Geografia e Música: Leituras geográficas da construção da ... · Lee, e outros cantores como...
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi
Geografia e Música: Leituras geográficas
da construção da identidade brasileira
através da música
MESTRADO EM GEOGRAFIA
São Paulo
2014
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi
Geografia e Música: Leituras geográficas
da construção da identidade brasileira
através da música
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em GEOGRAFIA, sob a
orientação do Prof. Dr. Douglas Santos.
São Paulo
2014
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BANCA EXAMINADORA
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Dedico esta dissertação ao meu
Pai, Vagner Tamburo (in memoriam)
e a minha Mãe, Ignez Panigassi Tamburo.
Dedico também ao professor
Dr. Douglas Santos,
um Mestre que,
desde a época da Graduação
da PUC-SP, despertou em mim
o estímulo e o desejo
de buscar nas pesquisas acadêmicas
as perguntas e respostas
mais profundas sobre o mundo.
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Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Dr. Douglas Santos, que me acolheu com muita
generosidade, com quem, durante a realização desta pesquisa, tive a
oportunidade de compartilhar momentos de profundo aprendizado, ansiedades,
dúvidas, respeito, debates e satisfação. Sou especialmente grata pela maestria
com que a orientação foi conduzida, sempre pautada na responsabilidade,
paciência, sabedoria e abertura ao diálogo e questionamento.
A Profa. Dr. Cecília Cardoso (PUC-SP e FSA) e ao Prof. Dr. Jorge
Barcellos da Silva (UFG), pelas ricas contribuições a esta pesquisa no exame
de qualificação, e ao meu orientador, Professor Dr. Douglas Santos, cuja
pertinência e atenção na leitura foram essenciais para o bom encaminhamento
e finalização da pesquisa.
A minha mãe Ignez, pelas palavras diárias de incentivo e motivação.
Sem seu encorajamento e colaboração, nada seria possível.
Ao meu marido Ricardo, pela compreensão e paciência nos meus
momentos de recolhimento e silêncio.
Aos colegas da PUC-SP, Jonathas, Katia, Carol e Rangel, pelo
estimulante e descontraído convívio acadêmico.
A um grupo especial de seres humanos que fizeram e fazem minha vida
melhor: Dr. Milton Godoy, Ciça e Élvio, Mara, Cristóvão B., Eugênio, Luciana,
Iva e Ione, Raquel e Sérgio, Manu & Cia, Nazaré.
A todos que, direta e indiretamente, ajudaram-me a construir este
trabalho por meio de suas Teses, Livros e Pesquisas.
A Elaine, pelo profissionalismo na revisão e formatação.
Enfim, a todos que torceram e torcem por mim.
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Resumo
Este trabalho investiga o papel das artes, mais especificamente da
música, na construção da identidade nacional brasileira. Para isso, utiliza-se de
dois momentos históricos marcados por profundas transformações no país: o
projeto do maestro Heitor Villa-Lobos de implementar o canto orfeônico no
currículo escolar nacional sob o governo do presidente Getúlio Vargas (1930 a
1945). Esse projeto de ensino musical nas escolas buscava imbuir os alunos
do espírito cívico brasileiro, despertando e construindo a identidade nacional e
a noção de pertencimento ao território. No segundo momento, encontramos a
Ditadura Militar (1964 a 1985) e o movimento musical Tropicalista que é
examinado através das letras irônicas e de dupla conotação de seus
compositores, que buscaram denunciar (ao mesmo tempo que são censurados
e perseguidos) um Brasil marcado pelas desigualdades sociais, embora o
crescimento econômico do país demonstrasse progresso e desenvolvimento
através do fortalecimento de sua industrialização. A leitura geográfica é o meio
de interpretação e o fio condutor dos acontecimentos.
Palavras-chave: Geografia, Industrialização, Música, Brasil, Arte, Estado Novo,
Tropicalismo, Getúlio Vargas, Identidade Nacional, Urbano.
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Abstract
This paperwork investigates the use of the arts, more specifically, the
music, in the construction of the national Brazilian Identity. It does so by
tracking two distinguished historical moments known by profound
transformations in the country: Heitor Villa-Lobos´s musical Project based on
the introduction of “orpheon choirs” in public schools under the Getúlio Vargas´s
leadership (1930 to 1945). This musical project aimed to build an idea of
nationalism and the feeling of belonging to the Brazilian territory. The second
moment, we have the military dictatorship (1964 to 1985), and the musical style
known as “Tropicalista” examined through ironic lyrics and dubious
connotations of its composers, whom aimed to address (considering the
censorship of the moment) a Brazilian social and political position of inequality,
although the economical scenario presented progress and growth through its
industrialization. The geographical interpretations are the guideline for the
whole research.
Key-words: Geography, Industrialization, Music, Brazil, Arts, Estado Novo,
Tropicalism, Getúlio Vargas, National identity, urban.
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Sumário
Introdução .......................................................................................................... 8
Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano: cultura, identidade,
pertencimento e territorialidade. ....................................................................... 14
1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas ................................................................. 24
Capítulo 2 –Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas ........................................ 33
2.1 – O canto das multidões ....................................................................... 46
2.2 – A Geografia das batutas... ................................................................. 59
2.3 – E a Geografia das batucadas de Villa-Lobos ..................................... 60
Capítulo 3 – Utopia Panamericana ................................................................... 63
3.1 – Os 50 anos em 5 na Geografia do Brasil: .......................................... 64
3.2 – Dos anos de flores para os anos de aço ............................................ 70
3.3 – Os anos de aço e a contracultura: um recorte de 1964 a 1969 ......... 73
3.4 – A Contracultura .................................................................................. 75
Capítulo 4 – Miserere Nobis, Brasil. ................................................................. 78
Conclusão ...................................................................................................... 104
Bibliografia...................................................................................................... 108
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Introdução
Minha trajetória geográfica musical
(Antecedentes da pesquisa)
“A Geografia está em toda parte,
embora nem sempre sejamos suficientemente
geógrafos para isto perceber [...]”
Denis Cosgrove
Considerando as sábias palavras do geógrafo Denis Cosgrove, abro
este trabalho de pesquisa de Mestrado. Sempre fazendo uso da Ciência
Geográfica na elucidação, ou pelo menos na tentativa de compreender um
pouco melhor o mundo em que vivemos, fui buscar novamente (antes com a
Monografia de conclusão de curso da Geografia), elementos e respostas nas
pesquisas geográficas que me permitissem construir academicamente um
trabalho que sistematizasse certos questionamentos e anseios com relação à
geografia aliada ao campo musical. Sentimentos que sempre pulsaram, ora
como incômodo, ora como inspiração, mas que sempre estiveram latentes e
muitas vezes inconscientes, que foram amadurecendo, tomando forma com o
passar dos anos e só agora foi possível parar para buscar respostas e mais
perguntas.
Por que música? E por que com geografia? Música porque fui educada
em um ambiente em que a música era e ainda é tão importante e natural
quanto falar ou respirar. Minha mãe, formada em Piano Clássico, faz da arte de
ensinar e educar, através das aulas de Piano, sua profissão há mais de trinta
anos. Desde que me conheço por gente ouço o piano tocando em casa, por
isso, acabei também seguindo os passos de minha mãe e, muito cedo, com
pouco mais de dezessete anos, formei-me em piano clássico. Em meu
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percurso musical, compunham meus estudos diários e aulas semanais
compositores clássicos como Bach, Mozart, Beethoven, Bártok, Schubert,
Brahms, Chopin e outros vários. Dos compositores brasileiros considerados
eruditos, passei por: Francisco Mignone, Zequinha de Abreu, Heitor Villa-Lobos
e Ernesto Nazareth, tive contato com todos eles dos 07 aos 17 anos de idade,
ou seja, com capacidade técnica e talento musical, mas sem maturidade e
bagagem suficientes para entender o que estava tocando e interpretando.
Muito tempo depois fui resgatar e procurar entender essas experiências que,
juntamente com a experiência da vida e o despertar acadêmico, me
propiciaram os questionamentos mencionados anteriormente.
Geografia porque, ao ingressar na vida acadêmica no curso de
Geografia da PUC-SP, por um grande tempo trabalhei na área de
Geoprocessamento com Sistema de Informações Geográficas: uma discussão
e um saber técnico pouco explorados e muito recentes na academia e no
mercado de trabalho para a época, o Geoprocessamento permitiu que leituras
anteriormente pouco experimentadas e praticadas através de Mapas Digitais
fossem tomando forma e me dando experiência para ler o mundo através dos
mapas produzidos.
Após o trabalho com Geoprocessamento, passei quatro anos morando
em Londres, esta foi uma experiência marcante que, além de me expandir os
horizontes geograficamente falando, também me permitiu amadurecer como
brasileira e como geógrafa; a organização dos londrinos aliada à tecnologia e
precisão em mapas, localização e informação foram enriquecedores para quem
vê Geografia em tudo à sua volta. Além do mais, o cotidiano em outra língua e
outra cultura (no caso de Londres nada próximos da nossa realidade) me fez
lembrar diariamente o quanto sou cidadã brasileira. Esse sentimento de ser
brasileiro, esse patriotismo é o que mais nos acompanha quando estamos em
terras estrangeiras, e me parece ser nessas horas, fora de seu país, que você
se sente mais brasileiro: seja pelas diferenças na língua, pelas diferenças nos
hábitos e costumes ou pela falta de feriados prolongados!
