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    ronteiras

    da

    Narrativa

    GR RD GENETTE

    Caso

    se aceite,

    por

    conveno, permanecer no domnio

    da expresso literria, definir-se- sem dificuldade a nar-

    rativa como a representao de um acontecimento ou

    de uma srie de acontecimentos, reais ou fictcios,

    por

    meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem

    escrita.

    Esta

    definio positiva

    (e

    corrente tem o m-

    rito da evidncia e da simplicidade; seu inconveniente

    principal talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-

    nos na evidncia, mascarar a nossos olhos aquilo que

    precisamente, no

    ser

    mesmo

    da

    narrativa, constitui

    pro-

    blema

    e dificuldade, apagando de certo modo as fron-

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    11,1

    ' diante de um enunciado como A marquesa saiu

    as cmco horas. Sabe-se quanto, sob formas diversas

    e muitas vezes contraditrias, a literatura moderna viveu

    e ilustrou esse espanto fecundo, como se quis e se fez,

    em seu fundo mesmo, interrogao, abalamento, con-

    testao do propsito narrativo. Esta questo falsamente

    por que a narrativa?

    - poderia pelo menos

    mcitar-nos a pesquisar,

    ou

    mais simplesmente a reco-

    nhecer os limites de certo modo negativos da narrativa,

    a considerar os principais jogos de oposies por meio

    dos quais a narrativa se define, se constitui em face

    das diversas formas da no-narrativa.

    Diegesis e mimesis

    Uma primeira oposio aquela indicada por Aristte-

    les em algumas frases rpidas da Potica. Para Aris-

    tteles, a narrativa (

    diegesis) um

    dos dois modos da

    imitao potica

    mimesis),

    o outro sendo a renresen-

    tao direta dos acontecimentos por atares e

    agindo diante do pblico.

    1

    Aqui instaura-se a distino

    clssica entre poesia narrativa e poesia dramtica. Esta

    distino estava j esboada por Plato no livro da

    Repblica, com duas diferenas, a saber que, por um

    lado, Scrates nega ali narrativa a qualidade (isto ,

    para ele, o defeito) da imitao, e que por outro lado

    ele toma em considerao aspectos de representao di-

    reta (dilogos) que podem comportar um poema no

    dramtico como os de Homero. H portanto, nas ori-

    gens da tradio clssica, .duas parties aparentemente

    em que a narrativa opor--se-ia imitao,

    aqm como sua anttese, e l como

    um

    dos seus modos.

    Para

    Plato, o domnio daquilo que ele chama

    lexis

    (ou maneira de dizer, por oposio a

    logos,

    que designa

    o .que

    dito) divide-se teoricamente

    em

    imitao pro-

    pnamente dita) mimesis) e simples narrativa diegesis).

    Por

    simples narrativa, Plato compreende tudo o que o

    1448 a

    56

    poeta

    narra

    falando em seu prprio nome, sem pro-

    curar fazer crer que

    um outro que fala : assim,

    quando Homero no canto I da Ilada nos diz a pro-

    psito de Criss: ele tinha vindo s belas naves dos

    Aqueus,

    para

    reaver

    sua

    filha, .trazendo um imenso res-

    gate e segurando, sobre seu basto de ouro, as fitas

    do arqueiro Apolo; e ele suplicava a todos os Aqueus,

    mas sobretudo aos dois filhos de Atreu, bons estrate-

    gistas.

    Ao

    contrrio, a imitao consiste, a partir do

    verso seguinte, no fato de Homero fazer falar o prprio

    Criss, ou, segundo Plato, de falar tingindo ser Criss,

    e esforando-se para nos

    dar

    na medida

    do

    possvel

    a iluso de que no Homero que fala, mas sim o

    velho, sacerdote de Apolo. Eis o texto do discurso de

    Criss: tridas e vs tambm, Aqueus de boas gre-

    vas, possam os deuses, habitantes do Olimpo, conceder-

    vos a destruio

    da

    cidade de Pramo, e depois vosso

    retorno sem ferimentos a vossos lares Mas a mim, res-

    titu minha filha E para isso, .aceitai o resgate que

    vedes aqui, por considerao ao filho de Zeus, ao

    ar -

    queiro Apolo. Ora, ajunta Plato, Homero teria po-

    .dido igualmente prosseguir sua histria sob uma forma

    puramente narrativa, narrando as palavras de Criss

    em vez de reproduzi-las, o que, para a mesma passagem,

    teria dado, em estilo indireto e prosa:

    0

    sacerdote

    tendo chegado pediu aos deuses que lhes concedessem

    a tomada de Tria e os preservassem de morrer

    em

    com-

    bate, e pediu aos Gregos que lhe devolvessem a filha

    em troca de um resgate, e por respeito ao deus.

    Esta

    diviso terica, que ope, no interior da dico potica,

    os dois modos puros e heterogneos

    da

    narrativa e

    da

    imitao, conduz e funda uma classificao prpria dos

    gneros, que compreende os dois modos puros narra-

    tivo, representado pelo antigo ditirambo, mimtico, re-

    presentado pelo teatro), mais um modo misto,

    1

    u, mais

    precisamente, alternado, que o da epopia, como se

    acaba de ver pelo exemplo

    da

    Ilada

    393

    a

    li ada I

    12-16 . traduo francesa

    de

    Mazon.

    393

    e traduo francesa

    de

    Chambry.

    Anlise Estrutural -

    17

    57

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    . 1,

    A classificao de Aristteles

    primeira vista

    pois que reduz toda a poesia

    a dtsyngumdo somente dois modos imitativos,

    o que e o

    _que Plato

    nomeia propriamente imi-

    e . o que Aristteles denomina, como

    dreges1s.

    Por

    outro lado, Aristteles parece iden-

    plenamente no s, como Pito,

    0

    anero dram-

    ao_ modo imitativo, mas tambm, sem

    levar

    em

    con-

    stderaao

    em

    pr ncpio seu carter misto, o gnero pico

    ao modo narrativo puro.

