GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES … · intuito de ser apenas uma etapa no esforço...
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FACULDADE SETE DE SETEMBRO
CURSO GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO
GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES
JORNALISTAS
CAMILA STEPHANE CARDOSO SOUSA
FORTALEZA
2010
FACULDADE SETE DE SETEMBRO
CURSO GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL –
JORNALISMO
Camila Stephane Cardoso Sousa
GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES
JORNALISTAS
Monografia apresentada à Faculdade 7 de
Setembro como requisito parcial para obtenção
do título de Bacharel em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo.
Orientador(a): Prof. Ana Paula Rabelo Rabelo e Silva, MSc.
FORTALEZA
2010
GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES JORNALISTAS
Monografia apresentada à Faculdade 7 de Setembro como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.
_____________________________
Camila Stephane Cardoso Sousa
Monografia aprovada em: ____ / ____ / ____
______________________________________
Profa. Ana Paula Rabelo e Silva, MSc. (FA7)
1º Examinador: ______________________________________
Prof. Paulo Germano Barrozo Albuquerque, Dr.
2º Examinador: ______________________________________
Profa. Sandra Maia Farias Vasconcelos, Dra.
___________________________________
Profa. Juliana Lotif, MSc. (FA7)
Coordenadora do Curso
A Maria dos Remédios Cardoso
e Antônio Roberto de Sousa,
com os quais eu aprendi o significado de ser um/a grande profissional.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, professora Ana Paula Rabelo e Silva, por ter aceitado o convite desde o
primeiro momento, quando eu ainda não sabia exatamente o que queria pesquisar e,
principalmente, por todos os momentos de conversa e discussão que enriqueceram bastante
este trabalho.
À professora Sandra Maia-Vasconcelos por ter me proposto a pesquisa na área de discurso e
gênero que me instigou a continuar estudando a temática, o que acabou por resultar no
desenvolvimento da monografia. Também por ser um exemplo de profissional competente por
quem tenho bastante admiração.
Ao professor Paulo Germano Barrozo Albuquerque por aceitar compor a banca examinadora
e por ter me instigado durante o curso a ir além dos textos mais simples e a aprender que a
pesquisa é um constante processo de aprendizagem.
A Isadora Machado que, em 2005, disse que eu teria muito mais futuro fazendo Jornalismo e
Letras do que Direito. Cá estou eu e aqui continuamos nós. Também a Deborah Aragão por
toda a ajuda que tem me dado e pelo apoio que ofereceu com a apresentação.
A Glenda Miranda Moura pela leitura e discussão desse trabalho, pela ajuda com as
transcrições, pelo ócio criativo que ela não me deixou faltar e pelo assessoramento. Também
por ter sido a questão de gênero que mais me intrigou e trouxe respostas nesses quatro meses.
Aos professores e funcionários da Faculdade 7 de Setembro com os quais tive o maior prazer
em conviver durante esses quatro anos. Alguns ainda continuam na Fa7, outros tomaram
rumos diferentes: Kátia Patrocínio, Elisângela Teixeira, Zezé Medeiros, Ismael Furtado,
Fátima Medina, Miguel Macedo, Eugênio Furtado, Demitri Túlio, Tiago Seixas, Danilo
Patrício, Dilson Alexandre, Alessandra Marques, Márcio Acserald, Katiúzia Rios.
Aos meus amigos pelas conversas e sugestões que surgiram ao longo de toda a pesquisa:
Hanna Lorena, Fernando Falcão, André Victor, Leide Tavares, Lorena Rodrigues, Magno
Gomes, Dannytza Serra, Neurielli Cardoso e aos meus colegas de curso.
À professora Ana Rita Fonteles, especialmente, por ter me ajudado a entrar em contato com as
informantes e pelo seu trabalho acerca de gênero e jornalismo que compartilhou comigo na
época em que fiz parte de sua turma.
Às informantes que prontamente atenderam ao meu convite para participar desta pesquisa e
que são uma parte das brilhantes jornalistas que crescem cada vez mais nas redações de
Fortaleza. Este trabalho é no intuito de levantar questões que possam vir a ser melhoradas
para todos/as nós.
RESUMO
SOUSA, C. S. C.. Gênero e construção de identidade de mulheres jornalistas. 2010. 74 f.
Monografia (Graduação em Jornalismo). Curso de Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo, Faculdade 7 de Setembro, Fortaleza, 2010.
Este trabalho tem por objetivo analisar a construção da identidade de jornalistas mulheres de
Fortaleza constituída através do discurso. A pesquisa aborda as relações entre jornalismo e
gênero, discutindo os conceitos que circundam ambos os pontos a fim de entender como o
Jornalismo foi se construindo social e historicamente, assim como de que forma
compreendemos a noção de gênero enquanto construto social e histórico. Baseamo-nos na
perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso Crítica (ADC) tanto para conceituar
discurso como para estabelecer nossas categorias de análise que se embasam nos modos como
os/as atores/as sociais se projetam e se relacionam no e através do discurso. Foram realizadas
3 entrevistas e um questionário com mulheres que trabalharam em jornais impressos de
Fortaleza por mais de cinco anos.
Palavras-chave: Jornalismo, gênero, identidade social, Análise de Discurso Crítica.
ABSTRACT
SOUSA, C. S. C.. Gênero e construção de identidade de mulheres jornalistas. 2010. 74 f.
Monografia (Graduação em Jornalismo). Curso de Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo, Faculdade 7 de Setembro, Fortaleza, 2010.
This paper aims to analise the constitution of the identity of female journalists in Fortaleza
through discourse. The research is about the relations between Journalism and gender,
discussing the concepts which surround both subjects so we can understand how Journalism
was built socially and historically, such as how we see gender as a social and historical
construct. We used the theoretical and methodological perspective of Critical Discourse
Analysis (CDA) to concept discourse and also to establish our categories that are supported in
the ways actors/actresses project themselves and relate in and through discourse, and how
they represent the world. We interviewed 3 women who work in pressed journals in Fortaleza
for over five years.
Key-words: Journalism, gender, social identity, Critical Discourse Analysis.
Elas querem é poder!
Mães assassinas, filhas de Maria
Polícias femininas, nazijudias
Gatas gatunas, kengas no cio
Esposas drogadas, tadinhas, mal pagas
Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz
Garotas de Ipanema, minas de Minas
Loiras, morenas, messalinas
Santas sinistras, ministras malvadas
Imeldas, Evitas, Beneditas estupradas
Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz
Paquitas de paquete, Xuxas em crise
Macacas de auditório,velhas atrizes
Patroas babacas, empregadas mandonas
Madonnas na cama, Dianas corneadas
Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz
Socialites plebéias, rainhas decadentes
Manecas alcéias, enfermeiras doentes
Madrastas malditas, superhomem sapatas
Irmãs La Dulce beaidetificadas
Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz
Todas as mulheres do mundo
Interpretada por Rita Lee
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09
2. JORNALISMO E GÊNERO ........................................................................................ 11
2.1 JORNALISMO COMO PROFISSÃO .......................................................................... 12
2.2 HISTÓRICO SOBRE AS QUESTÕES DE GÊNERO ................................................. 17
2.3 O CONCEITO DE GÊNERO SOCIAL ........................................................................ 22
2.3.1 Espaço público e espaço privado ............................................................................. 24 2.4 IMPRENSA FEMINISTA E IMPRENSA FEMININA ............................................... 25
3. PERSPECTIVAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA ................................... 29
3.1 ABORDAGENS DA ANÁLISE DE DISCURSO ........................................................ 29
3.2 PERSPECTIVA TEÓRICA E METODOLÓGICA DA ADC...................................... 32
3.2.1 Identidade social na perspectiva da ADC .............................................................. 35
3.2.2 A proposta de Norman Fairclough ......................................................................... 37
3.2.2.1 A prática discursiva ................................................................................................. 40
3.2.2.2 O texto ..................................................................................................................... 41
3.2.2.3 A prática social ........................................................................................................ 44
4. DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO CORPUS .................................................. 48 4.1 METODOLOGIA .......................................................................................................... 48
4.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS ......................................................................................... 49
4.3 APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .......................................... 50
4.3.1 Profissão e gênero ..................................................................................................... 50
4.3.2 Gênero e família ........................................................................................................ 62
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 72
APÊNDICE ........................................................................................................................ 75
1. INTRODUÇÃO
A atividade desempenhada atualmente por jornalistas, sejam homens ou mulheres,
implica um compromisso social muito importante. Frente a esse compromisso, a sociedade,
muitas vezes, tende a polarizar a atuação do/a jornalista, ora colocando-o/a sob a
responsabilidade de articular as diversas vozes que circulam por esferas bastante heterogêneas
e fazê-las chegar aos mais diversos grupos sociais, ora condenando-o sob a pena de não
possuir um olhar aguçado para captar uma ampla gama de acontecimentos e veiculá-la de
forma crítica.
Para entendermos de que modo se constitui esse compromisso social e o porquê de,
ao longo do tempo, as teorias da Comunicação se debruçarem cada vez mais e de forma cada
vez mais crítica sobre as relações sociais estabelecidas entre os meios de comunicação de
massa e seus receptores/interlocutores, é preciso focar nossa atenção a um papel social
fundamental em toda essa relação: a do/da jornalista.
Na busca por uma atuação mais comprometida e coerente, o/a jornalista deve ser
tratado não só a partir das atividades que desenvolve no jornal, no rádio, na televisão e na
internet, mas como um/a agente social influenciado por diversas estruturas sociais. É nesse
sentido que a identidade de categoria é pensada aqui não só a partir das editorias nas quais
atua, na construção de seu texto ou no relacionamento com os colegas, mas também enquanto
ser social que vivencia outras experiências e é por elas investido de significados.
Mais ainda, em suas ocupações de lugares sociais distintos, é nosso interesse
compreender de que forma se dá a construção da identidade de jornalista mulher na sua
relação categoria x gênero, na medida em que percebemos as diferenças de gênero como algo
perfeitamente plausível, mas que as desigualdades, ao contrário, devam ser modificadas.