Ao retornar ao Brasil, retomei minhas atividades acadêmicas em busca
do Mestrado como um grande objetivo a ser realizado. No campo profissional,
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resgatei meus conhecimentos musicais passando a trabalhar com
musicalização infantil e adulta, além de aulas de Piano Clássico.
Para completar o histórico de minha formação, as influências de meu Pai
também colaboraram muito para minha formação pessoal, cultural e
profissional, por considerá-lo uma pessoa muito à frente de seu tempo, ainda
muito pequena me despertou o interesse pela leitura, por filmes, livros, revistas,
jornais, música e línguas. Se de minha Mãe herdei o interesse pela Música e
pelas Artes, de meu Pai herdei o interesse pela leitura, pelas Grandes Guerras,
pela História, Geografia, Arqueologia, pela pesquisa, pela Ciência de uma
forma geral. Nesse sentido, ainda muito pequena ele me apresentou ao
universo musical brasileiro canções do chamado movimento Tropicalista:
cantores e compositores como Gilberto Gil e Caetano Veloso, a mutante Rita
Lee, e outros cantores como Moraes Moreira, Tim Maia, Roberto Carlos, bem
como as sessões musicais como Bach, Tchaikowsky, Vivaldi faziam parte de
nossa sala de jantar. Como é possível verificar, minhas canções de infância
não foram das mais infantis, e entendo dessa forma que esse estudo, além de
buscar na música elementos geográficos e novos horizontes de pesquisas
acadêmicas, significa também resgatar toda minha trajetória e formação
pessoal até o presente momento.
O esforço em unir Geografia e Música num mesmo trabalho, buscando
compreender como a territorialidade construída e espacializada pode ser
representada através de uma linguagem, e como essa linguagem pode ser
usada também para o caminho inverso, ou seja, para ajudar na construção e
consolidação de uma identidade nacional é o objetivo principal desse trabalho,
cabendo registrar que esta é uma tarefa nada simples.
A linguagem à qual me refiro e sempre será o objeto em questão é a
linguagem musical e terá o papel de nos ajudar a desvendar certas
representações de relações sociais, materializadas numa territorialidade
encontradas nas músicas citadas. Como disse Cosgrove “a geografia está em
todos os lugares”, porém a missão de interpretá-la e estruturá-la sobretudo
através das leituras musicais faz do desafio maior ainda. Sempre com esse
sentimento de que a música revelava uma geografia e que a geografia
construía uma música, continuei minha busca por esse belo e tortuoso
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caminho. Buscar nas fontes de Kant, que é uma referência no mundo
acadêmico, permitiu-me fazer a conexão da música com a geografia e dar
solidez para esta pesquisa.
Assim, conseguindo organizar alguns dos muitos questionamentos e
sentimentos com relação a esses temas, procurei organizar algumas perguntas
que aqui registro:
Por que certas canções e músicas nos transportam ou constroem,
ou nos enraiza a certos lugares?
Como interpretar e materializar esse processo? Como construir
academicamente esse processo?
De que forma a música pode construir e ser construída por uma
territorialidade? E dentro dessa territorialidade, como nossa noção
de pertencimento ao lugar é estabelecida? Que signos de uma
geograficidade fazem parte dessa construção?
São perguntas que talvez sejam respondidas até o final desse trabalho,
ou talvez não. O percurso mostrará. Mas para encerrar esse preâmbulo, deixo
mais uma brilhante colocação do geógrafo Denis Cosgrove: “A geografia serve,
antes de tudo, para ser apreciada”.
Assim me encontro em 2013. O Brasil que hoje é palco das mais
diversas formas de protestos e manifestações como, por exemplo, o
movimento pelo transporte gratuito (MPL), pelo direito de igualdade das
minorias, da igualdade dos sexos, do direito e acesso à educação superior,
bem como à inserção nos mercados de trabalho e consumo, enfim, ao acesso
e o direito à cidadania, é fruto e reflexo de um processo histórico-geográfico de
industrialização e modernização relativamente recente, além, é claro, dos
processos políticos aí envolvidos.
Considerando o caráter contemporâneo em que nossa sociedade se
encontra, pensando na história da revolução industrial recente, moderna no
sentido de ser ainda um tanto quanto jovem dentro das fases do capitalismo,
temos um crescimento dos meios de produção, leia-se industrialização, com
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pouco mais de sessenta anos de existência. Comparada a grandes potências
mundiais como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, somos muito jovens.
Nesse sentido, ao discutirmos questões como territorialidade e construção de
uma identidade, bem como a noção de pertencimento ao país, ao território, faz-
se necessário revisitar alguns momentos cruciais de nossa trajetória, para
compreendermos não só o momento em que nos encontramos hoje, mas
também para interpretar dois períodos distintos na história do Brasil que
marcaram momentos de ruptura com padrões à época consolidados e
definiram certas diretrizes na territorialidade brasileira e na construção do
nacional, os quais serão visitados nesse trabalho.
O primeiro período que será percorrido e investigado no capítulo I,
refere-se àquele que ficou conhecido como Estado Getulista, em que o
presidente Getúlio Vargas, ao assumir o comando do país em 1930, iniciou e
instaurou uma política de grande crescimento econômico e industrial no Brasil.
Compreendido entre os anos de 1930 e 1945, o governo e os planos do
estancieiro gaúcho ocorreram em meio a um cenário econômico mundial de
grandes incertezas: o crash de 1929 – a queda da bolsa de Nova York nos
Estados Unidos, que afetou a economia mundial – a crise cafeeira no Brasil e
as duas Grandes Guerras Mundiais. Esses eventos de extrema importância
certamente influenciaram nos acontecimentos que marcaram os rumos do
Brasil.
Precedendo os acontecimentos do Governo Getúlio Vargas, temos como
parte importante dessa análise o advento da Semana de Arte Moderna,
ocorrida em 1922, na cidade de São Paulo. O movimento que surgiu com a
proposta de renovação sobre o campo das ideias e da estética das artes tinha
como alvo a ruptura com as influências europeias tradicionais e a busca pelas
raízes nacionais. A busca por novos paradigmas em contraponto às velhas
normas acadêmicas no campo das artes: literatura, pintura, poesia, música,
artes plásticas, dança, teatro; a construção de uma nova e autêntica linguagem
nacional que retratasse o momento de transformações pelo qual o país
passava, eram as principais tônicas desse processo. É nesse contexto que se
destaca a figura do músico e maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos, que
analisaremos seu papel na busca por uma construção e afirmação da
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identidade nacional brasileira, bem como na construção da noção de
pertencimento ao território através da música, utilizando-se de composições
que retratavam o Brasil e também por meio do Canto Orfeônico.
O segundo momento compreendido nessa pesquisa diz respeito ao
intenso e tenebroso Regime ou Ditadura Militar, que historicamente definiu-se
entre 1964 até 1985. Esse período histórico, chamada por muitos brasileiros de
“negro” na sociedade e na vida do país, foi marcado sobretudo pela presença
das forças militares no poder, sob comando de governos ditatoriais: a
repressão instaurou-se sobre a vida de toda nação, tendo a censura como
principal ferramenta de controle da população. Nessa conjuntura política e
social do Brasil, temos o movimento da Tropicália – que ocorreu entre 1967 e
1968 – como questionador e revolucionário e que fez de suas produções
artístico-musicais, seu maior expoente no sentido de inovar na estética musical
e artística brasileira. Além de combater estrangeirismos, de procurar construir
uma linguagem genuinamente brasileira nas produções artísticas, o movimento
tropicalista utilizou-se dessa fértil fase cultural para protestar, denunciar e
combater um Brasil marcado pela violência e perseguição, marcado por
grandes diferenças sociais. Certas regiões viviam um Brasil arcaico e
escravista, com traços agraristas e culturas tradicionais beirando as capitanias
hereditárias, ao passo que outras como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, por exemplo, viviam as relações de um Brasil que se modernizava, que
se industrializava e que buscava nesse processo se consolidar como potência
através de seu crescimento econômico baseado no modelo de consumo de
massa. O movimento tropicalista durou pouco, mas foi suficiente para dar ao
país o gosto da modernidade e do combate à liberdade de expressão.
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Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano:
cultura, identidade, pertencimento e territorialidade
A lendária Semana de Arte Moderna ocorreu em fevereiro de 1922, em
São Paulo, e ficou marcadamente conhecida como a “Semana de 22”. Embora
formalmente o evento tenha tido data para começar, uma segunda-feira, dia 13,
seus efeitos e influências não tiveram data para acabar, ao contrário,
perduraram por décadas e pode-se arriscar dizer que, até os dias de hoje,
podemos encontrar reflexos de suas influências no campo das ideias e das
artes no Brasil. A quebra dos modelos e regras vigentes até aquele momento, a
busca pela ruptura de velhos paradigmas, procurando subverter antigos
conceitos e formas na estética e na concepção da pintura, do teatro, da
literatura, da música, do cinema e da dança, numa busca pelo nacional e
original, eram os objetivos dos artistas que compunham o movimento, os quais
acabaram por influenciar as várias gerações que os sucederam.