    Esta

    reduo pode prender-se

    ao fato de que Aristteles define, mais estritamente do

    que Plato, o modo imitativo pelas condies cnicas

    da

    representao dramtica. Ela pode justificar-se igual-

    pelo fat? de que obra pica, qualquer que seja

    a. parte matenal dos d1alogos ou discursos em estilo

    d1reto, e mesmo se esta parte sobrepuja

    a

    da narrativa

    essencialmente narrativa visto que os

    gos sao a necessariamente enquadrados e conduzidos

    pe as partes narrativas que constituem, no sentido pr-

    pno

    o

    fundo,

    ou, caso se queira, a trama de seu dis-

    curso:

    J?e

    resto, Aristteles reconhece em Homero esta

    sobre os outros poetas picos, que ele in-

    tervem pessoalmente o menos possvel em seu poema

    colocando na maior parte das vezes em cena

    caracterizados, conforme o papel do poeta, que

    o Desse modo, ele parece bem

    reconhecer Implicitamente o carter imitativo dos di-

    I_ol?os homricos, e portanto o carter misto da dico

    narrativa em seu fundo, mas dramtica na sua

    mawr extenso.

    A diferena entre as classificaes de Plato e Aris-

    tteles reduz-se assim a uma simples variante de ter-

    mos: essas duas classificaes concordam bem sobre

    0

    ess_encial .dizer, a oposio do dramtico e do nar-

    rativo, o pnme1ro sendo considerado pelos dois filsofos

    como mats plenamente imitativo que o segundo: acordo

    sobre o fato, de qualquer modo sublinhado pelo

    desa-

    cordo sobre os valores, pois Plato condena os poetas

    1460

    o

    258

    enquanto imitadores, a comear pelos dramaturgos, e

    sem exceo de Homero, julgado ainda demasiado mi-

    mtico

    para um

    poeta narrativo, s admitindo

    na

    Cidade

    um poeta ideal cuja dico austera seria to pouco

    mimtica quanto possvel; enquanto que Aristteles, si-

    metricamente, coloca a tragdia acima

    da

    epopia, e

    louva em Homero tudo o que aproxima

    sua

    escritura

    da

    dico dramtica. Os dois sistemas so portanto idn-

    ticos, com a nica reserva de uma inverso de valores:

    para

    Plato como

    para

    Aristteles, a narrativa um

    modo enfraquecido, atenuado da representao literria

    - e percebe-se mal,

    primeira vista, o que poderia

    faz-los mudar de opinio.

    E' necessrio entretanto introduzir aqui uma obser-

    vao com a qual nem Plato nem Aristteles parecem

    .ter-se preocupado, e que restituir

    narrativa todo o

    seu valor e toda a

    sua

    importncia. A imitao direta,

    tal como funciona em cena, consiste em gestos e falas.

    Enquanto que constituda por gestos, ela pode eviden-

    temente representar aes, mas escapa aqui ao plano

    Jingstico, que

    aquele onde se exerce a atividade es-

    pecfica do poeta. Enquanto que constituda por falas,

    discursos emitidos por personagens ( evidente que em

    uma obra narrativa a parte de imitao reduz-se a isso),

    ela no rigorosamente falando representativa, pois que

    se limita a reproduzir tal e qual

    um

    discurso real ou

    fictcio. Pode-se dizer que os versos

    2

    a

    6

    da

    Ilada

    citados mais acima, nos do uma representao verbal

    dos atos de Criss, mas no se pode dizer a mesma

    coisa dos cinco versos seguintes: eles no

    representam

    o discurso de Criss: trata-se de

    um

    discurso realmente

    pronunciado, eles o

    repetem

    literalmente, e caso se trate

    de

    um

    discurso fictcio, eles o

    constituem

    do mesmo

    modo literalmente; nos dois casos, o trabalho da repre-

    sentao

    nulo, nos dois casos, os cinco versos de

    Homero se confundem rigorosamente com o discurso de

    Criss: no acontece evidenremente a mesma coisa com

    os cinco versos narrativos que precedem, e que no se

    confundem de nenhuma maneira com os a tos de Criss:

    17*

    259

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    A palavra co diz William James, no morde. Caso

    se chame imitao potica o fato de representar por

    meios verbais uma realidade no verbal, e excepcio-

    nalmente, verbal como se chama imitao pictural o

    fato de representar por meios picturais uma realidade

    no-pictural,

    e

    excepcionalmente, pictural), preciso ad-

    mitir que a imitao encontra-se nos cinco versos nar-

    rativos, e no se encontra de modo nenhum nos cinco

    versos dramticos, que consistem simplesmente na in-

    terpolao, ao meio de um texto representando acon-

    tecimentos, de um outro texto diretamente tomado a es-

    ses acontecimentos: como se

    um

    pintor holands do

    sculo XVII, numa antecipao de certos procedimentos

    modernos, tivesse colocado no meio de uma natureza

    morta no a pintura de concha de ostra, mas uma con-

    cha de ostra verdadeira. Esta comparao simplista foi

    introduzida aqui

    para

    indicar claramente o carter pro-

    fundamente heterogneo de um modo de expresso ao

    qual nos habituamos tanto, que no percebemos as mais

    abruptas modificaes de registro. A narrativa mista

    segundo Plato, quer dizer, o modo de relao mais

    corrente e mais universal, imita alternativamente, sobre

    o mesmo tom e, como diria Michaux, sem mesmo ver

    a diferena, uma matria no verbal que ela deve efe-

    tivamente representar o melhor que puder, e uma ma-

    tria verbal que se representa por si mesma, e que se

    contenta o mais das vezes

    em

    citar

    Caso se trate de

    uma narrativa histrica rigorosamente fiel, o historiador-

    narrador deve ser muito sensvel mudana de regime,

    quando passa do esforo narrativo

    na

    relao dos atos

    realizados transcrio mecnica das falas pronuncia-

    das, mas quando se trata de. uma narrati va parcial ou

    completamente fictcia, o trabalho .da fico, que se

    exerce igualmente sobre contedos verbais e no verbais,

    tem sem dvida por efeito mascarar a diferena que

    separa os dois .tipos de imitao, dos quais um est,

    se posso diz-lo, em prise direta, enquanto que o outro

    faz intervir

    um

    sistema de engrenagens mais complexo.