Outro ponto a ser discutido é de que forma se articulam Jornalismo, e família, já que essa
interseção entre papéis sociais constitui sua identidade.
Nosso objetivo é compreender como se dá a construção da identidade da mulher
jornalista, que se subdivide em (i) perceber a construção de identidade de categoria e de
gênero, bem como seu entrecruzamento, na medida em que acreditamos na existência de
diferenças socialmente estabelecidas de categoria e de gênero; e (ii) entender, em que medida,
essas diferenças implicam em desigualdades também de categoria e de gênero.
As hipóteses estabelecidas nesta pesquisa foram: (i) que a identidade de gênero
implica uma relação de categoria, na medida em que se modificam conforme os cargos que
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ela ocupa e as editorias em que atua; e (ii) as relações estabelecidas entre gênero e categoria
implicam em diferenças que são revertidas em desigualdades nas redações.
Com o intuito de trabalhar o diálogo entre Jornalismo e gênero, abordamos no
capítulo intitulado “Jornalismo e gênero” seus principais conceitos e como se constituíram
historicamente.
No capítulo seguinte, procuramos estabelecer a proposta teórica e metodológica que
utilizamos para empreender nossa análise, a saber: a Análise de Discurso Crítica. Discutimos,
de maneira geral, as categorias utilizadas por essa proposta para discutir uma abordagem
discursiva acerca de gênero e Jornalismo.
Em seguida, descrevemos e interpretamos o corpus com base nas discussões
estabelecidas no capítulo anterior, elencando a Modalidade, a Transitividade e o Tema, os
conectivos e a argumentação, a Intertextualidade e a Interdiscursividade. A partir daí,
dividimos a análise em duas seções: Profissão e gênero, e Profissão e família.
Nosso trabalho se constitui, dessa forma, em um estudo sobre as identidades das
mulheres jornalistas em Fortaleza a partir de sua relação com o trabalho e com a família no
intuito de ser apenas uma etapa no esforço de compreender as relações de gênero e como elas
constituem e são constituídas pela sociedade na qual se ambientam.
2. JORNALISMO E GÊNERO
Ser mulher, assim como ser homem, na sociedade contemporânea implica uma rede
complexa de relações que vêm se reestruturando e se configurando ao longo dos últimos anos.
Atualmente, não se trata mais de estabelecer uma relação de igualdade ou de diferenças entre
os gêneros, mas entendê-los pela relação que se estabelece entre eles sem que,
necessariamente, ela seja dicotômica.
Embora haja cada vez mais liberdade na realização dos comportamentos, existem
padrões pré-estabelecidos pela sociedade, parâmetros de comportamentos que cristalizam não
somente preconceitos, mas modos de ser (mulher ou homem). Essa liberdade possibilita a
criação de novas identidades, mas também permite a construção de novos estereótipos que
precisam ser melhor estudados, o que não faremos neste momento.
Com essas mudanças ocasionadas, é possível perceber não só a concepção de
identidades femininas e masculinas como também suas influências sobre a estrutura social da
qual fazem parte. Assim é que, tais constituições operam transformações em discursos,
instituições, seja na esfera pública ou na esfera privada.
Dentro da esfera pública, a mulher passou a galgar espaços cada vez mais variados
bem como, dentro de um organograma, ela passou a desempenhar funções de chefia, embora
esse ainda seja um quadro bastante variado. É importante lembrar que, apesar de a mulher ter
conquistado esse espaço, as discrepâncias ainda são muitas. Segundo o Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (Unifem), as diferenças no cenário
social que levam em consideração as relações de gênero, etnia, sexualidade, dentre outros
ainda apresentam uma distância muito grande se considerarmos a posição da mulher branca
em relação à indígena ou à negra.
No jornalismo, é possível perceber a realização de muitas mudanças também desde o
século XIX até os dias de hoje, principalmente na metade do século XX quando se
intensificaram as lutas dos movimentos sociais por uma maior democratização dos direitos de
mulheres, negros, índios, homossexuais e outros grupos sociais.
Além das modificações nas identidades de gênero, houve também uma modificação
na identidade de jornalistas, não só enquanto grupo profissional, mas como um papel social,
como um lugar social desempenhado por homens e mulheres e que acompanhou as
modificações no exercício da profissão e na reflexão desse lugar social através de formações
técnicas e humanísticas.
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Oliveira (2005) ressalta a necessidade de se trabalhar a construção de identidades do
jornalista a fim de compreender, por exemplo, as práticas que o circundam, resultando na
construção de relações e identidades sociais que dizem respeito aos mais variados grupos e
segmentos da esfera social. Daí a importância de uma pesquisa que trate sobre essa identidade
do profissional para que se possa compreender melhor os processos de interpretação,
distribuição e consumo de práticas sociais que agregam e são agregadas pelo Jornalismo.
2.1 JORNALISMO COMO PROFISSÃO
O jornalismo pode ser entendido segundo algumas categorizações, nas quais pode
figurar, por exemplo, como sendo um campo da ciência ou um campo de atuação profissional.
No primeiro caso, integra a área de Comunicação Social juntamente com a Publicidade e
Propaganda, Relações Públicas e Assessoria de Imprensa; no segundo, corresponde a um
campo regulamentado institucionalmente e que obedece a determinados parâmetros técnicos e
se relaciona com proposições epistêmicas do primeiro.
Com o intuito de trabalhar, principalmente, com esse segundo ponto, é preciso que
estabeleçamos um conceito acerca de “profissão”. Dubar e Tripier (1998, citado por
FIDALGO, 2005) estabelecem quatro maneiras de compreendermos o termo “profissão”:
enquanto declaração, emprego, ofício e função. O primeiro diz respeito ao ato de professar
uma idéia; o segundo, enquanto um fazer que se realiza para se obter rendimentos a serem
utilizados para a sobrevivência e para realização; o terceiro, aproxima-se de grupo
profissional, na medida em que destaca um conjunto de sujeitos que desenvolvem um mesmo
ofício; e o quarto, a atividade específica desenvolvida por um sujeito dentro de um
determinado organograma.
O Jornalismo nasce com as idéias iluministas de se propor a liberdade, a
racionalidade e o individualismo. O homem deve procurar suas próprias respostas às questões
que possa vir a suscitar sem a intervenção do Estado, da Religião ou de qualquer outro que
possa induzi-lo a seguir um dado caminho. A isso, corresponde alcançar a sua maioridade, nas
palavras de Kant (s/d, citado por COUTO e FRITZEN, 2006), e libertar-se da menoridade, ou
seja, da ignorância. O Iluminismo objetiva, como já dito, opor-se aos Estados absolutistas, ao
mercantilismo, à nobreza e ao clero, principalmente, à ortodoxia religiosa (COUTO e
FRITZEN, 2006).
Contudo, essa proposta de libertação por parte do Jornalismo incorre no equívoco de
ser ele também um mediador entre a sociedade e os acontecimentos, figurando como um filtro
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de informações e designando o que é de interesse público. Embora rompa com a centralização
do poder e, principalmente, da informação nas mãos do Estado e da Igreja, ele se faz também
mecanismo de retenção, construindo seu espaço de dominação. Além disso, o Jornalismo foi
uma das ferramentas de sedimentação da burguesia no poder. Ao mesmo tempo em que
rompeu amarras, o Jornalismo também as propôs sob outros moldes.
Com a modernidade, há uma interrelação entre a profissionalização jornalística e os
adventos da industrialização. A prensa de Gutenberg dá início às possibilidades de produção
massificada no século XV, no entanto, os jornais só vêm a se estabelecer de forma estável no
século XVII, inicialmente, na Alemanha.
No Brasil, Hipólito da Costa editava o Correio Brasiliense de Londres, desde junho
de 1808. Em setembro do mesmo ano, é inaugurada no Brasil a Gazeta do Rio de Janeiro,
considerada o primeiro periódico brasileiro. Ambos são opostos, na medida em que o Correio
Brasiliense emite opiniões e informações políticas, bem como críticas à Coroa portuguesa,
enquanto a Gazeta do Rio de Janeiro se transforma no jornal com informações sobre a
administração da corte portuguesa à qual o Jornalismo se vincula, caracterizando-o a partir de
amarras estatais que segue até 1821, 1822, quando começam a aparecer jornais desvinculados
do Governo. “Isso implica dizer que a atividade jornalística sempre esteve sob vigilância,
controle, censura e julgamento do Estado, inclusive de Leis e júri específico” (SÁ, 1999, p.
41).
No Ceará, a imprensa passa a atuar em 1824 com o Diário do Governo do Ceará, do
Padre Mororó, também com os caracteres de jornalismo opinativo ligado à política e a grupos
de opinião. Ele formava uma frente de oposição ao governo na medida em que se colocava
como um jornal revolucionário. Tal quadro começa a se modificar a partir de 1915,
adquirindo um caráter mais noticioso e abrindo um maior espaço para a publicidade com a
criação do Correio do Ceará (SÁ, 1979).
Para o jornalista e historiador Geraldo Nobre (2004), os jornalistas passam a atuar
enquanto tal a partir do jornal Correio do Ceará ligado à igreja. Até então, os jornais eram
alimentados por colaboradores que não recebiam nenhum dinheiro, nenhum salário para o
exercício de suas atividades. Suas intenções eram principalmente de cunho político. O
Correio do Ceará surge então contratando jornalistas remunerados, embora suas carteiras não
fossem assinadas dada a falta de legislação trabalhista.
Em meados do século XIX, o jornalismo no Brasil adquire ares de jornalismo-
empresa gradativamente, o que, junto à mudança de jornalismo artesanal para jornalismo
industrial, invoca a necessidade de uma profissionalização do setor. Na passagem do século
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XIX para o XX, com a melhoria no campo tecnológico há mudanças também na parte gráfica
dos jornais, o que, por sua vez, ocasiona mudanças significativas em suas estruturas.