A reunião dessa nata intelectual brasileira ocorreu por grandes
motivações de ordem ideológico-cultural; o modernismo veio como uma onda
revolucionária em todos os campos das artes, era o tom para que a
efervescência das ideias pudesse renovar o país culturalmente, procurando se
libertar dos modelos europeus. Inovar e transgredir, romper as barreiras das
influências europeias, encontrar a arte própria, que representasse o nacional e
o original do Brasil. Tratou-se do desejo pela ruptura com velhos paradigmas e
ditames, permitindo novas formas de se pensar o Brasil e, com isso, produzir
arte e cultura no país.
Para que toda essa efervescência circulasse, para que todas essas
ideias se espalhassem, São Paulo foi a capital eleita como veia condutora e
propagadora dessas mudanças; considerada moderna e menos conservadora
que o Rio de Janeiro, a cidade serviu de palco para as inovações e discussões
entre a classe intelectual tradicional e a então chamada modernista.
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Foi na terra da garoa que novas ideias circularam pelos cafés, teatros,
jornais, revistas além do rádio, que ganhou força com sua popularização no
transcorrer do tempo. O que à época se considerou progresso em meio à
paulatina industrialização que começou a ganhar fôlego na cidade com a
chegada e consolidação das indústrias, da mão de obra dos imigrantes e o
nascimento de um mercado consumidor nacional – sedento de novidades e
possibilidades. Foi em meio a tudo isso que surgiu um grupo de jovens artistas,
cansados dos tradicionalismos europeus, do velho e do tradicional que, com as
novas dinâmicas sociais, tomou a forma de anacronismos, procurando o
moderno e o singular para retratar a identidade nacional. Era no contexto dessa
mobilização intelectual e artística que vivia o jovem Heitor Villa-Lobos com sua
energia e brilhantismo, iniciando intensa carreira, tocando e compondo suas
obras musicais do começo de século. Foi também esse o momento da
efervescência urbana do país, em que o maestro compôs sua famosa série de
choros; segundo Squeff e Wisnik, tais composições foram frutos da mistura:
“matriz popular urbana, amalgamada com blocos de outras informações,
primitivas negras e indígenas, rurais, suburbanas e cosmopolitas [...]”, ou seja,
essa fase refletiu exatamente o momento de ruptura, de quebra dos padrões e
raízes europeias, na busca pelo novo e pela construção da identidade nacional,
pelo original brasileiro, espelhando o momento social e político no qual o país
se encontrava.
A exemplo dessa manifestação, é possível encontrar nos textos do poeta
e escritor Mário de Andrade, o desejo pelo novo e pelo nacional e a
consciência por essa busca; a pré-efervescência do modernismo de 22 já vertia
os primeiros sinais de esgotamento, da busca pela ruptura, que já vinha sendo
nutrida e alimentada, sobretudo após o final da primeira guerra mundial:
Surgiram governos novos, sistemas renovados de ciências,
assim como artes novas. A forma principal com que se
manifestou esse precipitar de ideais humanos, foi eles se
generalizarem universalmente e assumirem uma tal
correspondência com a atualidade, que o que não se
relacionava com a essas manifestações, cheirava a século
dezenove, cheirava a mofo, era passadismo. (Andrade, 1976,
p. 194)
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Algumas cidades do Brasil no início do século, sobretudo as capitais,
possuíam as condições ideais para participarem e contribuírem com
determinados movimentos sociais, culturais e políticos. No caso do
modernismo, e na cidade de São Paulo, algumas dessas pré-condições, de
acordo com o músico e pesquisador José Ramos Tinhorão, seriam: “a
consciência de um sentimento nacional alimentado politicamente [...]
exacerbamento do orgulho patriótico [...] durante o governo do Marechal
Floriano Peixoto, e pela descoberta das perspectivas do mercado interno como
fonte de riqueza para a crescente indústria brasileira” (Tinhorão, 1975, p. 191).
Com essa mesma visão, Mário de Andrade situa sua análise acerca do
nacionalismo versus o universalismo no contexto do início do século XX:
Cada país, principalmente cada raça e cada civilização têm, no
momento, suas exigências especiais e específicas, que dão pra
cada nação uma contemporaneidade nacional mais importante
que a universal, que é vaga, idealista e bastante inútil. E cada
artista principiou por isso funcionando de novo em relação a
essa contemporaneidade nacional, mais próxima dele. Nisso
nós não fizemos em música, mais que acentuar o movimento
nacionalista que, no séc. XIX principiara criando escolas
nacionais. (Andrade, 1976, p. 195)
Foi com esse espírito de emancipação artística que, as bases da
semana modernista de 22 foram fundadas, mesmo que muitas vezes ainda não
estivessem ideologicamente claras. Mas a busca pelo expressar sem regras, a
necessidade de transformar, de construir de outra forma, ou seja, sentimentos
nessa direção pareciam ter invadido artistas variados, pensadores e
intelectuais da época. “Havia unanimidade em torno do objetivo central do
grupo, isto é, dos „comovidos iniciadores da batalha dos renovamentos‟” : a
atualização do código estético (Boaventura, 2001, p. 6).
Se, por um lado, o Brasil das artes e da intelectualidade passou por
efervescências na busca pela renovação e quebra de paradigmas, o Brasil da
mão-de-obra, da luta de classes, da produção e do crescimento econômico
também passou por transformações: as greves operárias começavam a tomar
forma e força no país, na busca por melhores condições de trabalho, salário e
direitos trabalhistas. Como aponta o historiador Boris Fausto, “um ciclo de
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greves de grandes proporções surgiu nas principais cidades do país,
especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”, compreendendo os
períodos entre 1917 e 1920. O autor aponta ainda dois importantes fatores
desencadeadores do ciclo dessas greves: a carestia, ou seja, a crise social
causada pela Primeira Guerra Mundial e a decorrente especulação no mercado
de abastecimento dos gêneros alimentícios, e segundo, o início das revoluções
na Europa, sobretudo a de fevereiro de 1917 e a Revolução de Outubro da
Rússia czarista.
Um breve parênteses para apresentarmos, nesse contexto, algumas
características das classes trabalhadoras do Rio de Janeiro e de São Paulo e
algumas diferenças relevantes: enquanto no Rio de Janeiro do final do século
XIX, a classe trabalhadora era composta pela “classe média profissional e
burocrática, militares de carreira, alunos da Escola Militar e estudantes das
escolas superiores”, a de São Paulo “girava em torno da burguesia do café e
não continha grupos militares inquietos – a exemplo do Rio de Janeiro – além
da mão de obra operária ser em sua maioria estrangeira, sem raízes na nova
terra” o que favorecia a influência do anarquismo (Fausto, 1994, p. 299).
Para quem via de fora, os propósitos dos artistas envolvidos na Semana
de 22 não eram claros nem definidos; por conta das intensas e muitas vezes
abstratas manifestações artísticas, as mensagens eram mal interpretadas e
duramente criticadas. A emancipação cultural e intelectual tão almejada
buscava quebrar as correntes clássicas europeias que prendiam os
pensamentos, as formas e os julgamentos. Para dar nomes aos personagens
desse episódio inovador, revolucionário e controverso, podemos citar alguns
participantes desse momento: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Menotti Del Picchia,
Graça Aranha, Di Cavalcanti, Plínio Salgado entre muitos outros. O jornal O
Estado de São Paulo, divulgando o evento da Semana de Arte Moderna, reflete
sobre a influência dos acontecimentos na “intelligentsia brasileira” (termo
recorrente nos textos da época), em sua publicação diária da semana de 22:
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A remodelação esthetica1 do Brasil iniciada na musica de Villa-
Lobos, na exculptura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti,
Aniita Malfati, Vicente do Rego Monteiro, Zina Alta, e na jovem
e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a
ameaçam de inoportuno arcadismo, academismo e do
provincianismo. O regionalismo pode ser um material literário,
mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao
universal. O estylo clássico obedece a uma disciplina que paira
sobre as coisas e não as possue. Ora, tudo aquilo em que o
Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo,
que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta.
Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo
paradoxal que é o Universo brasileiro, e ella não se pode
desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o
sarcophago do Passado. Também o “academismo” é a morte
pelo frio da arte e da literatura. [...] O que se pôde affirmar para
condemnal-a é que ella suscita o estylo academico, constrange
a livre inspiração, refreia o jovem o ardego talento que deixa de
ser independente para se vagar no molde da Academia. É um
grande mal na renovação esthética do Brasil a nenhum
benefício trará a língua como espirito academico, que muta ao
rancor a originalidade profunda e tumultuaria da nossa floresta
de vocábulos, phrases e ideas. (O Estado de S. Paulo, 14 de
fevereiro de 1922)
Mas as principais questões a se discutir nessa pesquisa sobre a
Semana de 22 não são as formas artísticas e estéticas por si mesmas, as
linhas adotadas ou a linha acadêmica as quais seguirão; dizem respeito sim
aos protestos e à leitura do país que estavam por trás de todo esse discurso. E
são esses os pontos a serem levantados nessa investigação: como as artes
podem contribuir na discussão geográfica (e vice-versa), no que diz respeito às
questões de ordem social, política e econômica que permeavam o país naquele
momento? Como a construção do país foi interpretada e retratada pela classe
intelectual e artística nos recortes histórico-geográficos apresentados? Além
disso, investigar em que medida talvez essas leituras contribuíram nos rumos
do país?
