Geografia e Música: Leituras geográficas da construção da ... · Lee, e outros cantores como...

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi Geografia e Música: Leituras geográficas da construção da identidade brasileira através da música MESTRADO EM GEOGRAFIA São Paulo 2014

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  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi

    Geografia e Música: Leituras geográficas

    da construção da identidade brasileira

    através da música

    MESTRADO EM GEOGRAFIA

    São Paulo

    2014

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    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi

    Geografia e Música: Leituras geográficas

    da construção da identidade brasileira

    através da música

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora

    da Pontifícia Universidade Católica de São

    Paulo, como exigência parcial para obtenção

    do título de Mestre em GEOGRAFIA, sob a

    orientação do Prof. Dr. Douglas Santos.

    São Paulo

    2014

  • 2

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________

    _______________________________________

    _______________________________________

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    Dedico esta dissertação ao meu

    Pai, Vagner Tamburo (in memoriam)

    e a minha Mãe, Ignez Panigassi Tamburo.

    Dedico também ao professor

    Dr. Douglas Santos,

    um Mestre que,

    desde a época da Graduação

    da PUC-SP, despertou em mim

    o estímulo e o desejo

    de buscar nas pesquisas acadêmicas

    as perguntas e respostas

    mais profundas sobre o mundo.

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    Agradecimentos

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Douglas Santos, que me acolheu com muita

    generosidade, com quem, durante a realização desta pesquisa, tive a

    oportunidade de compartilhar momentos de profundo aprendizado, ansiedades,

    dúvidas, respeito, debates e satisfação. Sou especialmente grata pela maestria

    com que a orientação foi conduzida, sempre pautada na responsabilidade,

    paciência, sabedoria e abertura ao diálogo e questionamento.

    A Profa. Dr. Cecília Cardoso (PUC-SP e FSA) e ao Prof. Dr. Jorge

    Barcellos da Silva (UFG), pelas ricas contribuições a esta pesquisa no exame

    de qualificação, e ao meu orientador, Professor Dr. Douglas Santos, cuja

    pertinência e atenção na leitura foram essenciais para o bom encaminhamento

    e finalização da pesquisa.

    A minha mãe Ignez, pelas palavras diárias de incentivo e motivação.

    Sem seu encorajamento e colaboração, nada seria possível.

    Ao meu marido Ricardo, pela compreensão e paciência nos meus

    momentos de recolhimento e silêncio.

    Aos colegas da PUC-SP, Jonathas, Katia, Carol e Rangel, pelo

    estimulante e descontraído convívio acadêmico.

    A um grupo especial de seres humanos que fizeram e fazem minha vida

    melhor: Dr. Milton Godoy, Ciça e Élvio, Mara, Cristóvão B., Eugênio, Luciana,

    Iva e Ione, Raquel e Sérgio, Manu & Cia, Nazaré.

    A todos que, direta e indiretamente, ajudaram-me a construir este

    trabalho por meio de suas Teses, Livros e Pesquisas.

    A Elaine, pelo profissionalismo na revisão e formatação.

    Enfim, a todos que torceram e torcem por mim.

  • 5

    Resumo

    Este trabalho investiga o papel das artes, mais especificamente da

    música, na construção da identidade nacional brasileira. Para isso, utiliza-se de

    dois momentos históricos marcados por profundas transformações no país: o

    projeto do maestro Heitor Villa-Lobos de implementar o canto orfeônico no

    currículo escolar nacional sob o governo do presidente Getúlio Vargas (1930 a

    1945). Esse projeto de ensino musical nas escolas buscava imbuir os alunos

    do espírito cívico brasileiro, despertando e construindo a identidade nacional e

    a noção de pertencimento ao território. No segundo momento, encontramos a

    Ditadura Militar (1964 a 1985) e o movimento musical Tropicalista que é

    examinado através das letras irônicas e de dupla conotação de seus

    compositores, que buscaram denunciar (ao mesmo tempo que são censurados

    e perseguidos) um Brasil marcado pelas desigualdades sociais, embora o

    crescimento econômico do país demonstrasse progresso e desenvolvimento

    através do fortalecimento de sua industrialização. A leitura geográfica é o meio

    de interpretação e o fio condutor dos acontecimentos.

    Palavras-chave: Geografia, Industrialização, Música, Brasil, Arte, Estado Novo,

    Tropicalismo, Getúlio Vargas, Identidade Nacional, Urbano.

  • 6

    Abstract

    This paperwork investigates the use of the arts, more specifically, the

    music, in the construction of the national Brazilian Identity. It does so by

    tracking two distinguished historical moments known by profound

    transformations in the country: Heitor Villa-Lobos´s musical Project based on

    the introduction of “orpheon choirs” in public schools under the Getúlio Vargas´s

    leadership (1930 to 1945). This musical project aimed to build an idea of

    nationalism and the feeling of belonging to the Brazilian territory. The second

    moment, we have the military dictatorship (1964 to 1985), and the musical style

    known as “Tropicalista” examined through ironic lyrics and dubious

    connotations of its composers, whom aimed to address (considering the

    censorship of the moment) a Brazilian social and political position of inequality,

    although the economical scenario presented progress and growth through its

    industrialization. The geographical interpretations are the guideline for the

    whole research.

    Key-words: Geography, Industrialization, Music, Brazil, Arts, Estado Novo,

    Tropicalism, Getúlio Vargas, National identity, urban.

  • 7

    Sumário

    Introdução .......................................................................................................... 8

    Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano: cultura, identidade,

    pertencimento e territorialidade. ....................................................................... 14

    1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas ................................................................. 24

    Capítulo 2 –Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas ........................................ 33

    2.1 – O canto das multidões ....................................................................... 46

    2.2 – A Geografia das batutas... ................................................................. 59

    2.3 – E a Geografia das batucadas de Villa-Lobos ..................................... 60

    Capítulo 3 – Utopia Panamericana ................................................................... 63

    3.1 – Os 50 anos em 5 na Geografia do Brasil: .......................................... 64

    3.2 – Dos anos de flores para os anos de aço ............................................ 70

    3.3 – Os anos de aço e a contracultura: um recorte de 1964 a 1969 ......... 73

    3.4 – A Contracultura .................................................................................. 75

    Capítulo 4 – Miserere Nobis, Brasil. ................................................................. 78

    Conclusão ...................................................................................................... 104

    Bibliografia...................................................................................................... 108

  • 8

    Introdução

    Minha trajetória geográfica musical

    (Antecedentes da pesquisa)

    “A Geografia está em toda parte,

    embora nem sempre sejamos suficientemente

    geógrafos para isto perceber [...]”

    Denis Cosgrove

    Considerando as sábias palavras do geógrafo Denis Cosgrove, abro

    este trabalho de pesquisa de Mestrado. Sempre fazendo uso da Ciência

    Geográfica na elucidação, ou pelo menos na tentativa de compreender um

    pouco melhor o mundo em que vivemos, fui buscar novamente (antes com a

    Monografia de conclusão de curso da Geografia), elementos e respostas nas

    pesquisas geográficas que me permitissem construir academicamente um

    trabalho que sistematizasse certos questionamentos e anseios com relação à

    geografia aliada ao campo musical. Sentimentos que sempre pulsaram, ora

    como incômodo, ora como inspiração, mas que sempre estiveram latentes e

    muitas vezes inconscientes, que foram amadurecendo, tomando forma com o

    passar dos anos e só agora foi possível parar para buscar respostas e mais

    perguntas.

    Por que música? E por que com geografia? Música porque fui educada

    em um ambiente em que a música era e ainda é tão importante e natural

    quanto falar ou respirar. Minha mãe, formada em Piano Clássico, faz da arte de

    ensinar e educar, através das aulas de Piano, sua profissão há mais de trinta

    anos. Desde que me conheço por gente ouço o piano tocando em casa, por

    isso, acabei também seguindo os passos de minha mãe e, muito cedo, com

    pouco mais de dezessete anos, formei-me em piano clássico. Em meu

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    percurso musical, compunham meus estudos diários e aulas semanais

    compositores clássicos como Bach, Mozart, Beethoven, Bártok, Schubert,

    Brahms, Chopin e outros vários. Dos compositores brasileiros considerados

    eruditos, passei por: Francisco Mignone, Zequinha de Abreu, Heitor Villa-Lobos

    e Ernesto Nazareth, tive contato com todos eles dos 07 aos 17 anos de idade,

    ou seja, com capacidade técnica e talento musical, mas sem maturidade e

    bagagem suficientes para entender o que estava tocando e interpretando.

    Muito tempo depois fui resgatar e procurar entender essas experiências que,

    juntamente com a experiência da vida e o despertar acadêmico, me

    propiciaram os questionamentos mencionados anteriormente.

    Geografia porque, ao ingressar na vida acadêmica no curso de

    Geografia da PUC-SP, por um grande tempo trabalhei na área de

    Geoprocessamento com Sistema de Informações Geográficas: uma discussão

    e um saber técnico pouco explorados e muito recentes na academia e no

    mercado de trabalho para a época, o Geoprocessamento permitiu que leituras

    anteriormente pouco experimentadas e praticadas através de Mapas Digitais

    fossem tomando forma e me dando experiência para ler o mundo através dos

    mapas produzidos.

