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1/11
ronteiras
da
Narrativa
GR RD GENETTE
Caso
se aceite,
por
conveno, permanecer no domnio
da expresso literria, definir-se- sem dificuldade a nar-
rativa como a representao de um acontecimento ou
de uma srie de acontecimentos, reais ou fictcios,
por
meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem
escrita.
Esta
definio positiva
(e
corrente tem o m-
rito da evidncia e da simplicidade; seu inconveniente
principal talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-
nos na evidncia, mascarar a nossos olhos aquilo que
precisamente, no
ser
mesmo
da
narrativa, constitui
pro-
blema
e dificuldade, apagando de certo modo as fron-
-
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11,1
' diante de um enunciado como A marquesa saiu
as cmco horas. Sabe-se quanto, sob formas diversas
e muitas vezes contraditrias, a literatura moderna viveu
e ilustrou esse espanto fecundo, como se quis e se fez,
em seu fundo mesmo, interrogao, abalamento, con-
testao do propsito narrativo. Esta questo falsamente
por que a narrativa?
- poderia pelo menos
mcitar-nos a pesquisar,
ou
mais simplesmente a reco-
nhecer os limites de certo modo negativos da narrativa,
a considerar os principais jogos de oposies por meio
dos quais a narrativa se define, se constitui em face
das diversas formas da no-narrativa.
Diegesis e mimesis
Uma primeira oposio aquela indicada por Aristte-
les em algumas frases rpidas da Potica. Para Aris-
tteles, a narrativa (
diegesis) um
dos dois modos da
imitao potica
mimesis),
o outro sendo a renresen-
tao direta dos acontecimentos por atares e
agindo diante do pblico.
1
Aqui instaura-se a distino
clssica entre poesia narrativa e poesia dramtica. Esta
distino estava j esboada por Plato no livro da
Repblica, com duas diferenas, a saber que, por um
lado, Scrates nega ali narrativa a qualidade (isto ,
para ele, o defeito) da imitao, e que por outro lado
ele toma em considerao aspectos de representao di-
reta (dilogos) que podem comportar um poema no
dramtico como os de Homero. H portanto, nas ori-
gens da tradio clssica, .duas parties aparentemente
em que a narrativa opor--se-ia imitao,
aqm como sua anttese, e l como
um
dos seus modos.
Para
Plato, o domnio daquilo que ele chama
lexis
(ou maneira de dizer, por oposio a
logos,
que designa
o .que
dito) divide-se teoricamente
em
imitao pro-
pnamente dita) mimesis) e simples narrativa diegesis).
Por
simples narrativa, Plato compreende tudo o que o
1448 a
56
poeta
narra
falando em seu prprio nome, sem pro-
curar fazer crer que
um outro que fala : assim,
quando Homero no canto I da Ilada nos diz a pro-
psito de Criss: ele tinha vindo s belas naves dos
Aqueus,
para
reaver
sua
filha, .trazendo um imenso res-
gate e segurando, sobre seu basto de ouro, as fitas
do arqueiro Apolo; e ele suplicava a todos os Aqueus,
mas sobretudo aos dois filhos de Atreu, bons estrate-
gistas.
Ao
contrrio, a imitao consiste, a partir do
verso seguinte, no fato de Homero fazer falar o prprio
Criss, ou, segundo Plato, de falar tingindo ser Criss,
e esforando-se para nos
dar
na medida
do
possvel
a iluso de que no Homero que fala, mas sim o
velho, sacerdote de Apolo. Eis o texto do discurso de
Criss: tridas e vs tambm, Aqueus de boas gre-
vas, possam os deuses, habitantes do Olimpo, conceder-
vos a destruio
da
cidade de Pramo, e depois vosso
retorno sem ferimentos a vossos lares Mas a mim, res-
titu minha filha E para isso, .aceitai o resgate que
vedes aqui, por considerao ao filho de Zeus, ao
ar -
queiro Apolo. Ora, ajunta Plato, Homero teria po-
.dido igualmente prosseguir sua histria sob uma forma
puramente narrativa, narrando as palavras de Criss
em vez de reproduzi-las, o que, para a mesma passagem,
teria dado, em estilo indireto e prosa:
0
sacerdote
tendo chegado pediu aos deuses que lhes concedessem
a tomada de Tria e os preservassem de morrer
em
com-
bate, e pediu aos Gregos que lhe devolvessem a filha
em troca de um resgate, e por respeito ao deus.
Esta
diviso terica, que ope, no interior da dico potica,
os dois modos puros e heterogneos
da
narrativa e
da
imitao, conduz e funda uma classificao prpria dos
gneros, que compreende os dois modos puros narra-
tivo, representado pelo antigo ditirambo, mimtico, re-
presentado pelo teatro), mais um modo misto,
1
u, mais
precisamente, alternado, que o da epopia, como se
acaba de ver pelo exemplo
da
Ilada
393
a
li ada I
12-16 . traduo francesa
de
Mazon.
393
e traduo francesa
de
Chambry.
Anlise Estrutural -
17
57
-
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. 1,
A classificao de Aristteles
primeira vista
pois que reduz toda a poesia
a dtsyngumdo somente dois modos imitativos,
o que e o
_que Plato
nomeia propriamente imi-
e . o que Aristteles denomina, como
dreges1s.
Por
outro lado, Aristteles parece iden-
plenamente no s, como Pito,
0
anero dram-
ao_ modo imitativo, mas tambm, sem
levar
em
con-
stderaao
em
pr ncpio seu carter misto, o gnero pico
ao modo narrativo puro.
