo a ser aperfeiçoadas de forma a responderem, por um lado, à necessidade de providenciar serviços de qualidade para um público cada vez mais exigente e, por outro, à necessidade de garantir a sustentabilidade através da eficiência e eficácia.28 A gestão, neste âmbito, deve ser vista como o lançar mão de todas as funções29 e conhecimentos30 necessários para através de pessoas se atingir os objectivos de uma organização de forma eficiente e eficaz (Dias, 2002).

A tendência actual de gestão de serviços públicos tem feito uma viragem em duplo sentido: por um lado, no sentido de tornar a gestão mais eficiente e eficaz introduzindo um estilo mais empresarial na gestão pública e, por outro, no sentido de descentralizar, desconcentrar e autonomizar. Neste último sentido, o objectivo principal é o de aproximar cada vez mais a decisão sobre os serviços aos consumidores/cidadãos. Do ponto de vista teórico a descentralização de serviços públicos como o abastecimento de água pode ser sustentado pelo argumento da eficiência económica da alocação de recursos públicos: é muito menos eficiente em termos económicos, ou seja, é mais caro deixar o Estado central com a responsabilidade da gestão de sistemas de água, de recolha de lixo, de cemitérios etc. em comparação com o governo local (Bailey, 1999: capítulo 2). Associada a este argumento está a ‘crença’ profundamente enraizada na literatura sobre a governação local de que a aproximação dos serviços aos cidadãos melhora

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os processos de accountability e, por via disso, a qualidade do serviço prestado (Cheema, 2007).

Numa recente reflexão sobre a provisão de bens públicos, David Booth identifica três factores chave que têm grande influência nos resultados do processo de produção e provisão de serviços públicos ao nível dos governos locais (Booth, 2010: 4f31):

• O arranjo institucional para a provisão de serviços públicos deve reflectir uma visão coerente, de tal forma que os recursos são alocados e os incentivos são estruturados de forma que se reforcem mutuamente e não o contrário.

• Os recursos humanos deveriam estar sujeitos a uma efectiva supervisão de cima para baixo sobre a sua performance, mesmo se em outros aspectos o contexto organizacional se ressente da falta de recursos e de uma burocracia bem regulada.

• Devem existir instituições que possibilitem uma acção colectiva e que estejam ancoradas localmente no duplo sentido – as regras que incorporam são susceptíveis de resolver os problemas no seu contexto, e fazem uso dos elementos institucionais herdados do passado que motivam, possibilitam e guiam os indivíduos a levar a cabo acções particulares.

Booth põe em causa os preceitos largamente advogados de que uma provisão eficiente e eficaz de serviços públicos deva passar necessariamente pela boa governação e pela descentralização dessa responsabilidade para os governos locais. Nota que, no contexto africano, a provisão de serviços públicos pelos governos locais não trouxe grandes melhorias e, em muitos casos, os serviços se deterioraram. (Booth, 2010: 2). Uma centralização dos processos de gestão de serviços públicos por lideranças comprometidas com o bem dos cidadãos tem vindo a mostrar mais resultados positivos.

Por outro lado, experiências indicam que uma gestão financeira eficiente e transparente dos fundos e dos recursos humanos é uma condição sine qua non para uma melhoria significativa dos processos de provisão de serviços públicos. Este é um aspecto que não pode ser ignorado seja quais forem os mecanismos institucionais colocados em prática, do ponto de vista de governação.

2. serviços de abastecimento de água - um bem público por excelência

O sector de águas tem fortes características de ‘bem de mérito’ e ‘bem público’, significando respectivamente que a sociedade considera os serviços de fornecimento de água como sendo importantes, independentemente da disponibilidade que os

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consumidores possam ter para pagar pelo serviço fornecido, e que os seus benefícios sociais excedem os benefícios privados (Cavalcanti Fadul, 1997). A existência de fortes externalidades (tanto positivas como negativas)32 relacionadas com a saúde pública, assim como o facto de a água ser essencial para a vida e para a organização de várias actividades económicas, fazem dos serviços de fornecimento de água um exemplo privilegiado de actividades de interesse geral e de interesse público. Por isso, é opinião assente em diferentes círculos sociopolíticos que a disponibilização deste tipo de serviços deve respeitar os princípios da universalidade de acesso, qualidade de serviço e acessibilidade de preço.

Mais ainda, o abastecimento de água para o consumo público, principalmente doméstico, tem sido considerado desde há muito como sendo não-competitivo, exibindo fortes características de monopólio natural, muitas vezes assegurado pelo sector público (Luís-Manso, 2005). A existência de condições de monopólio não cria, por isso, incentivos à eficiência, ao investimento apropriado e à satisfação dos consumidores. Além disso, os serviços de água têm sido tradicionalmente organizados e geridos localmente, nomeadamente devido ao preço elevado do transporte de água, inerente aos elevados custos irreversíveis e às exigências de qualidade. Tais custos só podem ser suportados pelo Estado, no seu papel de providenciar serviços para a satisfação das necessidades básicas dos seus cidadãos, na qualidade de contribuinte, consumidor e eleitor.

Em Moçambique esta opinião é resgatada na Política de Águas (ver em baixo) que considera a água como um bem de valor social (embora reconheça também o seu valor económico) e, portanto, é papel do Estado garantir a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos em termos de abastecimento de água.

Entretanto, nos últimos anos têm vindo a observar-se novas dinâmicas no sentido de uma abertura dos mercados da água à competição. Assim, podem ser considerados quatro factores de mudança (Luís-Manso, 2005). Primeiro, o factor financeiro baseado na premissa de que o sector privado pode mobilizar mais capital para investimento e de um modo mais rápido e a um menor custo do que o sector público. Segundo, o factor relativo à gestão, que afirma o fracasso do modo de gestão pública convencional,33 devido nomeadamente à combinação de vários aspectos, tais como a falta de recursos técnicos e financeiros e a interferência política na gestão operacional. Terceiro, o factor ideológico relativo à influência da ideologia neo-liberal, que advoga as virtudes da competição e questiona o papel do Estado como operador. A ideia geral é mostrar que, mesmo em situações onde se pode depreender que o monopólio é a melhor alternativa, ou a única, com uma pressão a favor do monopólio e da integração vertical, é preciso ver se algumas componentes da cadeia de prestação do serviço público não podem ser expostas a algumas formas de concorrência.

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3. argumento e aspectos metodológicos

Em Moçambique a tendência liberalizadora foi introduzida nos finais da década 90, com a entrada do sector privado na gestão dos sistemas de abastecimento de água em cinco cidades, como resultado da implementação do Quadro de Gestão Delegada.34 Entretanto, a experiência de liberalização está a expandir-se gradualmente para outros sistemas considerados primários, enquanto se ensaiam mecanismos mais apropriados para a solução dos problemas de gestão para os pequenos sistemas ou sistemas secundários, incluindo através da descentralização da gestão destes.

Argumentamos que o quadro institucional para a gestão local de pequenos sistemas, bem como a diversidade de abordagens institucionais não criou as condições necessárias e suficientes para uma gestão eficaz e eficiente destes sistemas. Consideramos, como hipótese de trabalho, que as condições chave de sucesso para a providência de serviços públicos enumerados em cima com referência ao trabalho de Booth apenas existem parcialmente em relação aos pequenos sistemas. Por consequência, estes não são necessariamente sustentáveis.

É na base dessas considerações teóricas e práticas que se faz a presente análise para perceber como é que os sistemas de abastecimento de água são geridos em Moçambique, e com que consequências em termos da sua sustentabilidade. O foco é sobre os sistemas considerados pequenos ou secundários, geridos localmente. Estes, que representam um total de 70 em todo o país, são o grande desafio para o processo de descentralização de competências e responsabilidades em Moçambique.