    Após o trabalho com Geoprocessamento, passei quatro anos morando

    em Londres, esta foi uma experiência marcante que, além de me expandir os

    horizontes geograficamente falando, também me permitiu amadurecer como

    brasileira e como geógrafa; a organização dos londrinos aliada à tecnologia e

    precisão em mapas, localização e informação foram enriquecedores para quem

    vê Geografia em tudo à sua volta. Além do mais, o cotidiano em outra língua e

    outra cultura (no caso de Londres nada próximos da nossa realidade) me fez

    lembrar diariamente o quanto sou cidadã brasileira. Esse sentimento de ser

    brasileiro, esse patriotismo é o que mais nos acompanha quando estamos em

    terras estrangeiras, e me parece ser nessas horas, fora de seu país, que você

    se sente mais brasileiro: seja pelas diferenças na língua, pelas diferenças nos

    hábitos e costumes ou pela falta de feriados prolongados!

    Ao retornar ao Brasil, retomei minhas atividades acadêmicas em busca

    do Mestrado como um grande objetivo a ser realizado. No campo profissional,

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    resgatei meus conhecimentos musicais passando a trabalhar com

    musicalização infantil e adulta, além de aulas de Piano Clássico.

    Para completar o histórico de minha formação, as influências de meu Pai

    também colaboraram muito para minha formação pessoal, cultural e

    profissional, por considerá-lo uma pessoa muito à frente de seu tempo, ainda

    muito pequena me despertou o interesse pela leitura, por filmes, livros, revistas,

    jornais, música e línguas. Se de minha Mãe herdei o interesse pela Música e

    pelas Artes, de meu Pai herdei o interesse pela leitura, pelas Grandes Guerras,

    pela História, Geografia, Arqueologia, pela pesquisa, pela Ciência de uma

    forma geral. Nesse sentido, ainda muito pequena ele me apresentou ao

    universo musical brasileiro canções do chamado movimento Tropicalista:

    cantores e compositores como Gilberto Gil e Caetano Veloso, a mutante Rita

    Lee, e outros cantores como Moraes Moreira, Tim Maia, Roberto Carlos, bem

    como as sessões musicais como Bach, Tchaikowsky, Vivaldi faziam parte de

    nossa sala de jantar. Como é possível verificar, minhas canções de infância

    não foram das mais infantis, e entendo dessa forma que esse estudo, além de

    buscar na música elementos geográficos e novos horizontes de pesquisas

    acadêmicas, significa também resgatar toda minha trajetória e formação

    pessoal até o presente momento.

    O esforço em unir Geografia e Música num mesmo trabalho, buscando

    compreender como a territorialidade construída e espacializada pode ser

    representada através de uma linguagem, e como essa linguagem pode ser

    usada também para o caminho inverso, ou seja, para ajudar na construção e

    consolidação de uma identidade nacional é o objetivo principal desse trabalho,

    cabendo registrar que esta é uma tarefa nada simples.

    A linguagem à qual me refiro e sempre será o objeto em questão é a

    linguagem musical e terá o papel de nos ajudar a desvendar certas

    representações de relações sociais, materializadas numa territorialidade

    encontradas nas músicas citadas. Como disse Cosgrove “a geografia está em

    todos os lugares”, porém a missão de interpretá-la e estruturá-la sobretudo

    através das leituras musicais faz do desafio maior ainda. Sempre com esse

    sentimento de que a música revelava uma geografia e que a geografia

    construía uma música, continuei minha busca por esse belo e tortuoso

  • 11

    caminho. Buscar nas fontes de Kant, que é uma referência no mundo

    acadêmico, permitiu-me fazer a conexão da música com a geografia e dar

    solidez para esta pesquisa.

    Assim, conseguindo organizar alguns dos muitos questionamentos e

    sentimentos com relação a esses temas, procurei organizar algumas perguntas

    que aqui registro:

    Por que certas canções e músicas nos transportam ou constroem,

    ou nos enraiza a certos lugares?

    Como interpretar e materializar esse processo? Como construir

    academicamente esse processo?

    De que forma a música pode construir e ser construída por uma

    territorialidade? E dentro dessa territorialidade, como nossa noção

    de pertencimento ao lugar é estabelecida? Que signos de uma

    geograficidade fazem parte dessa construção?

    São perguntas que talvez sejam respondidas até o final desse trabalho,

    ou talvez não. O percurso mostrará. Mas para encerrar esse preâmbulo, deixo

    mais uma brilhante colocação do geógrafo Denis Cosgrove: “A geografia serve,

    antes de tudo, para ser apreciada”.

    Assim me encontro em 2013. O Brasil que hoje é palco das mais

    diversas formas de protestos e manifestações como, por exemplo, o

    movimento pelo transporte gratuito (MPL), pelo direito de igualdade das

    minorias, da igualdade dos sexos, do direito e acesso à educação superior,

    bem como à inserção nos mercados de trabalho e consumo, enfim, ao acesso

    e o direito à cidadania, é fruto e reflexo de um processo histórico-geográfico de

    industrialização e modernização relativamente recente, além, é claro, dos

    processos políticos aí envolvidos.

    Considerando o caráter contemporâneo em que nossa sociedade se

    encontra, pensando na história da revolução industrial recente, moderna no

    sentido de ser ainda um tanto quanto jovem dentro das fases do capitalismo,

    temos um crescimento dos meios de produção, leia-se industrialização, com

  • 12

    pouco mais de sessenta anos de existência. Comparada a grandes potências

    mundiais como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, somos muito jovens.

    Nesse sentido, ao discutirmos questões como territorialidade e construção de

    uma identidade, bem como a noção de pertencimento ao país, ao território, faz-

    se necessário revisitar alguns momentos cruciais de nossa trajetória, para

    compreendermos não só o momento em que nos encontramos hoje, mas

    também para interpretar dois períodos distintos na história do Brasil que

    marcaram momentos de ruptura com padrões à época consolidados e

    definiram certas diretrizes na territorialidade brasileira e na construção do

    nacional, os quais serão visitados nesse trabalho.

    O primeiro período que será percorrido e investigado no capítulo I,

    refere-se àquele que ficou conhecido como Estado Getulista, em que o

    presidente Getúlio Vargas, ao assumir o comando do país em 1930, iniciou e

    instaurou uma política de grande crescimento econômico e industrial no Brasil.

    Compreendido entre os anos de 1930 e 1945, o governo e os planos do

    estancieiro gaúcho ocorreram em meio a um cenário econômico mundial de

    grandes incertezas: o crash de 1929 – a queda da bolsa de Nova York nos

    Estados Unidos, que afetou a economia mundial – a crise cafeeira no Brasil e

    as duas Grandes Guerras Mundiais. Esses eventos de extrema importância

    certamente influenciaram nos acontecimentos que marcaram os rumos do

    Brasil.

    Precedendo os acontecimentos do Governo Getúlio Vargas, temos como

    parte importante dessa análise o advento da Semana de Arte Moderna,

    ocorrida em 1922, na cidade de São Paulo. O movimento que surgiu com a

    proposta de renovação sobre o campo das ideias e da estética das artes tinha

    como alvo a ruptura com as influências europeias tradicionais e a busca pelas

    raízes nacionais. A busca por novos paradigmas em contraponto às velhas

    normas acadêmicas no campo das artes: literatura, pintura, poesia, música,

    artes plásticas, dança, teatro; a construção de uma nova e autêntica linguagem

    nacional que retratasse o momento de transformações pelo qual o país

    passava, eram as principais tônicas desse processo. É nesse contexto que se

    destaca a figura do músico e maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos, que

    analisaremos seu papel na busca por uma construção e afirmação da

  • 13

    identidade nacional brasileira, bem como na construção da noção de

    pertencimento ao território através da música, utilizando-se de composições

    que retratavam o Brasil e também por meio do Canto Orfeônico.

    O segundo momento compreendido nessa pesquisa diz respeito ao

    intenso e tenebroso Regime ou Ditadura Militar, que historicamente definiu-se

    entre 1964 até 1985. Esse período histórico, chamada por muitos brasileiros de

    “negro” na sociedade e na vida do país, foi marcado sobretudo pela presença

    das forças militares no poder, sob comando de governos ditatoriais: a

    repressão instaurou-se sobre a vida de toda nação, tendo a censura como

    principal ferramenta de controle da população. Nessa conjuntura política e

    social do Brasil, temos o movimento da Tropicália – que ocorreu entre 1967 e

    1968 – como questionador e revolucionário e que fez de suas produções

    artístico-musicais, seu maior expoente no sentido de inovar na estética musical

    e artística brasileira. Além de combater estrangeirismos, de procurar construir

    uma linguagem genuinamente brasileira nas produções artísticas, o movimento

    tropicalista utilizou-se dessa fértil fase cultural para protestar, denunciar e

    combater um Brasil marcado pela violência e perseguição, marcado por

    grandes diferenças sociais. Certas regiões viviam um Brasil arcaico e

    escravista, com traços agraristas e culturas tradicionais beirando as capitanias

    hereditárias, ao passo que outras como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

    Gerais, por exemplo, viviam as relações de um Brasil que se modernizava, que

    se industrializava e que buscava nesse processo se consolidar como potência

    através de seu crescimento econômico baseado no modelo de consumo de

    massa. O movimento tropicalista durou pouco, mas foi suficiente para dar ao

    país o gosto da modernidade e do combate à liberdade de expressão.

  • 14

    Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano:

    cultura, identidade, pertencimento e territorialidade

    A lendária Semana de Arte Moderna ocorreu em fevereiro de 1922, em

    São Paulo, e ficou marcadamente conhecida como a “Semana de 22”. Embora

    formalmente o evento tenha tido data para começar, uma segunda-feira, dia 13,

    seus efeitos e influências não tiveram data para acabar, ao contrário,

    perduraram por décadas e pode-se arriscar dizer que, até os dias de hoje,

    podemos encontrar reflexos de suas influências no campo das ideias e das

    artes no Brasil. A quebra dos modelos e regras vigentes até aquele momento, a

    busca pela ruptura de velhos paradigmas, procurando subverter antigos

    conceitos e formas na estética e na concepção da pintura, do teatro, da

    literatura, da música, do cinema e da dança, numa busca pelo nacional e

    original, eram os objetivos dos artistas que compunham o movimento, os quais

    acabaram por influenciar as várias gerações que os sucederam.

