GEOGRAFIA AGRÁRIA

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GEOGRAFIA AGRÁRIA Especulação imobiliária e turismo : elementos para modificação das práticas dos habitantes da Prainha Branca(Guarujá) Henrique Maciel dos Reis Profº Júlio Cézar Suzuki

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GEOGRAFIA AGRÁRIA Especulação imobiliária e turismo : elementos para modificação das práticas dos habitantes da Prainha Branca(Guarujá) Henrique Maciel dos Reis Profº Júlio Cézar Suzuki

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Problema : O litoral paulista é uma das regiões cuja ocupação colonizadora remonta aos primórdios da história brasileira. Antes disso, comunidades indígenas já habitavam a região. Durante muito tempo, sob a colonização portuguesa, essa área viveu um ostracismo econômico, longe da pujança comercial do nordeste e posteriormente de Minas Gerais. Nem por isso deixou de ser povoada por vilas. Quando São Paulo passou a ser o principal eixo econômico do país, o litoral paulista se tornou região de suma importância para a exportação do café, já possuía uma população com características próprias e estabeleceu uma história interna que acompanhou, por exemplo, a queda da importância do Vale do Paraíba, área que possuía ligações territoriais e econômicas com o litoral norte para dar lugar ao interior do Estado e consolidar o papel estratégico de Santos no cenário mundial do café. O litoral paulista foi ou é abrigo para quilombolas, espaço de reatirculação dos povos indígenas resistentes ao massacre português, para a conformação das comunidades caiçaras, pujante entreposto comercial, área industrial, foi porta de entrada das massas migrantes de italianos, espanhóis e japoneses. Em meio a tanta efervescência histórica e geográfica, nosso litoral carrega consigo as marcas de um processo contraditório de apropriação, ocupação e produção do espaço, colocando frente a frente, às vezes lado a lado, situações de extrema riqueza e extrema pobreza. Situações onde a condição de legalidade(sob a propriedade da terra por exemplo) se sobrepõe à ocupação de fato. A Prainha Branca, pequeno vilarejo, com menos de quinhentos habitantes, localizada no Guarujá, abrigo de uma população ainda tradicional é uma mostra viva disso. Área de proteção ambiental, com solos férteis e grande quantidade de mata atlântica nativa, protegida sob o modelo conservacionista de legislação ecológica, vive a contradição legal de não poder mais fornecer(jurídicamente) os meios típicos de subsistência que a população tem praticado há dois séculos. Terra de pescadores que já não podem mais pescar devido ao esgoto que diariamente a vizinhança urbano-industrial despeja no mar. Terra de moradores que jamais foram donos, que não possuíam títulos de propriedade em cartório, que nunca haviam se preocupado com isso, e que

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agora devem se preocupar com donos que não são moradores, mas apenas proprietários de grandes áreas já desconhecidas, pois estão além de altos muros. Lar de um povo que é fruto de miscigenação étnica e que ainda assim formou uma unidade cultural e um modo de vida, mas hoje luta para que seus jovens não deixem de se assumirem como membros de uma mesma e tradicional comunidade. “Paraíso Artificial” subjetivo de milhares de turistas que anualmente recorrem ao lugar para escapar temporariamente dos símbolos e da lógica da vida urbana, mas que passa a incorporar fortemente os valores dessa vida em função da interação com tais “fugitivos”. Nesse sentido a Prainha Branca vive um intenso dilema : o turismo. Sob as condições atuais, é a única atividade econômica de monta que pode garantir a permanência da população no local. A segunda opção é trabalhar na indústria ou comércio das cidades vizinhas. Vinvendo diretamente voltada para o turismo, a população da Prainha Branca passa a ordenar seu trabalho e seu território em função dele, experimentando as inúmeras consequencias, positivas e negativas, que tal atividade exerce sobre suas vidas. A sociabilidade entre eles e os turistas, entre eles próprios, as relações que os indivíduos estabelecem com sua identidade bem como seu espaço lugar sofrem profundas e constantes transformações, num movimento contínuo difícil de ser explicado, ou mesmo descrito em sua totalidade. Muito se comenta que o turismo na Prainha Branca é um turismo psicotrópico. Turismo de “drogados”, “malucos”, “hippies”, “maconheiros”, etc. De fato, sem recorrer as rotulações do senso comum e/ou preconceitos carregados nas definições anteriores, pode-se constatar através de diversos meios que o consumo de substâncias entorpecentes, lícitas ou ilícitas, é realizado em grande escala pelos veranistas e que isso tem implicações na realidade dos habitantes caiçaras. Mas quem são esses veranistas ? Por que escolheram a Prainha Branca ? Quais são as implicações de suas visitas à Prainha ? Sem a pretensão de, neste trabalho, responder definitivamente a tais perguntas, utilizamos delas para problematizar os fatos procurar entender o que está acontecendo nessa comunidade. Objetivos gerais Este trabalho visa discutir pontos salientados na disciplina de Geografia Agrária, tais como a