As mudanças na parte gráfica trazem também alterações na área editorial dos
jornais. A tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo; a
entrevista, substituindo o simples artigo político; o predomínio da informação sobre
a doutrinação; o aparecimento de temas antes tratados como secundários, entre eles
os policiais e os esportivos, são algumas delas (COUTO e FRITZEN, 2006, p.
3489).
Tais pontos são apontados também por Medina (1982), que evidencia ainda que o
modelo adotado pelo Brasil é importado dos Estados Unidos, chegando aqui 20 anos depois
de sua implantação. O ambiente boêmio no qual o jornalismo era feito foi substituído pelo
jornalismo de produção em massa, industrial.
Em 1908, é criada a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) com o interesse de
fornecer assistência aos jornalistas na área de saúde e farmacêutica. Na data de sua criação,
cogitou-se a implementação do primeiro curso de Jornalismo no Brasil, tendo em 1915
formulado o projeto do curso, só aprovado em 1918 no I Congresso Brasileiro de Jornalistas
no Rio de Janeiro (MOURA, 2002 apud COUTO e FRITZEN, 2006), e concretizado em 1947
no estado de São Paulo. No governo de Vargas, dá-se continuidade ao jornalismo atrelado à
indústria, principalmente, como mostram Couto e Fritzen (2006, p. 3490) “com a abertura de
crédito para empresas jornalísticas, com o objetivo de enfrentar os jornais controlados pelas
agências estrangeiras de publicidade”.
Essas intensificam sua atuação no Brasil a partir da década de 1970, quando as
multinacionais passam a se expandir mundialmente alocando filiais pelos mais variados
cantos do mundo. Em 1980, tem-se a busca pelo aumento na produção de notícias e na
redução temporal de investigação dos fatos, fruto do aprimoramento tecnológico da época,
resultando na década de 1990 no jornalismo on-line.
Dentro desse quadro histórico, os cursos de Jornalismo foram reclamados para uma
preocupação mais técnica tendo em vista a necessidade do domínio das novas ferramentas
disponibilizadas ao desenvolvimento de atividades jornalísticas em contraponto ao que
inicialmente se propuseram.
A criação dos cursos de Jornalismo acompanha esse debate e as necessidades dentro
do campo a partir de cada contexto. Em sua criação, os cursos estavam vinculados às
Faculdades de Filosofia e ofereciam, principalmente, uma formação humanística. Um ponto a
ser considerado é que, paralelo a essa criação, as mulheres já atuavam dentro dos campos da
Sociologia, da Filosofia, da Política, dentre outros e, nas décadas de 1950 e 1960 começavam
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a atuar com mais intensidade dentro dos movimentos sociais pelas melhorias de condições
femininas, o que talvez tenha influenciado sua posição enquanto jornalista ao ganhar os
espaços da academia. Tal ponto poderia ser abordado extensivamente em outro trabalho.
Com a necessidade de aumentar a potencialidade dos profissionais, tendo em vista os
avanços tecnológicos que propiciaram uma diminuição espaço-temporal, alguns educadores e
jornalistas, como Melo (2003), chamam a atenção para a necessidade de se criar cursos de
Jornalismo voltados para a especialização técnica de jornalistas a fim de preencher as
necessidades desse contexto. Outra transformação dos cursos foi o foco na formação
polivalente dos profissionais, ou seja, agregando Publicidade e Propaganda, Relações
Públicas ou áreas mais específicas dentro de um campo como telejornalismo e cinema, dentre
outras, dentro de Comunicação Social.
No Ceará, a criação de um curso de Jornalismo começou a ser pensada em 1937 em
uma sessão na Associação Cearense de Imprensa (ACI). Segundo Sá (1979), apesar de não
terem sido tomadas providências no sentido de concretizar essa empreitada, a ACI continuou
a empreender ações a fim de criar o curso de Jornalismo. Durante toda a década de 1950,
buscou criar a primeira escola de Jornalismo junto à Faculdade Católica de Filosofia. Em
1964, foram oferecidos dois cursinhos de Jornalismo para iniciantes de curta duração e, em
1965, realizava-se o primeiro Curso Livre patrocinado pela Universidade Federal do Ceará,
resultando na criação do Curso de Jornalismo que começou a funcionar em 1966. Sá (1979, p.
74) mostra que “a formação do profissional de Imprensa se fazia cada vez mais imperativa e o
Brasil tinha absoluta consciência dessa necessidade. O Ceará não fugiu dessa visão e desse
objetivo e tudo fez no sentido de também possuir a sua Escola [de Jornalismo].
O curso de Jornalismo no Ceará, assim como em outros estados, veio para suprir a
necessidade de se preparar profissionais para um mercado de trabalho cada vez mais rápido.
Também aqui, houve a passagem por um período de jornalismo boêmio, e que, aos poucos,
foi trocado pelo jornalismo empresarial, deixando cada vez mais de pedir profissionais que
agissem segundo seus impulsos criativos. O mercado de trabalho, com a industrialização,
demandava um preparo antecipado, daí a necessidade dos cursos. Sá (1979) ressalta também a
importância de se dar uma formação ética, científica e jurídica para os ingressantes na área.
A importância de se falar dos cursos de Comunicação Social reside no fato de que
eles acompanham bem de perto a formação do profissional ao longo do tempo. Foram eles
que acabaram por influenciar a formação dos mais variados tipos de jornalistas, resultando em
uma pluralidade de identidades desses/as atores/as sociais.
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Para Gramsci (1988), como salientam os autores Couto e Fritzen (2006), a integração
das duas possibilidades de formação, resultando na formação humanística e técnica de um
profissional evita polarizações. No caso do autor italiano, o foco foi dado na formação de
educadores, o que não impede de se pensar tal trabalho no campo do Jornalismo. Dessa
forma, teríamos jornalistas capacitados para o manejo das ferramentas necessárias ao ofício,
bem como conhecedores do contexto cultural, econômico e político da sociedade na qual atua.
Por outro viés, Medina (1982) chama a atenção para os debates travados sobre o
exercício do Jornalismo a partir da Sociologia, da Filosofia, da Linguística e da Psicologia
Social, mas que, principalmente, deveria ter uma atenção especial dentro da Comunicação que
entende melhor a lógica de produção e execução dentro do campo. No entanto, é preciso
chamar atenção – e Medina (1982) assim o faz - para o próprio exercício jornalístico que
divide espaço com o magistério, com o Direito, com as Letras, na medida em que o seu
profissional ocupa diversos cargos além daquele como jornalista.
Enquanto for possível servir à burocracia pública nas horas vagas (ou horas tiradas
do próprio jornalismo), às letras e ao direito, ao poder político e ao magistério, o
jornalista não se preocupa em delimitar precisamente sua função social específica.
Aconteceu isto do início do século a nossos dias, com períodos intermitentes de
consciência profissional (MEDINA, 1982, p. 44).
A profissão de jornalista, muitas vezes, é complementada com o exercício de outras
profissões ou mesmo escolhida por aqueles que não se encaixam em outro ofício ou não
sabem que funções podem desempenhar. Ao entrar na Academia, muitos alunos revelam que
decidiram entrar para o curso pela impossibilidade de ingressarem em outros ou para
complementar outro curso que desejam fazer.
A autora também chama a atenção para as mais diversas configurações do jornalista
a partir dos debates teóricos empreendidos pelas mais variadas correntes da Sociologia e da
Comunicação:
Para a maioria dos operadores da cultura de massa, há dois “atos de fé” que
permeiam sua atividade: primeiro, que eles são, em última análise, os
desencadeadores de certos efeitos na sociedade; segundo, que trabalham em um
produtor cultural de segunda categoria, confrontado com outros produtos culturais
mais bem conceituados na sociedade, como uma obra literária, uma tese sociológica,
ou um objeto de arte (MEDINA, 1982, p. 104).
Isso leva, muitas vezes, a colocar o jornalista em dois pólos completamente opostos:
para a perspectiva crítica, por exemplo, o jornalista é visto como um reprodutor da cultura de
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massa dentro de um processo alienado e alienante; para a perspectiva hipodérmica1, o
jornalista é tido como o provedor daqueles que precisam ter contato com o mundo social. A
identidade de jornalista é construída, desse modo, na tentativa de o profissional conseguir
balancear um posicionamento crítico com a articulação de suas idéias, fazendo chegar aos
mais variados públicos uma gama extensa de assuntos. Ele/a constitui-se, assim, mais como
um mediador entre eventos sociais e sujeitos do que um provedor social.
2.2 HISTÓRICO SOBRE AS QUESTÕES DE GÊNERO
Trazer as questões acerca de gênero para uma discussão mais eficaz faz com que seja
necessário contextualizá-las e apresentar explicações causais heterogêneas condizentes com
um cenário social, político, cultural, educacional e econômico ao qual estão diretamente
relacionadas às construções e representações de gênero. Este se apresenta assim como um
traço das mais diferentes culturas sincrônica ou diacronicamente. Ou seja, a constituição do
que se entende por feminino atualmente é diferente de como era concebida no século passado;
as relações entre gênero no Brasil, ou mesmo entre uma região e outra, apresenta diversos
fatores que se distanciam de como são construídos e percebidos os traços de gênero nas
sociedades européias ou norte-americanas, dentre outras.
Entender, então, muitas das mudanças que acontecerem no século XX no Brasil nos
ajuda a perceber como as concepções acerca de gênero foram se modificando. Faremos
também incursões ao século XIX para esclarecer e situar alguns aspectos e acontecimentos
importantes. A própria idéia de feminino e o modo como ela passou a ser construída e
representada ganhou novas nuances, passando a se considerar a construção de novas
identidades e de uma nova imagem da mulher.