Esta
reduo pode prender-se
ao fato de que Aristteles define, mais estritamente do
que Plato, o modo imitativo pelas condies cnicas
da
representao dramtica. Ela pode justificar-se igual-
pelo fat? de que obra pica, qualquer que seja
a. parte matenal dos d1alogos ou discursos em estilo
d1reto, e mesmo se esta parte sobrepuja
a
da narrativa
essencialmente narrativa visto que os
gos sao a necessariamente enquadrados e conduzidos
pe as partes narrativas que constituem, no sentido pr-
pno
o
fundo,
ou, caso se queira, a trama de seu dis-
curso:
J?e
resto, Aristteles reconhece em Homero esta
sobre os outros poetas picos, que ele in-
tervem pessoalmente o menos possvel em seu poema
colocando na maior parte das vezes em cena
caracterizados, conforme o papel do poeta, que
o Desse modo, ele parece bem
reconhecer Implicitamente o carter imitativo dos di-
I_ol?os homricos, e portanto o carter misto da dico
narrativa em seu fundo, mas dramtica na sua
mawr extenso.
A diferena entre as classificaes de Plato e Aris-
tteles reduz-se assim a uma simples variante de ter-
mos: essas duas classificaes concordam bem sobre
0
ess_encial .dizer, a oposio do dramtico e do nar-
rativo, o pnme1ro sendo considerado pelos dois filsofos
como mats plenamente imitativo que o segundo: acordo
sobre o fato, de qualquer modo sublinhado pelo
desa-
cordo sobre os valores, pois Plato condena os poetas
1460
o
258
enquanto imitadores, a comear pelos dramaturgos, e
sem exceo de Homero, julgado ainda demasiado mi-
mtico
para um
poeta narrativo, s admitindo
na
Cidade
um poeta ideal cuja dico austera seria to pouco
mimtica quanto possvel; enquanto que Aristteles, si-
metricamente, coloca a tragdia acima
da
epopia, e
louva em Homero tudo o que aproxima
sua
escritura
da
dico dramtica. Os dois sistemas so portanto idn-
ticos, com a nica reserva de uma inverso de valores:
para
Plato como
para
Aristteles, a narrativa um
modo enfraquecido, atenuado da representao literria
- e percebe-se mal,
primeira vista, o que poderia
faz-los mudar de opinio.
E' necessrio entretanto introduzir aqui uma obser-
vao com a qual nem Plato nem Aristteles parecem
.ter-se preocupado, e que restituir
narrativa todo o
seu valor e toda a
sua
importncia. A imitao direta,
tal como funciona em cena, consiste em gestos e falas.
Enquanto que constituda por gestos, ela pode eviden-
temente representar aes, mas escapa aqui ao plano
Jingstico, que
aquele onde se exerce a atividade es-
pecfica do poeta. Enquanto que constituda por falas,
discursos emitidos por personagens ( evidente que em
uma obra narrativa a parte de imitao reduz-se a isso),
ela no rigorosamente falando representativa, pois que
se limita a reproduzir tal e qual
um
discurso real ou
fictcio. Pode-se dizer que os versos
2
a
6
da
Ilada
citados mais acima, nos do uma representao verbal
dos atos de Criss, mas no se pode dizer a mesma
coisa dos cinco versos seguintes: eles no
representam
o discurso de Criss: trata-se de
um
discurso realmente
pronunciado, eles o
repetem
literalmente, e caso se trate
de
um
discurso fictcio, eles o
constituem
do mesmo
modo literalmente; nos dois casos, o trabalho da repre-
sentao
nulo, nos dois casos, os cinco versos de
Homero se confundem rigorosamente com o discurso de
Criss: no acontece evidenremente a mesma coisa com
os cinco versos narrativos que precedem, e que no se
confundem de nenhuma maneira com os a tos de Criss:
17*
259
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A palavra co diz William James, no morde. Caso
se chame imitao potica o fato de representar por
meios verbais uma realidade no verbal, e excepcio-
nalmente, verbal como se chama imitao pictural o
fato de representar por meios picturais uma realidade
no-pictural,
e
excepcionalmente, pictural), preciso ad-
mitir que a imitao encontra-se nos cinco versos nar-
rativos, e no se encontra de modo nenhum nos cinco
versos dramticos, que consistem simplesmente na in-
terpolao, ao meio de um texto representando acon-
tecimentos, de um outro texto diretamente tomado a es-
ses acontecimentos: como se
um
pintor holands do
sculo XVII, numa antecipao de certos procedimentos
modernos, tivesse colocado no meio de uma natureza
morta no a pintura de concha de ostra, mas uma con-
cha de ostra verdadeira. Esta comparao simplista foi
introduzida aqui
para
indicar claramente o carter pro-
fundamente heterogneo de um modo de expresso ao
qual nos habituamos tanto, que no percebemos as mais
abruptas modificaes de registro. A narrativa mista
segundo Plato, quer dizer, o modo de relao mais
corrente e mais universal, imita alternativamente, sobre
o mesmo tom e, como diria Michaux, sem mesmo ver
a diferena, uma matria no verbal que ela deve efe-
tivamente representar o melhor que puder, e uma ma-
tria verbal que se representa por si mesma, e que se
contenta o mais das vezes
em
citar
Caso se trate de
uma narrativa histrica rigorosamente fiel, o historiador-
narrador deve ser muito sensvel mudana de regime,
quando passa do esforo narrativo
na
relao dos atos
realizados transcrio mecnica das falas pronuncia-
das, mas quando se trata de. uma narrati va parcial ou
completamente fictcia, o trabalho .da fico, que se
exerce igualmente sobre contedos verbais e no verbais,
tem sem dvida por efeito mascarar a diferena que
separa os dois .tipos de imitao, dos quais um est,
se posso diz-lo, em prise direta, enquanto que o outro
faz intervir
um
sistema de engrenagens mais complexo.