    A reunião dessa nata intelectual brasileira ocorreu por grandes

    motivações de ordem ideológico-cultural; o modernismo veio como uma onda

    revolucionária em todos os campos das artes, era o tom para que a

    efervescência das ideias pudesse renovar o país culturalmente, procurando se

    libertar dos modelos europeus. Inovar e transgredir, romper as barreiras das

    influências europeias, encontrar a arte própria, que representasse o nacional e

    o original do Brasil. Tratou-se do desejo pela ruptura com velhos paradigmas e

    ditames, permitindo novas formas de se pensar o Brasil e, com isso, produzir

    arte e cultura no país.

    Para que toda essa efervescência circulasse, para que todas essas

    ideias se espalhassem, São Paulo foi a capital eleita como veia condutora e

    propagadora dessas mudanças; considerada moderna e menos conservadora

    que o Rio de Janeiro, a cidade serviu de palco para as inovações e discussões

    entre a classe intelectual tradicional e a então chamada modernista.

  • 15

    Foi na terra da garoa que novas ideias circularam pelos cafés, teatros,

    jornais, revistas além do rádio, que ganhou força com sua popularização no

    transcorrer do tempo. O que à época se considerou progresso em meio à

    paulatina industrialização que começou a ganhar fôlego na cidade com a

    chegada e consolidação das indústrias, da mão de obra dos imigrantes e o

    nascimento de um mercado consumidor nacional – sedento de novidades e

    possibilidades. Foi em meio a tudo isso que surgiu um grupo de jovens artistas,

    cansados dos tradicionalismos europeus, do velho e do tradicional que, com as

    novas dinâmicas sociais, tomou a forma de anacronismos, procurando o

    moderno e o singular para retratar a identidade nacional. Era no contexto dessa

    mobilização intelectual e artística que vivia o jovem Heitor Villa-Lobos com sua

    energia e brilhantismo, iniciando intensa carreira, tocando e compondo suas

    obras musicais do começo de século. Foi também esse o momento da

    efervescência urbana do país, em que o maestro compôs sua famosa série de

    choros; segundo Squeff e Wisnik, tais composições foram frutos da mistura:

    “matriz popular urbana, amalgamada com blocos de outras informações,

    primitivas negras e indígenas, rurais, suburbanas e cosmopolitas [...]”, ou seja,

    essa fase refletiu exatamente o momento de ruptura, de quebra dos padrões e

    raízes europeias, na busca pelo novo e pela construção da identidade nacional,

    pelo original brasileiro, espelhando o momento social e político no qual o país

    se encontrava.

    A exemplo dessa manifestação, é possível encontrar nos textos do poeta

    e escritor Mário de Andrade, o desejo pelo novo e pelo nacional e a

    consciência por essa busca; a pré-efervescência do modernismo de 22 já vertia

    os primeiros sinais de esgotamento, da busca pela ruptura, que já vinha sendo

    nutrida e alimentada, sobretudo após o final da primeira guerra mundial:

    Surgiram governos novos, sistemas renovados de ciências,

    assim como artes novas. A forma principal com que se

    manifestou esse precipitar de ideais humanos, foi eles se

    generalizarem universalmente e assumirem uma tal

    correspondência com a atualidade, que o que não se

    relacionava com a essas manifestações, cheirava a século

    dezenove, cheirava a mofo, era passadismo. (Andrade, 1976,

    p. 194)

  • 16

    Algumas cidades do Brasil no início do século, sobretudo as capitais,

    possuíam as condições ideais para participarem e contribuírem com

    determinados movimentos sociais, culturais e políticos. No caso do

    modernismo, e na cidade de São Paulo, algumas dessas pré-condições, de

    acordo com o músico e pesquisador José Ramos Tinhorão, seriam: “a

    consciência de um sentimento nacional alimentado politicamente [...]

    exacerbamento do orgulho patriótico [...] durante o governo do Marechal

    Floriano Peixoto, e pela descoberta das perspectivas do mercado interno como

    fonte de riqueza para a crescente indústria brasileira” (Tinhorão, 1975, p. 191).

    Com essa mesma visão, Mário de Andrade situa sua análise acerca do

    nacionalismo versus o universalismo no contexto do início do século XX:

    Cada país, principalmente cada raça e cada civilização têm, no

    momento, suas exigências especiais e específicas, que dão pra

    cada nação uma contemporaneidade nacional mais importante

    que a universal, que é vaga, idealista e bastante inútil. E cada

    artista principiou por isso funcionando de novo em relação a

    essa contemporaneidade nacional, mais próxima dele. Nisso

    nós não fizemos em música, mais que acentuar o movimento

    nacionalista que, no séc. XIX principiara criando escolas

    nacionais. (Andrade, 1976, p. 195)

    Foi com esse espírito de emancipação artística que, as bases da

    semana modernista de 22 foram fundadas, mesmo que muitas vezes ainda não

    estivessem ideologicamente claras. Mas a busca pelo expressar sem regras, a

    necessidade de transformar, de construir de outra forma, ou seja, sentimentos

    nessa direção pareciam ter invadido artistas variados, pensadores e

    intelectuais da época. “Havia unanimidade em torno do objetivo central do

    grupo, isto é, dos „comovidos iniciadores da batalha dos renovamentos‟” : a

    atualização do código estético (Boaventura, 2001, p. 6).

    Se, por um lado, o Brasil das artes e da intelectualidade passou por

    efervescências na busca pela renovação e quebra de paradigmas, o Brasil da

    mão-de-obra, da luta de classes, da produção e do crescimento econômico

    também passou por transformações: as greves operárias começavam a tomar

    forma e força no país, na busca por melhores condições de trabalho, salário e

    direitos trabalhistas. Como aponta o historiador Boris Fausto, “um ciclo de

  • 17

    greves de grandes proporções surgiu nas principais cidades do país,

    especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”, compreendendo os

    períodos entre 1917 e 1920. O autor aponta ainda dois importantes fatores

    desencadeadores do ciclo dessas greves: a carestia, ou seja, a crise social

    causada pela Primeira Guerra Mundial e a decorrente especulação no mercado

    de abastecimento dos gêneros alimentícios, e segundo, o início das revoluções

    na Europa, sobretudo a de fevereiro de 1917 e a Revolução de Outubro da

    Rússia czarista.

    Um breve parênteses para apresentarmos, nesse contexto, algumas

    características das classes trabalhadoras do Rio de Janeiro e de São Paulo e

    algumas diferenças relevantes: enquanto no Rio de Janeiro do final do século

    XIX, a classe trabalhadora era composta pela “classe média profissional e

    burocrática, militares de carreira, alunos da Escola Militar e estudantes das

    escolas superiores”, a de São Paulo “girava em torno da burguesia do café e

    não continha grupos militares inquietos – a exemplo do Rio de Janeiro – além

    da mão de obra operária ser em sua maioria estrangeira, sem raízes na nova

    terra” o que favorecia a influência do anarquismo (Fausto, 1994, p. 299).

    Para quem via de fora, os propósitos dos artistas envolvidos na Semana

    de 22 não eram claros nem definidos; por conta das intensas e muitas vezes

    abstratas manifestações artísticas, as mensagens eram mal interpretadas e

    duramente criticadas. A emancipação cultural e intelectual tão almejada

    buscava quebrar as correntes clássicas europeias que prendiam os

    pensamentos, as formas e os julgamentos. Para dar nomes aos personagens

    desse episódio inovador, revolucionário e controverso, podemos citar alguns

    participantes desse momento: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de

    Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Menotti Del Picchia,

    Graça Aranha, Di Cavalcanti, Plínio Salgado entre muitos outros. O jornal O

    Estado de São Paulo, divulgando o evento da Semana de Arte Moderna, reflete

    sobre a influência dos acontecimentos na “intelligentsia brasileira” (termo

    recorrente nos textos da época), em sua publicação diária da semana de 22:

  • 18

    A remodelação esthetica1 do Brasil iniciada na musica de Villa-

    Lobos, na exculptura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti,

    Aniita Malfati, Vicente do Rego Monteiro, Zina Alta, e na jovem

    e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a

    ameaçam de inoportuno arcadismo, academismo e do

    provincianismo. O regionalismo pode ser um material literário,

    mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao

    universal. O estylo clássico obedece a uma disciplina que paira

    sobre as coisas e não as possue. Ora, tudo aquilo em que o

    Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo,

    que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta.

    Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo

    paradoxal que é o Universo brasileiro, e ella não se pode

    desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o

    sarcophago do Passado. Também o “academismo” é a morte

    pelo frio da arte e da literatura. [...] O que se pôde affirmar para

    condemnal-a é que ella suscita o estylo academico, constrange

    a livre inspiração, refreia o jovem o ardego talento que deixa de

    ser independente para se vagar no molde da Academia. É um

    grande mal na renovação esthética do Brasil a nenhum

    benefício trará a língua como espirito academico, que muta ao

    rancor a originalidade profunda e tumultuaria da nossa floresta

    de vocábulos, phrases e ideas. (O Estado de S. Paulo, 14 de

    fevereiro de 1922)

    Mas as principais questões a se discutir nessa pesquisa sobre a

    Semana de 22 não são as formas artísticas e estéticas por si mesmas, as

    linhas adotadas ou a linha acadêmica as quais seguirão; dizem respeito sim

    aos protestos e à leitura do país que estavam por trás de todo esse discurso. E

    são esses os pontos a serem levantados nessa investigação: como as artes

    podem contribuir na discussão geográfica (e vice-versa), no que diz respeito às

    questões de ordem social, política e econômica que permeavam o país naquele

    momento? Como a construção do país foi interpretada e retratada pela classe

    intelectual e artística nos recortes histórico-geográficos apresentados? Além

    disso, investigar em que medida talvez essas leituras contribuíram nos rumos

    do país?