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contradição existente entre o regime consuetudinário oficial, na forma da lei, e a territorialização estabelecida pelas populações tradicionais, nesse caso a caiçara, ao longo da história de ocupação e apropriação dos espaços onde vivem, os dilemas e disputas pelos quais passam devido à legislação ambiental que vigora sobre o lugar, às formas de apropriação e exploração econômica da terra existentes, à relação entre o modo de vida das gerações mais antigas e as atuais, bem como o embate que acontece entre os valores da sociedade capitalista moderna e os valores existentes na cultura e práticas dos moradores da prainha branca. Objetivos específicos Nesse sentido procuramos especificamente levantar e analisar aspectos da história da ocupação mais geral do solo, algumas informações sobre a demografia do lugar, as práticas culturais dos habitantes, a utilização econômica da terra e, por isso, o importante desdobramento que influencia retroativamente tais pontos citados : a relação dos moradores de Prainha Branca com o turismo, atividade importante não só do ponto de vista financeiro, mas com fortes repercussões em toda a realidade dessa população caiçara. Procuramos problematizar, uma vez que não foi possível com o trabalho de campo, pormenorizar as relações que os habitantes da Prainha tem com o turistas, principalmente no que tange ao uso de drogas, esboçar elementos que podem servir para traçar um perfil do turista típico da Prainha, bem como traçar contornos de abordagem para uma pesquisa futura sobre o tema. Metodologia Formulamos a base teórica desse levantamento essencialmente através de pesquisa bibliográfica sobre o lugar, buscando encontrar em autores estudados na disciplina balizas que pudessem direcionar nosso olhar sobre a atividade de campo. Desse modo, encontramos em Katia Carolino, Olga Tulik, e André Buzzulini, além do professor Suzuki, autores essenciais como referencia não só sobre o que já se pesquisou sobre a Prainha Branca, mas também quanto a metodologia de entrevista de campo, por exemplo. Através de entrevista semi-dirigida com um morador da comunidade, documentada em uma hora de vídeo, sendo alguns trechos transcritos no presente trabalho, coletando registros fotográficos de determinadas paisagens da área visitada,

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procuramos apresentar evidências que se articulem com nossas interpretações. Compreendemos ainda que o material coletado (fotos e entrevistas) pode contribuir para manter atualizada a pesquisa já realizada sobre a Prainha, bem como ser úteis para outros enfoques de pesquisa que poderiam ser aprofundados em estudos ulteriores.