Conforme apresentado, o país encontrava-se num momento de grandes
mudanças estruturais de ordem social e econômica como um todo.
Retrocedendo um pouco no tempo – para traçar uma linha de raciocínio –
1 Optou-se por manter as palavras com a grafia antiga exatamente como constam na citação.
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temos o seguinte quadro: o país saiu de sua condição de colônia, governada
por um sistema monárquico, de economia escravista e base agroexportadora;
passou à condição de uma “república liberal” ou “república oligárquica”, mas
que ainda baseava-se na economia agrícola exportadora, como ocorria na
monarquia. Nessa realidade, o censo de 1920 retrata bem esse fenômeno: das
9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões ou 69,7% trabalhavam na
agricultura; na indústria eram 1,2 milhão – 13,8% – e 1,5 milhão em serviços2 –
16,5% (Fausto, 1994, p. 281).
Dessa forma, a dinâmica da economia cafeeira juntamente com as
forças crescentes das indústrias que começavam a despontar no eixo Centro-
Sul do país, sobretudo no Estado de São Paulo, permitiram que o crescimento
econômico se refletisse sob outra dinâmica territorial e social tanto na capital
paulista quanto em todo seu Estado. Assim, “o desenvolvimento capitalista
caracterizado pela diversificação agrícola, a urbanização e o surto industrial”
constituiria a base inicial das profundas mudanças na região.
É essencial destacar nesse processo, o papel dos imigrantes europeus
na constituição tanto da mão de obra que vai ser empregada nas fazendas de
café – e sustentar por mais um tempo a monocultura cafeeira como base da
economia agroexportadora do país – como aquela que vai ampliar o leque das
produções agrícolas e impulsionar a urbanização na cidade de São Paulo.
Fruto das possibilidades que a cidade oferecia, essa mão de obra abriu o leque
de atividades e serviços como, por exemplo, o artesanato, o comércio de rua,
as fabriquetas de fundo de quintal, os “mestres italianos” e profissionais liberais
(Fausto, 1994). Ainda por conta de todo o processo que envolvia a produção de
café, do plantio à colheita, passando pelo processamento, transporte e
escoamento até o Porto de Santos, o mercado se desdobrava em outros
serviços em função do comércio e dessa mão de obra; a exemplo disso,
encontramos a expansão dos bancos e empregos burocráticos. Assim, o
processo urbano ganhava forma e dinâmica e começava a se retroalimentar.
Dados apontam o crescimento acelerado da capital paulista: entre 1890 e
1900, a população paulistana passou de 64.934 habitantes para 239.820, ou
2 Leia-se “serviços” aqui como atividades urbanas: serviços domésticos remunerados e “bicos” dos mais
variados tipos.
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seja, quase quadruplicou em 10 anos, chegando ao segundo lugar entre as
cinco maiores cidades brasileiras no início do século XX. Nesse sentido,
Moreira (1985) aponta esse movimento ao afirmar que quanto mais o
“desenvolvimento industrial avança no eixo Rio-São Paulo, nuclear da
industrialização no país” mais o campo vai sendo submetido à hierarquia e à
marginalidade da cidade, ou seja, o café vai perdendo força e a indústria vai se
fortalecendo, ao mesmo tempo em que se desenha e intensifica uma nova
relação da agricultura-indústria, como é o caso do Planalto Paulista; o
crescimento e a diversificação se aceleram: “quanto mais o espaço agrário se
subordine à demanda industrial das cidades, seja com os insumos agrícolas,
seja com os produtos alimentícios” (Moreira, 1985, p. 59).
Com todas essas mudanças sociais, políticas e culturais, a cidade de
São Paulo foi agente e receptáculo das transformações mais importantes do
começo do século XX tanto para a cidade e o Estado, quanto para o país. Das
profundas mudanças que ocorreram no campo e que se deslocaram para a
cidade, vemos refletido na metrópole em processo de urbanização a seguinte
situação:
Quando a cafeicultura, arruinando a agroexportação nacional,
entra em estado falimentar, o parque industrial paulista já está
pronto para, junto com o parque industrial já existente no país,
constituir a base de uma nova fase econômica nacional.
(Moreira, 1985, p. 54)
Todas essas realidades do país em fase de mudanças: industrialização,
greves, cafeicultura, urbanização, agrário, modernização, imigração e
crescimento foram retratadas na Semana de 22, bem como depois dela
também. É certo afirmar que o movimento modernista foi um divisor de águas
no contexto das artes e das ideias no Brasil, e consolidou o início de um
período de profundas transformações no país, revelando, através das obras a
nova realidade social que nascia e buscava se consolidar numa identidade
própria para o seu povo. Interessante destacar a leitura feita na época por
intelectuais que já viam a necessidade de mudança de mentalidade no país.
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21
Apresentamos a leitura do país rural e do país urbano, retratado nas palavras
do jurista Pedro Calmon ao jornal O Estado de São Paulo, o qual noticiava os
acontecimentos do evento de 22:
O ano de 1922 é um excelente ano-limite. A nossa civilização
perdera as suas linhas tradicionais exclusivamente agrícolas e
litorâneas. Tínhamos uma formidável riqueza industrial e uma
economia sertaneja, que os modernos meios de transporte –
com as estradas de rodagem – cada vez mais internavam,
comunicando afinal entre si todos os núcleos produtores. Os
índices de prosperidade de algumas regiões poderiam
equivaler-se aos de países que fazem o assombro da nossa
época: assim o crescimento vertiginoso de São Paulo, o
povoamento das suas zonas cafeeiras, a “construção de suas
cidades”. (O Estado de S. Paulo, 16 de fevereiro de 1922)
Entre muitos exemplos que poderiam ser apresentados sobre a temática
da Semana de 22, no tocante às representações sociais a que as obras do
movimento se propõem a representar do Brasil, temos o quadro do pintor
brasileiro Cândido Portinari. A tela denominada CAFÉ data de 1935 e
representa o espírito social da época analisada nessa discussão. A economia
cafeeira no Brasil e a mão de obra assalariada utilizada nas lavouras são as
tônicas da pintura. Portinari também participou ativamente do movimento
modernista, e sua obra é largamente reconhecida e identificada pela temática
que enfoca a presença do Homem, do trabalhador brasileiro nas telas
coloridas, a alma brasileira da época do café, do início do século, é retratada
com muita força. Após um período fora do Brasil estudando, ele retorna e
começa a retratar o país: a história, o povo, a cultura, a fauna e a flora. Retrata
ainda , através de desenhos, gravuras e murais, a realidade social brasileira:
“preocupado, também, com aqueles que sofrem, Portinari mostra em cores
fortes a pobreza, as dificuldades, a dor” (Projeto Portinari).
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22
Figura 1: CAFÉ 1935, Portinari.
Outra artista contemporânea de Portinari, também envolvida com as
questões de sua época e que apresentava em suas obras a realidade
brasileira, era Tarsila do Amaral. A artista dizia que queria ser a “pintora do
Brasil” e por isso seus quadros eram a representação da sociedade brasileira:
a divisão entre trabalhadores assalariados, as paisagens rurais, as cidades e o
urbano, morros e favelas, a industrialização.
Todos esses elementos do Brasil em transformação são encontrados em
suas obras. A tela a seguir, por exemplo, é o retrato da interligação e do
crescimento das cidades; os símbolos da urbanidade estão presentes para
retratar essa nova realidade: postes de luz, pontes, sinaleiras e estação de
trem fazem parte do progresso e da conexão entre as regiões brasileiras
através das estradas de ferro que, nessa época, ganhavam força no país.
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Figura 2: Estação de Ferro Central do Brasil.
Nessa direção, um dos idealizadores do movimento de 22 que não
poderia deixar de ser apontado nessa parte da pesquisa é o artista Di
Cavalcanti. Ativo mentor da semana modernista, conhecido por sua
sensibilidade, inteligência e humor, suas obras retratam o Brasil do povo:
carnaval, ritmo, sambistas, baianas, mulatas, seresteiros, trabalhadores, o
morro, operários, enfim, a realidade urbana do Rio de Janeiro do começo do
século XX é parte forte de seus temas. Disse ele certa vez: “Paris pôs uma
marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o
meu amor à Europa transformou meu amor à vida e tudo que é civilizado. E
como civilizado comecei a conhecer minha terra”. Considerado muito mais que
um pintor por sua formação cultural e sensibilidade, foi considerado por
Fernando Sabino como “um grande pintor com formação de um verdadeiro
homem de letras”.
Figura 3: Operários – desenho 1933.
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24
Apenas para consolidar a contextualização do momento em questão, e
não para encerrar as ideias nem o espírito da época, é interessante apresentar
as palavras de Mário de Andrade acerca do movimento vinte anos depois:
tempo suficiente para repensar e rever muita coisa no que tange os propósitos
e as circunstâncias que permitiram tais manifestações. O trecho foi retirado de
uma série de quatro artigos escritos por Mário de Andrade ao jornal O Estado
de São Paulo, no vigésimo aniversário do modernismo:
Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio de um internacionalismo ingênito. São Paulo era muito mais “moderna” porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente.