Houve assim reformulações nos mais variados âmbitos da sociedade, reestruturando
instituições como a família, a escola, o Estado, a mídia, o Judiciário, a Academia; práticas
discursivas; instâncias sociais como economia, política, cultura. Focaremos, em especial,
aspectos ligados à mídia.
O debate sobre as questões de gênero no Brasil, principalmente dentro do âmbito das
Ciências Humanas, é bastante recente. Junto aos movimentos feministas que se intensificaram
nas décadas de 1950, 1960 e 1970, os trabalhos acerca do tema ganharam projeção não só
dentro dos movimentos sociais que eram organizados pelas militantes feministas, mas
também na Academia através de palestras, congressos, produção de artigos, dissertações,
1 cf. Lasswell, 1982.
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dentre outros. Por outro lado, havia uma repercussão também nas atividades desempenhadas
por essas mulheres que lidavam diretamente com o feminismo brasileiro, ou seja, na medida
em que eram, além de militantes, professoras, jornalistas, escritoras, políticas, tratavam de
inserir o assunto nas agendas de seus ofícios ainda que aos poucos.
É importante observar que as pesquisas e o debate sobre gênero não estão amarrados
somente às lutas feministas, apesar de eles terem caminhado juntos. Os estudos sobre gênero,
em grande parte, correspondem a uma reflexão feminista, mas tiveram participação de
filósofas, sociólogas, psicólogas, literatas, e alguns poucos homens, dentre outros/as, que não
estavam situados/as dentro do movimento. É comum também haver uma divisão em “ondas”
de feminismo para situar o debate. Nem todas as abordagens, porém, convergem para uma
mesma categorização, em geral, são apontadas três “ondas do feminismo” que contemplam os
movimentos ocorridos no século XX, com ênfase naqueles que se destacaram no período da
ditadura militar. Algumas autoras como, por exemplo, Duarte (2003) e Costa (2005)
consideram que se deveria fazer uma abordagem mais ampla, abordando também o século
XIX, visto que “o “feminismo” poderia ser compreendido em um sentido amplo, como todo
gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que
exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de
grupo” (DUARTE, op. cit., p. 152).
Para a autora, as abordagens feministas correspondem a quatro períodos e não três,
como, geralmente, são apontados nos estudos. Eles corresponderiam respectivamente a 1830,
1870, 1920 e 1970, continuando até os dias atuais, nos quais estaríamos inseridos/as em um
chamado pós-feminismo, dadas as conquistas das mulheres e o esfriamento nas militâncias
feministas com as graduais mudanças na concepção de gênero.
Embora as lutas tenham ganhado visibilidade no período de 1920, as mulheres
desempenhavam funções no âmbito público2 muito antes e daí a preocupação de Duarte
(2003) em considerar as movimentações acerca de gênero já na primeira metade do século
XIX, o que para ela corresponde à primeira onda do feminismo.
No Brasil, bem como em vários países latino-americanos, a exemplo do Chile,
Argentina, México, Peru e Costa Rica, as primeiras manifestações aparecem já na
primeira metade do século XIX, em especial através da imprensa feminina, principal
veículo de divulgação das idéias feministas naquele momento (COSTA, 2005, p.
11).
O que acarreta uma mudança social nas funções exercidas pela mulher é a sua
participação na educação. Era preciso, antes do engajamento em lutas e movimentos sociais,
2 cf. Seção 2.3.1.
19
que a mulher passasse a se perceber como um ser pensante (DUARTE, 2003) capaz de
desempenhar outras atividades além da de procriar, cuidar do lar e satisfazer os mais variados
caprichos de seu cônjuge. Ela própria teve que se ver segundo outros parâmetros sociais e
culturais, o que em parte foi possível pela abertura de escolas públicas femininas, autorizada
legislativamente em 1827. O ensino, ainda que voltado para a formação de donas-de-casa e
esposas devotadas no ofício de tecer, cozinhar, dentre outros atributos considerados
femininos, fez com que elas passassem a ter uma nova concepção de atuação social por conta
de uma educação que se diferenciava daquela à qual se tinha contato, primordialmente em
conventos, escolas particulares em casas de professoras e ensino individualizado.
E foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação
diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento
às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião
corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever (DUARTE,
2003, p. 153).
As mulheres passaram assim a trabalhar como professoras, escritoras, jornalistas. A
discussão acerca de gênero que era feita na Europa pôde ser trazida para o Brasil através de
traduções feitas por brasileiras que não só repassavam essas obras para o português, mas
reposicionavam na medida em que, ao traduzir, adaptavam as obras para o contexto brasileiro.
Em meados desse século, já começavam a aparecer jornais dirigidos por mulheres.
Alguns já eram voltados para o público feminino, mas era feito por homens que reproduziam
ali o comportamento social da época. As publicações feitas por mulheres, no entanto, eram
consideradas inferiores pelos críticos por causa do público ao qual era destinada (DUARTE,
2003). O primeiro jornal, datado de 1852, a se dirigir ao público feminino brasileiro era da
argentina Joana Paula Manso de Noronha e se intitulava Jornal das Senhoras. Suas
colaboradoras não figuravam no periódico e escreviam no anonimato.
O editorial do primeiro número expõe o firme propósito de incentivar as mulheres a
se ilustrarem e a buscarem um “melhoramento social e a emancipação moral”. [...] O
pioneirismo d”O jornal das senhoras, e suas colaboradoras tímidas e anônimas,
representaram, ainda assim, um decisivo passo na longa trajetória das mulheres em
direção à superação de seus receios e conscientização de direitos (DUARTE, 2003,
p. 55).
Dez anos depois, correspondente à segunda onda do feminismo, era publicado O belo
sexo no Rio de Janeiro pela escritora Júlia de Albuquerque. Esse periódico foi mais além: as
mulheres eram incentivadas a assinar seus textos e a participar da discussão dos temas a serem
publicados no jornal. Duarte (2003, p. 156) esclarece ainda que “Como eram mulheres da
20
classe alta, faziam questão de divulgar que o lucro da venda do jornal era entregue à Imperial
Sociedade Amante da Instrução, uma instituição de caridade para órfãos”.
A segunda fase é marcada pelo aparecimento de jornais e revistas feministas do Rio
de Janeiro e de outros pontos do país, o que marca um período mais jornalístico se comparado
ao anterior. Dentre os exemplares dessa época, podemos citar O sexo feminino, (1873-1875,
1887-1889, 1890-18963), dirigido por Francisca Senhorinha da Mota Diniz; Echo das damas,
(1875-1885), editado por Amélia Carolina da Silva Couto; O domingo (1873); O jornal das
damas (1873); A família, (1888-1897), dirigido por Josefina Álvares de Azevedo; de outros
estados, Duarte (2003) destaca ainda O corimbo (1884-1944), de Porto Alegre, publicado
pelas irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro; a revista A mensageira
(1897-1900), de São Paulo, dirigida por Presciliana Duarte de Almeida.
Às vésperas do século XX, no final do século XIX, são noticiadas as primeiras
participações femininas em universidades nacionais e do exterior. Ao passo em que essas
conquistas eram noticiadas pela imprensa feminista, os jornais e manifestações culturais
masculinas como o teatro e a literatura se empenhavam em críticas a essa participação
feminina.
A terceira onda do feminismo é marcada pela participação ativa das mulheres na
busca pela conquista de seus direitos políticos, como a participação através do voto, no ensino
superior e na prática de novas atividades dentro da sociedade, “pois queriam não apenas ser
professoras, mas também trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias”
(DUARTE, 2003, p. 160).
Por volta dos anos 20, Bertha Luz, grande nome das lutas feministas, funda a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino com outras participantes do movimento, a qual
se expandiu por vários estados brasileiros e durou cerca de 50 anos. Durante essa década, dois
principais grupos femininos compuseram as lutas pelos direitos das mulheres: um composto
por mulheres burguesas, que buscaram participar da grande imprensa; outro, vinculado ao
movimento anarco-feminista.
Em 1921, Rosalina Coelho Lisboa, autora do livro Rito Pagão, conquista o primeiro
prêmio no concurso literário da Academia Brasileira de Letras. Ela é também a primeira
mulher a ir para Montevidéu como representante de uma missão cultural designada pelo
governo brasileiro. Data de 1929, a eleição da primeira prefeita mulher, Alzira Soriano, no
município de Lajes, Rio Grande do Norte. Em 1932, é concedido o direito ao voto às
3 Nesta última fase, o periódico teve seu nome mudado para O quinze de novembro do sexo feminino, devido ao
entusiasmo de sua diretora com a Proclamação da República.
21
mulheres pelo presidente Getúlio Vargas, embora elas só tenham usufruído desse direito em
1945, devido à suspensão das eleições pelo presidente. Excetuavam-se os/as analfabetos/as
como já acontecia ao voto masculino.
Boa parte dessas manifestações se deu no Rio de Janeiro, capital brasileira à época e
palco de efervescência política e cultural, mas as atividades feministas se espalharam por
diversos estados brasileiros de uma forma cada vez mais abrangente e ativa. A exemplo disso,
temos a escritora Mariana Coelho, do Paraná, que contribuiu para a formação e disseminação
de aspectos intelectuais da mulher brasileira. Aqui em Fortaleza, Rachel de Queiroz quebrou
barreiras e foi um marco na atuação feminina tanto na Literatura, com seus romances, como
no Jornalismo, através de suas crônicas. “Como outras mulheres, Rachel colocou-se na
vanguarda de sua época ao penetrar no mundo das letras, na redação dos jornais e na célula
partidária, espaços entranhadamente masculinos” (DUARTE, 2003, p. 164).
A quarta e última onda do feminismo, já na década de 1970, propiciou as principais
mudanças culturais no que diz respeito às práticas de gênero. Na luta pelo rompimento com as
discriminações, houve o Ano Internacional da Mulher em 1975, em que o dia 8 de março foi
declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Mulher.