    Conforme apresentado, o país encontrava-se num momento de grandes

    mudanças estruturais de ordem social e econômica como um todo.

    Retrocedendo um pouco no tempo – para traçar uma linha de raciocínio –

    1 Optou-se por manter as palavras com a grafia antiga exatamente como constam na citação.

  • 19

    temos o seguinte quadro: o país saiu de sua condição de colônia, governada

    por um sistema monárquico, de economia escravista e base agroexportadora;

    passou à condição de uma “república liberal” ou “república oligárquica”, mas

    que ainda baseava-se na economia agrícola exportadora, como ocorria na

    monarquia. Nessa realidade, o censo de 1920 retrata bem esse fenômeno: das

    9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões ou 69,7% trabalhavam na

    agricultura; na indústria eram 1,2 milhão – 13,8% – e 1,5 milhão em serviços2 –

    16,5% (Fausto, 1994, p. 281).

    Dessa forma, a dinâmica da economia cafeeira juntamente com as

    forças crescentes das indústrias que começavam a despontar no eixo Centro-

    Sul do país, sobretudo no Estado de São Paulo, permitiram que o crescimento

    econômico se refletisse sob outra dinâmica territorial e social tanto na capital

    paulista quanto em todo seu Estado. Assim, “o desenvolvimento capitalista

    caracterizado pela diversificação agrícola, a urbanização e o surto industrial”

    constituiria a base inicial das profundas mudanças na região.

    É essencial destacar nesse processo, o papel dos imigrantes europeus

    na constituição tanto da mão de obra que vai ser empregada nas fazendas de

    café – e sustentar por mais um tempo a monocultura cafeeira como base da

    economia agroexportadora do país – como aquela que vai ampliar o leque das

    produções agrícolas e impulsionar a urbanização na cidade de São Paulo.

    Fruto das possibilidades que a cidade oferecia, essa mão de obra abriu o leque

    de atividades e serviços como, por exemplo, o artesanato, o comércio de rua,

    as fabriquetas de fundo de quintal, os “mestres italianos” e profissionais liberais

    (Fausto, 1994). Ainda por conta de todo o processo que envolvia a produção de

    café, do plantio à colheita, passando pelo processamento, transporte e

    escoamento até o Porto de Santos, o mercado se desdobrava em outros

    serviços em função do comércio e dessa mão de obra; a exemplo disso,

    encontramos a expansão dos bancos e empregos burocráticos. Assim, o

    processo urbano ganhava forma e dinâmica e começava a se retroalimentar.

    Dados apontam o crescimento acelerado da capital paulista: entre 1890 e

    1900, a população paulistana passou de 64.934 habitantes para 239.820, ou

    2 Leia-se “serviços” aqui como atividades urbanas: serviços domésticos remunerados e “bicos” dos mais

    variados tipos.

  • 20

    seja, quase quadruplicou em 10 anos, chegando ao segundo lugar entre as

    cinco maiores cidades brasileiras no início do século XX. Nesse sentido,

    Moreira (1985) aponta esse movimento ao afirmar que quanto mais o

    “desenvolvimento industrial avança no eixo Rio-São Paulo, nuclear da

    industrialização no país” mais o campo vai sendo submetido à hierarquia e à

    marginalidade da cidade, ou seja, o café vai perdendo força e a indústria vai se

    fortalecendo, ao mesmo tempo em que se desenha e intensifica uma nova

    relação da agricultura-indústria, como é o caso do Planalto Paulista; o

    crescimento e a diversificação se aceleram: “quanto mais o espaço agrário se

    subordine à demanda industrial das cidades, seja com os insumos agrícolas,

    seja com os produtos alimentícios” (Moreira, 1985, p. 59).

    Com todas essas mudanças sociais, políticas e culturais, a cidade de

    São Paulo foi agente e receptáculo das transformações mais importantes do

    começo do século XX tanto para a cidade e o Estado, quanto para o país. Das

    profundas mudanças que ocorreram no campo e que se deslocaram para a

    cidade, vemos refletido na metrópole em processo de urbanização a seguinte

    situação:

    Quando a cafeicultura, arruinando a agroexportação nacional,

    entra em estado falimentar, o parque industrial paulista já está

    pronto para, junto com o parque industrial já existente no país,

    constituir a base de uma nova fase econômica nacional.

    (Moreira, 1985, p. 54)

    Todas essas realidades do país em fase de mudanças: industrialização,

    greves, cafeicultura, urbanização, agrário, modernização, imigração e

    crescimento foram retratadas na Semana de 22, bem como depois dela

    também. É certo afirmar que o movimento modernista foi um divisor de águas

    no contexto das artes e das ideias no Brasil, e consolidou o início de um

    período de profundas transformações no país, revelando, através das obras a

    nova realidade social que nascia e buscava se consolidar numa identidade

    própria para o seu povo. Interessante destacar a leitura feita na época por

    intelectuais que já viam a necessidade de mudança de mentalidade no país.

  • 21

    Apresentamos a leitura do país rural e do país urbano, retratado nas palavras

    do jurista Pedro Calmon ao jornal O Estado de São Paulo, o qual noticiava os

    acontecimentos do evento de 22:

    O ano de 1922 é um excelente ano-limite. A nossa civilização

    perdera as suas linhas tradicionais exclusivamente agrícolas e

    litorâneas. Tínhamos uma formidável riqueza industrial e uma

    economia sertaneja, que os modernos meios de transporte –

    com as estradas de rodagem – cada vez mais internavam,

    comunicando afinal entre si todos os núcleos produtores. Os

    índices de prosperidade de algumas regiões poderiam

    equivaler-se aos de países que fazem o assombro da nossa

    época: assim o crescimento vertiginoso de São Paulo, o

    povoamento das suas zonas cafeeiras, a “construção de suas

    cidades”. (O Estado de S. Paulo, 16 de fevereiro de 1922)

    Entre muitos exemplos que poderiam ser apresentados sobre a temática

    da Semana de 22, no tocante às representações sociais a que as obras do

    movimento se propõem a representar do Brasil, temos o quadro do pintor

    brasileiro Cândido Portinari. A tela denominada CAFÉ data de 1935 e

    representa o espírito social da época analisada nessa discussão. A economia

    cafeeira no Brasil e a mão de obra assalariada utilizada nas lavouras são as

    tônicas da pintura. Portinari também participou ativamente do movimento

    modernista, e sua obra é largamente reconhecida e identificada pela temática

    que enfoca a presença do Homem, do trabalhador brasileiro nas telas

    coloridas, a alma brasileira da época do café, do início do século, é retratada

    com muita força. Após um período fora do Brasil estudando, ele retorna e

    começa a retratar o país: a história, o povo, a cultura, a fauna e a flora. Retrata

    ainda , através de desenhos, gravuras e murais, a realidade social brasileira:

    “preocupado, também, com aqueles que sofrem, Portinari mostra em cores

    fortes a pobreza, as dificuldades, a dor” (Projeto Portinari).

  • 22

    Figura 1: CAFÉ 1935, Portinari.

    Outra artista contemporânea de Portinari, também envolvida com as

    questões de sua época e que apresentava em suas obras a realidade

    brasileira, era Tarsila do Amaral. A artista dizia que queria ser a “pintora do

    Brasil” e por isso seus quadros eram a representação da sociedade brasileira:

    a divisão entre trabalhadores assalariados, as paisagens rurais, as cidades e o

    urbano, morros e favelas, a industrialização.

    Todos esses elementos do Brasil em transformação são encontrados em

    suas obras. A tela a seguir, por exemplo, é o retrato da interligação e do

    crescimento das cidades; os símbolos da urbanidade estão presentes para

    retratar essa nova realidade: postes de luz, pontes, sinaleiras e estação de

    trem fazem parte do progresso e da conexão entre as regiões brasileiras

    através das estradas de ferro que, nessa época, ganhavam força no país.

  • 23

    Figura 2: Estação de Ferro Central do Brasil.

    Nessa direção, um dos idealizadores do movimento de 22 que não

    poderia deixar de ser apontado nessa parte da pesquisa é o artista Di

    Cavalcanti. Ativo mentor da semana modernista, conhecido por sua

    sensibilidade, inteligência e humor, suas obras retratam o Brasil do povo:

    carnaval, ritmo, sambistas, baianas, mulatas, seresteiros, trabalhadores, o

    morro, operários, enfim, a realidade urbana do Rio de Janeiro do começo do

    século XX é parte forte de seus temas. Disse ele certa vez: “Paris pôs uma

    marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o

    meu amor à Europa transformou meu amor à vida e tudo que é civilizado. E

    como civilizado comecei a conhecer minha terra”. Considerado muito mais que

    um pintor por sua formação cultural e sensibilidade, foi considerado por

    Fernando Sabino como “um grande pintor com formação de um verdadeiro

    homem de letras”.

    Figura 3: Operários – desenho 1933.