Ingenitamente provinciana, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado na política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social, mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade do mundo.
É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro da sua malícia de cidade internacional, um ruralismo, um caráter tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o “exotismo” nacional (o que é prova de vitalidade do seu caráter), mas a interpenetração entre o rural e o urbano. Cousa impossível de achar em São Paulo, como funcionalidade permanente. Como Belém, o Recife, a Cidade do Salvador, apesar do seu urbanismo rescendante, o Rio ainda é uma cidade [...] folclórica. (O Estado de S. Paulo, Especial, Modernismo, 2005)
1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas
O período histórico compreendido entre 1930 e 1945 pode ser
considerado o “divisor de águas” na busca pela construção de um Brasil
urbano-industrial; menos dependente de bens importados e mais independente
no que concerne a segurança de sua estabilidade econômica interna. As
transformações na produção de bens de consumo que geravam uma
dependência comercial e financeira do país com relação à venda de produtos
como o café, a borracha e o açúcar, bem como nas importações de produtos
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25
básicos para o crescimento interno como o petróleo e aço por exemplo, faziam
com que novas medidas fossem tomadas para proteger o Brasil das oscilações
externas da economia mundial.
O crescimento das cidades, sendo essas os novos polos geradores de
emprego e de uma nova forma de se viver, as imigrações, a difusão dos novos
meios de comunicação como o rádio, jornais e revistas de grande circulação,
contribuíram para uma mudança substancial da economia, dos meios de
circulação e da forma com que o Brasil iria se estruturar e territorializar nos
anos seguintes.
A economia mundial dava sinais de esgotamento e seus reflexos já
provavam que a globalização não é um fenômeno exclusivo da pós-
modernidade: a queda da bolsa de Nova York afetando os principais mercados
do mundo, e dentro deles o Brasil, a diminuição de crédito nos bancos
estrangeiros por conta desse momento econômico, a alta dos produtos
importados decorrente do câmbio e a queda nos lucros, foram fatores que
contribuíram para que mudanças de âmbito estrutural fossem feitas no país,
assim vemos que:
O crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importações desses bens, acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias a instalação de uma indústria de bens de capital. (Furtado, 2003, p. 196)
A responsabilidade estava então nas mãos do presidente Getúlio
Vargas; passar o país de uma configuração geográfica basicamente agrária
exportadora, com grandes latifúndios de mentalidade ainda escravista, para um
Brasil urbano e assalariado, autossuficiente, que não sofresse tantas
influências externas do mercado internacional. Para isso, além de toda a
evolução nas formas de produção e nas relações que isso implica, também
teria de preparar a mão de obra, qualificando pessoas através da educação
para que o sistema produtivo pudesse responder à altura do modelo planejado
para o país:
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26
É significativo observar que o crescente interesse do governo Vargas em promover a industrialização do país, a partir de 1937, refletiu-se no campo educacional. Embora o ministro Capanema tenha promovido uma reforma do ensino secundário, sua maior preocupação se concentrou em organizar o ensino industrial. Um decreto-lei, com o objetivo de preparar mão de obra fabril qualificada. Pouco antes, surgira o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) destinado ao ensino profissional do menor operário. (Fausto, 1994, p. 367)
Nesse sentido, vale apresentar uma sistematização de alguns números
representativos de nossa realidade no início do século XX, utilizando duas
faixas de comparação: 1920 e 1940:
Ano 1920 1940 População total 30,6 milhões 41,1 milhões População > 20 anos 54% 54% Agricultura 79% produção total 57% da produção total
Indústria 21% produção total 43% da produção total
Analfabetismo 69,9% 56,2%
Curso primário entre 05 a 19 anos 9% 21%
Ensino superior 13.239 alunos 21.235 alunos
Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p. 389-394. Adaptado pelo autor.
Os números apresentados anteriormente foram extraídos dos censos
nacionais realizados em 1920 e 1940. Pode-se ver dessa forma um pouco da
realidade conjuntural do país em momentos bem distintos e que marcaram
mudanças e foram definidores de uma nova conjuntura. Como Fausto reforça,
é importante realizar uma leitura cuidadosa dessa realidade, já que diferenças
no critério de um censo para outro acontecem, bem como a deficiência em sua
coleta, não representando dessa forma um espelho fiel da realidade, mas
sendo bons indicadores da mesma.
Nesse cenário, podemos rapidamente identificar o aumento da
população total brasileira, da crescente participação da indústria frente à
agricultura, o avanço do número de alunos no ensino primário, bem como o
aumento de estudantes do curso superior e, por consequência, queda no
analfabetismo. É nesse cenário que o projeto de Getúlio Vargas adquiriu força
para a industrialização se consolidar: “O Estado, como vimos, foi o agente
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27
institucional desse movimento formador do espaço industrial no Brasil”
(Moreira, 1985, p. 50), refletido nas cidades à medida que o campo se esvazia:
“A relação cidade-campo troca de posições, num retraçamento do desenho dos
cheios e vazios da distribuição espacial dos homens, que altera a forma ao
mesmo em tempo que infunde novo conteúdo ao espaço” (idem, ibidem).
Processa-se também na educação essa mudança, que encontrou no
governo o interesse e a mediação necessários para sustentar seus planos de
crescimento para o país e na população agrária, que agora se instalava nas
cidades, o desejo de mudar de vida e se modernizar, abrindo mão do cultivo da
terra e da vida difícil do campo.
Essa transformação urbano-industrial à qual o país será submetido,
sobretudo nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília,
Minas Gerais e Porto Alegre, vai revelar em sua espacialidade as relações
sociais, econômicas e políticas do Estado, ao que vemos:
Sujeito aparente, porque é o veículo da hegemonização dos dominantes no seio da “modernização conservadora” , o Estado territorializar este movimento sob formas de ordenação espacial que encarna todos os momentos do processo evolutivo. (Moreira, 1985, p. 45).
Havia três palavras-chave nesse processo de mudanças profundas
necessárias para que o país pudesse sair de sua condição agrária, dependente
e subordinada à dinâmica do mercado externo e passasse a um país moderno,
urbano-industrial: centralização, modernização e planejamento3.
Centralização: um Estado federal centralizado. Essa era a chave para o
processo do progresso brasileiro e, para isso, Getúlio Vargas reuniu todas suas
forças para controlar e centralizar nas mãos de poucos, as decisões que
definiriam os rumos do país. Governando através de decretos-leis e das
chamadas “interventorias”4, o presidente acabava por não abrir espaço para
3 Grifo nosso.
4 Interventorias: sistema em que os Executivos estaduais passaram a ser chefiados por interventores
diretamente subordinados a Getúlio Vargas. No lugar das assembleias legislativas foram criados departamentos administrativos, cujos membros eram nomeados também pelo presidente da República e, em alguma medida, exerciam um controle sobre os atos dos interventores.
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grupos privados, tais como as oligarquias regionais, evitando assim que certas
decisões pudessem se sobrepor aos interesses nacionais, como se observa:
Na realidade, o presidente ficaria durante todo o Estado Novo com o poder de governar através de decretos-leis, pois não se realizaram nem o plebiscito nem as eleições para o Parlamento. Os governadores dos Estados se transformaram em interventores, e na maioria dos casos foram substituídos. O estado de emergência não foi revogado. (Fausto, 1994, p. 365)
Modernização: nesse sentido, a mudança nas políticas econômicas,
tendo como foco não apenas a cultura exportadora e valorizadora do café, mas
também uma produção agrícola variada e bens de consumo que garantissem o
desenvolvimento de um mercado interno, bem como o desenvolvimento da
mão de obra qualificada necessária para essa transformação – através da
educação – além de contribuir para a independência da demanda externa que
ditava o ritmo da economia brasileira.
Outro aspecto de extrema relevância contido nessa agenda eram os
resultados internos que esse processo poderia trazer consigo; a geração de
mão de obra especializada e consumidora, ou seja, o desenvolvimento das
forças produtivas se reproduzirá na construção de uma geografia urbana. A
geração de renda, a necessidade de consumo, de deslocamento, transporte,
moradia, educação e saúde e, não menos importante, a formação dos
sindicatos, que o campo remotamente oferecia, se materializará nas relações
que ocorrerão na cidade e, nesse sentido: “sob cada uma dessas fases do
espaço distinguem-se as fases estruturais da formação do capitalismo no
Brasil” (Moreira, 1985, p. 54).
Planejamento: juntamente com a centralização do poder e as ações de
cunho socioeconômico, encontra-se o planejamento do território. Para poder
executar seu plano de independência econômica e desenvolvimento social-
industrial, era necessário conhecer o território para poder planejar, ampliar e
manter o controle das ações do Estado. Nesse sentido, na gestão de Vargas,
primeiramente nasceu o Instituto Nacional de Estatística (1934), que
posteriormente transformou-se no Conselho Nacional de Estatística.