Devido ao cenário político brasileiro, as feministas se engajaram também nos movimentos
contra a Ditadura Militar e a censura. Também em 1975, é criado o jornal Brasil Mulher pelo
Movimento Feminino pela Anistia, e o Centro da Mulher Brasileira pela feminista Rose Marie
Muraro; em 1976, temos o periódico Nós mulheres. Em 1981, é criado o jornal Mulherio
pelas feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas.
No Brasil, a luta das feministas entre as décadas de 1960 e 1970, seguiu as
movimentações nacionais e internacionais dos movimentos sociais, que refletiam mudanças
socioeconômicas e políticas de toda a ordem, e principalmente em relação à expansão do
sonho americano, que prometia a prosperidade econômica, onde as mulheres seriam as
rainhas do lar, consumindo os bens duráveis e uma parafernália de eletrodomésticos
produzidos pela indústria emergente (RIBEIRO, 2007, p. 114).
As publicações eram voltadas para os mais variados temas desde a discussão entre o
público e o privado que cercava a temática de gênero, à participação das mulheres operárias
na sociedade brasileira, a condição da mulher negra, as relações entre a mulher e seu próprio
corpo, seu envolvimento político, o direito à cidadania, dentre vários outros assuntos.
A legitimação das pesquisas sobre gênero ganhou espaço dentro da Academia a
partir da atuação de professoras e alunas na busca por tornar o assunto muito mais do que em
pauta para trabalhos e debates, preenchendo a grande lacuna existente, mas em um campo de
22
pesquisa dentro das Ciências Humanas e, de forma mais ousada, um campo do saber, como o
é a Sociologia, por exemplo.
Na década de 1990, com a implementação dos assuntos debatidos durante todo um
século, boa parte do que era requerido pelas mulheres foi incorporado ao cotidiano delas e
assistiu-se no final do século XX e início do século XXI à representação de uma mulher tida
como mais independente, mais autônoma e participante ativa das mais variadas esferas
sociais, alcançando as repartições públicas, o magistério, as grandes multinacionais e
elencando postos cada vez mais altos dentro das hierarquias do espaço público. Isso fez com
que o movimento feminista em si perdesse visibilidade e sua atuação diminuísse. Costa
(2005), por outro lado, considera que
o feminismo enquanto movimento social nunca esteve tão vivo, tão mobilizado, tão
atuante como nesse inicio de século, de milênio. Talvez tenha mudado de cara, já
não “queima sutiã”, raramente faz passeata e panfletagem, o que não significa dizer
que tenha perdido sua radicalidade, abandonado suas lutas, se acomodado com as
conquistas obtidas ou mesmo se institucionalizado (COSTA, 2005, p. 9).
Apesar de tudo, muitas questões ainda se fazem necessárias no âmbito da concepção
de gênero, tendo em vista que as mudanças conquistadas não asseguram uma situação
igualitária entre os gêneros e essa não é uma questão atrelada apenas aos movimentos
feministas, como já foi dito, mas que diz respeito à constituição de identidades de homens e
mulheres.
2.3 O CONCEITO DE GÊNERO SOCIAL
A quantidade de conceitos atribuídos a gênero se estende tanto quanto sejam as
abordagens dos movimentos feministas - ou mais, tendo em vista que o debate não se
restringe somente a estes. A cada teórico ou perspectiva teórica, o conceito varia em um ou
mais pontos. A convergência das propostas se encontra no fato de que gênero é uma
construção social do que se entende por feminino e por masculino (BUTLER, 2008;
SAFFIOTI, 2004; CONFORTIN, 2003), em oposição a uma caracterização biológica dos
sexos. Esta última gera uma naturalização de atributos femininos e masculinos.
Enquanto categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias:
como aparelho semiótico (LAURETIS, 1987); como símbolos culturais evocadores
de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de
significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT,
1988); como divisões e atribuições assimétricas de característicos e potencialidades
(FLAX, 1987); como, numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não
23
apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações
mulher-mulher4. (SAFFIOTI, 2004, p.45).
É importante notar que, embora a maioria dos trabalhos acerca de gênero verse sobre
a situação da mulher em um determinado período histórico e sob condições culturais
particulares, o papel do homem também deve ser foco de estudos. O conceito de masculino
também passou por diversas mudanças em suas estruturas, o que está relacionado às
mudanças sociais ocorridas a respeito do feminino. Ambos se relacionam. Tanto que o próprio
conceito de patriarcado deve ser repensado. O homem deixou de exercer domínio sobre a
atuação de mulheres e crianças e passou, em muitos casos, a ser participante em nível
equivalente ao da mulher nos dias de hoje, apesar de a desigualdade entre gêneros ainda ser
muito presente.
Desvincular os predicativos femininos e masculinos de associações biológicas nos
permite inferir que eles são passíveis de reformulações e conseqüentes mudanças sociais.
Dizer que a mulher nasceu para cuidar da casa e dos filhos porque possui um aparato
biológico é dizer que a natureza lhe conferiu “qualidades” das quais ela não pode e nem deve
se desvincular. Consequentemente, não cabe a ela própria a mudança de suas práticas. Mas,
ao serem colocadas como escolhas e formações construídas segundo uma série de escolhas
complexas, dá-se a possibilidade de ela reformular os parâmetros segundo os quais ela se
constitui mulher. Por uma série de fatores sociais, culturais, políticos e históricos, aqueles
fatores são marcadamente para/de homens ou para/de mulheres. O papel desempenhado pela
mulher de dona-de-casa, durante um grande período esteve vinculado a ela sob a prerrogativa
de que a mulher havia nascido para cuidar da casa, que ela possuía os atributos necessários
para isso e que, portanto, estava presa a essa naturalização. Outra forma de garantir a
manutenção dos papéis femininos foi por meio da imersão cristã de mulheres em uma
autocupabilidade que cerceia suas atitudes “subversivas”. Citando Benedict (1988)5, Saffioti
(2004, p. 23) aponta que “As mulheres são treinadas para sentir culpa”.
O debate sobre a concepção de gênero parte, principalmente, das considerações
acerca do espaço privado e do espaço público, na medida em que as atividades, os
comportamentos e os adjetivos conferidos a um ou a outro gênero estão intimamente ligados
com suas atuações nas diferentes esferas marcadas, respectivamente, pela vida doméstica e
pela não-doméstica.
4 Nesse ponto, Saffioti (2004) referencia outros trabalhos (SAFFIOTI, 1992, 1997b; SAFFIOTI e ALMEIDA,
1995). 5 BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1988.
24
Esse debate não pode terminar num mero relato histórico ou descrição de definições,
é preciso que constantes estudos cumpram o papel de compreender a mulher e sua relação
com outros atores sociais.
2.3.1 Espaço público e espaço privado
Os primeiros trabalhos desenvolvidos sobre gênero no final do século XIX e começo
do século XX, embora rompessem com o posicionamento passivo da mulher na sociedade,
não quebrou com as amarras que prendiam a mulher às suas atividades de mãe e esposa,
voltadas para a realização de atividades domésticas situadas inteiramente dentro do lar. Para
as feministas que participaram da luta por mudanças sociais concernentes a gênero, à mulher
deveria ser dada a possibilidade da participação política na esfera pública, o que levaria a
melhorias no desempenho de seus papéis sociais enquanto mãe e esposa (OKIN, 2008).
Ao mesmo tempo em que busca se inserir em outros quadros da sociedade, ela busca
fazê-lo para reiterar suas funções sociais, não obstante a importância de dar esse primeiro
passo na busca por mudanças estruturais.
Discutir as relações entre o público e o privado se faz necessário tanto pela imersão
da mulher no espaço público como pela atuação do público no privado, o que foi necessário
para barrar muitos dos abusos de poder ocorridos em relações marido-mulher dentro do
espaço doméstico nas relações intrafamiliares. Okin (2008, p. 307) chama atenção para duas
diferenças entre o público e o privado: ““Público/privado” é usado tanto para referir-se à
distinção entre Estado e sociedade (como em propriedade pública e privada), quanto para
referir-se à distinção entre vida não-doméstica e vida doméstica”. Segundo a autora, essas
definições incorrem em uma ambigüidade que poucos autores atentam para a discussão de
ambas.
Colocadas sob essa relação, a sociedade civil, na primeira dicotomia, aparece como
privado; já na segunda, figura como público em oposição ao doméstico. O que nos leva, em
consonância com as propostas de Okin (2008) a considerar o contexto no qual os conceitos de
público e privado são utilizados. Se comparada a outra esfera da sociedade, um mesmo grupo
pode variar entre um ou outro espaço.
Outro ponto colocado pela filósofa é o de que mesmo se considerarmos a dicotomia
público/doméstico, incorremos em outro equívoco. Usualmente, consideramos o homem
como principal ator social da esfera pública, sendo o detentor do direito de exercer tais
funções. Na outra ponta, a mulher corresponderia à principal responsável pelo ambiente
doméstico. No entanto, por um bom tempo, o provedor da casa era unicamente o homem, ao
25
qual correspondia o papel de chefe de família. Logo, os direitos das mulheres e dos escravos,
por exemplo, estavam à mercê da delimitação de um homem “livre”.
Como os estudos feministas têm revelado, desde os princípios do liberalismo no
século XVII, tanto os direitos políticos quanto os direitos pertencentes à concepção
moderna liberal de privacidade e do privado têm sido defendidos como direitos dos
indivíduos; mas esses indivíduos foram supostos, e com freqüência explicitamente
definidos, como adultos, chefes de família masculinos (OKIN, 2008, p. 308).
A importância de se questionar as relações domésticas a partir daquilo que é público
é possibilitar a regulamentação daquele espaço de forma a reverter a situação em que muitas
mulheres se encontravam, na qual surge o problema da violência doméstica. Retidas no
espaço doméstico sob a prerrogativa de que, nesse caso, o público não interviria no privado
com o intuito de respeitar o direito à privacidade dos cidadãos, muitas mulheres tinham de
resignar-se ao silêncio, sob pena de ferirem um direito daqueles a quem era dado o exercício
da cidadania: os homens brancos alfabetizados.