    Admitindo o que entretanto difcil) que imaginar

    260

    atos e imaginar falas procede .da mesma operao men-

    tal, dizer esses atos e dizer essas falas constituem

    duas operaes verbais muito diferentes.

    Ou

    antes,

    s

    a primeira constitui uma verdadeira operao, um ato

    de dico no sentido platnico, comportando uma srie

    de transposies e equivalncias, e uma srie de esco-

    lhas inevitveis entre os elementos da

    histria

    a serem

    retidos e os elementos a serem abandonados, entre os

    diversos pontos de vista possveis, etc., - todas as ope-

    raes evidentemente ausentes quando o poeta ou o his-

    toriador se limita a transcrever um discurso. Pode-se

    certamente deve-se mesmo) contestar esta distino en-

    tre o ato de representao mental e o ato de represen-

    tao verbal - ent re o logos e a lexis - mas isto

    significa contestar a prpria teoria da imitao, que

    concebe a fico potica como um simulacro da

    dade, to transcendente ao discurso que o institui quan-

    to o acontecimento histrico exterior ao discurso do

    historiador ou a paisagem representada

    no

    quadro: teo-

    ria que no faz nenhuma diferena entre fico e re-

    presentao, o objeto da fico se reduzindo por ela a

    um real fingido e que espera ser representado. Ora,

    resulta que nesta perspectiva a noo mesmo de imita-

    o sobre o plano

    da lexis

    uma pura miragem, que

    desaparece medida que nos aproximamos dela: a lin-

    guagem s pode imitar perfeitamente a linguagem, ou

    mais precisamente, o discurso s pode imitar perfeita-

    mente um discurso perfeitamente idntico; em resumo,

    um discurso s pode imitar ele mesmo. Enquanto lexis

    a imitao direta , exatamente, uma tautologia.

    Ns fomos assim conduzidos a esta concluso ines-

    perada, que o nico modo empregado pela literatura

    enquanto representao o narrativo, equivalente verbal

    de acontecimentos no verbais e tambm como mostra

    o exemplo forjado por Plato) de acontecimentos ver-

    bais, a no ser que ele se apague neste ltimo caso

    diante de uma citao direta

    na

    qual se anula toda

    funo representativa, aproximadamente como um ora-

    dor judicirio pode interromper seu discurso

    para

    deixar

    261

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    o_ u:na

    prova

    concreta. A representa-

    ao

    a dos antigos, no portanto a

    narrattva mais os dtscursos: a narra tiva e somente

    ? ?arr_ativa. oporia mimesis a diegesi; como uma

    tmt aao

    pe_rfeJta

    a uma imitao imperfeita; mas a imi-

    taao pe_rfeJta no mais uma imitao, a coisa mes-

    mo,.

    e a nica imitao a imperfeita. i

    mesis

    d1egesis.

    Narrao e descrio

    Mas

    a representao literria assim definida, se ela se

    confunde com a narrativa (no sentido

    lato),

    no se

    aos elementos puramente narrativos (no sentido

    da _narrativa. E preciso agora introduzir de cli-

    retto, no sew mesmo

    ?a

    diegesis uma distino que no

    nem em

    Platao

    . em Aristte les, c que de-

    senhara uma nova fronteira, mterior ao domnio da re-

    narrativa comporta com efeito, embor.a

    mt_Imamente misturadas e em propores muito vari-

    de

    um

    lado representaes

    de

    aes e de aconte-

    cimentos, que constituem a narrao propriamente dita,

    : de outro _lado representaes de objetos e persona-

    sao o a o daquilo que se denomina hoje a

    de cnao.

    A opostao entre narrao e descrio, alm

    de . acentuada pela tradio escolar, um dos traos

    maiores de nossa conscincia literria. Trata-se no

    en-

    tanto aq.ui de uma. distino relativamente recente

    da

    qual

    sena

    necessrio

    estudar

    algum dia

    0

    e o

    na

    teoria e na

    prtica da

    Jitera-

    A

    primeira vista, que tenha tido uma

    muito ativa antes do sculo XIX, quando a

    t?t:oduao de

    passagens

    descritas

    em um

    gnero

    narrattvo como o romance coloca em evi-

    denCia os e as exignc ias do procedimento.

    . . Ess_a pers1_stente confuso, ou despreocupao em

    dtstlngmr, que mdica muito claramente, em grego,

    0

    em

    entretanto

    em

    Boileau, a propsito d epopia:

    e

    V

    v e press do

    m

    voss s n rr es

    Sede

    n o

    e pomposo em vossas de scries . '

    (Art. Pot. III, 257-258).