Os casos seleccionados para estudo fazem parte destes 70 sistemas de gestão local. A pesquisa de campo em um município (Metangula) e dois distritos (Zavala e Mogovolas) providenciará insumos importantes para a análise e para as conclusões gerais. A escolha destes sistemas tem a ver, primeiro, com o facto de que representam, de uma certa maneira, sistemas em aglomerações populacionais (pequenas cidades ou sedes de vilas distritais) que podem ser consideradas típicas para o meio rural de Moçambique. Estes centros geralmente têm uma sede de administração municipal ou / ou distrital, infra-estruturas públicas técnicas e sociais básicas, mercados, ligação rodoviária com outras cidades e vilas semelhantes e com o hinterland.

Segundo, os casos foram escolhidos tomando em conta as características variadas em termos técnicos e de gestão dos seus sistemas de abastecimento de água. Metangula, na Província de Niassa, tem um sistema de baixa complexidade técnica que é gerido pelo Conselho Municipal (CM) da autarquia. Quissico, sede do Distrito de Zavala na Província de Inhambane, representa um caso de

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um sistema de complexidade técnica média que é gerido por uma associação comunitária. O terceiro caso, Nametil (Distrito de Mogovolas na Província de Nampula) representa um caso de um sistema de complexidade técnica assinalável que é gerido por um privado.

A secção a seguir inicia com uma incursão sobre a organização do sector de águas em Moçambique, onde se escalpelizam os diversos factores do quadro institucional e das políticas inerentes ao sector. De seguida analisam-se as questões relacionadas com o financiamento e as políticas tarifárias, bem com as modalidades de gestão de pequenos sistemas. Segue-se uma breve radiografia da situação do abastecimento de água em Moçambique, ou seja, da sua cobertura.

No terceiro capítulo o leitor encontra os três estudos de casos acima referidos, antes do capítulo final com as conclusões da nossa análise.

4. serviços de abastecimento de águas em moçambique: contexto e elementos-chaves

4.1 Quadro institucional e políticas

4.1.1 Gestão delegadaMoçambique tem dois níveis de governação: o central e local. O nível central é constituído pelos órgãos centrais e locais35 do estado e o local é constituído pelas autarquias. A nível do estado central, o Ministério das Obras Públicas e Habitação, através da Direcção Nacional de águas (DNA) é a instituição responsável pela gestão estratégica do sector de águas em Moçambique, que inclui nomeadamente, o abastecimento de água e o saneamento e gestão dos recursos hídricos. A nível provincial, a responsabilidade de coordenação do sector cabe à Direcção Provincial das Obras Públicas e Habitação (DPOPH), através do Departamento de água e Saneamento (DAS). A nível do distrito, no âmbito da implementação da LOLE, a responsabilidade pelo sector de águas cabe ao Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas. Os municípios, como entidades autónomas do poder local, têm a responsabilidade de garantir o abastecimento de água e saneamento na sua área de jurisdição. O abastecimento de água para o consumo doméstico está dividido em duas áreas principais, nomeadamente o abastecimento de água para as zonas urbanas e o abastecimento de água para as zonas rurais. O abastecimento de água urbana pode, por sua vez, ser subdividida em dois grandes grupos: os grandes sistemas urbanos e as pequenas cidades e vilas urbanas

Para o abastecimento de água às grandes cidades foi desenhado um Quadro de Gestão Delegada que está em implementação desde 1999. Neste, o património

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necessário para o abastecimento de água, que pertence ao Fundo de Investimento e Património de águas (FIPAG) é alugado a uma empresa privada, ou seja, um operador, que tem um contrato de exploração e a obrigação de abastecer o consumidor, na base de um relacionamento contratual entre o operador e o consumidor. O Conselho de Regulação do Abastecimento de água (CRA) representa a instância reguladora da Gestão Delegada, incluindo a função de supervisão, controlo de qualidade e fixação de tarifas.

O quadro de gestão delegada é a base legal que viabiliza a reestruturação dos sistemas de abastecimento de água e enquadramento para a gestão delegada aos privados e cria novas entidades no sector. Este quadro tem como objectivos garantir a eficiência da gestão dos sistemas do abastecimento de água e responder às necessidades de planificação e de desenvolvimento do sector, bem como a execução dos objectivos principais definidos na Política Nacional de águas, que veio a ser revista em 2007, confirmando e reconhecendo a necessidade de ampliação desta experiência a outros sistemas.

Para as zonas rurais, está em implementação o princípio de procura, uma estratégia que incentiva a participação dos beneficiários em todas as fases do processo de abastecimento de água nas comunidades, e a sua responsabilização pela operação e manutenção das fontes, condição essencial para a garantia de serviços sustentáveis.

O abastecimento de água às vilas e pequenas cidades, nomeadamente feito por Pequenos Sistemas de Abastecimento de água (PSAA) é um segmento muito importante para o sector e que tem constituído um grande desafio. No passado, a responsabilidade pelo abastecimento de água nestas vilas cabia, a nível central, ao Departamento de água Rural. Com o processo de transformações em curso, foi criada uma entidade que se vai responsabilizar pela gestão deste segmento dos serviços, a Administração de Infra-estruturas de Abastecimento de água e Saneamento (AIAS), e que abarca também algumas pequenas cidades.

Do ponto de visto normativo, as instituições do governo a nível central, nomeadamente a DNA tem como papel principal o desenvolvimento de políticas e estratégias sectoriais, bem como o de coordenar e regular as normas de implementação das actividades das diversas agências de implementação. Na prática, o governo central ainda concentra uma parte significativa das responsabilidades de implementação, sobretudo no que concerne ao abastecimento de água e saneamento rural. Esta situação pode ser justificada de duas formas: (i) a dificuldade de alguns círculos a nível central de proceder à descentralização de competências aos níveis mais baixos (alguns receios de perda de poder e benefícios inerentes) e (ii) a sempre presente e largamente sobrevalorizada falta de capacidade a nível provincial e distrital para liderar os processos de implementação.

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4.1.2 A posse legal dos sistemas de abastecimento de águaEm Moçambique, todos os sistemas públicos de abastecimento de água são propriedade do Estado. Esta definição de propriedade é muito lacta, dando espaço para interpretações diversas. O Estado tem vários níveis de governação e não está claro se os OLEs podem deter a posse legal dos sistemas de abastecimento de água que estão na área territorial sob a sua jurisdição, ou se a posse é dos órgãos centrais do Estado.

A Lei 2/97 estabelece no seu artigo 6 que cabe às autarquias, entre outras competências, providenciar o abastecimento público, incluindo o abastecimento de água e saneamento. A Lei 1/2008 (Lei das Finanças Autárquicas) estabelece, por seu turno, no artigo 3, que ‘as autarquias locais gozam de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, possuindo finanças e património próprios geridos autonomamente pelos respectivos órgãos’. Assim, as autarquias passam a ser uma entidade que pode deter a posse legal das infra-estruturas que compõem os sistemas de abastecimento de água e saneamento nas áreas sob sua jurisdição, para a prossecução das suas atribuições. O investimento público na área de abastecimento de água e saneamento é também competência própria das autarquias locais. Contudo, os relevantes bens do domínio público necessários que consubstanciam esta competência, isto é os sistemas de captação, tratamento e distribuição de água, não pertencem formalmente ao património municipal (Gistac, 2001: 261).

Entretanto, no processo em curso de implementação do Quadro de Gestão Delegada, o governo central tem vindo a transferir a gestão do património a entidades estatais criadas para o efeito, nomeadamente o FIPAG para os grandes sistemas de abastecimento de água e a AIAS para os sistemas de pequeno porte.