  • 24

    Apenas para consolidar a contextualização do momento em questão, e

    não para encerrar as ideias nem o espírito da época, é interessante apresentar

    as palavras de Mário de Andrade acerca do movimento vinte anos depois:

    tempo suficiente para repensar e rever muita coisa no que tange os propósitos

    e as circunstâncias que permitiram tais manifestações. O trecho foi retirado de

    uma série de quatro artigos escritos por Mário de Andrade ao jornal O Estado

    de São Paulo, no vigésimo aniversário do modernismo:

    Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio de um internacionalismo ingênito. São Paulo era muito mais “moderna” porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente.

    Ingenitamente provinciana, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado na política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social, mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade do mundo.

    É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro da sua malícia de cidade internacional, um ruralismo, um caráter tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o “exotismo” nacional (o que é prova de vitalidade do seu caráter), mas a interpenetração entre o rural e o urbano. Cousa impossível de achar em São Paulo, como funcionalidade permanente. Como Belém, o Recife, a Cidade do Salvador, apesar do seu urbanismo rescendante, o Rio ainda é uma cidade [...] folclórica. (O Estado de S. Paulo, Especial, Modernismo, 2005)

    1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas

    O período histórico compreendido entre 1930 e 1945 pode ser

    considerado o “divisor de águas” na busca pela construção de um Brasil

    urbano-industrial; menos dependente de bens importados e mais independente

    no que concerne a segurança de sua estabilidade econômica interna. As

    transformações na produção de bens de consumo que geravam uma

    dependência comercial e financeira do país com relação à venda de produtos

    como o café, a borracha e o açúcar, bem como nas importações de produtos

  • 25

    básicos para o crescimento interno como o petróleo e aço por exemplo, faziam

    com que novas medidas fossem tomadas para proteger o Brasil das oscilações

    externas da economia mundial.

    O crescimento das cidades, sendo essas os novos polos geradores de

    emprego e de uma nova forma de se viver, as imigrações, a difusão dos novos

    meios de comunicação como o rádio, jornais e revistas de grande circulação,

    contribuíram para uma mudança substancial da economia, dos meios de

    circulação e da forma com que o Brasil iria se estruturar e territorializar nos

    anos seguintes.

    A economia mundial dava sinais de esgotamento e seus reflexos já

    provavam que a globalização não é um fenômeno exclusivo da pós-

    modernidade: a queda da bolsa de Nova York afetando os principais mercados

    do mundo, e dentro deles o Brasil, a diminuição de crédito nos bancos

    estrangeiros por conta desse momento econômico, a alta dos produtos

    importados decorrente do câmbio e a queda nos lucros, foram fatores que

    contribuíram para que mudanças de âmbito estrutural fossem feitas no país,

    assim vemos que:

    O crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importações desses bens, acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias a instalação de uma indústria de bens de capital. (Furtado, 2003, p. 196)

    A responsabilidade estava então nas mãos do presidente Getúlio

    Vargas; passar o país de uma configuração geográfica basicamente agrária

    exportadora, com grandes latifúndios de mentalidade ainda escravista, para um

    Brasil urbano e assalariado, autossuficiente, que não sofresse tantas

    influências externas do mercado internacional. Para isso, além de toda a

    evolução nas formas de produção e nas relações que isso implica, também

    teria de preparar a mão de obra, qualificando pessoas através da educação

    para que o sistema produtivo pudesse responder à altura do modelo planejado

    para o país:

  • 26

    É significativo observar que o crescente interesse do governo Vargas em promover a industrialização do país, a partir de 1937, refletiu-se no campo educacional. Embora o ministro Capanema tenha promovido uma reforma do ensino secundário, sua maior preocupação se concentrou em organizar o ensino industrial. Um decreto-lei, com o objetivo de preparar mão de obra fabril qualificada. Pouco antes, surgira o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) destinado ao ensino profissional do menor operário. (Fausto, 1994, p. 367)

    Nesse sentido, vale apresentar uma sistematização de alguns números

    representativos de nossa realidade no início do século XX, utilizando duas

    faixas de comparação: 1920 e 1940:

    Ano 1920 1940 População total 30,6 milhões 41,1 milhões População > 20 anos 54% 54% Agricultura 79% produção total 57% da produção total

    Indústria 21% produção total 43% da produção total

    Analfabetismo 69,9% 56,2%

    Curso primário entre 05 a 19 anos 9% 21%

    Ensino superior 13.239 alunos 21.235 alunos

    Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p. 389-394. Adaptado pelo autor.

    Os números apresentados anteriormente foram extraídos dos censos

    nacionais realizados em 1920 e 1940. Pode-se ver dessa forma um pouco da

    realidade conjuntural do país em momentos bem distintos e que marcaram

    mudanças e foram definidores de uma nova conjuntura. Como Fausto reforça,

    é importante realizar uma leitura cuidadosa dessa realidade, já que diferenças

    no critério de um censo para outro acontecem, bem como a deficiência em sua

    coleta, não representando dessa forma um espelho fiel da realidade, mas

    sendo bons indicadores da mesma.

    Nesse cenário, podemos rapidamente identificar o aumento da

    população total brasileira, da crescente participação da indústria frente à

    agricultura, o avanço do número de alunos no ensino primário, bem como o

    aumento de estudantes do curso superior e, por consequência, queda no

    analfabetismo. É nesse cenário que o projeto de Getúlio Vargas adquiriu força

    para a industrialização se consolidar: “O Estado, como vimos, foi o agente

  • 27

    institucional desse movimento formador do espaço industrial no Brasil”

    (Moreira, 1985, p. 50), refletido nas cidades à medida que o campo se esvazia:

    “A relação cidade-campo troca de posições, num retraçamento do desenho dos

    cheios e vazios da distribuição espacial dos homens, que altera a forma ao

    mesmo em tempo que infunde novo conteúdo ao espaço” (idem, ibidem).

    Processa-se também na educação essa mudança, que encontrou no

    governo o interesse e a mediação necessários para sustentar seus planos de

    crescimento para o país e na população agrária, que agora se instalava nas

    cidades, o desejo de mudar de vida e se modernizar, abrindo mão do cultivo da

    terra e da vida difícil do campo.

    Essa transformação urbano-industrial à qual o país será submetido,

    sobretudo nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília,

    Minas Gerais e Porto Alegre, vai revelar em sua espacialidade as relações

    sociais, econômicas e políticas do Estado, ao que vemos:

    Sujeito aparente, porque é o veículo da hegemonização dos dominantes no seio da “modernização conservadora” , o Estado territorializar este movimento sob formas de ordenação espacial que encarna todos os momentos do processo evolutivo. (Moreira, 1985, p. 45).

    Havia três palavras-chave nesse processo de mudanças profundas

    necessárias para que o país pudesse sair de sua condição agrária, dependente

    e subordinada à dinâmica do mercado externo e passasse a um país moderno,

    urbano-industrial: centralização, modernização e planejamento3.

    Centralização: um Estado federal centralizado. Essa era a chave para o

    processo do progresso brasileiro e, para isso, Getúlio Vargas reuniu todas suas

    forças para controlar e centralizar nas mãos de poucos, as decisões que

    definiriam os rumos do país. Governando através de decretos-leis e das

    chamadas “interventorias”4, o presidente acabava por não abrir espaço para

    3 Grifo nosso.

    4 Interventorias: sistema em que os Executivos estaduais passaram a ser chefiados por interventores

    diretamente subordinados a Getúlio Vargas. No lugar das assembleias legislativas foram criados departamentos administrativos, cujos membros eram nomeados também pelo presidente da República e, em alguma medida, exerciam um controle sobre os atos dos interventores.

  • 28

    grupos privados, tais como as oligarquias regionais, evitando assim que certas

    decisões pudessem se sobrepor aos interesses nacionais, como se observa:

    Na realidade, o presidente ficaria durante todo o Estado Novo com o poder de governar através de decretos-leis, pois não se realizaram nem o plebiscito nem as eleições para o Parlamento. Os governadores dos Estados se transformaram em interventores, e na maioria dos casos foram substituídos. O estado de emergência não foi revogado. (Fausto, 1994, p. 365)

    Modernização: nesse sentido, a mudança nas políticas econômicas,

    tendo como foco não apenas a cultura exportadora e valorizadora do café, mas

    também uma produção agrícola variada e bens de consumo que garantissem o

    desenvolvimento de um mercado interno, bem como o desenvolvimento da

    mão de obra qualificada necessária para essa transformação – através da

    educação – além de contribuir para a independência da demanda externa que

    ditava o ritmo da economia brasileira.

    Outro aspecto de extrema relevância contido nessa agenda eram os

    resultados internos que esse processo poderia trazer consigo; a geração de

    mão de obra especializada e consumidora, ou seja, o desenvolvimento das

    forças produtivas se reproduzirá na construção de uma geografia urbana. A

    geração de renda, a necessidade de consumo, de deslocamento, transporte,

    moradia, educação e saúde e, não menos importante, a formação dos

    sindicatos, que o campo remotamente oferecia, se materializará nas relações

    que ocorrerão na cidade e, nesse sentido: “sob cada uma dessas fases do

    espaço distinguem-se as fases estruturais da formação do capitalismo no

    Brasil” (Moreira, 1985, p. 54).

    Planejamento: juntamente com a centralização do poder e as ações de

    cunho socioeconômico, encontra-se o planejamento do território. Para poder

    executar seu plano de independência econômica e desenvolvimento social-

    industrial, era necessário conhecer o território para poder planejar, ampliar e

    manter o controle das ações do Estado. Nesse sentido, na gestão de Vargas,

    primeiramente nasceu o Instituto Nacional de Estatística (1934), que

    posteriormente transformou-se no Conselho Nacional de Estatística.