    6

    prego do termo comum

    diegesis

    deve-se talvez, sobre-

    tudo, ao status literrio muito desigual dos dois tipos

    de representao. Em princpio, evidentemente poss-

    vel conceber textos puramente descritivos, visando a re-

    presentar objetos em

    sua

    nca existncia espacial, fora

    de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimen-

    so

    temporal. E' mesmo mais fcil conceber uma des-

    crio

    pura

    de qualquer elemento narrativo do que o

    inverso, pois a mais sbria designao dos elementos

    e circunstncias de um processo pode j

    passar

    por

    um esboo de descrio: uma frase como A

    casa

    branca

    com um telhado de ardsia e janelas verdes

    no comporta nenhum trao de narrao, enquanto que

    uma

    frase como 0 homem aproximou-se .da mesa e

    apanhou uma faca contm pelo menos, ao lado dos dois

    verbos de ao, trs substantivos que, por menos

    qua-

    lificados que estejam, podem ser considerados como des-

    critivos somente pelo fato de designarem seres animados

    ou innimados; mesmo um verbo pode ser mais ou me-

    nos descritivo, na preciso que ele

    d

    ao espetculo

    da

    ao

    (basta para

    se convencer deste fato comparar em-

    punhou a faca, por exemplo, a apanhou a faca),

    e

    por

    conseguinte nenhum verbo completamente isento

    de ressonncia descritiva. Pode-se portanto dizer que

    a descrio e mais indispensvel do que a narrao,

    uma vez que mais fcil descrever sem narrar do que

    narrar

    sem descrever (talvez porque os objetos podem

    existir sem movimento, mas no o movimento sem obje-

    tos). Mas esta situao de princpio indica j, de fato,

    a natureza

    da

    relao que une as duas funes

    na

    imensa

    maioria dos textos literrios: a descrio poderia ser

    concebida independentemente da narrao, mas de fato

    no se a encontra por assim dizer nunca em estado

    livre; a narrao, por sua vez, no po,de existir sem

    descrio, mas

    esta

    dependncia no a impede de re-

    presentar constantemente o primeiro papel. A descrio

    muito naturalmente ancilla narrationis escrava sempre

    necessria, mas sempre submissa, jamais emancipada.

    Existem gneros narrativos, como a epopia, o conto,

    63

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    a novela, o romance, em que a descrio pode ocupar

    um lugar muito grande, e mesmo materialmente o maior,

    sem cessar de ser, como por vocao,

    um

    simples au-

    xiliar da narrativa. No existem, ao contrrio, gneros

    descritivos, e imagina-se mal, fora do domnio didtico

    (ou de fices semididticas como as de Jules Verne),

    uma obra em que a narrativa se comportaria como au-

    xiliar da descrio.

    O estudo das relaes entre o narrativo e o des-

    critivo reduz-se portanto, no essencial, a considerar as

    funes diegticas da descrio, isto , o papel repre-

    sentado pelas passagens ou os aspectos descritivos na

    economia geral da narrativa. Sem entar entrar aqui no

    detalhe deste estudo, reter-se- pelo menos, na tradi-

    o literria clssica (de Homero ao fim do sculo

    XIX), duas funes relativamente distintas. A primeira

    de certa forma, de ordem decorativa. Sabe-se que a

    retrica tradicional, classifica a descrio, do mesmo

    modo que as outras figuras de estilo, entre os orna-

    mentos do discurso: a descrio longa e detalhada apa-

    receria aqui como uma

    pausa

    e uma recreao na nar-

    rativa, de papel pUtamente esttico, como o da escultura

    em um e,difcio clssico. O exemplo mais clebre disso

    talvez a descrio do escudo de Aquiles no canto

    XVIII da Ilada. E sem dvida a este papel de cenrio

    que pensa Boileau quando recomenda a riqueza e a

    pompa nesse gnero de trechos. A poca barroca ficou

    marcada por uma espcie de proliferao do excurso

    descritivo, muito sensvel por exemplo no

    Moyse sauv

    de Saint-Amant, mas que acabou por destruir o equi-

    lbrio do poema narrativo

    em

    seu declnio.

    A segunda grande funo da descrio, a mais cla-

    ramente manifestada hoje, porque se imps, com Balzac,

    na tradio do gnero romanesco, de ordem simulta-

    neamente explicativa e simblica: os retratos fsicos, as

    descries de roupas e mveis tendem, em Balzac, e

    seus sucessores realistas, a revelar. e ao mesmo tempo

    Pelo menos como a tradio clssica a interpretou e Imitou. E preciso notar

    contudo que a descrio neste caso tende a animar-se e portanto a se nar

    rativizar.

    264

    a justificar a psicologia dos dos. so

    ao mesmo tempo signo, causa e efeito. A descnao torna-

    se aqui, o que no era na poca clssica,

    um

    elemento

    maior da exposio: que se pense nas casas de Mlle.

    Cormon em a

    Vieille Fille

    ou de Balthasar Claes em

    La

    Recherche de l Absolu. Tudo isso no obstante

    bem conhecido para que continue insistin,do. Notemos

    somente que a evoluo das formas .

    tituindo a descrio ornamental pela descnao Slgmft-

    cativa, tendeu (pelo menos at o incio do XX)

    a reforar a dominao do narrativo: a descnao perdeu

    sem nenhuma dvida em autonomia o que ganhou em

    importncia dramtica. Quanto a cert as. do ro-

    mance contemporneo que apareceram tmcJalmente co-

    mo tentativas de liberar o modo descritivo da tirania

    da

    narrativa, no certo que seja preciso verdadeira-

    mente interpret-las assim: caso se considere sob este

    ponto de vista, a obra de RobbeGrillet apareceria

    sobretudo como

    um

    esforo para realizar uma narrativa

    (uma histria por meio quase de

    imperceptivelmente mo,dificadas de

    pagma

    em pa.gma,

    _o

    que pode passar ao mesmo tempo por uma. conflrmaao

    notvel de sua irredutvel finalidade narrahva.