A Prainha Branca, sua área, sua população, suas práticas A prainha Branca fica localizada no Município de Guarujá, numa península ao norte. O lugar é acessível atravessando a balsa pelo município de Bertioga(concentração urbana cujo acesso é mais fácil para os moradores da Prainha Branca do que a região central do Gurajuá) e em seguida atravessando a pé uma trilha. O local, segundo a legislação vigente, é categorizado como uma Apa Marinha do Litoral Centro, Setor 1, Guaíbe. A posição onde se localiza a Vila Caiçara que visitamos, bem como o recorte de mata atlântica que a cerca é definido segundo lei ambiental : A Área de proteção Ambiental – APA é uma unidade de conservação de uso sustentável, definida no artigo 15 da Lei nº 9985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. É área extensa, com ocupação humana, dotada de atributos naturais ou culturais importantes para a qualidade de vida e bem-estar das populações, tendo como objetivo proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais (artigo 15 da Lei 9985/2000). Conseqüência lógica da peculiar natureza da APA é a necessidade de disciplinar o processo de sua ocupação, regulamentando o exercício das atividades humanas nela exercidas para que sejam preservados e protegidos os atributos naturais ou culturais que motivaram sua instituição, os quais tanto podem estar em terra, quanto no mar e, se neste estiverem, impõe-se sua proteção mediante a disciplina do uso dos recursos marinhos, sendo que o melhor meio para isso é a instituição de uma APA marítima[definição de APA (página 10 do texto ) que define APA e Arie] Foto 1 : Caminho de pedestre da Balsa até a vila de Prainha Branca. Autor : Henrique Reis Devido à sua biodiversidade e aos aspectos culturais que definem a população como membros de uma comunidade tradicional, a área é também uma ARIE- Área de Relevante Interesse Ecológico. Isso significa que, teoricamente, tanto a população(no que tange à sua qualidade de vida e à suas heranças e práticas culturais) quanto os demais elementos naturais (biosfera, solos, e a área

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marinha) tem, na forma da lei, asseguradas sua existência, integridade e preservação, cabendo aos órgãos competentes de proteção garantir essa segurança. A legislação também proíbe o desmatamento no local, o que acarreta em certas dificuldades para a população, em função das formas tradicionais de cultivo das roças. Figura 1 : A Área visitada no trabalho de campo fica na ARIE 11, Ponta da Armação – Fonte : Convocação de Consulta Pública sobre Criação da APA Ambiental Marinha do Litoral Centro e da ARIE(2008) O povoamento dessa região remete há mais de 200 anos conformando o que podemos chamar de população tradicional: (...)expressão que designa um conjunto de populações de pescadores artesanais, pequenos agricultores de subsistência, caiçaras, caipiras, camponeses, extrativistas, pantaneiros e ribeirinhos que fazem uso direto do uso da natureza , através de atividades extrativas e/ ou de agricultura com tecnologia de baixo impacto ao meio, que vivem em remanescentes florestais que são ou podem vir a ser unidades de conservação. (VIANNA, 2008) A comunidade em questão possui características que permitem, sob alguns pontos de vista, ser incluída no conjunto das comunidades caiçaras, ou seja, (definição de comunidade caiçara página 42 do documento sobre comunidades tradicionais : Entende-se por caiçaras aquelas comunidades formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas, de colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos. Os caiçaras têm uma forma de vida baseada em atividades de agricultura itinerante, da pequena pesca, do extrativismo vegetal e do artesanato. Essa cultura se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina. Alguns autores (Mourão,1971; Diegues, 1983) afirmam que as comunidades caiçaras se formaram nos interstícios dos grandes ciclos econômicos do período colonial, fortalecendo-se quando essas atividades voltadas para a exportação entraram em declínio. Sua decadência, em particular no setor agrícola, incentivou as atividades de pesca e coleta em ambientes aquáticos, sobretudo os de água salobra, como estuários e lagunas. No interior do espaço caiçara surgiram cidades como Parati, Santos, São Vicente, Iguape,Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião, Antonina e Paranaguá, as quais em vários momentos da história colonial funcionaram como importantes centros exportadores. As comunidades caiçaras sempre mantiveram com essas cidades, em maior ou menor intensidade, contatos e intercâmbios econômicos e sociais, delas dependendo também