Dado que a maioria dos sistemas se encontra em condições de operacionalidade bastante precárias, o governo central tomou sobre si a responsabilidade de fazer os investimentos necessários para a normalização da situação. O Quadro de Gestão Delegada centraliza a responsabilidade pela gestão do património e a adjudicação dos Contratos para as operações, mas nele também se prevê a eventual descentralização de tais responsabilidades para os municípios. A estratégia do governo é a de que antes que possa decorrer a descentralização, (i) o Governo central deve desenvolver as infra-estruturas; (ii) as operações devem tornar-se viáveis; e (iii) os municípios devem estar preparados para assumir as responsabilidades pelo planeamento, financiamento do património e pela contratação de operadores. Outras formas autárquicas de abastecimento de água, tais como empresas municipais ou a concessão do serviço a uma empresa privada estão cobertas pela legislação autárquica no âmbito da autonomia administrativa e patrimonial, mas representam, na prática, excepções.

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Assim, e na prática, o FIPAG e a AIAS são, por assim dizer, os titulares do património em nome do Estado, embora reconhecendo que as autarquias locais deveriam ser titulares deste património para a prossecução das suas atribuições. Em suma, a posse legal das infra-estruturas é detida pelo Estado central, que no âmbito dos processos de descentralização em curso reconhece a necessidade de transferir o património para as autarquias locais, mas vai fazê-lo quando estiverem criadas as condições técnicas e financeiras para o efeito. Enquanto isso, o Estado delega a responsabilidade de gestão do património nas entidades públicas autónomas (FIPAG, AIAS) que se responsabilizarão pela gestão do financiamento do investimento público necessário em tais sistemas e pela organização e disponibilização dos serviços até se efectivar a transferência total de responsabilidades e do património para as autarquias locais. Neste compasso, as autarquias locais participam no planeamento e superintendência dos serviços através de mecanismos institucionais definidos para o efeito.36

4.1.3 Quadro estratégico-político do sector de águas em MoçambiqueEm 1991 foi aprovada a Lei de Águas.37 Esta lei enfatiza que um dos princípios fundamentais da acção do Estado no sector de águas é o abastecimento contínuo e suficiente das populações em água potável, para a satisfação das necessidades domésticas e de higiene.

Como seguimento a este esforço regulamentar, aprovou-se em 2005 a Política Nacional de águas,38 um instrumento orientador que enumera os princípios básicos e as linhas de orientação para o desenvolvimento do sector. Em 2007, como resultado de um longo processo de revisão, foi aprovada a Política de águas. Em síntese, a nova política aprofunda os aspectos orientadores do sector, dando mais ênfase aos aspectos relacionados com a gestão integrada dos recursos hídricos e sua importância para o desenvolvimento económico e social.

No que diz respeito ao abastecimento de água, a Política de Águas destaca como uma das políticas principais do Governo a satisfação das necessidades básicas da população mais pobre nas zonas rurais e urbanas, procurando sempre uma situação de sustentabilidade, com a participação efectiva dos beneficiários na definição das soluções a serem adoptadas. A participação dos beneficiários é vista como fundamental para garantir a sustentabilidade e o uso racional dos recursos, sendo o papel da mulher de importância fundamental. Adicionalmente, a água é considerada como um instrumento fundamental para o desenvolvimento económico e redução da pobreza.

Ainda segundo a Política de Águas, a provisão dos serviços será descentralizada e autonomizada, com o sector privado chamado a jogar um papel de relevo neste aspecto. O papel do Governo será concentrado na definição de prioridades, padrões

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e regulamentação, estabelecimento dos níveis mínimos de serviços, promoção e canalização de investimentos, definição da política tarifária e, em suma, na criação de um ambiente favorável para a participação de todos os intervenientes.

Na prossecução dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), o sector de águas desenvolveu um Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Saneamento Rural (PESA – ASR), um primeiro passo na definição de um roteiro (Road Map) do sector. O PESA-ASR é um conjunto de opções e cenários que guiam o desenvolvimento do subsector de abastecimento de água e saneamento rural a médio e longo prazo, e foi aprovado em 2007. Identifica desafios e objectivos do subsector que devem ser alcançados para contribuir decisivamente para o aumento dos níveis de acesso e uso dos serviços de abastecimento de água e saneamento nas zonas rurais do país.

A descentralização, desconcentração e autonomização têm vindo a ser a nota dominante do sector de águas nos últimos anos. Diversas iniciativas estão em curso para permitir que estes processos decorram, como resultado de implementação das políticas e estratégias sectoriais. No contexto da descentralização, a DNA iniciou em 2008 a descentralização de fundos para os distritos, como forma de dar uma maior autonomia a este nível de governação na gestão das questões ligadas à água, principalmente nas zonas rurais, abastecidas por poços e furos equipados com bombas manuais.

Nas pequenas cidades, vilas e povoações onde o abastecimento de água é feito com base em PSAA, o Estado tem estado a investir na reabilitação desses sistemas, visto que foram construídos, na sua maioria, durante o período colonial. Para a sua gestão, foram aprovados, em 2003, os Modelos de Gestão dos PSAA39, um conjunto de opções de gestão recomendados para garantir a sustentabilidade dos serviços prestados por esses sistemas.

O quadro político e estratégico do sector de águas em Moçambique é considerado um dos mais bem articulados no contexto africano (Boehm, 2010), mas a sua implementação não se tem mostrado um processo fácil. A fragilidade das instituições e a sua inadequação aos modelos politico-estratégicos estabelecidos constituem ‘nós de estrangulamento’ para o desenvolvimento do sector. A capacidade humana existente a nível das instituições do sector ainda é fraca, a todos os níveis. A DNA reluta em desconcentrar e descentralizar competências, mantendo ainda algumas funções operacionais, o que dispersa a sua capacidade na prossecução do seu papel de formulação de políticas, orientação estratégica e monitoria.

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4.2 Financiamento e gestão dos sistemas de abastecimento de água

4.2.1 FinanciamentoO financiamento dos projectos e programas de abastecimento de água no país foi sempre da responsabilidade do Estado a vários níveis. Actualmente, grandes investimentos estão em curso para as principais cidades do país, no âmbito do Quadro de Gestão Delegada. Com o alargamento da intervenção do FIPAG a 19 cidades, está garantido o investimento do Estado nos sistemas que abastecem essas cidades e vilas adjacentes. A maior parte desses investimentos é fruto de financiamento externo, maioritariamente através de créditos contraídos pelo FIPAG, que já ganhou a confiança dos credores.

O financiamento aos sistemas das vilas e pequenas cidades ainda se afigura bastante incipiente. A criação da AIAS enquadra-se no esforço tendente a criar uma capacidade de angariação e gestão de financiamento para o investimento público nestes sistemas, seguindo o exemplo do que se conseguiu com o FIPAG nos grandes sistemas. Entretanto, ainda há um longo caminho a percorrer nesta vertente. Os parceiros de cooperação ainda não mostraram um grande interesse em investir nesta área, focalizando as suas acções nas grandes cidades e no abastecimento de água rural através de poços e furos equipados com bombas manuais.

O financiamento do sector de águas por via do Orçamento Geral do Estado ainda está abaixo do desejável, isto é representa 5% do PIB, como preconizado no PARPA. Assim, os governos locais ficam numa situação bastante desconfortável por terem que gerir infra-estruturas e serviços que apresentam uma série de problemas, com uma gritante falta de recursos financeiros para garantir os investimentos que se mostram absolutamente necessários.