  • 29

    Esse órgão tinha como objetivo maior coordenar todas as atividades

    estatísticas das diversas esferas administrativas. Da fusão dos dois órgãos, o

    Instituto Nacional de Estatística e o Conselho Nacional de Estatística, nasceu o

    I.B.G.E. – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1937. Em 1967, ele

    passou ao status de fundação. Retrocedendo um pouco mais na cronologia dos

    acontecimentos, de acordo com o próprio órgão:

    Durante o período imperial, o único órgão com atividades exclusivamente estatísticas era a Diretoria Geral de Estatística, criada em 1871. Com o advento da República, o governo sentiu necessidade de ampliar essas atividades, principalmente depois da implantação do registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos.

    Com o passar do tempo, o órgão responsável pelas estatísticas no Brasil mudou de nome e de funções algumas vezes até 1934, quando foi extinto o Departamento Nacional de Estatística, cujas atribuições passaram aos ministérios competentes.

    A carência de um órgão capacitado a articular e coordenar as pesquisas estatísticas, unificando a ação dos serviços especializados em funcionamento no País, favoreceu a criação, em 1934, do Instituto Nacional de Estatística – INE, que iniciou suas atividades em 29 de maio de 1936. No ano seguinte, foi instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao INE, que passou a se chamar, então, Instituto Nacional Brasileiro de Geografia e Estatística.

    Desde então, o IBGE cumpre sua missão: identifica e analisa o território, conta a população, mostra como a economia evolui através do trabalho e da produção das pessoas, revelando ainda como elas vivem.5

    No contexto que nos interessa, embora o poder continuasse nas mãos de

    uma minoria elitista e centralizadora, de mentalidade latifundiária e oligárquica,

    o país precisava se atualizar em vários setores. Esse Brasil, em vias de

    desenvolvimento, tinha nas mãos de seu líder um ambicioso projeto

    modernizador que precisava “dispor de informações confiáveis e conhecer

    melhor o território nacional do ponto de vista geográfico”.6 Assim se consolidou

    5 Fonte: www.ibge.gov.br. Acessado em 15/01/2014.

    6 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC. Site:

    www.cpdoc.fgv.br/ A Era Vargas: dos anos 20 a 1945 – Diretrizes do Estado Novo (1937-1945)> Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística acessado em 09/12/2013.

    http://www.ibge.gov.br/http://www.cpdoc.fgv.br/

  • 30

    o órgão que posteriormente norteou e revelou o território dos contrastes, do

    urbano e do rural: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.7

    É inegável o reconhecimento entre especialistas a respeito do elevado

    grau de importância que Vargas teve sobre o processo de transição de um país

    agrário e escravista para um país urbano e assalariado. O Brasil em movimento

    precisava conhecer, identificar e planejar para se desenvolver. O processo de

    industrialização pelo qual o país passou, sobretudo na Região Sudeste, trouxe

    reflexos no território de forma a demandar um olhar mais atento aos aspectos

    da ocupação humana e econômica e, junto disso, a necessidade de ordenar

    todo esse movimento.

    Nesse sentido, o quadro8 apresentado a seguir contribui para uma leitura

    mais plena desses fatos, à medida que representa o recorte do período

    discutido e permite outras possibilidades de reflexão:

    ÍNDICES ANUAIS DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL BRASILEIRA (base: 1939=100)

    Setor 1921 1925 1930 1935 1938 Têxtil 22.5 33.6 32.6 63.8 86.0

    Fumo 42.7 66.4 71.1 85.0 123.8

    Química 19.2 27.1 42.6 64.8 103.6

    Alimentos 52.4 61.8 80.0 92.9 96.7

    Cimentos - - 12.5 52.4 88.5

    Siderúrgico 7.1 14.1 22.6 50.2 81.6

    Pneus - - 1.0 17.0 65.0

    Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. 2 ed. rev. e atual. do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Adaptado pelo autor.

    O quadro apresentado9 foi construído por meio de uma planilha original

    do IBGE, composta por 14 setores classificados como a indústria de

    transformação – conforme fonte original – que se estendem do fumo ao

    cimento, passando por têxtil e siderúrgico, calçados, papel e mobiliário dentre

    outros.

    7 Fonte: www.ibge.gov.br, link missão: “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento

    da sua realidade e ao exercício da cidadania”. Acessado em 09/12/2013. 8 Tabela adaptada do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Acessado

    em 23/01/2014. 9 A escolha dos sete setores na lista não é aleatória, mas um entendimento de que representam bem o

    contexto da discussão.

    http://www.ibge.gov.br/

  • 31

    A exemplo da leitura anterior, o Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatística tornou-se uma poderosa ferramenta para a organização, controle e

    aproveitamento do território nacional. A execução das ações planejadas por

    Vargas e sua cúpula dependia do reconhecimento e mapeamento do território.

    As palavras do diretor do departamento de Cartografia, em sua apresentação

    no XI Congresso Brasileiro de Cartografia em Porto Alegre, reforçam essa

    visão:

    O Brasil com seus 8.516.000km² precisa de mapas que representam o seu território com a maior fidelidade possível. Ninguém discute mais esta tese. Qualquer planejamento de obra de certo vulto deve ser precedido de um mapa em escala adequada. Digam-no a Cia. Hidro Elétrica do S. Francisco e a Comissão do São Francisco. A Comissão de Valorização de Amazônia poderá testemunhar as dificuldades que está encontrando diante da ausência quase completa de um mapa adequado da Amazônia. (Mattos, 1954)

    Vale ainda apontar outra passagem da apresentação do então diretor

    Allyrio Huguney de Mattos, expressando sua indignação na insuficiente

    produção cartográfica que o Brasil apresentava até o momento do Congresso,

    sendo pouco mais dos 1.000.000 km² de mapas do território nacional face os

    mais de 8.000.000 de km² que o país apresenta, considerando o fato de ter

    sido descoberto há mais de 400 anos:

    A secção de Levantamentos Mistos já executou levantamentos em uma área que se aproxima de um milhão de quilômetros quadrados em parte do Nordeste, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, afora as áreas levantadas pelo SGE10, Minas e São Paulo que podem ser avaliadas em mais ou menos 600.000km². Isto tudo em presença dos 8.500.000 km² do Brasil, é muito pouco, e ainda, como grande parte das cartas publicadas do Rio Grande do Sul, Minas e São Paulo já têm mais de 20 anos de idade, já estão rigorosamente obsoletas e necessitam de atualização. Como grande parte dessas cartas foi elaborada por processos antigos e inadequados à época atual, essa atualização importa quase em nova elaboração.

    Convenhamos, portanto que, para um país descoberto, há mais de 400 anos e que já completou mais de 120 anos de soberania, isto é pouco mais que nada. (Mattos, 1954)

    10

    SGE: Serviço Geográfico do Exército.

  • 32

    Em sua fala final, ficou claro o desconhecimento do território que o Brasil

    ainda apresentava, sobretudo em relação a outros países numa possível

    situação de confronto ou guerra:

    Nossa pátria não pode entrar em confronto com certos países que são simples colônias. Por exemplo: A Índia, que até pouco tempo atrás era colônia inglesa, já tinha o seu território quase completamente levantado. Na atualidade o Congo Belga pode servir de exemplo para nele mirarmos. E por último, veja-se como a França está operando na Guiana Francesa e no seu império Colonial-África equatorial e Madagascar – e só há uma conclusão forçada: O Brasil não tem um mapa condigno, porque não se esforça para tê-lo. É um proprietário negligente que não conhece a terra que possui porque, para conhecê-la, é necessário antes de tudo mapeá-la. (Mattos, 1954)

    É nessa conjuntura de planejamento, organização e desenvolvimento

    nacional que, no Rio de Janeiro, se projetará o compositor que vai utilizar da

    linguagem musical para implantar o maior projeto de educação musical e cívico

    que se desenvolveu em âmbito nacional até hoje.

  • 33

    Capítulo 2 – Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas

    “Meu primeiro tratado de harmonia foi o mapa do Brasil”

    (Heitor Villa-Lobos)

    Foi nesse contexto geográfico e histórico do período Vargas 11

    (compreendido de 1930 a 1945) que surgiu a figura do maestro brasileiro Heitor

    Villa-Lobos com seu projeto de construção da identidade nacional e seu ideal

    civilizador através da música, mais precisamente através do Canto Orfeônico.

    Primeiramente, é necessário apresentar um pouco sobre o termo

    “orfeão” ou “orphéon”: sua origem vem da palavra francesa orphéon por ter

    sido uma atividade musical obrigatória nas escolas municipais de Paris; na

    prática quer dizer uma performance coral à capella, ou seja, um coral só de

    vozes, sem o acompanhamento de instrumentos musicais. Tradicionalmente o

    canto orfeônico é uma modalidade de canto coral, em que a prática musical é

    de teor essencialmente pedagógico-escolar e moral.

    O termo oriundo das escolas francesas de canto refere-se a Orfeu, deus

    da mitologia grega, ligado à música e que possuía o dom de gerar comoção

    naqueles que o ouviam. A mitologia também explica que, por conta dessa

    capacidade de emocionar e mobilizar, o deus grego foi o responsável por ter

    conduzido os trácios12 da selvageria à civilização, pois desceu ao inferno para

    resgatar sua amada Eurídice 13e lá amansou as massas populares. Dessa

    forma, desde então, considera-se o canto orfeônico um instrumento

    “civilizatório” e pedagógico à medida que essa arte em grupo, quando se

    utilizando as canções corretas, teria o poder de envolver os participantes numa

    prática vocal coletiva capaz de disciplinar o comportamento social e cívico.