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para o aprovisionamento de bens não produzidos nos sítios e nas praias. Esses contatos se conservaram por via terrestre (caminhos) fluvial e marítima, sobressaindo, do século passado até as primeiras décadas do séc. XX, as chamadas ‘ canoas de voga ’, onde eram transportados produtos agrícolas, peixe seco, aguardente, entre outros.” De fato, pesquisas anteriores(SUZUKI,2009) realizadas especificamente sobre a localidade atestam que a população da Prainha Branca possui uma gama de características caiçaras e, apesar de, as novas gerações do povoado sofrerem um dilema no que concerne a autodeterminação de sua identidade, em função da degradação do modo de vida tradicional devido ao turismo, à necessidade de trabalhar fora da comunidade e aos meios de comunicação ( que promovem valores diferenciados dos valores tradicionais), a população da área ainda busca manter suas raízes identitárias nos festejos, nas práticas religiosas, na medicina tradicional baseada na utilização de plantas e outras atividades(BUZZULINI,2009). Os moradores, frutos da mestiçagem de europeus e índigenas basicamente, permaneceram ao longo de quase dois séculos, vivendo basicamente da pesca e da agricultura de subsistência. Havia intercâmbio e fluxos migratórios com o resto do litoral. O mais reconhecido núcleo de migração para a Prainha Branca foi a ilha de Monte de Trigo pertencente ao município de Ubatuba (TULIK, 1979) : . “meu avô era de Pinciguaba e minha avó era de daqui de perto, não sei se de Camburi; ele era índio Guarani, e ele veio morar aqui em mil oitocentos e poco. Aquela árvore que está ali tem uns 100 anos. Foi meu avô que plantou. Ele veio praqui e teve sete filhos, uma delas era minha mãe. Isso aqui é herança do meu avô, o pai da minha mãe, e dali começou a crescer a comunidade,porque a minha avó tinha muita família, a maior parte da família da minha avó morava no Monte de Trigo, então tem sobrinhos da minha vó, a maioria aqui é uma família, a comunidade aqui é praticamente é uma família, se não é da família é alguém que casou com alguém da família que casou com alguém”(Senhor caiçara da Prainha Branca, 72 anos, mar, 2012) Essa maneira coletiva de viver, baseada no senso de comunidade e no exrativismo passou a sofrer um aceleramento de transformações a partir dos anos 70. O crescimento urbano de Bertioga e Guarujá aumentou a emissão de poluentes, na forma de esgoto, no oceano, o que diminuiu

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consideravelmente a quantidade de pescado coletado pelos moradores da Prainha Branca. As estradas facilitaram o acesso à área, fomentando o exercício do turismo, principal atividade econômica atualmente exercida no local, em detrimento da pesca e do roçado. A eletricidade chega em 1982, alterando um pouco mais (e acrescentando mais elementos contraditórios) a realidade do lugar. A luz elétrica certamente proporcionou facilidades para os moradores, uma vez que permitiu congelar e conservar pescas e outros alimentos, usufruir de iluminação noturna ou ainda ouvir o rádio e assitir TV. A realidade cultural da populção sofreu grandes transformações desde então. Um grande efeito colateral do incentivo ao turismo que o crescimento urbano das cidades vizinhas e o acesso rodoviário proporcionou à prainha branca, foi a especulação imobiliária sobre a área, colocando em risco a garantia da permanência dos caiçaras no local, além de problematizar na mentalidade do caiçara questões territoriais, uma vez que durante quase dois séculos entenderam a terra não como propriedade individual mercadológica, mas como um elemento do seu jeito de viver, algo que não precisava ser cercado nem registrado em cartório, mas como um bem coletivo, e desse modo, problematizou-se, também, a posse de terra : Com a abertura das Rodovias Ariovaldo de Almeida Viana e Padre Manuel da Nóbrega, nos anos 1970, o acesso à Prainha Branca foi facilitado e o turismo passou a crescer vertiginosamente. Enquanto outras comunidades caiçaras já vinham, desde os anos 1950, enfrentando perdas de suas terras e praias, a comunidade da Prainha Branca passou a sofrer com esse tipo de ameaça especialmente a partir da chegada de veranistas e turistas dos grandes centros, pois terceiros passam a ver a construção de um balneário no local como um atrativo. Os especuladores, considerando os caiçaras como simples posseiros, passam a questionar a legalidade não só das terras, como dos terrenos onde se encontram as casas. (BUZZULINI,2009) Outro caso de grilagem bastante conhecido na Prainha Grande, é o da chegada, nos anos 1970, do ex-deputado e advogado Evandro Mesquita (PMDB), residente em São Paulo, que tomou terras dos caiçaras, construiu uma casa de veraneio, cercou toda a propriedade e fechou o acesso da comunidade à Rodovia Ariovaldo de Almeida Viana com a abertura de uma estrada particular, tendo entrado com um pedido de ação possessória na justiça e, segundo relatos, praticado crimes ambientais no local(BUZZULINI, 2009)