2.4 IMPRENSA FEMINISTA E IMPRENSA FEMININA
Ao se pensar em imprensa feminista e imprensa feminina, cabe considerar de
maneira geral a utilização desses dois termos delimitadores de tais imprensas. Mais além,
algumas pesquisadoras, como Ferreira (2009), optam por adicionar dois mais: os de
feminilidade e feminilitude. Tais conceitos são importantes para a compreensão acerca da
concepção de gênero que se tem e de que forma influencia na construção identitária bem
como nas relações sociais inclusas nesse debate.
O feminino insere-se como pauta central dos estudos de gênero e circunscreve-se nas
construções sociais que delimitam o ser mulher em um determinado contexto social, político e
cultural. Feminismo, por sua vez, abrange os movimentos sociais discutidos neste capítulo
que visa a obtenção de direitos e mudanças sociais concernentes às mulheres neste início de
século e nos séculos XIX e XX. Feminilidade está ligado à concepção de gênero enquanto
atributos sociais femininos, com uma ressalva: diz respeito às características historicamente
atribuídas ao feminino, tais como sensibilidade, emotividade, etc. Já feminilitude aborda as
concepções de feminino a partir do que se entende por mulher na contemporaneidade,
exaltando aspectos como a independência, a autosuficiência, a autosustentabilidade, etc.
26
O problema de tomar esses dois últimos pontos é o perigo de cair em uma abordagem
essencialista6 de atribuir características à mulher e soar como uma naturalização destes. Assim
é que, muitas vezes, os trabalhos trazem que a mulher passou a desempenhar funções
masculinas ao mesmo tempo em que essas pesquisas fazem uma ressalva à manutenção de
características femininas, nas quais, apesar dessa tomada de posicionamento, elas mantêm seu
caráter emotivo e sensível como se à mulher fosse dada essa essência e, para efetuar as
mudanças que ela vem vivenciando, se valesse de uma essência masculina.
O mesmo pode ser debatido em uma perspectiva discursiva. No campo da literatura,
por exemplo, é comum, às vezes, ouvirmos que determinado autor possui uma escrita
feminina. Dizer isso implica investir um formato de escrita sob determinados adjetivos,
qualificados como femininos, ou seja, esse feminino se consolida a partir dos significados
atribuídos a ele e se sedimenta de forma natural, quando, na verdade, as escolhas que
operamos em um determinado tempo e espaço são o que investem o mundo de significações.
Da mesma forma, se pensarmos em discurso feminino, significa cristalizar características
dentro de formações enunciativas específicas, seja positiva ou negativamente. Por isso é que
falamos em discurso de gênero, um discurso que é situado social e historicamente com base
na construção também social e histórica de homens e mulheres. O próprio conceito de
discurso impede que o concebamos como naturalizado, o que veremos no próximo capítulo.
Quanto à identidade profissional, também ao/à jornalista são atribuídas
características próprias no ideal de se construir uma identidade desse grupo social. À época do
jornalismo boêmio, o profissional era tido como aquele idealista, ligado à capacidade de
produzir textos pautados em sua inspiração e criatividade e na destreza de produzir bons
textos com um apurado requinte literário. O jornal-empresa, por sua vez, gerava a necessidade
de um profissional apto a lidar com a correria do dia-a-dia e que dominasse as técnicas de
produção da notícia, assim como tivesse conhecimento do uso das mais variadas tecnologias,
o que tem se intensificado nos últimos tempos. O jornalista, atualmente, tem de ser uma
verdadeira multifuncional.
Diante dessas considerações, surgem alguns questionamentos: ao pensar uma
imprensa feminina, buscamos a construção de um papel social ou de dois papéis sociais que
se entrecruzam? Convocar a atuação de uma imprensa feminina é essencializar uma posição
social a partir de relações de gênero ou abrir espaço no contexto comunicacional em que
vivemos para temáticos concernentes a gênero? Como se define esse feminino? Neste
6 No sentido de que há uma essência feminina, na qual determinadas qualificações são atribuídas à natureza da
mulher e que, muitas vezes, recebem um respaldo biológico.
27
trabalho, é de nosso interesse trabalhar essas questões, principalmente, a partir do discurso, o
que não invalida outras formas de discussão.
Na relação entre imprensa feminina e imprensa feminista, não existe uma imprensa
feminista oficial no Ceará. Contudo, partidos, organizações não-governamentais e
movimentos sociais que defendem as causas feministas (como sindicatos, associações, dentre
outros) produzem material para a comunidade com a qual se relacionam. Estes informativos,
notas, ou jornais, mesmo que impressos sem periodicidade definida, fortalecem a relação
entre as mulheres do Ceará.
A imprensa cearense – assim como a brasileira, em geral – foi marcada pela forte
presença masculina em suas fundações, o que não ocorreu, por exemplo, na criação dos cursos
de Jornalismo, onde já era perceptível a atuação feminina desde o início. No Ceará, a primeira
mulher a atuar em uma redação foi Adísia Sá que, desde pequena, vivenciava um cotidiano
cercado de jornalistas que se hospedavam na pensão Sobral cujos donos eram seus pais
(AMORIM, 2005).
A própria Adísia Sá (2004) conta, em entrevista a Sebastião Rogério Ponte, que
cresceu entre a nata do jornalismo cearense por morar na rua Senador Pompeu, local onde
ficavam as redações de jornais de Fortaleza e, portanto, via muito de perto a atuação desses
jornalistas e como o jornalismo era praticado. Na época, por volta da década de 1950, a
distribuição se restringia ao Centro da cidade.
O jornal saía da Senador Pompeu, ia pela São Paulo, ali tinha a Assembléia
Legislativa, tinha ali os bancos, a praça Valdemar Falcão; fazia aqui, corria aqui,
vinha para o Palácio da Luz, passava pelo Abrigo Central, pela Praça do Ferreira e
voltava para a Senador Pompeu. Era só esse caminhozinho. [risos] Era uma
existência pequena. (SÁ, 2004, p. 19)
Com essa proximidade, Adísia Sá foi desenvolvendo uma paixão pelo Jornalismo e,
em 1955, se tornava a primeira mulher a trabalhar em uma redação de jornal, dentro da
Gazeta de Notícias. Foi também a mãe do curso de Jornalismo em Fortaleza, como coloca a
jornalista Ivonete Maia (2004, p. 232), “Então, a ACI fez cursos livres de jornalismo, cursos
que têm vários pais e uma só mãe, que é a Adísia Sá”. Na verdade, só houve a realização de
um curso livre em Fortaleza, os outros dois empreendidos pela ACI com participação atuante
de Adísia Sá eram cursos de jornalismo para iniciantes, o que a jornalista faz questão de
deixar claro.
Ivonete Maia foi também uma das primeiras jornalistas mulheres a atuarem na
imprensa cearense. Ela era a única no jornal O Nordeste, periódico publicado pela
Arquidiocese de Fortaleza e no qual ingressou em 1961. Em 1968, a jornalista passou a atuar
28
no jornal O Povo, realizando um antigo sonho, e, em 1969, formava-se em Comunicação
Social no que foi a primeira turma a se graduar na Universidade Federal do Ceará. Para Maia
(2004), tanto naquela época como atualmente, o jornalista deve se preocupar em querer atuar
o mundo, em exercer mudanças sobre eles, e a sua escrita carregava essa visão.
Comecei pela revisão. Era um lugar ótimo, na época, para começar, porque se ficava
mais exigente com você mesma na elaboração dos textos. E tinha a página semanal
minha, com a minha assinatura, meio ideologizada, querendo mudar o mundo.
[risos] Aliás, ainda acho que o jornalista tem que ter esse compromisso de contribuir
para melhorar o mundo e não querer ser arrogante de dizer: „Eu vou mudar.‟ Não,
ele tem que dar sua contribuição, ainda penso assim hoje, por isso que tenho o olhar
muito crítico para o jornalismo de hoje. (MAIA, 2004, p. 225)
Ao passo que Adísia Sá enfrentou certa resistência da mãe por querer ser jornalista,
já que redação era espaço para homens, o ofício de jornalista era desempenhado por homens,
Ivonete Maia não encontrou restrições por parte da família. Ambas também deixam claro que
a recepção nas redações por parte dos jornalistas foi tranqüila baseada em muito respeito, o
que, segundo elas, era uma característica das redações na época.
Sá (2004) afirma que “os companheiros”, como os chama, tinham por ela um grande
respeito sem que, para isso, assumissem um ar paternalista. Apesar de sua entrada não
corresponder ao período boêmio do Jornalismo, a relação entre os jornalistas era muito
próxima e afável. Tal como Maia (2004), ela ressalta a paixão que aqueles profissionais
tinham em exercer o seu ofício, da liberdade dos próprios jornalistas de proporem pautas e
agirem com uma liberdade maior dentro de seu campo. Aos poucos, com o acirramento do
jornal-empresa, os profissionais foram se prendendo cada vez mais à necessidade de fechar a
edição do jornal e, para isso, passaram a obedecer a uma rotina de produção de notícias cada
vez mais engessada, o que acaba por resultar no direcionamento de pautas pré-definidas aos
repórteres e na criação de departamentos especializados regidos cada um por um coordenador
específico, ao contrário da centralização dessa organização nas mãos de um único secretário
como antes ocorria. Decorre daí a divisão em editorias cada vez mais especializadas –
Política, Cultura, Internacional, Mundo, Esporte, etc – até chegar a subeditorias como, por
exemplo, dentro da Cultura se tem uma parte destinada a Fofoca, outra à Gastronomia, outra à
Agenda Cultural e assim por diante.
3. PERSPECTIVAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA
As relações entre Jornalismo e gênero, discutidas no capítulo anterior, são abordadas
neste trabalho através de uma perspectiva social e discursiva, visto que o discurso é uma das
formas pelas quais as pessoas constroem e representam a si e ao mundo, e que uma
abordagem discursiva permite entender como os sujeitos significam práticas sociais que,
muitas vezes, parecem naturalizadas e acabam por reiterar relações de dominação entre
sujeitos ou entre grupos sociais.
Para tanto, se faz necessário entender a concepção de discurso a ser utilizada e,
consequentemente, a abordagem a ser utilizada, já que ambas as coisas possuem um leque de
possibilidades bastante amplo, dada a complexidade do termo discurso. Fairclough (2001, p.
21) também ressalta essa dificuldade:
Discurso é um conceito difícil, principalmente porque há tantas definições
conflitantes e sobrepostas, formuladas de várias perspectivas teóricas e disciplinares
(ver van Dijk, 1985; McDonell, 1986, sobre algumas dessas definições). Na
lingüística, „discurso‟ é usado algumas vezes com referência a amostras ampliadas
de diálogo falado, em contraste com „textos‟ escritos. [...] Mais comumente,
entretanto, „discurso‟ é usado na lingüística com referência a amostras ampliadas de
linguagem falada ou escrita. [...] Finalmente, „discurso‟ também é usado em relação
a diferentes tipos de linguagem usada em diferentes tipos de situação social.
Adotaremos aqui a perspectiva da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC) para
fundamentar teórica e metodologicamente esta pesquisa. É importante, contudo, que
atentemos para a existência de outras correntes da Análise de Discurso (doravante AD), tais
como: Análise de Discurso de linha francesa e Análise de Discurso de linha anglo-saxã.
Faremos um breve comentário sobre a AD para, em seguida, situarmos a ADC.
3.1 ABORDAGENS DA ANÁLISE DE DISCURSO
As abordagens segundo a Análise de Discurso muitas vezes são atribuídas ao número
de teóricos fundadores que se propõem a utilizá-la (MAZIÈRE, 2004), o que significa dizer
que a atribuição de uma ciência intitulada Análise de Discurso muitas vezes é dada não por
uma proposta diferenciada das demais, mas, simplesmente, pela proposta desse ou daquele
autor de trabalhar com a AD. A partir dessa consideração, cai-se em propostas que acabam
por só mudar o corpus e que mantêm as mesmas fundamentações teóricas de uma corrente já
estabelecida, resultando na Análise de Discurso daquele primeiro autor e na Análise de
Discurso daquele segundo autor sem, contudo, apresentar teorizações ou propostas
metodológicas diferentes.
30
Mussalim (2006), dentre outras possibilidades de categorizações, distingue três fases
da Análise de Discurso, segundo seus respectivos modelos de análise e o modo de definição
do objeto, as quais ela chama de AD-1, AD-2 e AD-3. A cada uma dessas fases, são
perceptíveis formulações diferentes acerca do sujeito, do discurso, do sentido e do corpus a
ser analisado.
Em AD-1, a análise é voltada para textos mais estáveis no sentido de que apresentam
uma carga polissêmica menos volátil. É válido dizer que essa identificação está diretamente
ligada ao conceito de discurso enquanto maquinaria discursiva que corresponde a:
uma estrutura (condição de produções estáveis) responsável pela geração de um
processo discursivo (o processo de construção do manifesto comunista, por
exemplo) a partir de um conjunto de argumentos e de operadores responsáveis pela
construção e transformação das proposições, concebidas como princípios semânticos
que definem, delimitam um discurso. (MUSSALIM, 2006, p. 118)
Para a AD-1 seria inviável considerarmos uma interação entre dois interlocutores na
qual aparecem diversas máquinas discursivas, tendo em vista o grau de complexidade por
apresentar diferentes lugares sociais e seus respectivos discursos. Seria necessário analisar
cada máquina discursiva separadamente, ou seja, se em um texto, fosse perceptível o discurso
médico, o discurso da família, o discurso jurídico, era necessário que cada um fosse
concebido de forma separada, em suas especificidades, fechados em si mesmos.
A AD-2, por sua vez, busca, através do conceito de formações discursivas de
Foucault (2008), estabelecer a relação entre os discursos em um dado texto opondo-se a idéia
de uma maquinaria discursiva fechada. Ao invés de trabalhar com as máquinas discursivas em
si, a AD se ocupará da relação entre elas, ou mais especificamente entre as formações
discursivas, sendo o discurso, nesse caso, a relação parafrástica entre os enunciados. Cada
formação discursiva é formada por elementos de outras formações discursivas. No entanto,
essa concepção ainda é fechada, dado que os diversos discursos são incorporados por outro
que apresenta suas especificidades.
Para a AD-3, essa concepção fechada é desfeita. Ao invés de se conceber cada
máquina discursiva por si mesma, como em AD-1, ou formações discursivas independentes
que se relacionam, como em AD-2, ela propõe o conceito de interdiscurso para compor a
identidade de cada formação discursiva (MUSSALIM, 2006).
Embora haja diferenças entre as fases da AD, é importante perceber a convergência
em três pontos principais que se articulam em maior ou menor grau: 1) O sujeito como um
depósito de discursos que os atualiza em suas enunciações; 2) o aspecto histórico de cada
enunciado em particular; 3) e a materialidade das formas da língua.
31
Tais aspectos dizem respeito às bases teóricas da AD que serão retomadas também
pela ADC, apesar das reformulações e das atualizações. Quanto ao sujeito, a AD sofre
influências da psicanálise lacaniana e o discute na sua relação com o Outro, com o discurso do
Outro, e nas relações entre consciente e inconsciente. Os dois últimos remetem às influências
do materialismo histórico a partir da releitura de Marx por Althusser, estabelecendo as
discussões acerca da ideologia necessárias ao embasamento teórico da AD, o que ressalta sua
interdisciplinaridade. A convergência de outras áreas das Ciências Humanas e da Linguística
na formação da AD se dão, principalmente pela interseção entre os estudos lingüísticos de
Dubois e os filosóficos de Pechêux (MUSSALIM, 2006).
Pelo seu caráter interdisciplinar, a AD enfrenta dois problemas: o primeiro diz
respeito às suas fronteiras em relação aos campos da Linguística, na medida em que ela busca
aparato teórico e metodológico através de campos já estabelecidos como a Pragmática e a
Análise da Conversação; o segundo, à sua validade para as ciências com as quais dialoga,
sejam Comunicação, Antropologia, Sociologia, História, etc. A diferença de abordagens entre
a AD francesa e a AD anglo-saxã reside justamente no fato de a primeira se aproximar de uma
abordagem embasada na História, enquanto a segunda possui uma maior aproximação com a
Sociologia (MUSSALIM, 2006). O mesmo acontecerá com a Análise de Discurso Crítica,
como veremos.
No seio da lingüística, onde a AD é freqüentada, contornada, atacada, ameaçada
pelas teorias e pelas práticas que se vinculam à pragmática, à análise da
conversação, à análise textual, em geral, ela é reivindicada como campo, com um
propósito de fundação disciplinar, em nome de categorias próprias, ou em nome de
um objeto complexo que serial a linguagem “real”, oposta ao objeto “ideal”, a língua
do lingüista (MAZIÈRE, 2007, p. 8).
É através dessa linguagem real, dos usos que fazemos dela, que o analista de discurso
investigará a materialidade das ideologias. A linguagem é uma das formas pelas quais a
ideologia se concretiza e é interesse da AD apreender os discursos do que Althusser chamou
de Aparelhos Ideológicos do Estado. Para a Análise de Discurso, em geral, o discurso é tido
como o ponto central de discussão, gerando um debate teórico e metodológico, ressaltando
sua importância política e suas influências ideológicas. O discurso é situado aqui em contexto
espacial e temporal, sinalizado pelo uso que dele fazem, opondo-se aos estudos anteriores da
linguagem, nos quais a língua era tomada como uma estrutura formal, cujas regras deveriam
ser incorporadas ao social. Mazière (2007, p. 10) aponta que:
A língua funciona no interior de uma “formação social”: nem liberdade individual
de “fala” (em termos saussurianos), nem “desempenho” como produção empírica da
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“competência" (em termos chomskianos) permitem fazer a economia de uma
concepção da língua revisitada pelo social, do próprio interior.
A especificidade da AD, como bem coloca Mussalim (2006) reside em se ocupar da
constituição do discurso, dos sujeitos, do sentido e das condições de produção a partir da
própria enunciação. Para isso, é preciso considerar os processos históricos e ideológicos que
permeiam essa enunciação. O discurso corresponde a formações enunciativas situadas
histórica, cultural e socialmente que se inserem em uma determinada estrutura e a modificam
em uma relação cíclica, se reatulizando e se constituindo a partir de interdiscursos.
A proposta da AD considera, principalmente, a importância dessa influência do
social em relação às formações discursivas, ponto a ser trabalhado e aprofundado pela Análise
de Discurso Crítica.
3.2 PERSPECTIVA TEÓRICA E METODOLÓGICA DA ADC
A Análise de Discurso Crítica (ADC) é bastante recente se comparada a outras
correntes das Ciências Humanas ou mesmo dentro da Linguística. A expressão foi utilizada
pela primeira vez em 1985 por Norman Fairclough, principal expoente da ADC, em artigo
intitulado Critical and Descriptive Goals in Discourse Analysis publicado em Journal of
Pragmatics (MAGALHÃES, 2005; GOUVEIA, s/d).
Embora a ADC seja nova, enquanto perspectiva interdisciplinar ela se vale de
correntes teóricas já bastante consolidadas dentro do âmbito da Linguística, tais como Análise
da Conversação, Pragmática, teoria dos Atos de Fala, Linguística Sistêmico-Funcional, e
também das Ciências Sociais, através da Teoria Social Crítica. A partir da primeira, ela é vista
como uma continuação da Linguística Crítica por esta última tratar de aspectos da linguagem
relacionados a poder e ideologia. Do ponto de vista das Ciências Sociais, ela busca, através da
Teoria Social Crítica, suas bases para debater questões como a pós-modernidade e as
mudanças sociais. Assim, a Análise de Discurso Crítica se mostra como uma abordagem
teórica e metodológica não só para os campos que discutem linguagem, mas para aqueles que
se focam na vida social, na qual podemos perceber os jogos de ideologia e poder, macro e
microssocialmente.