    E necessrio observar enfim que todas as diferen-

    as que separam descrio e na.rrao so.

    de contedo, que no tm propnament e se-

    miolgica: a narrao liga-se a aes ou

    tos considerados como processos puros, e por tsso mes-

    mo pe acento sobre o aspecto temporal e dramtico

    da narrativa; a descrio ao contrrio, uma vez que

    demora sobre objetos e seres considerados

    em

    sua SI-

    multaneidade, e encara os processos eles mesmos como

    espetculos, parece suspender o curso do tempo e

    tribui para espalhar a narrativa no espao. Estes do:s

    tipos de discurso podem portanto aparecer como

    expn

    mindo duas atitudes antitticas ,diante do mundo e

    da

    existncia uma mais ativa, a outra nais contemplativa

    e togo, uma equivalncia tradicional, mais po-

    tica. Mas do ponto de vista dos modos de represen-

    265

  • 7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf

    7/11

    tao, narrar um acontecimento e descrever um objeto

    so duas operaes semelhantes, que pem em jogo os

    mesmos recursos da linguagem. A diferena mais sig-

    nificativa seria talvez que a narrao restitui, na suces-

    so

    temporal .do seu discurso, a sucesso igualmente

    temporal dos acontecimentos, enquanto

    que_

    a descrio

    deve modular no sucessivo a representao de objetos

    simultneos e justapostos no espao: a linguagem

    nar-

    rativa se distinguiria assim por uma espcie de coinci-

    dncia temporal com seu objeto,

    do

    qual a linguagem

    descritiva seria ao contrrio irremediavelmente privada.

    Mas esta oposio perde muito de sua fora na litera-

    tura

    escrita, on de nada impede o leitor de voltar atrs

    e de considerar o texto, cm sua simultaneidade espa-

    cial, como um analogon do espetculo que descreve: os

    caligramas de Apollinaire ou as disposies grficas do

    Coup

    de ds s fazem levar ao limite a explorao de

    certos recursos latentes da expresso escrita.

    Por

    outro

    lado, nenhuma narrao, mesmo a da reportagem

    ra -

    diofnica, no rigorosamente sincrnica ao aconteci-

    mento que relata, e a variedade das relaes que podem

    guardar o tempo da histria e o da narrativa

    acaba

    de

    reduzir a especificidade da representao narrativa. Aris-

    tteles observa j que uma das vantagens

    da

    narrativa

    sobre a representao cnica poder

    tratar

    diversas

    aes simultneas

    8

    : mas obrigada a trat-las sucessi-

    vamente, e ento sua situao, seus recursos e seus

    limites so anlogos aos da linguagem descritiva.

    Parece portanto claro que, enquanto modo da re-

    presentao literria, a descrio no se distingue bas-

    tante nitidamente da narrao, pela autonomia de

    seus fins, nem pela originalidade .de seus meios, para

    que

    seja

    necessrio romper a unidade narrativo-descri-

    tiva

    a

    dominante narrativa) que Plato c Aristteles

    designaram narrativa. Se a descrio marca uma fron-

    teira

    da

    narrativa, bem uma fronteira interior,

    e

    tudo

    somado, bast:mte indecisa: englobar-se- portanto sem

    prejuizs, na noo de narrativa, todas as formas ela rc-

    8

    1459

    b.

    66

    presentao literria, e considerar-se- a no

    como um dos seus modos o que impli cana uma espe-

    cificidade de linguagem), porm, mais modestamente,

    como um de seus aspectos - mesmo sendo este, de

    um certo ponto de vista, o mais atraente.

    Narrativa e Discurso

    Ao

    ler-se a

    Repblica

    e a

    Potica

    pa:ece. 9ue Plato

    e

    Aristteles reduziram aprior stica e o

    campo

    da

    literatura ao da 1_1teratura

    representativa: poiesis = mtmests. Caso,

    tudo que se encontra excludo do poehco po_r esta

    deciso veremos desenh ar-se uma ltima d a

    que poderia ser a mais importante e a mats

    significativa. Trata-se somente,.

    nada m_ais

    nada

    da poesia lrica, satrica e didtica: para so cttar

    alguns dos nomes que um grego dos V IV

    devia conhecer, Pndaro, Alceu, Safo, Arqmloco, Heswdo.

    Assim, para Aristteles, e apesa r que usa o

    metro que Homero, Empdocles nao e um .

    preciso chamar a um poeta e ao outro e nao

    poeta. Mas certamente Arquloco, Safo,

    Pmdaro

    no

    podem ser chamados fsicos: o que possuem comum

    todos os excludos da

    Potica

    que sua obra_ nao c?n-

    siste em imitao, por narrativa ou cemca:

    de uma ao, real ou fingida, extenor a e f

    palav ra do poeta, mas simplesmente em . dtscurso

    mantido por ele diretamente em seu pr?pn? nome.

    Pndaro canta os mritos do vencedor oltmp:co.

    quloco invectiva seus inimigos polticos, .

    da

    conselhos aos agricultores, Empdocles ou Parmemdes

    expem

    sua

    teoria do universo: no h neles nenhuma

    representao , nenhuma fico, uma

    que se investe diretamente no

    d1_scurso

    _da. Pode

    se dizer a mesma coisa da poesta elegtaca

    lah?a

    tudo que chamamos hoje muito largamente poesta hnca,

    1447 b.

    267

  • 7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf

    8/11

    de

    tu?o_

    que.

    reflexo

    fica . ' expostao ctenhftca ou paracient-

    ' dirio ntimo, etc Todo

    to de expresso direta, que

    .

    fi

    - ' seus torneios, suas formas escapa

    a re exao da p 'f

    representativa da a funo

    d . mos at uma nova diviso

    e uma amphtude muito grande pois que di v d '

    ?uas partes de importncia igual t e em

    JUnto do que chamamos hoje literatura o con-

    Esta d -

    f -

    tvtsao corresponde aproximadamente dis-

    tmao proposta recentemente por Emile Benveniste

    re narraftva (ou histria e disc . en-

    que Benveniste en lob com a dtferena

    que Aristteles h g a do discurso tudo

    efetivamente aoc tmttaao dtreta, e que consiste

    curso pelo dis-

    Benveniste mostra que certas f m e seus

    mahca

    1

    s como ormas gra-

    cita t

    ) . .

    o. pronome eu (e sua referncia impl-

    t .