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A respeito de Evandro Mesquita, quando indagado sobre a água e a única estrada pela qual um automóvel pode ter acesso à comunidade, nosso entrevistado assim se pronunciou : Ele comprou do marido da minha prima . A minha prima morava aqui e casou com esse que se chama A. esse A. tinha uma terra do pai dele lá então vendeu uma areazinha da casa mais ou menos isso aqui e ele tomou conta de tudo, se fez dono de tudo até na serra, cercou a estrada dele é... tem portão ali inclusive a cachoeira, expulsou muita gente, expulsou gente com mais de 70 anos daqui. Ele comprou um pedacinho aqui e se fez dono de tudo. Ele se fez dono e cercou a água. Água é um direito universal, nós temos cento e tanto anos aqui bebendo essa água daqui, não era canalizada na época, pode ver que ali tem um riacho, passa água, é uma fonte, mas a água vem da serra, acontece que ele cercou ali e para entrar tem que ter uma pessoa específica, ele simplesmente se fez dono(...) a água vem lá da serra, mas ele pôs um cano, tem uma caixa-d'água dentro da propriedade dele e é o que fornece água pra gente, se ele cismar de cortar água, amanhã fica todo mundo sem água, ele fez a estrada, ele deixa usar só quando alguém está doente” (Senhor caiçara da Prainha Branca, 72 anos, mar, 2012) Figura 2 : O Círculo vermelho mostra a propriedade de Evandro Mesquita. Ao norte, as demais residências da Prainha Branca. Fonte : Googleearth, visitado em 26/05/2012 Ainda segundo nosso entrevistado, são raros os moradores originais que possuem registro oficial da posse de terra. Desse modo, a pesca e a plantação para subsistência já não configuram mais as formas predominantes de exercício econômico com vista a reprodução da vida. Pelo contrário : são práticas secundárias, realizadas muito mais como forma de lazer(no caso da pesca) ou como maneira de complementar ao trabalho efetivamente executado pelos moradores. Segundo o caiçara que entgrevistamos, não passa de cinco o número de pescadores da “velha guarda”, ou seja, aqueles fazem da pescaria a forma principal de atividade econômica, pescando para consumo próprio ou para vender no mercado. Ainda assim, conseguimos extrair do entrevistado que um deles exercm outras profissão(fiscal ambiental) alé de ser um pescador tradicional. O trabalho na Prainha Branca, portanto, possui uma caracterização bem distinta da que existia há 30 anos ou mais. Atualmente boa parte da população possui empregos, principalmente no setor de serviços, nas vizinhaças urbanas, fazendo com que o lugar ganhe traços de bairrodormitório.

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De fato, foi notável, durante nossa visita(numa quarta-feira útil) a constatação de que comunidade estava esvaziada de adultos economicamente ativos : “uma grande parte das pessoas trabalha fora. Aqui tem gente que trabalha em Santos. O marido da filha da minha prima sai todo dia cinco horas da manhã para trabalhar no mercado de peixe em Santos e faz duas horas daqui lá. Tem que subir o morro de noite e você pode ver que não é iluminado”(Senhor caiçara da Prainha Branca, 72 anos, mar, 2012) A outra atividade econômica que absorve um número considerável de pessoas na comunidade, e que inquestionavelmente interfere, de uma maneira ou de outra, na vida de toda a população é o turismo. A paisagem da vila é toda marcada por áreas de campings e pousadas. A prática do camping já foi proibida, veio a ser permitida um tempo depois e, segundo as informações captadas em nossa entrevista, é pauta de contantes disputas entre as sociedades de moradores do bairro e dos donos de terrenos de camping. A comunidade da Prainha Branca possui menos de 500 habitantes e na alta temporada do turismo passa a contar com mais de 5000. Essa diferença numérica sugere o profundo impacto na realidade ambiental e social que o turismo exerce sobre a comunidade. Ao realizar a visita de campo, procurei apontar meu foco de observação nesse impacto. Um aspecto que me surpreendeu e que pretendo discutir brevemente, através de muitas deduções não completamente comprováveis devido ao pequeno levantamento de informações captáveis em uma única visita de campo é a segmentação sócio-econômica do turista que procura a Prainha Branca para o veraneio, bem como o tipo específico de turismo realizado. Durante a visita encontrei elementos na paisagem que, associados à entrevista de campo e o material bibliográfico levantado sobre a Prainha, me levam a formular a hipótese de que o visitante típico da comunidade, na alta temporada, é um jovem urbano da periferia da Região Metropolitana de São Paulo, motivado a procurar o local devido aos seus atrativos paisagísticos, à acessibilidade financeira que a prática do camping promove, e a adaptação da comunidade em realção ao uso de drogas. Longe de estabeler um julgamento moral quanto a essa última motivação, procuro apenas compreender e levantar aspectos da realidade do local que me levaram a formular tal hipotése. Segundo Buzzulini:

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Os impactos mais visíveis do turismo nos valores dessa sociedade se dão, sem dúvidas, entre os jovens locais, que se integram aos turistas, e que têm seus costumes influenciados pelos de uma sociedade pautada no consumo. Esses jovens, maissuscetíveis a buscar e experimentar o que é novidade, incorporam valores modernos em detrimento de valores tradicionais de sua população, além da introdução de drogas e bebidas alcoólicas que, há duas décadas, não existiam no local, hoje, conhecido e procurado por alguns turistas devido à sua fama relacionada às drogas: principalmente maconha. (BUZZULINI,2009). A incorporação dos valores não tradicionais, principalmente no que se refere ao uso de substâncias entorpecentes, pôde ser verificada não através do diálogo com uma amostra considerável da juventude do local, mas através da paisagem, na observação dos imóveis comerciais na Prainha. A Foto 2 apresenta um banheiro de um bar muito próximo à orla da praia, cujos banheiros apresentam, para além da comum divisão dos sexos, nas formas coloquiais “homi” e “muié”, um terceiro, com a inscrição “PT”, gíria típica da periferia paulistana que signfica “Perda Total”, ou seja, passar mal, o ato de regurgitar ou exerecer outras necessidades fisiólogicas, em função do excesso de consumo de álcool essencialmente, mas também de outras substâncias. Foto 2 : Banheiro de um estabelecimento comercial local. Autor : Henrique Reis. Constata-se assim, nesse caso, a criação de uma infra-estrutura relacionada ao consumo excessivo de entorpecentes. Longe de querer sugerir uma “permissividade” do comerciante dono do estabelecimento em relação às drogas, procuro salientar uma adataptação, a interação contraditória dele com o turista, uma vez que a venda de bebidas certamente é uma forte fonte de inversão em dinheiro, mas que um cliente excessivamente embriagado pode se tornar um desagradável inconveniente. Os trabalhos de Buzzulini e Suzuki, apresentaram a contradição existente no que tange a relação do caiçara com o tipo de turista aqui tratado : Isso é muito comum, o pessoal conhece a Prainha como praia de drogado. Falaram pra nós assim, que em São Paulo tinha uma faixa falando assim da Prainha Branca, falando que era um lugar de droga, entendeu? Isso é comum pra gente, o pessoal vem mesmo pra fumar maconha, pra beber entendeu? Eu acho que isso aí é comum, mais acho que eles poderiam ter mais respeito, porque aqui é uma comunidade, e no mais todo mundo é família, né. E tem aqui na Prainha, eu vou falar que