4.2.2 GestãoNo geral, os sistemas de abastecimento de água nas vilas e pequenas cidades são geridos pelos governos locais (governos distritais e municípios) e enfrentam problemas sérios de sustentabilidade técnica e financeira. Do ponto de vista técnico, a quase totalidade dos sistemas existentes foram herdados do período colonial e são, actualmente, obsoletos e subdimensionados. A gestão da operação e manutenção torna-se, assim, num desafio que a quase totalidade dos governos locais não conseguem enfrentar com sucesso.

Em termos de gestão, existem no país cerca de 91 sistemas cuja situação de gestão é mais ou menos clara. Destes, 21 sistemas são de gestão central e os restantes 70 são de gestão local. Dos sistemas de gestão central, 18 estão no âmbito de Gestão Delegada (intervencionados pelo FIPAG) e os restantes três são geridos

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por empresas estatais (em processo de passagem para a nova entidade estatal responsável pela gestão do património dos pequenos sistemas).

Sem excepções, a gestão dos sistemas de abastecimento de água por parte dos governos locais tem sido problemática dado que não se observam os princípios básicos de gestão de um serviço público, nomeadamente a continuidade, regularidade, igualdade de acesso, não discriminação, não exclusão e interesse colectivo.

No início da década 2000 o governo iniciou um processo de investimento em alguns PSAA com apoio do Banco Mundial. Uma das condições para a realização desses investimentos era a introdução de uma gestão criteriosa, profissional e sustentável, com a participação do sector privado, em todos os sistemas intervencionados. Assim, de forma piloto, foram assinados contratos de gestão entre o Governo e operadores privados para a gestão de alguns PSAA em algumas vilas (Vilankulo, Massinga e Quissico, na província de Inhambane). A experiência de gestão nestas vilas tem demonstrado uma melhoria significativa em todas as vertentes de provisão de serviços, e foi estendida a mais quatro sistemas (Nametil, Namaacha, Magude e Ressano Garcia).

Figura 3: situação actual de gestão dos sistemas de água em moçambique

Fonte: AIAS, 2010

23 Cidades +

68 Vilas

23 Cidades +

68 Vilas

21 Sistemas em

Gestão Central

70 Sistemas em Gestão Local

3 Sistemas em

Empresas Estatais (3 Cidades)

18 Sistemas em

Gestão Delegada/FIPAG (18 Cidades + 3 Vilas)

• Mocuba• Gurué• Ilha de Moçambique

• Maputo + Matola• Beira + Dondo• Quelimane• Nampula• Pemba• Inhambane• Maxixe• Xai-xai• Chokwé• Tete• Chimoio• Manica• Lichinga• Cuamba• Nacala• Angoche• Moatize, Gondola, Boane

2 Cidades – Gestão MunicipalMontepues e Chibuto.3 Municípios + 4 Vilas – Modelos de GestãoVilanculos, Massinga, Namaacha, Mertil, Quissico, Magude e Rassano Garcia15 Municípios – Gestão Municipal18 Vilas - Gestão das AdministraçÕes

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Moçambique: Descentralizar o Centralismo408

Em 2009 o estado moçambicano criou a Administração de Infra-estruturas de água e Saneamento (AIAS) para gerir o programa de investimento público e património de PSAA e sistemas de saneamento bem como para promover a sua gestão autónoma, eficiente e financeira de forma sustentável. No fim de 2010 foram transferidos para a gestão do AIAS 131 sistemas públicos de abastecimento de água (em 126 vilas e 5 cidades) e sistemas de saneamento dos centros urbanos. Na essência, o estado está à procura de formas mais eficientes de garantir a gestão dos PSAA, seguindo a experiência bem-sucedida implementada nos grandes centros urbanos sob a gestão do FIPAG.

Entretanto, a situação de abastecimento de água nestes sistemas é extremamente preocupante, caracterizada por baixos níveis de cobertura (cerca de 5%), degradação das infra-estruturas, serviços de muito baixa qualidade, deficiente capacidade de gestão, operação e manutenção e, acima de tudo, grandes limitações de recursos financeiros para a revitalização (reabilitação e ampliação) das infra-estruturas. A autonomização dos serviços é a solução encontrada para fazer face aos desafios da gestão dos serviços, e a AIAS deverá pôr em prática uma estrutura que torne a autonomização possível, com a criação de estruturas a nível provincial que coordenem a optimização dos serviços com os governos locais (distritos e municípios).

Os governos locais (distritos e municípios) há muito que mostraram incapacidade para gerir de forma eficiente os serviços de abastecimento de água. Tanto os governos distritais como os municipais, de forma geral, não têm estado à altura de gerir com sucesso os serviços. A grande dificuldade é a falta de capacidade técnica e financeira que permita aos governos locais fazer investimentos relevantes e que tornem os sistemas mais abrangentes e, a partir daí, fazer uma gestão sustentável do serviço. A AIAS vem aliviar a pressão existente sobre os governos locais, embora estes continuem a ser últimos responsáveis pela garantia de provisão dos serviços nos termos da lei.

No novo quadro, os governos locais podem assinar contratos programa com a AIAS para fazer investimentos, na condição de que a prestação de serviços seja autonomizada ou cedida a entidades privadas através de contratos de gestão. O modelo é praticamente o mesmo desenhado para as grandes cidades sob a gestão do FIPAG, sendo que no caso da AIAS os governos locais jogam um papel muito importante.

Embora esta tendência liberalizadora tenha demonstrado algum potencial, há que colocar algumas reservas visto que no caso da gestão privada a experiência mostrou-se pouco salutar. Os princípios de gestão privada introduzidos no sector mostram um potencial bastante animador, mas só são bem-sucedidos quando implementados por uma entidade paraestatal autónoma, neste caso o FIPAG.

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Gestão descentralizada dos sistemas de abastecimento de água 409

Prova disso são os diversos problemas que caracterizaram a gestão da Empresa águas de Moçambique.

No caso dos PSAA nas vilas e pequenas cidades, a experiência da gestão privada ainda não produziu os efeitos desejados. Existem poucos exemplos que possam ser mostrados como sendo bem-sucedidos, embora, aqui também, os princípios de gestão privada tenham demonstrado um potencial para vir a contribuir significativamente para a solução de alguns dos mais prementes problemas de gestão dos serviços.

4.2.3 Política tarifária e equidadeA provisão de serviços públicos sustentáveis exige uma gestão eficiente e profissional, mas acima de tudo implica que os consumidores ou utentes do serviço devam pagar pelo serviço de tal forma que este se torne auto-sustentável. No caso vertente do abastecimento de água, sendo um bem com um valor social extremamente elevado e insubstituível, muitas sociedades adoptam subsídios públicos para usos definidos e com base em escalões de consumo.

A política tarifária aprovada pelo Governo em 1998 tem como principais objectivos, entre outros, melhorar a provisão de serviços de abastecimento de água e saneamento na medida com as necessidades básicas de cada cidadão, de acordo com a procura e com as capacidades económicas dos utilizadores e consumidores de modo a reflectir o valor económico da água e promover a defesa dos utilizadores e consumidores mediante a sua participação nos processos de tomada de decisão sobre os níveis de serviços e sua relação com os respectivos custos. A Política Tarifária estabelece igualmente sistemas tarifários aplicáveis a diferentes tipos de uso da água, na perspectiva de fazer jus aos princípios de equidade, sustentabilidade, protecção do ambiente e uso eficiente do recurso (GdM, 1998).

Para o abastecimento de água para o consumo doméstico, o sistema tarifário aplicável tem como objectivos fundamentais a recuperação integral dos custos de operação e manutenção (OpEx)40 dos sistemas a curto prazo e, a longo prazo, iniciar a recuperação dos custos de investimento (CapEx).41

As tarifas de água potável tomam em consideração diversos aspectos que se tornam essenciais compreender no contexto específico do país. As tarifas de água são fixadas por escalões de consumo, e o preço por metro cúbico também varia de acordo com os escalões e a localização do consumidor ao longo do território nacional. Os principais princípios das tarifas são os seguintes (CRA, 2007):

• Recuperação de custos: as tarifas de água potável devem permitir a recuperação dos custos associados ao serviço de abastecimento de água prestado (custos de operação e de investimento – a depreciação e substituição do património).