    u ' os tndtcadores pronominais (certos d

    .rahvos) ou adverbiais (como

    aqui agora h

    .

    emot

    ns-

    amanh et )

    1

    ' '

    OJe

    on

    em

    do verbo ' e, pe o menos

    em

    francs, certos tempos

    fut ' orno o presente, o passad o composto ou o

    reservados ao discurso, enquanto

    rra em sua forma estrita marcada elo

    emprego exclusivo da terceira pessoa e d f p

    o aoristo pas d

    1

    e ormas como

    uer . u . s a o stmp es) e o mais-que-perfeito. Quais-

    q q e sejam os detalhes e as variaes de d

    a outro toda t d' um

    1

    toma

    , . : es as tferenas se reduzem claramente

    a objetividade da narrativa e a

    o tscurso mas .

    d

    se trata no caso de u ' . . . preciSo m tear que

    jetividade definida or e de uma sub-

    lingstica: dt_os de ordem propriamente

    plidtamente ou - o IScurso onde se marca, ex-

    nao, a presena de (ou a

    f

    A

    a) eu mas este

    eu

    no se

    d-efine

    (fe h re erencta

    nen

    um

    modo

    ;. Como a dico que conta a I -

    osta

    como o

    fez

    Aristteles ,

    e

    nao o que dito exclulr-se-o desta

    as

    exposies em forma os dilogos socrticos de Plato e

    es relations de tem d

    1

    que se prendem

    imitao e '

    nos Probleme s de fra2nais ,

    B.S.L 1959;

    ' pp.

    37250.

    268

    como a pessoa que mantm o discurso, do mesmo modo

    que o presente, que o tempo por excelncia do modo

    discursivo, no se define de nenhum modo como o mo-

    mento em que o discurso enunciado, sem emprego

    marcando a coincidncia do acontecimento descrito com

    a instncia do discurso que o descreve., Inversamente,

    a objetividade

    da

    narrativa se define pela ausncia de

    toda referncia ao narrador: Para dizer a verdade,

    narrador no existe mesmo mais. Os acontecimentos so

    colocados como se produzem

    medida que aparecem

    no

    horizonte da histria. Ningum fala aqui; os acon-

    tecimentos parecem narrar-se a si mesmos.

    Temos a, sem nenhuma dvida, uma descrio per-

    feita daquilo que , em sua essncia e em sua oposio

    radical a t oda forma de expresso pessoal do locutor,

    a narrativa em estado puro, tal como se pode ideal-

    mente conceber e tal como se pode efetivamente loca-

    liz-la em alguns exemplos privilegiados, como os que

    o prprio Benveniste toma emprestado ao historiador

    Glotz e a Balzac. Reproduzimos aqui o extrato de Gam-

    bara,

    que analisaremos a seguir em detalhe:

    Aps uma volta pela galeria, o rapaz olhou alter-

    nativamente o cu e seu relgio, fez um gesto de im-

    pacincia, entrou em uma tabacaria, onde cendeu um

    charuto, colocou-se diante de um espelho, e lanou

    um

    olhar a seu costume, um pouco mais rico do que o

    permitem em Frana as leis do gosto. Reajustou seu

    colarinho e seu colete de veludo negro sobre o qual

    se cruzava diversas vezes uma dessas grossas corren-

    tes de ouro fabricadas em Ones; ento, aps haver

    lanado de um s movimento sobre o ombro esquerdo

    o casaco forrado de veludo e arrumando-o com elegn-

    .cia, retomou seu passeio sem se deixar .distrair pelas

    olhadelas burguesas que recebia. Quando as lojas co-

    mearam a se iluminar e a noite lhe pareceu bastante

    escura, ele se dirigiu para a praa do Palais-Royal como

    um homem temia ser reconhecido, pois contornou

    oa

    la dans te op.

    cft.,

    p. 262.

    lbid. p. 241.

    269

  • 7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf

    9/11

    a praa at a fonte, para ganhar o abrigo dos fiacres

    entrada da rua Froidmanteau

    Neste grau de pureza, a dico prpria da narra-

    tiva de certa forma a transitividade absoluta do texto

    a ausncia perfeita (deixando de lado algumas

    es s quais voltaremos dentro em pouco), no so-

    mente do narrador, mas tambm da prpria narrao,

    If ia eliminao rigorosa de. qualquer referncia ins-

    tncia de discurso que o constitui.

    O

    texto est a,

    sob

    nossos olhos, sem ser proferido por ningum, e nenhu-

    ma (ou quase) das informaes que contm exige,

    para

    ser compreendida ou apreciada, de ser relacionada com

    sua fonte; avaliada por sua distncia ou sua relao

    ao locutor e ao ato de locuo. Se compararmos

    um

    tal

    enunciado com uma frase como esta: Eu esperava para

    escrever a voc que tivesse morada fixa. Enfim estou

    decidido: passarei o inverno aqui

    ,

    medir-se- a

    que

    ponto a autonomia da narrativa ope-se dependncia

    do discurso, cujas determinaes essenciais (quem

    eu

    voc

    que lugar designa aqui?) s podem se;

    em

    relao situao na qual foi produzida.

    No dtscurso, algum fala, e

    sua

    situao no ato mesmo

    de falar o foco das significaes mais importantes;

    na

    . narra tiva, como o diz Benveniste com fora,

    nin-

    guem fala

    no sentido de que

    em

    nenhum momento temos

    de

    nos quem

    fala onde

    e quando etc.)

    para

    receber mtegralmente a significao do texto.

    Mas preciso acrescentar logo que as essncias da

    narrativa e do discurso assim definidas no se encon-

    tram quase nunca

    em

    estado puro

    em

    nenhum texto:

    h quase sempre uma certa proporo de narrativa no

    discurso, uma certa dose de discurso na narrativa.