Admitindo o que entretanto difcil) que imaginar
260
atos e imaginar falas procede .da mesma operao men-
tal, dizer esses atos e dizer essas falas constituem
duas operaes verbais muito diferentes.
Ou
antes,
s
a primeira constitui uma verdadeira operao, um ato
de dico no sentido platnico, comportando uma srie
de transposies e equivalncias, e uma srie de esco-
lhas inevitveis entre os elementos da
histria
a serem
retidos e os elementos a serem abandonados, entre os
diversos pontos de vista possveis, etc., - todas as ope-
raes evidentemente ausentes quando o poeta ou o his-
toriador se limita a transcrever um discurso. Pode-se
certamente deve-se mesmo) contestar esta distino en-
tre o ato de representao mental e o ato de represen-
tao verbal - ent re o logos e a lexis - mas isto
significa contestar a prpria teoria da imitao, que
concebe a fico potica como um simulacro da
dade, to transcendente ao discurso que o institui quan-
to o acontecimento histrico exterior ao discurso do
historiador ou a paisagem representada
no
quadro: teo-
ria que no faz nenhuma diferena entre fico e re-
presentao, o objeto da fico se reduzindo por ela a
um real fingido e que espera ser representado. Ora,
resulta que nesta perspectiva a noo mesmo de imita-
o sobre o plano
da lexis
uma pura miragem, que
desaparece medida que nos aproximamos dela: a lin-
guagem s pode imitar perfeitamente a linguagem, ou
mais precisamente, o discurso s pode imitar perfeita-
mente um discurso perfeitamente idntico; em resumo,
um discurso s pode imitar ele mesmo. Enquanto lexis
a imitao direta , exatamente, uma tautologia.
Ns fomos assim conduzidos a esta concluso ines-
perada, que o nico modo empregado pela literatura
enquanto representao o narrativo, equivalente verbal
de acontecimentos no verbais e tambm como mostra
o exemplo forjado por Plato) de acontecimentos ver-
bais, a no ser que ele se apague neste ltimo caso
diante de uma citao direta
na
qual se anula toda
funo representativa, aproximadamente como um ora-
dor judicirio pode interromper seu discurso
para
deixar
261
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5/11
o_ u:na
prova
concreta. A representa-
ao
a dos antigos, no portanto a
narrattva mais os dtscursos: a narra tiva e somente
? ?arr_ativa. oporia mimesis a diegesi; como uma
tmt aao
pe_rfeJta
a uma imitao imperfeita; mas a imi-
taao pe_rfeJta no mais uma imitao, a coisa mes-
mo,.
e a nica imitao a imperfeita. i
mesis
d1egesis.
Narrao e descrio
Mas
a representao literria assim definida, se ela se
confunde com a narrativa (no sentido
lato),
no se
aos elementos puramente narrativos (no sentido
da _narrativa. E preciso agora introduzir de cli-
retto, no sew mesmo
?a
diegesis uma distino que no
nem em
Platao
. em Aristte les, c que de-
senhara uma nova fronteira, mterior ao domnio da re-
narrativa comporta com efeito, embor.a
mt_Imamente misturadas e em propores muito vari-
de
um
lado representaes
de
aes e de aconte-
cimentos, que constituem a narrao propriamente dita,
: de outro _lado representaes de objetos e persona-
sao o a o daquilo que se denomina hoje a
de cnao.
A opostao entre narrao e descrio, alm
de . acentuada pela tradio escolar, um dos traos
maiores de nossa conscincia literria. Trata-se no
en-
tanto aq.ui de uma. distino relativamente recente
da
qual
sena
necessrio
estudar
algum dia
0
e o
na
teoria e na
prtica da
Jitera-
A
primeira vista, que tenha tido uma
muito ativa antes do sculo XIX, quando a
t?t:oduao de
passagens
descritas
em um
gnero
narrattvo como o romance coloca em evi-
denCia os e as exignc ias do procedimento.
. . Ess_a pers1_stente confuso, ou despreocupao em
dtstlngmr, que mdica muito claramente, em grego,
0
em
entretanto
em
Boileau, a propsito d epopia:
e
V
v e press do
m
voss s n rr es
Sede
n o
e pomposo em vossas de scries . '
(Art. Pot. III, 257-258).