    11

    Será convencionado chamar como Período Vargas o período entre 1930 à 1945, já que temos o Estado Novo oficialmente datado a partir de 1937. 12

    Orfeu seria originário do povo trácio, mas os gregos o tomaram para ele. Tracio é o nome que se deu a um povo hindu-europeu que habitava a Trácia, Bulgária, Romênia, Moldávia, nordeste da Grécia, Turquia, leste da Sérvia e partes da Macedônia. Viviam em tribos e foram considerados como o povo mais numeroso do mundo à época conhecido. 13

    Eurídice era a deusa grega casada com Orfeu; picada por uma serpente ao fugir de um agricultor que a desejava, morreu prematuramente. Orfeu destroçado com sua perda, buscou no canto o consolo pela perda da amada. Desceu ao inferno para tentar ressuscitar Eurídice e para domar as criaturas, fazendo uso do canto com sucesso.

  • 34

    Sabe-se que a música era uma das formas de arte mais cultivadas entre os

    egípcios, hindus, chineses e japoneses e, na época da construção das

    pirâmides e das esfinges, o Egito tinha um coral de 12 mil vozes e orquestras

    de 600 instrumentos. Muitos acreditam que foi graças ao canto durante o

    trabalho mais pesado que as pirâmides foram feitas (Andrews, 1952, p. 18).

    Nesse sentido, o uso da música com objetivos pedagógicos e políticos,

    buscando sensibilizar e ao mesmo tempo educar, poderia despertar

    sentimentos de civilidade e pertencimento em grupo, fazendo do canto

    orfeônico a prática ideal para a construção de uma identidade nacional.

    Também se diferencia do conhecido canto coral pelos aspectos técnicos.

    Enquanto o canto orfeônico não exige grandes conhecimentos acadêmicos-

    musicais, e tem como principal característica a alfabetização musical coletiva –

    por isso se realiza em escolas regulares – o canto coral tem como

    diferenciação do orfeônico, desenvolver tecnicamente o aluno, pois este exige

    conhecimentos vocais mais apurados, bem como o estudo em escolas

    específicas de formação de música, o chamado conservatório musical. Dessa

    forma, a homenagem feita a Orfeu14 era uma prática coletiva de canto cujo

    objetivo maior, segundo Ávila (2010), “era a difusão de ideologias e ideais de

    cunho nacionalista, para reforço do sentimento de nacionalidade”. Ainda

    apresentando conceitos sobre a prática orfeônica, cabe outra breve observação

    feita por Souza na diferenciação entre canto coral e o canto orfeônico:

    Enquanto o modelo orfeônico visa a promoção de valores éticos, morais e cívicos por meio de uma educação musical socializadora, o Canto Coral enfatiza o desenvolvimento artístico e musical, não possuindo uma preocupação cívica tão acentuada. (Souza, 2008, p. 3)

    14

    Saliba explica: Orfeu foi o famoso personagem da mitologia grega antiga, músico prodigioso, era louvado como celebrante de rituais de exaltação e de êxtase coletivo. Glosado em prosa e verso e largamente disseminado, o orfismo transformou-se quase numa tradição na cultura ocidental. Numa de suas inúmeras e obscuras versões, o orfismo concebia duas almas para os homens, a psyche, espécie de alma visível que desaparecia com a morte, e a alma invisível, eternizada em sucessivas migrações. Era com esta última que Orfeu se comunicava com os homens através da catarse e do êxtase coletivos (1993, pp.128-132).

  • 35

    No Brasil, o canto orfeônico teve sua projeção através das batutas15 do

    maestro, músico erudito e compositor Heitor Villa-Lobos; embora ele não tenha

    sido o pioneiro nessa prática musical no país, foi através de suas mãos que o

    canto orfeônico ganhou dimensões nacionais.

    O contato de Villa-Lobos com as escolas europeias musicais na ocasião

    de suas incursões pelo velho continente – onde a prática orfeônica era

    conhecida e largamente utilizada nas escolas primárias francesas – fez

    despertar no maestro o desejo de contribuir na construção de um ideário de

    nação e nacionalidade, bem como de “elevar” o Brasil, através da educação, a

    estágios superiores de civilização, equiparando-o à Europa. O maestro vinha

    se incomodando com a falta de raízes nacionais, de referências tradicionais e

    puras na música do país, sobretudo depois de retornar das grandes turnês

    europeias:

    Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos. Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebi a dolorosa realidade. (Villa-Lobos, 1946, p. 17)

    Dono de uma retórica inflamada que muitas vezes soava ufanista, o

    maestro buscou na música o veículo de difusão de suas convicções patrióticas

    e nacionalistas, como se pode ver a seguir:

    Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos.

    Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebo a dolorosa realidade.

    15

    Batuta é uma vareta leve de madeira, utilizada por regentes para conduzir orquestras e coros musicais.

  • 36

    Senti com melancolia que a atmosfera era de indiferença ou de absoluta incompreensão pela música racial, por essa grande música que faz a força das nacionalidades e que representa uma das mais altas aquisições do espírito humano. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 6)

    Foi através de seu audacioso projeto de educação musical, no período

    do Estado Novo getulista, que o canto orfeônico ganhou visibilidade e

    conseguiu ter projeção nacional: “Uma vez implantado na escola regular, seria

    possibilitada uma popularização da prática e do conhecimento musical, que

    passariam a atingir diversos setores sociais” (Lisboa, 2005, p. 58).

    Essa prática educacional que o maestro já vislumbrava para o Brasil vai

    encontrar, assim, as condições e o momento ideais para ser difundida no país;

    é sobretudo nas capitais e nas cidades mais urbanizadas, em fase de

    modernização e crescimento, que as crianças na fase de escolarização – dos

    05 aos 19 anos de idade – serão preparadas para a alfabetização musical e

    cívica, como mostra o quadro a seguir:

    Ano 1920

    1940

    Curso primário entre 05 a 19 anos

    9%

    21%

    Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p.389-394. Adaptado pelo autor.

    Portanto, essa prática só poderia se realizar como movimento

    nacionalista e civilizatório – e o projeto de Villa-Lobos só teria sucesso – à

    medida que o ensino musical fosse difundido ao maior número de alunos das

    escolas públicas nas grandes cidades.

    Considerando a época em questão, a educação ainda era voltada para

    uma camada restrita da população e, nesse sentido, ao se pensar em escola

    pública naquele momento, deve-se fazê-lo tendo em mente uma educação

    restrita ainda. De acordo com as pesquisas de Costa (1983) apud Giglioli

    (2003), constatou-se o seguinte cenário:

    Em 1908 a educação escolarizada no Estado de São Paulo atingia 105.015 indivíduos de uma população estimada em 3.209.160, ou seja, 3;3% da população estava matriculada em algum tipo de escola. Em 1923, a matrícula geral elevou-se a

  • 37

    360.909; mais do que triplicou, portanto, em relação a 1908, enquanto a população não chegara a duplicar-se. Em 1923, a parcela de matriculados em escolas nos diversos graus era de 7,4% da população total. (Costa, 1983 apud Giglioli, 2003, p. 7)

    Sob o Decreto nº 19.890 de 1931, o currículo escolar passou a ter nova

    configuração, em que as 12 disciplinas do curso fundamental composto por

    cinco séries passam a ter a seguinte disposição:

    Ano escolar Disciplinas

    1ª série Português, Francês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.

    2ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.

    3ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho e Música.

    4ª série Português, Francês, Inglês, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.

    5ª série Português, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.

    Fonte: PILETTI, 1990. Adaptado pelo autor.

    Numa rápida análise do quadro anterior, é possível constatar que o

    ensino de Música estava presente nos três primeiros anos fundamentais da

    vida escolar da população. Dessa forma a prática musical era introduzida nos

    anos de base da formação da criança, contribuindo para o desenvolvimento

    não só musical, mas também cívico do estudante. Essas bases fundadas

    foram, com o decorrer dos anos, lapidadas com outras disciplinas. Segundo

    Pilleti (1990), ao final do curso fundamental, eram oferecidas alternativas de

    grade escolar, que na verdade preparavam o estudante para a futura vida

    universitária, de acordo com a área pretendida: 1º) curso jurídico, 2º) cursos de

    medicina, odontologia e farmácia, 3º) cursos de engenharia e arquitetura.

    Juntamente às reformas educacionais referendadas em 1931 por Getúlio

    Vargas, veio a notícia do decreto da obrigatoriedade do ensino do Canto

    Orfeônico nas escolas. Destacar o advento “Estado Novo” em todo esse

    processo certamente contribuirá para a compreensão do momento nacionalista

    pelo qual o país passava na cultura, política e artes em geral, bem como o

    papel de Heitor Villa-Lobos e seu projeto musical.

  • 38

    Alegando o combate ao comunismo, o então presidente Getúlio Vargas

    inicia sua política de repressão e censura a seus adversários, na busca pela

    centralização do poder. Aproveitando-se dessa situação, Vargas acabou

    também por neutralizar seus oponentes, cuidando para que as resistências

    políticas ao seu governo fossem aos poucos perdendo forças. Além disso,

    disputas políticas em outras regiões do país, como no nordeste e no sul,

    também foram sendo neutralizadas, enfraquecendo possíveis focos de

    resistência que pudessem atrapalhar a concretização do golpe. Dessa forma,

    em 10 de novembro de 1937, o Congresso Nacional foi cercado pela Polícia

    Militar e fechado. O rádio, importante novo veículo de comunicação em massa

    da época, e que veio a ser um instrumento de grande relevância para a

    concretização de uma era nacionalista e de uma política de governo, foi usado

    para anunciar que o Estado Novo havia sido instaurado.