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aqui alguns num fumam, não todos, to falando, a metade, usam drogas, bebem, entendeu? Acho que a maioria bebe e a maioria fuma, dos moradores daqui. Alguns usam também droga, acho que eles mesmo poderiam dar o respeito, pro turista, entendeu. Porque o turista ver, e sabe que é o cara que é da comunidade, ver e fuma ali, não tem como chamar atenção, entendeu? Eu acho que é isso, a comunidade poderia dar mais respeito pro turista, entendeu, por que o turista não tem respeito a nós porque a comunidade não dar, entendeu. Se usa na frente dele, ele vai querer usar também. É... pô como você pode chamar minha atenção se você também usa. Então eu acho assim (...) (Jovem caiçara da Prainha Branca, set., 2008) (BUZZULINI,2009). O depoimento apresentado nesses dois trabalhos apresenta aspectos da tensão estabelecida entre essa segmentação da atividade turística, pois é reconhecido que um grande número de pessoas vão para a Prainha para utilizar abundantemente substâncias químicas, legais e ilegais, com mais tranquilidade e a incorporação dessa prática por alguns moradores(“a metade” segundo o jovem caiçara) se tornou um fato comum. Vale rassaltar que embora haja a compreensão e incorporação dessas práticas, muitas pessoas vivem essa realidade de maneira meramente funcional aproveitando-se dessa cultura, outros são terminantemente contra : “Na temporada vem muita gente, rola muita droga e muita gente vem pra vender também e não tá escrito na testa. Às vezes agente pode até alugar prum cara desses. Quando eu desconfio num alugo mais. Às veezes o cara vem e quando você vê o cara alugar e ficar saindo e entrando muito é porque alguma coisa errada tá, às vezes ele esconde, mas eu não deixo.”(Senhor caiçara da Prainha Branca, 72 anos, mar, 2012) FOTO 3 : O nome da pousada(“Larica's Point”) associa um estrangeirismo a uma gíria típica de usuários de maconha. Foto 5 : Pichações nos muros da Prainha. Autor : Henrique Reis. A Associação de alguns dados da realidade com outros elementos essencialmente visuais adquiridos no campo, me fazem crer que um número considerável de veranistas que frenquentam a Prainha Branca, pertecem a camadas mais pobres, provavelmente classe C e D, da população metropolitana de São Paulo. Alguns dos fatores poderiam ser levantados através de mais visitas de campo e de uma coleta mais sistemática de informações(através de entrevistas que determinariam o perfil sócio-econômico dos turistas, por exemplo), outros já são dados : a proximidade e facilidade

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de locomação da região metropolitana de São Paulo para a Prainha Branca, os preços relativamente acessíveis de estadia, mesmo na alta temporada, a possibilidade do turista metropolitano fazer visitas rápidas, de apenas um dia de duração. Embora essas informações sejam importantes para apoiar a verficação da hipótese de que uma parcela jovem e pobre da periferia de São Paulo conforma o grande público visitante da Prainha Branca, infelizmente elas não puderam ser consideradas em toda sua complexidade de articulações e o elemento que mais contribuiu para essa formulação foi observar o grande número de pichações nos muros da área, boa parte delas indicando a procedência dos grupos praticantes do hábito de escrever em muros com tinta spray(Foto 5). Entre outras localidades, é possível facilmente identificar inscrições de Osasco, Guarulhos, Diadema, além de quatro zonas (Norte, Sul, Leste e Oeste) capital. Desse modo, a integração desses grupos com os habitantes da Prainha branca, se realiza sob determinados vieses, como a já citada relação com as drogas. Não é o caso de sugerir uma “periferização” da Prainha Branca, mas uma articulação de trocas culturais marcadas pela integração e incorporação de valores dos jovens da periferia paulistana pelo povo, e mais especificamente os jovens, caiçara. O caso do banheiro é um pequeno exemplo disso. As práticas sociais, comuns entre os turistas, corroboram para a construção de novas formas dos jovens caiçaras negarem a sua própria origem, como população tradicional, marcadamente camponesa, na qual estava presente, sobretudo, a busca pela fartura, fruto do trabalho na terra e no mar. Muito distante da sociedade moderna, pautada no consumo, nas novas tecnologias, como também nas formas diferenciadas de lidar com o outro.(SUZUKI, 2009) Desse modo, entendemos que os habitantes da região metropolitana procuram a Prainha em suas férias não só para aproveitar das belezas da paisagem natural, mas também para se livrar do policiamento comum em seus bairros, associando práticas turísticas frequentes como o banhismo e até mesmo o surf com o grande consumo de entorpecentes. Nosso entrevistado, sugeriu que até mesmo o cricuito do tráfico de drogas passa a funcionar sazonalmente, durante a alta temporada, no local, ou seja, em função da demanda, esse comércio informal compreenderia que vale a pena