6
prego do termo comum
diegesis
deve-se talvez, sobre-
tudo, ao status literrio muito desigual dos dois tipos
de representao. Em princpio, evidentemente poss-
vel conceber textos puramente descritivos, visando a re-
presentar objetos em
sua
nca existncia espacial, fora
de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimen-
so
temporal. E' mesmo mais fcil conceber uma des-
crio
pura
de qualquer elemento narrativo do que o
inverso, pois a mais sbria designao dos elementos
e circunstncias de um processo pode j
passar
por
um esboo de descrio: uma frase como A
casa
branca
com um telhado de ardsia e janelas verdes
no comporta nenhum trao de narrao, enquanto que
uma
frase como 0 homem aproximou-se .da mesa e
apanhou uma faca contm pelo menos, ao lado dos dois
verbos de ao, trs substantivos que, por menos
qua-
lificados que estejam, podem ser considerados como des-
critivos somente pelo fato de designarem seres animados
ou innimados; mesmo um verbo pode ser mais ou me-
nos descritivo, na preciso que ele
d
ao espetculo
da
ao
(basta para
se convencer deste fato comparar em-
punhou a faca, por exemplo, a apanhou a faca),
e
por
conseguinte nenhum verbo completamente isento
de ressonncia descritiva. Pode-se portanto dizer que
a descrio e mais indispensvel do que a narrao,
uma vez que mais fcil descrever sem narrar do que
narrar
sem descrever (talvez porque os objetos podem
existir sem movimento, mas no o movimento sem obje-
tos). Mas esta situao de princpio indica j, de fato,
a natureza
da
relao que une as duas funes
na
imensa
maioria dos textos literrios: a descrio poderia ser
concebida independentemente da narrao, mas de fato
no se a encontra por assim dizer nunca em estado
livre; a narrao, por sua vez, no po,de existir sem
descrio, mas
esta
dependncia no a impede de re-
presentar constantemente o primeiro papel. A descrio
muito naturalmente ancilla narrationis escrava sempre
necessria, mas sempre submissa, jamais emancipada.
Existem gneros narrativos, como a epopia, o conto,
63
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a novela, o romance, em que a descrio pode ocupar
um lugar muito grande, e mesmo materialmente o maior,
sem cessar de ser, como por vocao,
um
simples au-
xiliar da narrativa. No existem, ao contrrio, gneros
descritivos, e imagina-se mal, fora do domnio didtico
(ou de fices semididticas como as de Jules Verne),
uma obra em que a narrativa se comportaria como au-
xiliar da descrio.
O estudo das relaes entre o narrativo e o des-
critivo reduz-se portanto, no essencial, a considerar as
funes diegticas da descrio, isto , o papel repre-
sentado pelas passagens ou os aspectos descritivos na
economia geral da narrativa. Sem entar entrar aqui no
detalhe deste estudo, reter-se- pelo menos, na tradi-
o literria clssica (de Homero ao fim do sculo
XIX), duas funes relativamente distintas. A primeira
de certa forma, de ordem decorativa. Sabe-se que a
retrica tradicional, classifica a descrio, do mesmo
modo que as outras figuras de estilo, entre os orna-
mentos do discurso: a descrio longa e detalhada apa-
receria aqui como uma
pausa
e uma recreao na nar-
rativa, de papel pUtamente esttico, como o da escultura
em um e,difcio clssico. O exemplo mais clebre disso
talvez a descrio do escudo de Aquiles no canto
XVIII da Ilada. E sem dvida a este papel de cenrio
que pensa Boileau quando recomenda a riqueza e a
pompa nesse gnero de trechos. A poca barroca ficou
marcada por uma espcie de proliferao do excurso
descritivo, muito sensvel por exemplo no
Moyse sauv
de Saint-Amant, mas que acabou por destruir o equi-
lbrio do poema narrativo
em
seu declnio.
A segunda grande funo da descrio, a mais cla-
ramente manifestada hoje, porque se imps, com Balzac,
na tradio do gnero romanesco, de ordem simulta-
neamente explicativa e simblica: os retratos fsicos, as
descries de roupas e mveis tendem, em Balzac, e
seus sucessores realistas, a revelar. e ao mesmo tempo
Pelo menos como a tradio clssica a interpretou e Imitou. E preciso notar
contudo que a descrio neste caso tende a animar-se e portanto a se nar
rativizar.
264
a justificar a psicologia dos dos. so
ao mesmo tempo signo, causa e efeito. A descnao torna-
se aqui, o que no era na poca clssica,
um
elemento
maior da exposio: que se pense nas casas de Mlle.
Cormon em a
Vieille Fille
ou de Balthasar Claes em
La
Recherche de l Absolu. Tudo isso no obstante
bem conhecido para que continue insistin,do. Notemos
somente que a evoluo das formas .
tituindo a descrio ornamental pela descnao Slgmft-
cativa, tendeu (pelo menos at o incio do XX)
a reforar a dominao do narrativo: a descnao perdeu
sem nenhuma dvida em autonomia o que ganhou em
importncia dramtica. Quanto a cert as. do ro-
mance contemporneo que apareceram tmcJalmente co-
mo tentativas de liberar o modo descritivo da tirania
da
narrativa, no certo que seja preciso verdadeira-
mente interpret-las assim: caso se considere sob este
ponto de vista, a obra de RobbeGrillet apareceria
sobretudo como
um
esforo para realizar uma narrativa
(uma histria por meio quase de
imperceptivelmente mo,dificadas de
pagma
em pa.gma,
_o
que pode passar ao mesmo tempo por uma. conflrmaao
notvel de sua irredutvel finalidade narrahva.