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Moçambique: Descentralizar o Centralismo410

• Eficiência: as tarifas de água devem influenciar os consumidores a utilizar água racionalmente, para que seja a sociedade, directamente, a optimizar a utilização dos recursos hídricos.

• Valor social: a água, para além de ser um bem económico é também um bem social, um bem não sucedâneo. Pelo que a sociedade determina que todos os seus membros devem se beneficiar de um nível mínimo obrigatório para satisfazer as necessidades básicas. As tarifas de água são fixadas de forma a reflectir o desejado balanço entre valor económico e justiça social.

• Tarifa progressiva e diferenciada: a tarifa é diferenciada entre escalões e entre consumidores, e é também progressiva de forma a estabelecer um sistema de subsídios cruzados que permitam aos consumidores de baixa renda ter acesso ao serviço’.

Na esteira dos subsídios cruzados, os escalões que consomem mais água devem pagar mais de forma a subsidiar os mais pobres. É ainda nesta perspectiva que a água é mais cara nas cidades de Maputo e Matola do que em qualquer outra cidade do país. A tabela abaixo mostra qual é a estrutura das tarifas de água potável para as diversas categorias e escalões no país.

tabela 7: tarifas de água potável

Escalões de consumo UN  Maputo/ Matola

Beira/ Dondo

quel. Nampula Pemba Xai-Xai Chòkwé Maxixe Inhamb.

Tarifa Média MT/m3 15,11 13,66 13,50 13,35 12,97 10,30 10,52 11,24 11,65

Fontanários Públicos MT/m3 9,00 9,00 9,00 9,00 9,00 7,10 7,10 7,10 7,10

Doméstico

Mínimo de 0–10 m3/mês

MT/mês

120,00 112,00 112,00 112,00 112,00 90,00 90,00 90,00 90,00

10 m3 a 20 m3 MT/m3 18,50 14,00 12,00 12,50 12,20 11,50 11,50 11,50 11,50

20 m3 a 30 m3 MT/m3 18,80 16,00 13,20 13,80 13,50 13,30 13,30 13,30 13,30

Superior a 30 m3 MT/m3 19,00 18,00 15,50 15,80 15,80 17,10 17,10 17,10 17,10

geral  

Mínimos Comercial e Público até 25m3/mês

MT/m3  462,50 435,00 400,00 400,00 412,50 415,00 415,00 417,50 417,50

Mínimo Industrial até 50m3/mês

MT/m3  925,00 870,00 800,00 800,00 825,00 830,00 830,00 835,00 835,00

Consumo excedente MT/m3  18,50 17,40 16,00 16,00 16,50 16,60 16,60 16,70 16,70

Fonte: Conselho de Regulação do Abastecimento de água (CRA), 2007.

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Gestão descentralizada dos sistemas de abastecimento de água 411

As tarifas de água foram agravadas em Agosto de 2010, como resultado de uma estratégia global do governo de reajustamento de preços para adequá-los à realidade e retirar os subsídios.42 Entretanto, o agravamento de 13% previsto só foi efectivado para os consumidores do terceiro escalão (mais de 30 m3), sendo que para o segundo escalão (10 m3 a 20 m3) a subida foi de apenas 7%. Os consumidores do primeiro escalão não sofreram nenhum aumento na tarifa de água. Esta medida veio acentuar ainda mais o processo de subsídios cruzados, sendo que os principais consumidores subsidiam as camadas mais pobres, aqueles cujo consumo não ultrapassa os 10 m3.

Em 2010 o mandato do CRA foi alargado para cobrir todos os sistemas públicos de abastecimento de água e saneamento. Neste contexto, o CRA está a estudar formas de definir tarifas para os restantes sistemas de abastecimento de água do país, tendo em conta os mesmos princípios que nortearam a definição das tarifas nos sistemas apresentados no quadro acima.

Em resumo, a estrutura tarifária para o abastecimento de água potável tem em vista promover o equilíbrio e proteger os mais pobres, usando um sistema de subsídios cruzados em que os que têm mais posses e usam mais água podem pagar um pouco mais. Entretanto, estas tarifas são aplicadas nos locais onde os sistemas públicos de abastecimento de água conseguem fornecer o serviço.

Um pouco por todo o lado, existem pequenos operadores privados de água, principalmente nas cidades de Maputo e Matola, que abastecem principalmente os segmentos da sociedade mais desfavorecidos. O custo de água fornecido por estes operadores obedece a outras tarifas, sistematicamente mais altas do que as tarifas normais. Por este prisma, pode dizer-se que os segmentos mais pobres da sociedade ficam de fora (muitas vezes devido ao seu distanciamento dos centros desenvolvidos das urbes) do sistema de subsídios cruzados e são obrigados a pagar uma factura 2.4 vezes mais cara do que os que são abastecidos pela rede pública da águas de Moçambique (Bhatt, 2006). Está em curso um esforço para legalizar e regular as actividades dos operadores privados de água em Maputo e Matola, mas os preços de água fornecida por estes continuam a ser relativamente altos.

4.3 Cobertura

O país confronta-se com uma questão muito delicada relativamente aos dados do abastecimento de água. Os dados existentes provêm de duas fontes: do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da DNA. Invariavelmente, os dados são diferentes. Esta diferença é derivada, basicamente, das diferentes premissas de cálculo usadas pelas duas instituições. Enquanto a DNA usa o princípio de uma fonte para 500 pessoas, o INE usa como parâmetro para calcular a cobertura o número de pessoas

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que realmente usam o serviço, obtido através dos diversos inquéritos realizados. Esta é, igualmente, a metodologia usada pelas organizações internacionais que fazem a monitoria do alcance dos ODM. Está em curso um processo que pretende harmonizar a forma de cálculo da cobertura do abastecimento de água e saneamento, mas enquanto este processo não estiver concluído, a questão dos dados continua a ser problemática.

A cobertura actual de abastecimento de água a nível nacional, segundo a DNA, é estimada em cerca de 62%, sendo 64% para o abastecimento de água urbana e 60% de água rural. Particularmente para a água rural, grande parte da cobertura é assegurada pelas fontes dispersas (poços e furos equipados com bomba manual).

O último grande inquérito realizado pelo INE43 indica que a cobertura do abastecimento de água no país se situa em 43%, sendo 36% para o abastecimento de água rural e 70% para o abastecimento de água urbana. São estes os dados que parecem estar mais próximos da realidade e que levaram os peritos das Nações Unidas a afirmar que Moçambique faz parte do grupo dos países que não alcançarão as metas do milénio nesta área.

Os actuais níveis de cobertura, embora estejam ainda aquém do desejável, representam um esforço importante realizado no país nos últimos anos. Em 1975, altura da independência nacional, apenas 5% da população tinha acesso a um abastecimento adequado de água no país. Com o fim da guerra civil em 1992 e a consequente estabilidade política, económica e social, o país iniciou uma série de investimentos com vista a providenciar cada vez mais serviços básicos aos cidadãos, sendo assinaláveis os progressos que foram registados na área de abastecimento de água.