    Para

    dizer a verdade, aqui se esgota a simetria, pois tudo

    se passa como se os dois tipos de expresso se encon-

    trassem muito diferentemente afetados pela contamina-

    o: a insero de elementos narrativos no plano do

    discurso no basta

    para

    emancipar este ltimo, pois

    eles permanecem

    com

    maior freqncia ligados refe-

    Senanco ur, Oberman, Carta V.

    27

    rncia do locutor, que fica implicitamente presen te. no

    ltimo plano e que pode intervir de novo a cada ms-

    tante sem este retorno seja como uma

    t -

    Asst'm temos nas

    Memozres d outre-tombe

    tn rusao. ,

    esta passagem aparentemente objetiva: Quand? o mar

    estava alto e havia tempestade, as chtc?teadas

    ao p do castela, do lado

    da

    prata, espt.rravam

    at as grandes torres. A vinte pes de altura actma ?a

    base de uma dessas torres, p.ara?eito de gramto

    dominava estreito e escorregadiO, mchnado, pelo qual

    se

    0

    revelim que defendia o fosso: tratava-se

    de pegar

    0

    instante entre duas vagas, atravessar o .pe-

    rigoso stio antes que a vaga se quebrasse e

    a torre . Mas sabemos que o narrador, cuja pes-

    soa foi momentaneamente eliminada durante esta

    pas-

    sagem no foi muito longe, e no ficamos nem sur-

    presos' nem embaraados quando ele retoma a palavra

    para acrescent ar: Nenhum de .ns se recusava

    tura mas eu vi crianas empalidecer antes de tenta-lo.

    A

    danao

    no tinha verdadeiramente da

    do discurso na primeira pessoa, que a tmha absorvtdo

    sem esforo nem distoro, e sem cessar de ser ele

    mesmo. Ao contrrio, qualquer de

    discursivas no interior de uma e .senhda como

    uma infrao ao rigor do partido narrativo. Acontece

    isto com a breve reflexo inserida por Balzac. no. texto

    transcrito acima: seu costume

    um

    pouco

    mars nco do

    que

    0

    permitem

    em

    Frana

    as

    leis

    do

    bom gost?. Pode-

    se dizer mesmo da expresso uma

    dessas correntes

    de ouro

    fabricadas em Genova que

    contm evidentemente o esboo de uma passagem . no

    presente fabricadas corresponde no a que

    se

    vam mas sim a que se fabricam) e de uma alocuao

    direta ao leitor, implicitamente tomado como testemunha.

    Dir-se-ia ainda

    o

    mesmo do adjetivo

    bur-

    guesas e da locuo adverbial

    implicam um julgamento cuja fonte e aqm

    vtstvelme11tc

    narrador; da expresso relativa omo um homem

    10 livro primeiro, cap.

    V.

    271

  • 7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf

    10/11

    que temia,

    que

    em

    latim seria expressa no subjuntivo

    pela apreciao pessoal que comporta; e em fim da

    pois

    contornou, que introduz uma explica-

    ao proposta pelo autor.

    E

    evidente que

    a

    narrativa

    no integra esses enclaves discursivas, justamente cha-

    mados por Georges Blin intruses do autor to fa-

    cilmente quanto o dis curso acolhe os enclave ;. narra ti-

    vos: a narrativa inserida no discurso se .transforma em

    elemento do discurso, o discurso inserido

    na

    narrativa

    discurso e forma uma espcie de quisto

    mutto faci de reconhecer e localizar. A

    pureza

    da

    nar-

    rativa, dir-se-ia, mais fcil de preservar do que a

    do discurso.

    A razo. desta dissimetria de resto muito simples,

    mas nos destgna um carter decisivo da narrativa:

    na

    verdade, o discurso no tem nenhuma pureza

    a pre-

    servar, pois o modo natural da linguagem, o mais

    aberto e o mais acolhendo

    por

    definio to-

    das as formas;

    a

    narrativa, ao contrrio, um modo

    particular, definido por um certo nmero de excluses

    e condies restritivas (recus a do presente,

    da

    pri-

    metra pessoa, etc.). O discurso pode narrar sem ces-

    sar

    de ser discurso,

    a

    narrativa no pode discorrer

    sem sair

    .de

    si mesma. Mas no pode tambm abster-

    se dele sem tombar na secura e na indigncia: por-

    que

    a

    narrativa no existe nunca por assim dizer na

    rigorosa. A menor observao geral, o menor

    adjehvo um pouco mais que descritivo, a mais discreta

    comparao, o mais modesto talvez, a mais inofensiva

    das articulaes lgicas introduzem em sua trama um

    tip o de fala que lhe estranha, e como refratria. Se-

    ria. preciso, para estudar em detalhe esses acidentes s

    numerosas e minuciosas anlises

    de textos. Um

    .dos

    objetivos deste estudo poderia ser

    de e class ificar os meios pelos quais a

    literatura narrativa

    (e

    particularmente romanesca)

    .tem

    tentado organizar de uma maneira aceitvel, no interior

    de

    prpria

    lexis, as.

    relaes delicadas que a entretm

    as extgenctas da narrahva e as necessidades do discurso.