E necessrio observar enfim que todas as diferen-
as que separam descrio e na.rrao so.
de contedo, que no tm propnament e se-
miolgica: a narrao liga-se a aes ou
tos considerados como processos puros, e por tsso mes-
mo pe acento sobre o aspecto temporal e dramtico
da narrativa; a descrio ao contrrio, uma vez que
demora sobre objetos e seres considerados
em
sua SI-
multaneidade, e encara os processos eles mesmos como
espetculos, parece suspender o curso do tempo e
tribui para espalhar a narrativa no espao. Estes do:s
tipos de discurso podem portanto aparecer como
expn
mindo duas atitudes antitticas ,diante do mundo e
da
existncia uma mais ativa, a outra nais contemplativa
e togo, uma equivalncia tradicional, mais po-
tica. Mas do ponto de vista dos modos de represen-
265
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7/11
tao, narrar um acontecimento e descrever um objeto
so duas operaes semelhantes, que pem em jogo os
mesmos recursos da linguagem. A diferena mais sig-
nificativa seria talvez que a narrao restitui, na suces-
so
temporal .do seu discurso, a sucesso igualmente
temporal dos acontecimentos, enquanto
que_
a descrio
deve modular no sucessivo a representao de objetos
simultneos e justapostos no espao: a linguagem
nar-
rativa se distinguiria assim por uma espcie de coinci-
dncia temporal com seu objeto,
do
qual a linguagem
descritiva seria ao contrrio irremediavelmente privada.
Mas esta oposio perde muito de sua fora na litera-
tura
escrita, on de nada impede o leitor de voltar atrs
e de considerar o texto, cm sua simultaneidade espa-
cial, como um analogon do espetculo que descreve: os
caligramas de Apollinaire ou as disposies grficas do
Coup
de ds s fazem levar ao limite a explorao de
certos recursos latentes da expresso escrita.
Por
outro
lado, nenhuma narrao, mesmo a da reportagem
ra -
diofnica, no rigorosamente sincrnica ao aconteci-
mento que relata, e a variedade das relaes que podem
guardar o tempo da histria e o da narrativa
acaba
de
reduzir a especificidade da representao narrativa. Aris-
tteles observa j que uma das vantagens
da
narrativa
sobre a representao cnica poder
tratar
diversas
aes simultneas
8
: mas obrigada a trat-las sucessi-
vamente, e ento sua situao, seus recursos e seus
limites so anlogos aos da linguagem descritiva.
Parece portanto claro que, enquanto modo da re-
presentao literria, a descrio no se distingue bas-
tante nitidamente da narrao, pela autonomia de
seus fins, nem pela originalidade .de seus meios, para
que
seja
necessrio romper a unidade narrativo-descri-
tiva
a
dominante narrativa) que Plato c Aristteles
designaram narrativa. Se a descrio marca uma fron-
teira
da
narrativa, bem uma fronteira interior,
e
tudo
somado, bast:mte indecisa: englobar-se- portanto sem
prejuizs, na noo de narrativa, todas as formas ela rc-
8
1459
b.
66
presentao literria, e considerar-se- a no
como um dos seus modos o que impli cana uma espe-
cificidade de linguagem), porm, mais modestamente,
como um de seus aspectos - mesmo sendo este, de
um certo ponto de vista, o mais atraente.
Narrativa e Discurso
Ao
ler-se a
Repblica
e a
Potica
pa:ece. 9ue Plato
e
Aristteles reduziram aprior stica e o
campo
da
literatura ao da 1_1teratura
representativa: poiesis = mtmests. Caso,
tudo que se encontra excludo do poehco po_r esta
deciso veremos desenh ar-se uma ltima d a
que poderia ser a mais importante e a mats
significativa. Trata-se somente,.
nada m_ais
nada
da poesia lrica, satrica e didtica: para so cttar
alguns dos nomes que um grego dos V IV
devia conhecer, Pndaro, Alceu, Safo, Arqmloco, Heswdo.
Assim, para Aristteles, e apesa r que usa o
metro que Homero, Empdocles nao e um .
preciso chamar a um poeta e ao outro e nao
poeta. Mas certamente Arquloco, Safo,
Pmdaro
no
podem ser chamados fsicos: o que possuem comum
todos os excludos da
Potica
que sua obra_ nao c?n-
siste em imitao, por narrativa ou cemca:
de uma ao, real ou fingida, extenor a e f
palav ra do poeta, mas simplesmente em . dtscurso
mantido por ele diretamente em seu pr?pn? nome.
Pndaro canta os mritos do vencedor oltmp:co.
quloco invectiva seus inimigos polticos, .
da
conselhos aos agricultores, Empdocles ou Parmemdes
expem
sua
teoria do universo: no h neles nenhuma
representao , nenhuma fico, uma
que se investe diretamente no
d1_scurso
_da. Pode
se dizer a mesma coisa da poesta elegtaca
lah?a
tudo que chamamos hoje muito largamente poesta hnca,
1447 b.
267
-
7/26/2019 genette-fronteiras-da-narrativa.pdf
8/11
de
tu?o_
que.
reflexo
fica . ' expostao ctenhftca ou paracient-
' dirio ntimo, etc Todo
to de expresso direta, que
.
fi
- ' seus torneios, suas formas escapa
a re exao da p 'f
representativa da a funo
d . mos at uma nova diviso
e uma amphtude muito grande pois que di v d '
?uas partes de importncia igual t e em
JUnto do que chamamos hoje literatura o con-
Esta d -
f -
tvtsao corresponde aproximadamente dis-
tmao proposta recentemente por Emile Benveniste
re narraftva (ou histria e disc . en-
que Benveniste en lob com a dtferena
que Aristteles h g a do discurso tudo
efetivamente aoc tmttaao dtreta, e que consiste
curso pelo dis-
Benveniste mostra que certas f m e seus
mahca
1
s como ormas gra-
cita t
) . .