    Junto com a ditadura do Estado Novo veio também uma nova

    Constituição: essencialmente autoritária e centralista, que rompia com as

    tradições liberais dos textos constitucionais anteriormente vigentes no país.

    Mas, se de um lado, essa nova Constituição do governo Vargas fortalecia o

    Estado e ampliava o poder da União no que concerne à ordem econômica e

    social, por outro lado, passava a ser um agente promotor de transformações,

    concretizando importantes mudanças que não podiam mais serem postergadas

    e devem aqui serem ressaltadas. A política social tinha sua bandeira

    reformista, já que beneficiava também os trabalhadores, com a criação da

    Justiça do Trabalho, o salário mínimo, a jornada de oito horas diárias de

    trabalho, férias anuais remuneradas e descanso semanal. Segundo Diniz, em

    seu artigo Repensando o Estado Novo:

    [...] a despeito de sua heterogeneidade ideológica e política, tinha uma bandeira reformista. Essa bandeira estava relacionada com a temática social, com a questão da igualdade e das liberdades políticas, com o desafio de suprimir as grandes disparidades sociais que marcavam a sociedade brasileira e eliminar as barreiras sociais que tolhiam o desenvolvimento da cidadania política. (Diniz, 1999, p. 22)

    Se no Brasil, nesse momento social e político, era instaurado o regime

    totalitário, em países da Europa essa condição também começava a tomar

  • 39

    forma e fazer de países como Alemanha, Itália e Espanha, celeiros de

    crueldade e censura, ditando condutas sociais e econômicas em níveis de

    extremismos ideológicos, desintegrando qualquer possibilidade de uma

    sociedade civil paralela e organizada. Nesses casos, o nacionalismo já

    alcançava níveis extremados, a xenofobia fazia parte do processo. Quanto a

    esse processo no Brasil, as características mais marcantes e comuns ao

    Estado Novo nacional baseavam-se no totalitarismo, militarismo, anti-

    liberalismo econômico, unipartidarismo, propaganda governamental e uma

    rígida educação. Talvez por conta do processo de formação e construção

    histórica do país e de sua formação social, aqui esse modelo radical não tenha

    atingido o seu ápice dos níveis sangrentos e devastadores da Europa (nem

    teria razões para isso), mas certamente carregava consigo traços fortes e

    semelhantes dos modelos europeus. De acordo com Fausto (1994):

    [...] a crise mundial aberta em 1929 empurra o Brasil para esse caminho autoritário, já que ela desmonta uma série de pressupostos do capitalismo liberal, que a seu ver, já não era tão liberal, e fornece uma boa justificativa, no plano político, para a crítica à liberdade de expressão, para a crítica ao dissenso, expresso na liberdade partidária, tidos como elementos que conduziriam o país à desordem e ao caos. (Fausto, 1994, p. 19)

    Mas, retornando a Villa-Lobos e seu projeto pedagógico-nacionalista, a

    conquista desse feito pode ser compreendida nas linhas a seguir, escritas pelo

    maestro quando da apresentação do Programa de ensino de música no

    departamento de Educação do Distrito Federal:

    Nas escolas primárias e mesmo nas secundárias, o que se pretende, sob o ponto de vista estético, não é a formação integral de um músico, mas despertar nos educandos as aptidões naturais, desenvolvê-las, abrindo-lhes horizontes novos e apontando-lhes os institutos superiores de arte, onde é especializada a cultura. Oferecendo-lhes as primeiras noções de arte, proporcionando-lhes audições musicais, cultivando e cultuando os grandes artistas, como figuras de relevo da Humanidade, em todos os tempos. Esse ensino, embora elementar, há de contribuir, poderosamente, para a elevação moral e artística do povo. Assim, pois, as três finalidades distintas obedece a orientação traçada para as escolas do Distrito: a) disciplina; b) civismo; c) educação artística. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 7).

  • 40

    A organização do maestro diante desse desafio revela suas metas de

    colocar o Brasil em outro patamar cultural e educacional. O tripé disciplina,

    civismo e educação artística revela, nas palavras do maestro, a capacidade de

    organizar e liderar um projeto de dimensões nunca antes imaginadas;

    considerando-se as condições culturais, estruturais e educacionais do país,

    além das diferenças regionais, das distâncias geográficas e sociais

    enfrentadas.

    Em 1932, o maestro acabou então por ser incumbido de organizar e

    dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA – a qual

    tinha por principal missão:

    A realização da orientação, do planejamento e do desenvolvimento do estudo da música nas escolas, em todos os níveis. A perspectiva pedagógica da SEMA foi instaurada de acordo com os princípios: disciplina, civismo e educação artística. (Esperidião, 2003, p. 17)

    Vale outro parênteses na leitura, para destacar dois importantes

    elementos na discussão, disciplina e civismo: dois conceitos importantes na

    construção do raciocínio desta pesquisa, já que com a prática deles, a

    construção da identidade nacional através da educação musical seria possível

    segundo a visão de Villa-Lobos. Se, de acordo com Susan Smith: “music is a

    way of articulating the conditions of existence. It is a way of telling stories, of

    expressing the way lives are lived and of charting the geography of inequality”,16

    então podemos entender o alcance do maestro nacionalista em valorizar e

    vivificar nossas raízes, através da assimilação de nosso folclore. E Villa-Lobos

    acreditava que por conta dos “poucos séculos da existência do Brasil” ainda

    não era compreendida a relevância do canto coletivo na formação dos homens,

    sendo este muito mais que apenas uma demonstração de caráter artístico ou

    recreativo:

    Elas visam tão somente prover o progresso cívico das escolas, pois que nossa gente, talvez em consequência de razões raciais, de clima, de meio [...] ainda não compreende a

    16

    Tradução nossa: ´´música é uma forma de articulação das condições de existência. É uma forma de contar histórias, de expressar a maneira como a vida é vivida e de traçar, mapear a geografia da desigualdade´´

  • 41

    importância da disciplina coletiva dos homens.17 (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 8)

    Sendo esse trecho escrito pelo próprio maestro, não restam dúvidas de

    que suas convicções eram fortes o suficiente para fazer desta oportunidade,

    um feito muito maior do que apenas servir a interesses meramente políticos,

    como muitos críticos de seu trabalho costumavam apontar.

    Observa-se também as facetas do educador, planejador e executor do

    gênio musical, que muitas vezes só é lembrado como o compositor excêntrico

    e elitista que se aproveitava do folclore brasileiro para se projetar

    internacionalmente.

    Figura 4: Aula de Canto Orfeônico com Heitor Villa-Lobos

    Sendo um homem além de seu tempo, Villa-Lobos considerava a arte

    musical muito mais que uma manifestação artística e uma expressão estética

    da cultura humana. Ele reconhecia nas artes em geral a possibilidade de se

    educar e construir um povo; assim, pelas vias da educação, seria possível

    elevá-lo a uma nação unida e consciente de sua identidade e de suas raízes;

    também via na prática do canto orfeônico, a chance de se transpor camadas

    17

    LOBOS, H. V. O ensino popular da música popular no Brasil, p. 12-13. In: PAZ, E. Villa-Lobos e a música popular brasileira.

  • 42

    sociais, democratizando o acesso à música e despindo-a de elitismos.

    Concluindo esse pensamento, seguem as palavras do maestro:

    Torna-se também necessária uma explicação do motivo por que um artista já experimentado em sua carreira, material e moralmente feliz, com o seu meio centenário de existência já passado, enverede de surpresa nas atribuições de educador da juventude por intermédio da música, se obrigando a respeitar com a paciência de “resignado” as regras justas e obrigatórias do ensino primário da música, sob sua responsabilidade e orientação. É que sempre me julguei certo, se for útil aos outros. Se todos os artistas formados (que não são muitos) só se ocuparem de fazer arte e não pensarem em quem deve ouvi-la, acabarão as realizações artísticas por não possuírem assistentes, porque os que aprendem pretensiosamente a música nas escolas ou já se julgam também “artistas” e “colegas” autosuficiente não necessitando por conseguinte dos seus “concorrentes”, ou são educados ou instruídos egoisticamente a só apreciarem um determinado estilo, gênero ou autor de músicas. Quanto àqueles que já não possuem nenhuma iniciação musical, já são naturalmente desinteressados e nunca farão o menor esforço de procurar ouvir música, muitas vezes nem sequer pelo rádio. O auditório de concertos é quase sempre formado de elites sociais que, na verdade, e, na maioria da das vezes, não gostam da música e sim do gênero, estilo ou autor que está na moda. É círculo vicioso a vida social da arte da música. Compreendi, por isso, que era preciso que algum músico artista, com absoluta abnegação, sinceridade e coragem, não se importando com as adversidades e empecilhos iniciasse a campanha de catequese da massa popular em favor da formação de uma futura assistência especializada que não precisasse de indumentárias sociais, dos vestidos, de decote afetado, de cartola e casaca, joias e fisionomias circunspectas e que encarasse com seriedade a música da arte ou da subarte, para com ela higienizar a alma e o espírito e se deliciarem. Atualmente, depois deste incrível vendaval que separou, há humanidade, o espírito da alma, eu reio que, como um toque de alvorada, o advento da música nacionalista virá despertar as energias raciais adormecidas [...]

    (Villa-Lobos, www.museuvillalobos.org.br. Acessado em 13/12/2013).

    Em 1942, conforme o Decreto-Lei nº 4.244, de 09 de abril, as três linh