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Esse órgão tinha como objetivo maior coordenar todas as atividades
estatísticas das diversas esferas administrativas. Da fusão dos dois órgãos, o
Instituto Nacional de Estatística e o Conselho Nacional de Estatística, nasceu o
I.B.G.E. – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1937. Em 1967, ele
passou ao status de fundação. Retrocedendo um pouco mais na cronologia dos
acontecimentos, de acordo com o próprio órgão:
Durante o período imperial, o único órgão com atividades exclusivamente estatísticas era a Diretoria Geral de Estatística, criada em 1871. Com o advento da República, o governo sentiu necessidade de ampliar essas atividades, principalmente depois da implantação do registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos.
Com o passar do tempo, o órgão responsável pelas estatísticas no Brasil mudou de nome e de funções algumas vezes até 1934, quando foi extinto o Departamento Nacional de Estatística, cujas atribuições passaram aos ministérios competentes.
A carência de um órgão capacitado a articular e coordenar as pesquisas estatísticas, unificando a ação dos serviços especializados em funcionamento no País, favoreceu a criação, em 1934, do Instituto Nacional de Estatística – INE, que iniciou suas atividades em 29 de maio de 1936. No ano seguinte, foi instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao INE, que passou a se chamar, então, Instituto Nacional Brasileiro de Geografia e Estatística.
Desde então, o IBGE cumpre sua missão: identifica e analisa o território, conta a população, mostra como a economia evolui através do trabalho e da produção das pessoas, revelando ainda como elas vivem.5
No contexto que nos interessa, embora o poder continuasse nas mãos de
uma minoria elitista e centralizadora, de mentalidade latifundiária e oligárquica,
o país precisava se atualizar em vários setores. Esse Brasil, em vias de
desenvolvimento, tinha nas mãos de seu líder um ambicioso projeto
modernizador que precisava “dispor de informações confiáveis e conhecer
melhor o território nacional do ponto de vista geográfico”.6 Assim se consolidou
5 Fonte: www.ibge.gov.br. Acessado em 15/01/2014.
6 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC. Site:
www.cpdoc.fgv.br/ A Era Vargas: dos anos 20 a 1945 – Diretrizes do Estado Novo (1937-1945)> Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística acessado em 09/12/2013.
http://www.ibge.gov.br/http://www.cpdoc.fgv.br/
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o órgão que posteriormente norteou e revelou o território dos contrastes, do
urbano e do rural: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.7
É inegável o reconhecimento entre especialistas a respeito do elevado
grau de importância que Vargas teve sobre o processo de transição de um país
agrário e escravista para um país urbano e assalariado. O Brasil em movimento
precisava conhecer, identificar e planejar para se desenvolver. O processo de
industrialização pelo qual o país passou, sobretudo na Região Sudeste, trouxe
reflexos no território de forma a demandar um olhar mais atento aos aspectos
da ocupação humana e econômica e, junto disso, a necessidade de ordenar
todo esse movimento.
Nesse sentido, o quadro8 apresentado a seguir contribui para uma leitura
mais plena desses fatos, à medida que representa o recorte do período
discutido e permite outras possibilidades de reflexão:
ÍNDICES ANUAIS DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL BRASILEIRA (base: 1939=100)
Setor 1921 1925 1930 1935 1938 Têxtil 22.5 33.6 32.6 63.8 86.0
Fumo 42.7 66.4 71.1 85.0 123.8
Química 19.2 27.1 42.6 64.8 103.6
Alimentos 52.4 61.8 80.0 92.9 96.7
Cimentos - - 12.5 52.4 88.5
Siderúrgico 7.1 14.1 22.6 50.2 81.6
Pneus - - 1.0 17.0 65.0
Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. 2 ed. rev. e atual. do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Adaptado pelo autor.
O quadro apresentado9 foi construído por meio de uma planilha original
do IBGE, composta por 14 setores classificados como a indústria de
transformação – conforme fonte original – que se estendem do fumo ao
cimento, passando por têxtil e siderúrgico, calçados, papel e mobiliário dentre
outros.
7 Fonte: www.ibge.gov.br, link missão: “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento
da sua realidade e ao exercício da cidadania”. Acessado em 09/12/2013. 8 Tabela adaptada do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Acessado
em 23/01/2014. 9 A escolha dos sete setores na lista não é aleatória, mas um entendimento de que representam bem o
contexto da discussão.
http://www.ibge.gov.br/
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A exemplo da leitura anterior, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística tornou-se uma poderosa ferramenta para a organização, controle e
aproveitamento do território nacional. A execução das ações planejadas por
Vargas e sua cúpula dependia do reconhecimento e mapeamento do território.
As palavras do diretor do departamento de Cartografia, em sua apresentação
no XI Congresso Brasileiro de Cartografia em Porto Alegre, reforçam essa
visão:
O Brasil com seus 8.516.000km² precisa de mapas que representam o seu território com a maior fidelidade possível. Ninguém discute mais esta tese. Qualquer planejamento de obra de certo vulto deve ser precedido de um mapa em escala adequada. Digam-no a Cia. Hidro Elétrica do S. Francisco e a Comissão do São Francisco. A Comissão de Valorização de Amazônia poderá testemunhar as dificuldades que está encontrando diante da ausência quase completa de um mapa adequado da Amazônia. (Mattos, 1954)
Vale ainda apontar outra passagem da apresentação do então diretor
Allyrio Huguney de Mattos, expressando sua indignação na insuficiente
produção cartográfica que o Brasil apresentava até o momento do Congresso,
sendo pouco mais dos 1.000.000 km² de mapas do território nacional face os
mais de 8.000.000 de km² que o país apresenta, considerando o fato de ter
sido descoberto há mais de 400 anos:
A secção de Levantamentos Mistos já executou levantamentos em uma área que se aproxima de um milhão de quilômetros quadrados em parte do Nordeste, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, afora as áreas levantadas pelo SGE10, Minas e São Paulo que podem ser avaliadas em mais ou menos 600.000km². Isto tudo em presença dos 8.500.000 km² do Brasil, é muito pouco, e ainda, como grande parte das cartas publicadas do Rio Grande do Sul, Minas e São Paulo já têm mais de 20 anos de idade, já estão rigorosamente obsoletas e necessitam de atualização. Como grande parte dessas cartas foi elaborada por processos antigos e inadequados à época atual, essa atualização importa quase em nova elaboração.
Convenhamos, portanto que, para um país descoberto, há mais de 400 anos e que já completou mais de 120 anos de soberania, isto é pouco mais que nada. (Mattos, 1954)
10
SGE: Serviço Geográfico do Exército.
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32
Em sua fala final, ficou claro o desconhecimento do território que o Brasil
ainda apresentava, sobretudo em relação a outros países numa possível
situação de confronto ou guerra:
Nossa pátria não pode entrar em confronto com certos países que são simples colônias. Por exemplo: A Índia, que até pouco tempo atrás era colônia inglesa, já tinha o seu território quase completamente levantado. Na atualidade o Congo Belga pode servir de exemplo para nele mirarmos. E por último, veja-se como a França está operando na Guiana Francesa e no seu império Colonial-África equatorial e Madagascar – e só há uma conclusão forçada: O Brasil não tem um mapa condigno, porque não se esforça para tê-lo. É um proprietário negligente que não conhece a terra que possui porque, para conhecê-la, é necessário antes de tudo mapeá-la. (Mattos, 1954)
É nessa conjuntura de planejamento, organização e desenvolvimento
nacional que, no Rio de Janeiro, se projetará o compositor que vai utilizar da
linguagem musical para implantar o maior projeto de educação musical e cívico
que se desenvolveu em âmbito nacional até hoje.
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Capítulo 2 – Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas
“Meu primeiro tratado de harmonia foi o mapa do Brasil”
(Heitor Villa-Lobos)
Foi nesse contexto geográfico e histórico do período Vargas 11
(compreendido de 1930 a 1945) que surgiu a figura do maestro brasileiro Heitor
Villa-Lobos com seu projeto de construção da identidade nacional e seu ideal
civilizador através da música, mais precisamente através do Canto Orfeônico.
Primeiramente, é necessário apresentar um pouco sobre o termo
“orfeão” ou “orphéon”: sua origem vem da palavra francesa orphéon por ter
sido uma atividade musical obrigatória nas escolas municipais de Paris; na
prática quer dizer uma performance coral à capella, ou seja, um coral só de
vozes, sem o acompanhamento de instrumentos musicais. Tradicionalmente o
canto orfeônico é uma modalidade de canto coral, em que a prática musical é
de teor essencialmente pedagógico-escolar e moral.
O termo oriundo das escolas francesas de canto refere-se a Orfeu, deus
da mitologia grega, ligado à música e que possuía o dom de gerar comoção
naqueles que o ouviam. A mitologia também explica que, por conta dessa
capacidade de emocionar e mobilizar, o deus grego foi o responsável por ter
conduzido os trácios12 da selvageria à civilização, pois desceu ao inferno para
resgatar sua amada Eurídice 13e lá amansou as massas populares. Dessa
forma, desde então, considera-se o canto orfeônico um instrumento
“civilizatório” e pedagógico à medida que essa arte em grupo, quando se
utilizando as canções corretas, teria o poder de envolver os participantes numa
prática vocal coletiva capaz de disciplinar o comportamento social e cívico.