    272

    Sabe-se com efeito que o romance nunca conseguiu

    resolver de maneira convincente e definitiva o problema

    colocado por essas relaes. Ora, como foi o caso da

    poca clssica, em um Cervantes, um Scarron, um Fiel-

    ding, o autor-narrador, assumindo complacentemente seu

    prprio discurso, intervm na narrativa com uma indis-

    crio ironicamente marcada, interpelando seu leitor no

    tom da conversao familiar; ora, ao contrrio, como

    se v ainda

    na

    mesma poca, ele transfere todas as

    responsabilidades do discurso

    a

    um personagem princi-

    pal que

    falar,

    isto

    ,

    narrar e comentar ao mesmo

    tempo os acontecimentos,

    na

    primeira pessoa: o caso

    dos romances picarescos, de

    Lazarillo

    a il

    Blas,

    e de

    outras obras ficticiamente autobiogrficas como

    Manon

    Lescaut

    ou a

    Vie de Marianne; ora

    ainda, no podendo

    se resolver nem

    a

    falar

    em

    seu prprio nome nem a

    confiar essa tarefa

    a

    um

    s personagem, ele reparte o

    discurso entre os diversos atores, seja sob a forma de

    cartas, como fez freqentemente o romance do sculo

    XVIII

    La Nouvelle Hloise, Les Liaisons dangereuses),

    seja, maneira mais gil e sutil de

    um

    Joyce ou de

    um Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa ser

    assumida pelo discurso interior de seus principais

    per-

    sonagens. O nico momento em que o equilbrio entre

    narrativa e discurso parece .ter sido assumido com uma

    boa conscincia perfeita, sem escrpulo ou ostentao,

    evidentemente o sculo XIX, a idade clssica

    da nar-

    rao objetiva, de Balzac a Tolstoi; v-se ao contrrio

    a que ponto a poca moderna acentuou a conscincia

    da

    dificuldade, at tornar certos tipos de alocuo como

    fisicamente impossveis para os escritores mais lcidos

    e mais rigorosos.

    Sabe-se bem, por exemplo, como o esforo

    para

    conduzir a narrativa ao seu mais alto grau de pureza

    levou certos escritores americanos, como Hammett ou

    Hemingway, a excluir dela a exposio dos motivos

    psicolgicos, sempre difcil de apresentar sem recurso

    a consideraes gerais de natureza discursiva, as qua-

    lificaes implicando numa apreciao pessoal do nar-

    Anlise strutural 8

    273

  • 7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf

    11/11

    rdor,

    as

    ligaes lgicas, etc., at reduzir a dico ro-

    manesca a essa sucesso brusca de frases curtas, sem

    articulaes, que Sartre reconhecia em 1943 em

    L'Etran-

    ger

    de Camus, e que se pde reencontrar dez anos mais

    tarde em Robbe-Grillet. O que se interpretou com fre-

    qncia como uma aplicao

    literatura

    das

    teorias

    behavioristas era talvez somente o efeito de uma sensi-

    bilidade particularmente

    aguda

    a certas incompatibilida-

    des

    da

    linguagem. Todas as flutuaes

    da

    escritura ro-

    manesca contempornea ganhariam sem dvida se

    ana-

    lisadas sob este ponto de vista, e particularmente a

    tendncia atual, talvez inversa

    da

    precedente, e comple-

    tamente manifestada em um Sollers ou

    um

    Thibaudeau,

    por exemplo, de fazer desaparecer a narrativa no dis-

    curso presente do escritor no ato de escrever, no que

    Michel Foucault chama o discurso ligado ao ato de

    escrever, contemporneo de seu desenvolvimento e en-

    cerrado nele. ,. Tudo se passa aqui como se a litera-

    tura tivesse esgotado ou ultrapassado os recursos de seu

    modo representativo, e quisesse refletir sobre o murm-

    rio indefinido de seu prprio discurso. Talvez o romance,

    aps a poesia, v sair definitivamente da idade da re-

    presentao. Talvez a narrativa, na singularidade ne-

    gativa que acabamos de lhe reconhecer, seja j para ns,

    como a arte para Hegel, uma

    coisa

    do

    passado

    que

    preciso considerar s pressas em sua retirada, antes

    que tenha desertado completamente nosso horizonte.

    RARD

    ENETTE

    Faculdade

    de

    Letras e Cincias Humanas Paris.

    L'arriere-fab le , L'Arc, nmero especial sobre Jules Verne, p.

    6

    74

    Dossi

    ESCOLH BIBLIOGRFIC

    A narrativa pertence em princzpzo a uma cincia j constituda,

    a histria literria, que no essencial; entretanto, no foi

    ainda

    tratada

    de um

    ponto

    de

    vista

    estrutural; por outro lado a

    bibliografia

    do

    estruturalismo

    certamente abundante mas sem

    relao

    direta com

    a

    narrativa.

    Disto

    resulta

    que

    uma bibliografia

    da anlise estrutural da narrativa no pode ser seno muito re-

    duzida limitada s obras e aos textos j bem conhecidos de

    Propp

    (Morphologie

    du

    conte), Dumzil (La Saga de Hadingus:

    du

    mythe

    au

    roman), Lvi-Strauss Greimas (Smantique Structural)

    e

    Bremond ( Le

    message narrati/ , in Communications n. 4), ou

    infinita, alongada notadamente perspecti va monstruosa de

    tudo

    que se escreveu sobre o conto a epopia o romance o teatro etc.

    Entre estes dois

    partidos,

    escolhemos com arbitrariedade eviden-

    te mas ao que parece inevitvel aprese ntar um

    nmero modesto

    de trabalho s escol hidos

    durante

    nossas

    leituras;

    esses

    trabalhos

    encontram-se todos s vezes de uma maneira implcita

    em

    ra-

    zo de sua data relacionad os com o ponto de vista

    lista. No pois uma bibliografia que propomos; caso se

    queira um

    primeiro

    dossi de trabalho.

    As obras que seguem foram escolhidas em comum pela equi-

    pe do Centre d'Etudes de Communications de Masse; toram apre-

    sentadas

    por

    Cl. Bremond, O Burgelin, G. Genette e T. Todorov.

    So apresentadas

    aqui

    na

    ordem

    aproximada

    de seu aparecimen-

    to. R. B.

    udw ig (Otto), Studien (Gesammelte Schriften, vn Leipzig,

    1891 Em seus estudos sobre o romance, Ludwig esboou dois

    grandes tipos de narrativa que chama a narrativa propriamente

    dita e a narrativa cnica . Na narrativa propriamente dita, o

    narrador deve .levar em conta sua prpria representao na

    obra;

    ele narra a histria segundo a ordem

    em

    que a conheceu e ser

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