o. pronome eu (e sua referncia impl-
t .
u ' os tndtcadores pronominais (certos d
.rahvos) ou adverbiais (como
aqui agora h
.
emot
ns-
amanh et )
1
' '
OJe
on
em
do verbo ' e, pe o menos
em
francs, certos tempos
fut ' orno o presente, o passad o composto ou o
reservados ao discurso, enquanto
rra em sua forma estrita marcada elo
emprego exclusivo da terceira pessoa e d f p
o aoristo pas d
1
e ormas como
uer . u . s a o stmp es) e o mais-que-perfeito. Quais-
q q e sejam os detalhes e as variaes de d
a outro toda t d' um
1
toma
, . : es as tferenas se reduzem claramente
a objetividade da narrativa e a
o tscurso mas .
d
se trata no caso de u ' . . . preciSo m tear que
jetividade definida or e de uma sub-
lingstica: dt_os de ordem propriamente
plidtamente ou - o IScurso onde se marca, ex-
nao, a presena de (ou a
f
A
a) eu mas este
eu
no se
d-efine
(fe h re erencta
nen
um
modo
;. Como a dico que conta a I -
osta
como o
fez
Aristteles ,
e
nao o que dito exclulr-se-o desta
as
exposies em forma os dilogos socrticos de Plato e
es relations de tem d
1
que se prendem
imitao e '
nos Probleme s de fra2nais ,
B.S.L 1959;
' pp.
37250.
268
como a pessoa que mantm o discurso, do mesmo modo
que o presente, que o tempo por excelncia do modo
discursivo, no se define de nenhum modo como o mo-
mento em que o discurso enunciado, sem emprego
marcando a coincidncia do acontecimento descrito com
a instncia do discurso que o descreve., Inversamente,
a objetividade
da
narrativa se define pela ausncia de
toda referncia ao narrador: Para dizer a verdade,
narrador no existe mesmo mais. Os acontecimentos so
colocados como se produzem
medida que aparecem
no
horizonte da histria. Ningum fala aqui; os acon-
tecimentos parecem narrar-se a si mesmos.
Temos a, sem nenhuma dvida, uma descrio per-
feita daquilo que , em sua essncia e em sua oposio
radical a t oda forma de expresso pessoal do locutor,
a narrativa em estado puro, tal como se pode ideal-
mente conceber e tal como se pode efetivamente loca-
liz-la em alguns exemplos privilegiados, como os que
o prprio Benveniste toma emprestado ao historiador
Glotz e a Balzac. Reproduzimos aqui o extrato de Gam-
bara,
que analisaremos a seguir em detalhe:
Aps uma volta pela galeria, o rapaz olhou alter-
nativamente o cu e seu relgio, fez um gesto de im-
pacincia, entrou em uma tabacaria, onde cendeu um
charuto, colocou-se diante de um espelho, e lanou
um
olhar a seu costume, um pouco mais rico do que o
permitem em Frana as leis do gosto. Reajustou seu
colarinho e seu colete de veludo negro sobre o qual
se cruzava diversas vezes uma dessas grossas corren-
tes de ouro fabricadas em Ones; ento, aps haver
lanado de um s movimento sobre o ombro esquerdo
o casaco forrado de veludo e arrumando-o com elegn-
.cia, retomou seu passeio sem se deixar .distrair pelas
olhadelas burguesas que recebia. Quando as lojas co-
mearam a se iluminar e a noite lhe pareceu bastante
escura, ele se dirigiu para a praa do Palais-Royal como
um homem temia ser reconhecido, pois contornou
oa
la dans te op.
cft.,
p. 262.
lbid. p. 241.
269
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a praa at a fonte, para ganhar o abrigo dos fiacres
entrada da rua Froidmanteau
Neste grau de pureza, a dico prpria da narra-
tiva de certa forma a transitividade absoluta do texto
a ausncia perfeita (deixando de lado algumas
es s quais voltaremos dentro em pouco), no so-
mente do narrador, mas tambm da prpria narrao,
If ia eliminao rigorosa de. qualquer referncia ins-
tncia de discurso que o constitui.
O
texto est a,
sob
nossos olhos, sem ser proferido por ningum, e nenhu-
ma (ou quase) das informaes que contm exige,
para
ser compreendida ou apreciada, de ser relacionada com
sua fonte; avaliada por sua distncia ou sua relao
ao locutor e ao ato de locuo. Se compararmos
um
tal
enunciado com uma frase como esta: Eu esperava para
escrever a voc que tivesse morada fixa. Enfim estou
decidido: passarei o inverno aqui
,
medir-se- a
que
ponto a autonomia da narrativa ope-se dependncia
do discurso, cujas determinaes essenciais (quem
eu
voc
que lugar designa aqui?) s podem se;
em
relao situao na qual foi produzida.
No dtscurso, algum fala, e
sua
situao no ato mesmo
de falar o foco das significaes mais importantes;
na
. narra tiva, como o diz Benveniste com fora,
nin-
guem fala
no sentido de que
em
nenhum momento temos
de
nos quem
fala onde
e quando etc.)
para
receber mtegralmente a significao do texto.
Mas preciso acrescentar logo que as essncias da
narrativa e do discurso assim definidas no se encon-
tram quase nunca
em
estado puro
em
nenhum texto:
h quase sempre uma certa proporo de narrativa no
discurso, uma certa dose de discurso na narrativa.