11
Será convencionado chamar como Período Vargas o período entre 1930 à 1945, já que temos o Estado Novo oficialmente datado a partir de 1937. 12
Orfeu seria originário do povo trácio, mas os gregos o tomaram para ele. Tracio é o nome que se deu a um povo hindu-europeu que habitava a Trácia, Bulgária, Romênia, Moldávia, nordeste da Grécia, Turquia, leste da Sérvia e partes da Macedônia. Viviam em tribos e foram considerados como o povo mais numeroso do mundo à época conhecido. 13
Eurídice era a deusa grega casada com Orfeu; picada por uma serpente ao fugir de um agricultor que a desejava, morreu prematuramente. Orfeu destroçado com sua perda, buscou no canto o consolo pela perda da amada. Desceu ao inferno para tentar ressuscitar Eurídice e para domar as criaturas, fazendo uso do canto com sucesso.
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34
Sabe-se que a música era uma das formas de arte mais cultivadas entre os
egípcios, hindus, chineses e japoneses e, na época da construção das
pirâmides e das esfinges, o Egito tinha um coral de 12 mil vozes e orquestras
de 600 instrumentos. Muitos acreditam que foi graças ao canto durante o
trabalho mais pesado que as pirâmides foram feitas (Andrews, 1952, p. 18).
Nesse sentido, o uso da música com objetivos pedagógicos e políticos,
buscando sensibilizar e ao mesmo tempo educar, poderia despertar
sentimentos de civilidade e pertencimento em grupo, fazendo do canto
orfeônico a prática ideal para a construção de uma identidade nacional.
Também se diferencia do conhecido canto coral pelos aspectos técnicos.
Enquanto o canto orfeônico não exige grandes conhecimentos acadêmicos-
musicais, e tem como principal característica a alfabetização musical coletiva –
por isso se realiza em escolas regulares – o canto coral tem como
diferenciação do orfeônico, desenvolver tecnicamente o aluno, pois este exige
conhecimentos vocais mais apurados, bem como o estudo em escolas
específicas de formação de música, o chamado conservatório musical. Dessa
forma, a homenagem feita a Orfeu14 era uma prática coletiva de canto cujo
objetivo maior, segundo Ávila (2010), “era a difusão de ideologias e ideais de
cunho nacionalista, para reforço do sentimento de nacionalidade”. Ainda
apresentando conceitos sobre a prática orfeônica, cabe outra breve observação
feita por Souza na diferenciação entre canto coral e o canto orfeônico:
Enquanto o modelo orfeônico visa a promoção de valores éticos, morais e cívicos por meio de uma educação musical socializadora, o Canto Coral enfatiza o desenvolvimento artístico e musical, não possuindo uma preocupação cívica tão acentuada. (Souza, 2008, p. 3)
14
Saliba explica: Orfeu foi o famoso personagem da mitologia grega antiga, músico prodigioso, era louvado como celebrante de rituais de exaltação e de êxtase coletivo. Glosado em prosa e verso e largamente disseminado, o orfismo transformou-se quase numa tradição na cultura ocidental. Numa de suas inúmeras e obscuras versões, o orfismo concebia duas almas para os homens, a psyche, espécie de alma visível que desaparecia com a morte, e a alma invisível, eternizada em sucessivas migrações. Era com esta última que Orfeu se comunicava com os homens através da catarse e do êxtase coletivos (1993, pp.128-132).
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35
No Brasil, o canto orfeônico teve sua projeção através das batutas15 do
maestro, músico erudito e compositor Heitor Villa-Lobos; embora ele não tenha
sido o pioneiro nessa prática musical no país, foi através de suas mãos que o
canto orfeônico ganhou dimensões nacionais.
O contato de Villa-Lobos com as escolas europeias musicais na ocasião
de suas incursões pelo velho continente – onde a prática orfeônica era
conhecida e largamente utilizada nas escolas primárias francesas – fez
despertar no maestro o desejo de contribuir na construção de um ideário de
nação e nacionalidade, bem como de “elevar” o Brasil, através da educação, a
estágios superiores de civilização, equiparando-o à Europa. O maestro vinha
se incomodando com a falta de raízes nacionais, de referências tradicionais e
puras na música do país, sobretudo depois de retornar das grandes turnês
europeias:
Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos. Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebi a dolorosa realidade. (Villa-Lobos, 1946, p. 17)
Dono de uma retórica inflamada que muitas vezes soava ufanista, o
maestro buscou na música o veículo de difusão de suas convicções patrióticas
e nacionalistas, como se pode ver a seguir:
Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos.
Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebo a dolorosa realidade.
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Batuta é uma vareta leve de madeira, utilizada por regentes para conduzir orquestras e coros musicais.
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Senti com melancolia que a atmosfera era de indiferença ou de absoluta incompreensão pela música racial, por essa grande música que faz a força das nacionalidades e que representa uma das mais altas aquisições do espírito humano. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 6)
Foi através de seu audacioso projeto de educação musical, no período
do Estado Novo getulista, que o canto orfeônico ganhou visibilidade e
conseguiu ter projeção nacional: “Uma vez implantado na escola regular, seria
possibilitada uma popularização da prática e do conhecimento musical, que
passariam a atingir diversos setores sociais” (Lisboa, 2005, p. 58).
Essa prática educacional que o maestro já vislumbrava para o Brasil vai
encontrar, assim, as condições e o momento ideais para ser difundida no país;
é sobretudo nas capitais e nas cidades mais urbanizadas, em fase de
modernização e crescimento, que as crianças na fase de escolarização – dos
05 aos 19 anos de idade – serão preparadas para a alfabetização musical e
cívica, como mostra o quadro a seguir:
Ano 1920
1940
Curso primário entre 05 a 19 anos
9%
21%
Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p.389-394. Adaptado pelo autor.
Portanto, essa prática só poderia se realizar como movimento
nacionalista e civilizatório – e o projeto de Villa-Lobos só teria sucesso – à
medida que o ensino musical fosse difundido ao maior número de alunos das
escolas públicas nas grandes cidades.
Considerando a época em questão, a educação ainda era voltada para
uma camada restrita da população e, nesse sentido, ao se pensar em escola
pública naquele momento, deve-se fazê-lo tendo em mente uma educação
restrita ainda. De acordo com as pesquisas de Costa (1983) apud Giglioli
(2003), constatou-se o seguinte cenário:
Em 1908 a educação escolarizada no Estado de São Paulo atingia 105.015 indivíduos de uma população estimada em 3.209.160, ou seja, 3;3% da população estava matriculada em algum tipo de escola. Em 1923, a matrícula geral elevou-se a
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360.909; mais do que triplicou, portanto, em relação a 1908, enquanto a população não chegara a duplicar-se. Em 1923, a parcela de matriculados em escolas nos diversos graus era de 7,4% da população total. (Costa, 1983 apud Giglioli, 2003, p. 7)
Sob o Decreto nº 19.890 de 1931, o currículo escolar passou a ter nova
configuração, em que as 12 disciplinas do curso fundamental composto por
cinco séries passam a ter a seguinte disposição:
Ano escolar Disciplinas
1ª série Português, Francês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.
2ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.
3ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho e Música.
4ª série Português, Francês, Inglês, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.
5ª série Português, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.
Fonte: PILETTI, 1990. Adaptado pelo autor.
Numa rápida análise do quadro anterior, é possível constatar que o
ensino de Música estava presente nos três primeiros anos fundamentais da
vida escolar da população. Dessa forma a prática musical era introduzida nos
anos de base da formação da criança, contribuindo para o desenvolvimento
não só musical, mas também cívico do estudante. Essas bases fundadas
foram, com o decorrer dos anos, lapidadas com outras disciplinas. Segundo
Pilleti (1990), ao final do curso fundamental, eram oferecidas alternativas de
grade escolar, que na verdade preparavam o estudante para a futura vida
universitária, de acordo com a área pretendida: 1º) curso jurídico, 2º) cursos de
medicina, odontologia e farmácia, 3º) cursos de engenharia e arquitetura.
Juntamente às reformas educacionais referendadas em 1931 por Getúlio
Vargas, veio a notícia do decreto da obrigatoriedade do ensino do Canto
Orfeônico nas escolas. Destacar o advento “Estado Novo” em todo esse
processo certamente contribuirá para a compreensão do momento nacionalista
pelo qual o país passava na cultura, política e artes em geral, bem como o
papel de Heitor Villa-Lobos e seu projeto musical.
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Alegando o combate ao comunismo, o então presidente Getúlio Vargas
inicia sua política de repressão e censura a seus adversários, na busca pela
centralização do poder. Aproveitando-se dessa situação, Vargas acabou
também por neutralizar seus oponentes, cuidando para que as resistências
políticas ao seu governo fossem aos poucos perdendo forças. Além disso,
disputas políticas em outras regiões do país, como no nordeste e no sul,
também foram sendo neutralizadas, enfraquecendo possíveis focos de
resistência que pudessem atrapalhar a concretização do golpe. Dessa forma,
em 10 de novembro de 1937, o Congresso Nacional foi cercado pela Polícia
Militar e fechado. O rádio, importante novo veículo de comunicação em massa
da época, e que veio a ser um instrumento de grande relevância para a
concretização de uma era nacionalista e de uma política de governo, foi usado
para anunciar que o Estado Novo havia sido instaurado.