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deslocar sua base de operações, ou criar uma nova, para a Prainha. Evidentemente não podemos provar tal conjectura, mas a aceitamos como completamente provável. Considerações Finais A história da desarticulação do modo de vida caiçara, limitando as formas tradicionais de subsistência está ligada com a urbanização do litoral paulista(e mais essencialmente Bertioga e Guarujá) e com a especulação imobiliária. Tal fenômeno acrescentou mais características para a Prainha Branca : Ponto Turístico e Bairro Dormitório. Bairro Dormitório porque grande parte dos moradores acordam diariamente para ir trabalhar no comércio e na indústria em centros urbanos localizados na baixada santista, voltando somente à noite para descanço em suas residências. Enquanto localidade de visita de veranistas, quase toda a relação que os habitantes da Prainha tem com seu território sofre algum tipo de influência dessa atividade, o turismo : prestação de serviços, venda de alimentos e bebidas, aluguel de áreas para camping ou quartos em pousadas. Esse tipo de aluguel modifica profundamente a relação entre o morador e seu espaço lugar, pois porções de terras que outrora eram dedicadas à agricultura de subsistência, agora fazem parte do espaço dedicado à pousada, sob pagamento, dos turistas. A interação dos moradores(sobretudo os mais jovens) com os visitantes sazonais é marcada por contradições. Embora seja a principal forma de renda dos moradores, as constantes visitas dessas pessoas tornam-se elementos de modificações no ritmo de vida dos caiçaras, de suas formas autodeterminação identitária e de socialização entre si. Valores ligados à sociedade capitalista moderna são rapidamente incorporados não só pelos s mais jovens, mas assumidas também pelos comerciantes que, na ânsia de atender o seu público consumidor, incorpora no comércio e na de prestação de serviços aos os visitantes, elementos estrangeiros de vocabulário e cultura. Nesse sentido é bastante provável que grande parte dos veranistas que vão passar a alta temporada na Prainha, sejam pessoas das periferias da região metropolitana de São Paulo, pessoas que por motivos que não podem ser inteiramente discutidos aqui (como a proximidade de seus lares dos centros de tráfico de drogas, a pauperização das

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periferias, a falta de outra opções de lazer, entre outros) estão habituadas com o consumo de álcool e outras substâncias psicotrópicas. Levantamos a hipótese e buscamos apresentar elementos fatuais(fotografias e entrevistas essencialmente) de que a população da prainha aprendeu a conviver com esses hábitos, seja de maneira formal, para comportar o possível conforto e tranquilidade de seus turistas, seja os incorporando em seu cotidiano. Concluímos então que há uma tensão não resolvida entre os habitantes da Prainha e o hábito, trazido de fora, de utilização de substâncias químicas alteradoras de estados da mente. Tensão vivida de forma semelhante por pessoas pobres de todo o planeta, quando viciada em drogas, mas que ganha contornos particulares na relação com turismo de veraneio, pois existe uma compreensão externa de que o lugar é mais permissivo quanto ao hábito problematizado nesse relatório de campo. Seria interessante efetuar mais investigações, coletar mais entrevistas de moradores, entrevistar turistas, traçar seu perfil sócio-econômico, bem como levantar as motivações que os fazem escolher a Prainha Branca como seu espaço de lazer anual. É impossível tirar conclusões enfáticas, mas acreditamos que foi possível traçar os contornos do movimento que tornou a especulação imobiliária e o turismo tão influentes na Prainha, bem como analisar a relação dos moradores com os turistas no tocante ao uso de drogas e algumas das consequencias e conformações sociais que são estabelecidas a partir disso. Referência Bibliográfica : BUZZULINI, André. Jovens Caiçaras na construção de sua identidade na Prainha Branca(Guarujá). Trabalho apresentado no V Encontro de Grupos de Pesquisa “AGRICULTURA DESENVOLVIMENTO REGIONAL E TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS” DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S.V(Org). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. São Paulo : NUPAUB-USP/MMA,2000 KAROLINO, Kátia. Direitos territoriais das comunidades tradicionais: um estudo de caso da comunidade da Ilha Monte de Trigo São Sebastião (SP). Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo 2010. SUZUKI, Júlio César; LOPES, Alberto Pereira. Vida do jovem caiçara na Prainha Branca: modo de vida e representações sociais. Trabalho apresentado no XII EGAL, em Montevidéu, 2009.

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