Para
dizer a verdade, aqui se esgota a simetria, pois tudo
se passa como se os dois tipos de expresso se encon-
trassem muito diferentemente afetados pela contamina-
o: a insero de elementos narrativos no plano do
discurso no basta
para
emancipar este ltimo, pois
eles permanecem
com
maior freqncia ligados refe-
Senanco ur, Oberman, Carta V.
27
rncia do locutor, que fica implicitamente presen te. no
ltimo plano e que pode intervir de novo a cada ms-
tante sem este retorno seja como uma
t -
Asst'm temos nas
Memozres d outre-tombe
tn rusao. ,
esta passagem aparentemente objetiva: Quand? o mar
estava alto e havia tempestade, as chtc?teadas
ao p do castela, do lado
da
prata, espt.rravam
at as grandes torres. A vinte pes de altura actma ?a
base de uma dessas torres, p.ara?eito de gramto
dominava estreito e escorregadiO, mchnado, pelo qual
se
0
revelim que defendia o fosso: tratava-se
de pegar
0
instante entre duas vagas, atravessar o .pe-
rigoso stio antes que a vaga se quebrasse e
a torre . Mas sabemos que o narrador, cuja pes-
soa foi momentaneamente eliminada durante esta
pas-
sagem no foi muito longe, e no ficamos nem sur-
presos' nem embaraados quando ele retoma a palavra
para acrescent ar: Nenhum de .ns se recusava
tura mas eu vi crianas empalidecer antes de tenta-lo.
A
danao
no tinha verdadeiramente da
do discurso na primeira pessoa, que a tmha absorvtdo
sem esforo nem distoro, e sem cessar de ser ele
mesmo. Ao contrrio, qualquer de
discursivas no interior de uma e .senhda como
uma infrao ao rigor do partido narrativo. Acontece
isto com a breve reflexo inserida por Balzac. no. texto
transcrito acima: seu costume
um
pouco
mars nco do
que
0
permitem
em
Frana
as
leis
do
bom gost?. Pode-
se dizer mesmo da expresso uma
dessas correntes
de ouro
fabricadas em Genova que
contm evidentemente o esboo de uma passagem . no
presente fabricadas corresponde no a que
se
vam mas sim a que se fabricam) e de uma alocuao
direta ao leitor, implicitamente tomado como testemunha.
Dir-se-ia ainda
o
mesmo do adjetivo
bur-
guesas e da locuo adverbial
implicam um julgamento cuja fonte e aqm
vtstvelme11tc
narrador; da expresso relativa omo um homem
10 livro primeiro, cap.
V.
271
-
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10/11
que temia,
que
em
latim seria expressa no subjuntivo
pela apreciao pessoal que comporta; e em fim da
pois
contornou, que introduz uma explica-
ao proposta pelo autor.
E
evidente que
a
narrativa
no integra esses enclaves discursivas, justamente cha-
mados por Georges Blin intruses do autor to fa-
cilmente quanto o dis curso acolhe os enclave ;. narra ti-
vos: a narrativa inserida no discurso se .transforma em
elemento do discurso, o discurso inserido
na
narrativa
discurso e forma uma espcie de quisto
mutto faci de reconhecer e localizar. A
pureza
da
nar-
rativa, dir-se-ia, mais fcil de preservar do que a
do discurso.
A razo. desta dissimetria de resto muito simples,
mas nos destgna um carter decisivo da narrativa:
na
verdade, o discurso no tem nenhuma pureza
a pre-
servar, pois o modo natural da linguagem, o mais
aberto e o mais acolhendo
por
definio to-
das as formas;
a
narrativa, ao contrrio, um modo
particular, definido por um certo nmero de excluses
e condies restritivas (recus a do presente,
da
pri-
metra pessoa, etc.). O discurso pode narrar sem ces-
sar
de ser discurso,
a
narrativa no pode discorrer
sem sair
.de
si mesma. Mas no pode tambm abster-
se dele sem tombar na secura e na indigncia: por-
que
a
narrativa no existe nunca por assim dizer na
rigorosa. A menor observao geral, o menor
adjehvo um pouco mais que descritivo, a mais discreta
comparao, o mais modesto talvez, a mais inofensiva
das articulaes lgicas introduzem em sua trama um
tip o de fala que lhe estranha, e como refratria. Se-
ria. preciso, para estudar em detalhe esses acidentes s
numerosas e minuciosas anlises
de textos. Um
.dos
objetivos deste estudo poderia ser
de e class ificar os meios pelos quais a
literatura narrativa
(e
particularmente romanesca)
.tem
tentado organizar de uma maneira aceitvel, no interior
de
prpria
lexis, as.
relaes delicadas que a entretm
as extgenctas da narrahva e as necessidades do discurso.