Junto com a ditadura do Estado Novo veio também uma nova
Constituição: essencialmente autoritária e centralista, que rompia com as
tradições liberais dos textos constitucionais anteriormente vigentes no país.
Mas, se de um lado, essa nova Constituição do governo Vargas fortalecia o
Estado e ampliava o poder da União no que concerne à ordem econômica e
social, por outro lado, passava a ser um agente promotor de transformações,
concretizando importantes mudanças que não podiam mais serem postergadas
e devem aqui serem ressaltadas. A política social tinha sua bandeira
reformista, já que beneficiava também os trabalhadores, com a criação da
Justiça do Trabalho, o salário mínimo, a jornada de oito horas diárias de
trabalho, férias anuais remuneradas e descanso semanal. Segundo Diniz, em
seu artigo Repensando o Estado Novo:
[...] a despeito de sua heterogeneidade ideológica e política, tinha uma bandeira reformista. Essa bandeira estava relacionada com a temática social, com a questão da igualdade e das liberdades políticas, com o desafio de suprimir as grandes disparidades sociais que marcavam a sociedade brasileira e eliminar as barreiras sociais que tolhiam o desenvolvimento da cidadania política. (Diniz, 1999, p. 22)
Se no Brasil, nesse momento social e político, era instaurado o regime
totalitário, em países da Europa essa condição também começava a tomar
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forma e fazer de países como Alemanha, Itália e Espanha, celeiros de
crueldade e censura, ditando condutas sociais e econômicas em níveis de
extremismos ideológicos, desintegrando qualquer possibilidade de uma
sociedade civil paralela e organizada. Nesses casos, o nacionalismo já
alcançava níveis extremados, a xenofobia fazia parte do processo. Quanto a
esse processo no Brasil, as características mais marcantes e comuns ao
Estado Novo nacional baseavam-se no totalitarismo, militarismo, anti-
liberalismo econômico, unipartidarismo, propaganda governamental e uma
rígida educação. Talvez por conta do processo de formação e construção
histórica do país e de sua formação social, aqui esse modelo radical não tenha
atingido o seu ápice dos níveis sangrentos e devastadores da Europa (nem
teria razões para isso), mas certamente carregava consigo traços fortes e
semelhantes dos modelos europeus. De acordo com Fausto (1994):
[...] a crise mundial aberta em 1929 empurra o Brasil para esse caminho autoritário, já que ela desmonta uma série de pressupostos do capitalismo liberal, que a seu ver, já não era tão liberal, e fornece uma boa justificativa, no plano político, para a crítica à liberdade de expressão, para a crítica ao dissenso, expresso na liberdade partidária, tidos como elementos que conduziriam o país à desordem e ao caos. (Fausto, 1994, p. 19)
Mas, retornando a Villa-Lobos e seu projeto pedagógico-nacionalista, a
conquista desse feito pode ser compreendida nas linhas a seguir, escritas pelo
maestro quando da apresentação do Programa de ensino de música no
departamento de Educação do Distrito Federal:
Nas escolas primárias e mesmo nas secundárias, o que se pretende, sob o ponto de vista estético, não é a formação integral de um músico, mas despertar nos educandos as aptidões naturais, desenvolvê-las, abrindo-lhes horizontes novos e apontando-lhes os institutos superiores de arte, onde é especializada a cultura. Oferecendo-lhes as primeiras noções de arte, proporcionando-lhes audições musicais, cultivando e cultuando os grandes artistas, como figuras de relevo da Humanidade, em todos os tempos. Esse ensino, embora elementar, há de contribuir, poderosamente, para a elevação moral e artística do povo. Assim, pois, as três finalidades distintas obedece a orientação traçada para as escolas do Distrito: a) disciplina; b) civismo; c) educação artística. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 7).
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A organização do maestro diante desse desafio revela suas metas de
colocar o Brasil em outro patamar cultural e educacional. O tripé disciplina,
civismo e educação artística revela, nas palavras do maestro, a capacidade de
organizar e liderar um projeto de dimensões nunca antes imaginadas;
considerando-se as condições culturais, estruturais e educacionais do país,
além das diferenças regionais, das distâncias geográficas e sociais
enfrentadas.
Em 1932, o maestro acabou então por ser incumbido de organizar e
dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA – a qual
tinha por principal missão:
A realização da orientação, do planejamento e do desenvolvimento do estudo da música nas escolas, em todos os níveis. A perspectiva pedagógica da SEMA foi instaurada de acordo com os princípios: disciplina, civismo e educação artística. (Esperidião, 2003, p. 17)
Vale outro parênteses na leitura, para destacar dois importantes
elementos na discussão, disciplina e civismo: dois conceitos importantes na
construção do raciocínio desta pesquisa, já que com a prática deles, a
construção da identidade nacional através da educação musical seria possível
segundo a visão de Villa-Lobos. Se, de acordo com Susan Smith: “music is a
way of articulating the conditions of existence. It is a way of telling stories, of
expressing the way lives are lived and of charting the geography of inequality”,16
então podemos entender o alcance do maestro nacionalista em valorizar e
vivificar nossas raízes, através da assimilação de nosso folclore. E Villa-Lobos
acreditava que por conta dos “poucos séculos da existência do Brasil” ainda
não era compreendida a relevância do canto coletivo na formação dos homens,
sendo este muito mais que apenas uma demonstração de caráter artístico ou
recreativo:
Elas visam tão somente prover o progresso cívico das escolas, pois que nossa gente, talvez em consequência de razões raciais, de clima, de meio [...] ainda não compreende a
16
Tradução nossa: ´´música é uma forma de articulação das condições de existência. É uma forma de contar histórias, de expressar a maneira como a vida é vivida e de traçar, mapear a geografia da desigualdade´´
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importância da disciplina coletiva dos homens.17 (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 8)
Sendo esse trecho escrito pelo próprio maestro, não restam dúvidas de
que suas convicções eram fortes o suficiente para fazer desta oportunidade,
um feito muito maior do que apenas servir a interesses meramente políticos,
como muitos críticos de seu trabalho costumavam apontar.
Observa-se também as facetas do educador, planejador e executor do
gênio musical, que muitas vezes só é lembrado como o compositor excêntrico
e elitista que se aproveitava do folclore brasileiro para se projetar
internacionalmente.
Figura 4: Aula de Canto Orfeônico com Heitor Villa-Lobos
Sendo um homem além de seu tempo, Villa-Lobos considerava a arte
musical muito mais que uma manifestação artística e uma expressão estética
da cultura humana. Ele reconhecia nas artes em geral a possibilidade de se
educar e construir um povo; assim, pelas vias da educação, seria possível
elevá-lo a uma nação unida e consciente de sua identidade e de suas raízes;
também via na prática do canto orfeônico, a chance de se transpor camadas
17
LOBOS, H. V. O ensino popular da música popular no Brasil, p. 12-13. In: PAZ, E. Villa-Lobos e a música popular brasileira.
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sociais, democratizando o acesso à música e despindo-a de elitismos.
Concluindo esse pensamento, seguem as palavras do maestro:
Torna-se também necessária uma explicação do motivo por que um artista já experimentado em sua carreira, material e moralmente feliz, com o seu meio centenário de existência já passado, enverede de surpresa nas atribuições de educador da juventude por intermédio da música, se obrigando a respeitar com a paciência de “resignado” as regras justas e obrigatórias do ensino primário da música, sob sua responsabilidade e orientação. É que sempre me julguei certo, se for útil aos outros. Se todos os artistas formados (que não são muitos) só se ocuparem de fazer arte e não pensarem em quem deve ouvi-la, acabarão as realizações artísticas por não possuírem assistentes, porque os que aprendem pretensiosamente a música nas escolas ou já se julgam também “artistas” e “colegas” autosuficiente não necessitando por conseguinte dos seus “concorrentes”, ou são educados ou instruídos egoisticamente a só apreciarem um determinado estilo, gênero ou autor de músicas. Quanto àqueles que já não possuem nenhuma iniciação musical, já são naturalmente desinteressados e nunca farão o menor esforço de procurar ouvir música, muitas vezes nem sequer pelo rádio. O auditório de concertos é quase sempre formado de elites sociais que, na verdade, e, na maioria da das vezes, não gostam da música e sim do gênero, estilo ou autor que está na moda. É círculo vicioso a vida social da arte da música. Compreendi, por isso, que era preciso que algum músico artista, com absoluta abnegação, sinceridade e coragem, não se importando com as adversidades e empecilhos iniciasse a campanha de catequese da massa popular em favor da formação de uma futura assistência especializada que não precisasse de indumentárias sociais, dos vestidos, de decote afetado, de cartola e casaca, joias e fisionomias circunspectas e que encarasse com seriedade a música da arte ou da subarte, para com ela higienizar a alma e o espírito e se deliciarem. Atualmente, depois deste incrível vendaval que separou, há humanidade, o espírito da alma, eu reio que, como um toque de alvorada, o advento da música nacionalista virá despertar as energias raciais adormecidas [...]
(Villa-Lobos, www.museuvillalobos.org.br. Acessado em 13/12/2013).
Em 1942, conforme o Decreto-Lei nº 4.244, de 09 de abril, as três linh