Existem disparidades entre as províncias do ponto de vista de cobertura (as províncias de Nampula e Zambézia são as que têm as coberturas mais baixas – ver a tabela abaixo). Dentro de cada província, existem disparidades entre os distritos e o mesmo se passa nos níveis sucessivos até ao nível da comunidade. Os insistentes apelos para a melhoria da situação de abastecimento de água, principalmente nas zonas rurais, só podem ser justificados por estas disparidades, existindo províncias com níveis de cobertura elevadas, mas com distritos que registam uma escassez profunda.

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Gestão descentralizada dos sistemas de abastecimento de água 413

tabela 8: cobertura do abastecimento de água em moçambique em 2010

Província População total  População servida Taxa de acesso (%)

Rural Urbano Total

Niassa 1,360,645 730,758 45,886 776,644 57,1

Cabo Delgado 1,731,200 972,505 123,392 1,095,897 63,3

Nampula 4,414,144 1,398,855 448,485 1,847,340 41,9

Zambézia 4,213,115 1,645,662 153,180 1,798,842 42,7

Tete 2,050,242 983,025 154,932 1,137,957 55,5

Manica 1,610,728 855,231 96,307 951,538 59,1

Sofala 1,812,811 770,771 426,703 1,197,474 66,1

Inhambane 1,377,908 807,475 163,504 970,979 70,5

Gaza 1,298,651 731,950 206,192 938,142 72,2

Maputo 1,385,604 354,009 649,900 1,003,909 72,5

Cidade-Maputo 1,161,833 – 824,901 824,901 71,0

Total 22,416,881 9,250,241 3,293,382 12,543,623 56,0

Fonte: DNA, 2010.

Uma componente negligenciada do investimento no abastecimento de água no país tem sido a construção e/ou reabilitação de PSAA nas pequenas cidades, vilas e outros aglomerados populacionais. Durante muitos anos, as intervenções feitas nestas áreas de transição foram bastante incipientes. Por conseguinte, muitos PSAA no país encontram-se ainda obsoletos, com um funcionamento muito irregular e, por isso, constituem um grande desafio para o sector de águas. A contribuição destes sistemas para o abastecimento de água é muito baixa, estando avaliada em cerca de 5%, segundo dados da DNA. Estes são os sistemas que estão maioritariamente sob a gestão dos governos locais, sejam eles distritais ou municipais. Muitos governos locais não estão em condições técnicas e financeiras para gerir estes sistemas. Os financiamentos necessários para regularizar os serviços são bastante avultados e só podem ser feitos pelo governo central.

5. Estudos de caso: metangula, nametil e quissico

Os três locais estudados representam diferentes características e níveis de desenvolvimento e importância estratégica no seu contexto. Metangula é uma pequena vila municipal na província de Niassa onde tudo escasseia e os investimentos são particularmente inexistentes, apesar do seu potencial turístico; Nametil é uma vila relativamente desenvolvida e um importante centro de comercialização agrícola na província de Nampula, e Quissico é uma vila pujante no sul da província de Inhambane e serve como plataforma para uma extensa área turística adjacente

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às lagoas de Quissico. Os três sistemas de abastecimento de água estudados apresentam, eles também, características diferentes do ponto de vista técnico e de gestão. Enquanto o sistema de Metangula é gerido pelo CM local e é tecnicamente menos complexo, o de Nametil é gerido por uma empresa privada, a águas de Nametil, e tem uma complexidade técnica assinalável. O sistema de Quissico é gerido por uma associação comunitária local e é de uma complexidade média.

As características técnicas e os processos de gestão de cada sistema são descritos a seguir.

5.1 Metangula

A Vila de Metangula é uma das 20 autarquias tipo vila existentes no país, e tornou-se município em 1998. Situada na província de Niassa, a Vila de Metangula é a sede do Distrito de Lago e tem características marcadamente rurais. As actividades principais são a agricultura e a pesca (praticada no Lago Niassa), mas tem um potencial turístico importante que, entretanto, ainda não está a ser explorado. Os cerca de 16.000 habitantes da vila são abastecidos por um PSAA e várias fontes dispersas (poços e furos equipados com bomba manual). Apenas uma pequena parte da população, residente no Bairro de Cimento, beneficia da água abastecida pelo PSAA.

O PSAA da Vila de Metangula foi construído no período colonial e abastecia a população branca residente na Vila. O sistema de abastecimento de água encontra-se obsoleto, embora tenha beneficiado de algumas pequenas intervenções nos anos mais recentes, financiadas pela Cooperação Suíça para o Desenvolvimento (SDC), no âmbito do seu Programa de Descentralização e Municipalização (PADEM)44 SDC. É composto por um posto de captação (dois poços equipados com electrobombas), um depósito elevado (pertencente à base naval e que foi cedido ao município para abastecimento público) e cerca de 200 ligações domiciliárias. O sistema não possui fontanários públicos.

O sistema de abastecimento de água de Metangula é legalmente propriedade do município e a sua gestão é feita de forma directa pelo CM. As receitas provenientes da gestão do sistema são geridas de forma generalizada, misturadas com as outras receitas municipais, embora seja possível ver quanto é que o sistema gera em termos de receitas. Do lado da despesa, não é claro quais são, por exemplo, as despesas feitas pelo sistema em si, uma vez que não existe uma separação nítida. Não é claro para os gestores até que ponto a gestão do sistema de abastecimento de água é sustentável, uma vez que o sistema de gestão montado não permite verificar, de forma clara e objectiva, a relação entre as despesas e as receitas. Mas o dilema orçamentário, em termos gerais, durante o período 2003–2008 é óbvio: ‘No orçamento corrente a

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sucessiva manutenção de défices negativos indicia a existência de uma estrutura de custos fixos acima dos níveis financeiramente suportáveis e apela para uma racionalização maior dos recursos disponíveis’ (Hassam, 2009: 25). O PSAA não foge deste quadro de uma difícil sustentabilidade.45

A Assembleia Municipal aprova a tarifa a ser aplicada para os consumidores, sob proposta do CM. A definição da tarifa toma em conta apenas a capacidade de pagar dos consumidores e não tem em conta outras componentes, nomeadamente ligadas à sustentabilidade e equidade. Todos os consumidores não institucionais pagam uma taxa mensal de 150,00MT, enquanto os institucionais pagam uma taxa de 200,00MT. Não existe nenhum sistema de contadores para contabilizar a água consumida. O município, gestor do sistema, está a proceder à compra paulatina de contadores para melhor controlar os consumos. O principal consumidor de água da vila, a base naval, não paga a água consumida, devido ao acordo estabelecido com o Conselho Municipal para a utilização do depósito.

A gestão directa do sistema pelo município dificulta uma análise mais detalhada sobre a sustentabilidade do sistema. Com uma receita média mensal do sistema, em 2009, de cerca de 25.000,00MT, é difícil acreditar que o sistema possa pagar as despesas referentes à operação e manutenção. Um aspecto particularmente relevante a ser referido é que o sistema tem tido uma manutenção regular, e é reparado sempre que apresenta avarias. Até que ponto estas despesas são geradas pelo serviço, não está claro.

Concluindo, fica evidente que a gestão e financiamento dos gastos correntes através de receitas próprias do PSAA da autarquia têm lacunas enormes, desde a contabilidade necessária para a fixação de tarifas até aos aspectos ligados à equidade entre os beneficiários, pois o sistema tem poucos beneficiários privilegiados. O desafio maior reside na gestão eficiente, eficaz e transparente do sistema, ou seja, nos aspectos económicos e de governação deste serviço público. Outro problema é a falta de uma assistência técnica e uma supervisão pelo Estado. Os critérios para a sustentabilidade de serviços públicos de boa qualidade e os princípios plasmados nos instrumentos políticos e estratégias relevantes não são plenamente reflectidos na abordagem escolhida pelo CM na gestão do seu PSAA cuja sustentabilidade é duvidosa. O caso de Metangula confirma o argumento de Booth citado na primeira secção deste artigo, que a descentralização, ou seja, a municipalização não é um critério suficiente para garantir a produção e distribuição de um bom serviço público de qualidade, cobertura, abrangência e de sustentabilidade, gerido de maneira eficiente e eficaz. Por outro lado, a ausência do Estado (como alternativa para o abastecimento de água) e a escassez de recursos financeiros e humanas especificamente para a gestão de PSAA nas autarquias deixam poucas alternativas a esta.