272
Sabe-se com efeito que o romance nunca conseguiu
resolver de maneira convincente e definitiva o problema
colocado por essas relaes. Ora, como foi o caso da
poca clssica, em um Cervantes, um Scarron, um Fiel-
ding, o autor-narrador, assumindo complacentemente seu
prprio discurso, intervm na narrativa com uma indis-
crio ironicamente marcada, interpelando seu leitor no
tom da conversao familiar; ora, ao contrrio, como
se v ainda
na
mesma poca, ele transfere todas as
responsabilidades do discurso
a
um personagem princi-
pal que
falar,
isto
,
narrar e comentar ao mesmo
tempo os acontecimentos,
na
primeira pessoa: o caso
dos romances picarescos, de
Lazarillo
a il
Blas,
e de
outras obras ficticiamente autobiogrficas como
Manon
Lescaut
ou a
Vie de Marianne; ora
ainda, no podendo
se resolver nem
a
falar
em
seu prprio nome nem a
confiar essa tarefa
a
um
s personagem, ele reparte o
discurso entre os diversos atores, seja sob a forma de
cartas, como fez freqentemente o romance do sculo
XVIII
La Nouvelle Hloise, Les Liaisons dangereuses),
seja, maneira mais gil e sutil de
um
Joyce ou de
um Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa ser
assumida pelo discurso interior de seus principais
per-
sonagens. O nico momento em que o equilbrio entre
narrativa e discurso parece .ter sido assumido com uma
boa conscincia perfeita, sem escrpulo ou ostentao,
evidentemente o sculo XIX, a idade clssica
da nar-
rao objetiva, de Balzac a Tolstoi; v-se ao contrrio
a que ponto a poca moderna acentuou a conscincia
da
dificuldade, at tornar certos tipos de alocuo como
fisicamente impossveis para os escritores mais lcidos
e mais rigorosos.
Sabe-se bem, por exemplo, como o esforo
para
conduzir a narrativa ao seu mais alto grau de pureza
levou certos escritores americanos, como Hammett ou
Hemingway, a excluir dela a exposio dos motivos
psicolgicos, sempre difcil de apresentar sem recurso
a consideraes gerais de natureza discursiva, as qua-
lificaes implicando numa apreciao pessoal do nar-
Anlise strutural 8
273
-
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11/11
rdor,
as
ligaes lgicas, etc., at reduzir a dico ro-
manesca a essa sucesso brusca de frases curtas, sem
articulaes, que Sartre reconhecia em 1943 em
L'Etran-
ger
de Camus, e que se pde reencontrar dez anos mais
tarde em Robbe-Grillet. O que se interpretou com fre-
qncia como uma aplicao
literatura
das
teorias
behavioristas era talvez somente o efeito de uma sensi-
bilidade particularmente
aguda
a certas incompatibilida-
des
da
linguagem. Todas as flutuaes
da
escritura ro-
manesca contempornea ganhariam sem dvida se
ana-
lisadas sob este ponto de vista, e particularmente a
tendncia atual, talvez inversa
da
precedente, e comple-
tamente manifestada em um Sollers ou
um
Thibaudeau,
por exemplo, de fazer desaparecer a narrativa no dis-
curso presente do escritor no ato de escrever, no que
Michel Foucault chama o discurso ligado ao ato de
escrever, contemporneo de seu desenvolvimento e en-
cerrado nele. ,. Tudo se passa aqui como se a litera-
tura tivesse esgotado ou ultrapassado os recursos de seu
modo representativo, e quisesse refletir sobre o murm-
rio indefinido de seu prprio discurso. Talvez o romance,
aps a poesia, v sair definitivamente da idade da re-
presentao. Talvez a narrativa, na singularidade ne-
gativa que acabamos de lhe reconhecer, seja j para ns,
como a arte para Hegel, uma
coisa
do
passado
que
preciso considerar s pressas em sua retirada, antes
que tenha desertado completamente nosso horizonte.
RARD
ENETTE
Faculdade
de
Letras e Cincias Humanas Paris.
L'arriere-fab le , L'Arc, nmero especial sobre Jules Verne, p.
6
74
Dossi
ESCOLH BIBLIOGRFIC
A narrativa pertence em princzpzo a uma cincia j constituda,
a histria literria, que no essencial; entretanto, no foi
ainda
tratada
de um
ponto
de
vista
estrutural; por outro lado a
bibliografia
do
estruturalismo
certamente abundante mas sem
relao
direta com
a
narrativa.
Disto
resulta
que
uma bibliografia
da anlise estrutural da narrativa no pode ser seno muito re-
duzida limitada s obras e aos textos j bem conhecidos de
Propp
(Morphologie
du
conte), Dumzil (La Saga de Hadingus:
du
mythe
au
roman), Lvi-Strauss Greimas (Smantique Structural)
e
Bremond ( Le
message narrati/ , in Communications n. 4), ou
infinita, alongada notadamente perspecti va monstruosa de
tudo
que se escreveu sobre o conto a epopia o romance o teatro etc.
Entre estes dois
partidos,
escolhemos com arbitrariedade eviden-
te mas ao que parece inevitvel aprese ntar um
nmero modesto
de trabalho s escol hidos
durante
nossas
leituras;
esses
trabalhos
encontram-se todos s vezes de uma maneira implcita
em
ra-
zo de sua data relacionad os com o ponto de vista
lista. No pois uma bibliografia que propomos; caso se
queira um
primeiro
dossi de trabalho.
As obras que seguem foram escolhidas em comum pela equi-
pe do Centre d'Etudes de Communications de Masse; toram apre-
sentadas
por
Cl. Bremond, O Burgelin, G. Genette e T. Todorov.
So apresentadas
aqui
na
ordem
aproximada
de seu aparecimen-
to. R. B.
udw ig (Otto), Studien (Gesammelte Schriften, vn Leipzig,
1891 Em seus estudos sobre o romance, Ludwig esboou dois
grandes tipos de narrativa que chama a narrativa propriamente
dita e a narrativa cnica . Na narrativa propriamente dita, o
narrador deve .levar em conta sua prpria representao na
obra;
ele narra a histria segundo a ordem
em
que a conheceu e ser
75