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5.2 Nametil

A Vila de Nametil é a sede do Distrito de Mogovolas na província de Nampula. Localizada a cerca de 130 km da cidade de Nampula, Nametil é um corredor rodoviário que liga a capital provincial e o município de Angoche, a terceira maior cidade da província. Tem uma população de cerca de 75.000 habitantes, de acordo com o Censo de 2007. O abastecimento de água a Nametil é feito através de um PSAA e um número não especificado de fontes dispersas.

O PSAA de Nametil foi reabilitado e ampliado em 2007 e entrou em funcionamento em 2008 de forma experimental. É um sistema relativamente complexo, constituído por uma captação superficial (no rio Meluli), uma estação de tratamento, cerca de 400 ligações domiciliárias e 18 fontanários públicos. Do ponto de vista técnico, o sistema é de tipo III46

na categorização dos sistemas feita pela DNA. Isso implica que a sua complexidade é de alguma forma exigente, necessitando de capacidades técnicas especiais para garantir a operação e a manutenção.

A nossa análise do processo de gestão vai cingir-se no ano de 2008, dado que só para este ano existe uma informação completa e bem documentada sobre todos os aspectos de gestão, isto é, aspectos financeiros e técnicos.

O sistema abastece, segundo dados colhidos no terreno, cerca de 18.800 habitantes, aproximadamente 72% de cobertura. A maioria é abastecida por fontanários (cerca de 13.000) e os restantes por ligações ao domicílio. Este sistema faz parte de um conjunto de sistemas intervencionados pela DNA no âmbito das experiências em curso para implementar os modelos de gestão dos PSAA aprovados em 2003. Neste contexto, a gestão do sistema é feita por um operador privado que tem um contrato de gestão com a Administração Distrital (cedente), mas numa primeira fase este contrato é gerido pela Direcção Provincial das Obras Públicas e Habitação. O contrato de gestão preconiza que o operador deva pagar uma taxa de gestão ao dono da infra-estrutura, isto é à Administração Distrital.

A gestão do sistema é deficitária. Desde o início do processo que se verificaram falhas técnicas nas componentes do sistema, nomeadamente a falta de componentes essenciais na estação de tratamento, o que torna impossível providenciar água de boa qualidade, principalmente na componente de turbidez. A água que o sistema abastece no período chuvoso é turva, o que desencoraja os consumidores que optam por fontes alternativas em detrimento do serviço público.

Para gerir o sistema, o operador emprega 27 trabalhadores efectivos, uma carga bastante pesada para uma pequena empresa. Os custos de operação do sistema são extremamente elevados. Em 2008 o sistema gerou, em média, uma receita mensal

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Gestão descentralizada dos sistemas de abastecimento de água 417

de cerca de 93.000,00MT, e os custos operacionais foram, em média, cerca de 80.000,00MT.

O ano em análise, 2008, foi o primeiro de operação do sistema e, por conseguinte, ainda se estava no período de garantia, beneficiando-se de um rol de equipamentos e consumíveis básicos fornecidos pelo empreiteiro, para além de pequenas reparações de correcção da empreitada. Neste período, os operadores não tiveram custos de aquisição de produtos químicos, um consumível bastante importante para a operação do sistema. Neste contexto, os custos de operação registados em 2008 não são realísticos, mas deixam transparecer a sua estrutura, com gastos maiores para salários e energia eléctrica.

Figura 4: nametil -despesas de operação do sistema de abastecimento de água

Fonte: WASHCost, 2011.

O diagrama acima mostra a estrutura de custos para a gestão do sistema em 2009, com a inclusão dos custos de aquisição de produtos químicos (18% dos custos). É notório que a grande parte dos custos é referente a despesas com salários e remunerações, cerca de 41%, seguido, em termos de peso relativo, pelos custos de compra de energia eléctrica (20%) e dos produtos químicos, bem como os impostos IRPS, IRPC e IVA (9%). Tendo em conta que os custos salariais sobem anualmente devido aos processos de reajustamento salarial, é de prever que o peso desta despesa nos próximos anos irá crescer cada vez mais. Por outras palavras, o sistema não está a ser gerido de uma forma eficiente.

As tarifas cobradas pelo sistema são consideradas demasiado altas para uma parte significativa dos consumidores. Por esta razão, da análise feita pela empresa gestora do sistema, concluiu-se que não era rentável continuar-se com as ligações domiciliárias uma vez que cerca de metade das cerca de 500 ligações deste tipo não honravam os seus compromissos de pagamento à empresa.

Electricidade Produtos químicos

Impostos e taxas (IRPS, INSS, IVA)

Rendas e alugueres Outros

Peso relativo (%)

Salários

454035302520151050

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Uma análise detalhada às receitas e despesas da empresa gestora do serviço leva-nos a concluir que o sistema não é sustentável. Com as receitas arrecadadas, o sistema não tem condições para continuar a funcionar sem apoio externo. As perdas financeiras são extremamente elevadas e, mesmo que essas fossem reduzidas ao mínimo, a sustentabilidade não seria garantida.

O caso mostra que um sistema como o de Nametil até poderia ter uma certa eficácia, mas não sendo gerido de forma eficiente não pode ser sustentável. Como se pode aumentar a eficiência? Na parte das despesas poderia considerar-se a redução do número de assalariados através da substituição daqueles com menos produtividade por trabalhadores mais produtivos, ou através de subsídios aos salários para os técnicos mais produtivos. A outra forma a considerar é a introdução de tarifas de energia eléctrica subsidiadas. Ambas as mediadas necessitariam da intervenção do Estado. Um outro elemento para uma solução deveria ser o de contornar o fenómeno de free riders, isto é consumidores que não pagam pelo serviço que consomem. Isso não será fácil, pois deve-se partir da premissa, que uma grande parte desses faz parte da elite local com poder suficiente para evitar sanções. Finalmente o estudo de caso de Nametil mostra que a abordagem da Gestão Delegada pode não ser o modelo mais adequado, quando a análise da economia política não complementa a análise técnica no desenho de um projecto.

5.3 Quissico

A vila de Quissico é a sede do Distrito de Zavala, na província de Inhambane, no sul de Moçambique, a cerca de 350 km a norte de Maputo. De acordo com o último censo populacional (2007) a vila de Quissico é habitada por cerca de 15.000 habitantes. A vila situa-se ao longo da Estrada Nacional 1, a principal do país e que liga o sul ao norte. Trata-se de um importante centro de abastecimento e uma plataforma para as zonas turísticas adjacentes.

O sistema de abastecimento de água à vila de Quissico foi reabilitado em 2006 (uma reabilitação que é praticamente uma construção de raiz) e entrou em funcionamento, de forma experimental, em 2007. A operação do sistema foi confiada a um operador privado, mas um ano depois este rescindiu o contrato devido a problemas recorrentes na gestão do serviço. Uma associação local assumiu a gestão do serviço em 2008–9, mas os problemas ainda persistem e o sistema está mais tempo avariado do que em funcionamento. Por outras palavras, existem grandes desafios para a eficiência da gestão.

Do ponto de vista técnico, o sistema de Quissico é do tipo III na classificação da DNA e é composto por uma captação (dois furos de grande profundidade com electrobombas), cerca de 200 ligações domiciliárias e 11 fontanários. O

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sistema está instalado para abastecer cerca de 6000, mas na realidade abastece um pouco mais do que isso, cerca de 10.000 pessoas, devido à escassez de alternativas viáveis. Embora tenha sido reabilitado/reconstruído recentemente, o sistema está subdimensionado para atender às necessidades actuais da vila. Por isso, o serviço é limitado e de fiabilidade reduzida, ou seja, a eficácia do sistema é sub-optimal.

A gestão do sistema de Quissico, como muitas outras, é problemática. Grande parte do tempo o sistema fica avariado devido a problemas técnicos que não podem ser resolvidos com a capacidade local. As receitas do sistema não cobrem os custos de operação (OpEx) e se cobrem, já não podem cobrir eventuais avarias mais grossas ou reposição de componentes obsoletas (CapManEx).47 Para muitos consumidores, a factura de água é demasiadamente alta para ser suportada todos os meses, por isso, existem altos índices de não pagamento. Ademais, os gestores do sistema consideram que a tarifa cobrada ainda está muito abaixo do que seria desejável para manter o sistema operacional. Esta situação agrava ainda mais a situação que já de si é precária.

Dado que o serviço prestado é de qualidade muito baixa (poucas horas, descontínuo e portanto pouco fiável), os consumidores não se sentem encorajados a pagar as facturas mensais. Os gestores do sistema explicam que não há nenhuma possibilidade de gerir o sistema de forma sustentável nas actuais condições.

Os melhores registos financeiros existentes são do ano 2008. Neste ano, o sistema arrecadou cerca de 1,024,000.00 MT, mas os gastos com despesas correntes totalizaram 984,000.00MT. Como se pode ver na figura seguinte, as principais despesas são com salários e outras remunerações, energia, impostos e taxas (IRPS, IRPC, IVA, INSS) e a taxa ao cedente, o governo distrital (‘Imobilizados’). A estrutura dos custos é bastante semelhante à de Nametil.

Figura 5: psaa de quissico- Estrutura da despesa

Fonte: WASHCost, 2011.

Electricidade Impostos e taxas (IRPS, INSS, IVA) MateriasOutros

pagamentos Outros

Peso relativo (%)

Salários e remuneraçÕes

40

35

30

25

20

15

10

5

0

Imobilizado Material de Escritório

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Durante o ano o sistema esteve avariado duas vezes, e a sua reparação foi feita com fundos externos, visto que o sistema em si não tinha capacidade para custear essas despesas. No cômputo geral, o sistema não é sustentável. Como deixou claro o gestor, gerir os serviços é um acto de cidadania, não é um negócio.

Este estudo de caso mais uma vez coloca dúvidas sobre as premissas básicas do modelo da Gestão Delegada. Neste, o preço para a água cobrado ao consumidor reflecte, teoricamente, não apenas os custos de produção, gestão e distribuição do abastecimento de água, mas também o lucro do operador, bem como o preço do aluguer do sistema pagável ao Governo Distrital, o dono deste. Este deveria teoricamente usar esta receita como receita consignada para gastos de reparação e manutenção e até de amortização do sistema. O preço por unidade de água calculado correctamente do ponto de vista económico, poderia, contudo, ultrapassar a capacidade financeira do consumidor. Esta falta de ‘elasticidade’ do rendimento do consumidor em relação ao preço da água é provável numa situação em que altos níveis de pobreza prevalecem. Desta forma, o sistema público / privado de abastecimento de água não apenas exclui consumidores do acesso à água, um ‘bem de mérito’ (através do preço), mas ameaça a viabilidade económica do sistema como um todo. Além disso, o caso mostra que o consumidor tem uma noção clara entre a qualidade e utilidade do serviço público e o preço que ele é exigido a pagar. Se não existe uma equivalência razoável entre os dois, o consumidor desiste de procurar este serviço, e busca outras alternativas, com todas as consequências negativas para a eficiência do sistema.

6. conclusão

A análise feita sobre a provisão dos serviços de abastecimento de água indica claramente que, do ponto de vista de políticas e estratégias, o sector advoga uma maior descentralização e autonomização da gestão para os actores locais. Contudo, os estudos de caso com características diferentes (gestão municipal, gestão privada) mostram que pouco se avançou neste sentido. Os maiores desafios residem na gestão eficiente e na sustentabilidade dos sistemas e no problema dos free riders que não pagam pela água que estão a consumir. O processo de descentralização não veio alterar em grande medida a estrutura de gestão dos sistemas de água nas pequenas cidades e vilas.

Para contornar os problemas e na prossecução da sustentabilidade e da eficiência, o governo central tem vindo a encetar um movimento que pode ser visto como de recentralização, isto é, um movimento que tende a criar estruturas de gestão a nível central para providenciar serviços a nível local, deixando os governos

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locais com um espaço de decisão bastante limitado. A criação do FIPAG e AIAS pode ser visto nesta perspectiva. Adicionalmente, a política de investimentos públicos parece estar intrinsecamente ligada ao processo de recentralização, uma vez que os grandes investimentos são, na prática, planificados e geridos a nível central pelo FIPAG e AIAS.

Do ponto de vista de eficiência, o processo de centralização da gestão parece estar a dar resultados concretos e satisfatórios para os cidadãos nas 18 cidades onde o FIPAG intervém. Os sistemas de abastecimento de água de gestão central são os que se apresentam em melhores condições sob todos os pontos de vista: técnico, económico e social. E os cidadãos parecem ter o poder de compra necessário para conseguir pagar o preço da água. A tendência parece ser o alargamento do processo de centralização, quando se vê que o FIPAG está a expandir cada vez mais as suas operações para mais cidades e vilas. Com a criação da AIAS, esta tendência acentua-se, uma vez que a quase totalidade dos sistemas passam a ter um mecanismo de gestão mais centralizado.

A gestão a nível local continua a ser problemática. O arranjo institucional colocado em prática para a gestão dos serviços nos três sistemas estudados não é suficientemente forte. Os gestores dos sistemas (sejam eles públicos ou privados) não possuem as capacidades necessárias nem a possibilidade de desenvolver sinergias com estruturas de suporte a nível mais alto. As instituições existentes para a gestão dos serviços são descontínuas, isto é, não se reforçam mutuamente. Entretanto, a criação da AIAS como um mecanismo para a gestão macro dos investimentos e processos de produção e distribuição de serviços parece ser um caminho que pode vir a colmatar estas lacunas através de definição de regras e procedimentos claros, mas, acima de tudo, através da disponibilização de uma liderança estratégica clara, incluindo os incentivos que possam motivar e guiar os gestores locais a tomar acções tendentes a melhorar o seu desempenho nas várias vertentes. O risco adjacente a este processo é o de marginalização dos governos locais, e este risco é muito maior, se tomarmos em consideração o que acontece com os municípios e distritos onde o FIPAG é o gestor dos serviços.

Por outro lado, a tendência actual põe a nu um problema fundamental na redistribuição da renda e no combate à pobreza: os investimentos centralizados têm a tendência de incidir, em primeiro lugar, sobre os extractos mais ricos da sociedade, deixando os mais pobres sempre para no último lugar. Isto porque os investimentos são preferencialmente feitos onde as condições económicas propiciam um retorno mais rápido ou onde há uma economia de escala suficiente para gerar uma sustentabilidade financeira.

No caso de Moçambique, parece confirmar-se a tese defendida por Booth no sentido de que a centralização da gestão dos serviços públicos, no contexto

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africano, pode ser mais eficiente. A eficiência pode, no entanto, ser atribuída à maior capacidade financeira e técnica que existe a nível central para gerir serviços mais complexos como é o caso do abastecimento de água.