Em 1979, foram publicadas as obras Language and Control (Fowler et al., 1979) e
Language as Ideology (Kress & Hodge, 1979) que marcaram uma nova perspectiva dentro da
área da Linguística, originando a Linguística Crítica a qual entendia a linguagem dentro de
uma estrutura social, sendo ambas fatores de influência uma para a outra. A linguagem é vista
33
como prática social vinculada a ideologias e um dos mecanismos de construção, representação
e significação da sociedade. Para esses autores,
a capacidade lingüística de produção de significado é um produto da estrutura social,
pelo que, seguindo Halliday (1970), defendem o princípio de que os significados
sociais e as suas realizações textuais devem ser incluídos no escopo de uma
descrição gramatical (GOUVEIA, s/d, p. 2).
Assim, a descrição gramatical é ainda um meio pelo qual identificamos a
manifestação ideológica, visto que, como foi dito, ela é indissociável da linguagem.
A descrição, assim como as etapas de interpretação e explicação, são apontadas por
Fairclough (2001) como passos metodológicos fundamentais para a ADC. Para o autor, a
análise do corpus implica sua descrição e está relacionada diretamente aos aspectos
lingüísticos; a interpretação considera, principalmente, a prática discursiva; ao passo que a
explicação engloba a prática social. Cada um desses elementos não são restritos em si, mas
estão interrelacionados. Na seção 3.2, veremos estes aspectos com mais pontualidade.
Um dos pontos principais da ADC, em relação a AD francesa é, não só considerar a
relação entre o discurso e suas implicações com o social, mas o discurso enquanto prática
social, ou seja, a linguagem é entendida como uma forma de agir sobre o mundo. Tendo em
vista essa atuação, Fairclough (2001) e van Dijk (2008) ressaltam a importância de se postular
um quadro teórico e metodológico acessível para os mais diversos campos científicos que
venham a se interessar pela relação entre discurso, ideologia e relações de poder. A ideia é
propor um mecanismo de análise das práticas sociais através do discurso, no qual linguistas
que não tenham um domínio aprofundado das Ciências Sociais possam atuar, assim como
cientistas sociais que não detenham tanta habilidade com as práticas lingüísticas possam ter na
Análise de Discurso Crítica um mecanismo para possibilitar essa interseção. Dijk (2008)
ressalta ainda, através de seus Estudos Críticos do Discurso, a importância de uma abordagem
crítica do discurso não ser apenas um modelo de análise, mas sim uma forma de agir sobre o
mundo para efetivar mudanças sociais, alterando estruturas de poder hegemônicas e
discriminatórias. E é nesse ponto que ela se faz Crítica: ela se atém à percepção de
mecanismos de poder presentes nas relações entre as mais variadas esferas da sociedade e
possibilita a articulação de novas formas de se pensar a organização social, de como modificá-
la e torná-la mais integradora.
No campo das Ciências Sociais, a ADC também busca a conceituação de termos
fundamentais para o desenvolvimento de sua teoria. O termo discurso, por exemplo, embora
já bastante trabalhado pelas diversas correntes de AD traz a acepção perpetrada por Foucault
34
(2009a; 2009b) para quem o discurso corresponde a modos lingüísticos e não-linguísticos de
aqueles em posição de sujeitos significarem o mundo (GOUVEIA, s/d). Apesar de a ADC se
aproximar mais do conceito de discurso desenvolvido por Foucault, ela compartilha com a
Análise de Discurso a ideia do discurso enquanto uso linguístico, o que os lingüistas
saussereanos poderiam considerar como parole. Para a ADC, no entanto, esse uso é mais
expandido, na medida em que não considera apenas o uso individual de um falante, mas
discute a linguagem enquanto construto social, daí o fato de ser vista como prática social.
Também não se restringe a aspectos situacionais como considera a sociolingüística, mas, sim,
toda uma estrutura social que a molda e que é por ela moldada.
O conceito de discurso foucaultiano não é tomado de empréstimo ipsis litteris pela
Análise de Discurso Crítica. Primeiro, Fairclough (2001) chama a atenção para o
aprofundamento das bases lingüísticas para compor uma análise mais aprofundada segundo
uma metodologia melhor estabelecida linguisticamente. Sendo Foucault um filósofo, não foi
preocupação sua aprofundar as investigações lingüísticas (FAIRCLOGH, 2001). Segundo,
para compor a fundamentação de uma proposta crítica, era necessário debater conceitos como
os de poder e ideologia. Apesar de Foucault ter abordado exaustivamente o primeiro, o
segundo não constituiu preocupação analítica sua.
Ideologia aparece como um conjunto de valores e crenças sociais que atuam na
manutenção, na desconstrução ou na transformação de sistemas de dominação através do
exercício de poder de grupos sociais sobre outros. Acerca de um mesmo evento social, podem
figurar diversas ideologias; da mesma forma, em um texto, a depender dos sujeitos ali
situados, a ideologia predominante pode variar. Thompson (2009) lista uma série de formas
pelas quais a ideologia pode operar, o que gera a manutenção de poder de grupos
hegemônicos. Vale ressaltar que não existem somente essas formas, nem que elas atuam
individualmente, mas coexistem ou mesmo sobrepõem-se. A figura 1 mostra os modos gerais
e suas respectivas estratégias de construção simbólicas7.
Modos Gerais Algumas Estratégias Típicas de
Construção Simbólica
Legitimação Racionalização
Universalização
Narrativização
Dissimulação Deslocamento
Eufemização
7 Reconhecemos a relevância do estudo feito por Thompson (2009), no entanto não é objetivo deste trabalho
desenvolvê-lo de modo mais aprofundado.
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Tropo (sinédoque, metonímia, metáfora)
Unificação Estandardização
Simbolização da unidade
Fragmentação Diferenciação
Expurgo do outro
Reificação Naturalização
Eternalização
Nominalização/passivização Figura 1: Modos de operação da ideologia e suas respectivas estratégias de construção simbólica (FONTE:
Thompson, 2009).
O papel da ideologia nas práticas sociais surte um efeito de reiteração de posições
ideológicas dominantes e, com isso, estabelece relações desiguais dentro da sociedade, sejam
entre gêneros, classes, etnias, raças, dentre outras. Há aí uma relação entre os micro-eventos
(discursivos), as macro-estruturas (sociais) e a desnaturalização de práticas que são
incorporadas ao cotidiano social dos indivíduos como sendo comuns e naturalizadas
(GOUVEIA, s/d), ou seja, são tidas como frutos de uma pré-determinação à qual não se pode
fugir.
As relações de gênero (macro-estruturas sociais), por exemplo, podem ser
apreendidas nas mais variadas formas (micro-eventos discursivos) em diversas esferas sociais:
desde a utilização na linguagem da forma generalizante masculina à supremacia do homem
nas decisões domésticas dentro da esfera do lar, ou mesmo quando a mulher se coloca de
forma subserviente, marcada pelo estigma da culpa (cf. Saffioti); ambos foram concebidos
como estruturas naturalizadas por muito tempo, mas com o debate e as lutas sociais,
mudanças foram efetivadas, embora as relações de poder não tenham se dissipado.
3.2.1 Identidade social na perspectiva da ADC
A identidade social de um determinado grupo é construída a partir de traços
discursivos e não-discursivos. Na ADC, essa construção dentro da linguagem está ligada a
uma das partes da função interpessoal que pode ser dividida em relacional e identitária. A
primeira diz respeito a como os participantes interagem em um determinado evento
discursivo; a segunda, ao posicionamento dos sujeitos, considerando o grupo social ao qual
pertencem dentro do mesmo evento discursivo.
As relações entre gênero, por exemplo, levam em consideração como homens e
mulheres interagem dentro de um espaço social, cada um atualizando sua identidade social e
retomando convenções estabelecidas socialmente, seja através de marcas discursivas, seja
36
através de crenças e costumes que envolvem vestuário, posicionamentos sociais, bem como
suas relações com instituições.
Estas [funções relacional e identitária] estão ligadas às formas como as relações
sociais são exercidas e as identidades sociais são manifestadas no discurso, mas
também, naturalmente, a como as relações sociais e as identidades são construídas
(reproduzidas, contestadas e reestruturadas) no discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.
175).
Retomamos aqui muito do que foi dito no capítulo 2 como falar em identidade de
gênero e não em identidade sexual para que se perceba as escolhas feitas pelos sujeitos
envolvidos e não considerá-las inerentes aos sujeitos envolvidas, como práticas naturais. A
identidade feminina é entendida como tal dadas as escolhas feitas, convencionadas e
legitimadas pela sociedade, incluindo-se homens e mulheres. Muitas das características
atribuídas à mulher e que formam assim aspectos particulares compositores da identidade
feminina são passíveis de mudanças sociais. Isso é necessário para efetivar a quebra de
manutenção de poder predominantemente masculina.
Para entendermos melhor a constituição de identidades femininas a partir das práticas
discursivas e não-discursivas, exemplificamos aqui através do trabalho de Caldas-Coulthard e
van Leeuwen (2004). Os autores percebem os brinquedos representativos de atores sociais
humanos comunicam especificidades e significações de gênero. Para eles, os brinquedos são
entidades representacionais da sociedade: mostram os papéis desenvolvidos por homens e
mulheres, as tecnologias por eles utilizadas, suas identidades e suas práticas sociais.
Os brinquedos vendidos para meninos enfatizam seus aspectos físicos, valorizando
força, destreza, poder, e atributos voltados para a ação e a aventura; ao passo que os
brinquedos voltados para as meninas, embora tente valorizar a imagem de uma mulher
moderna que é inserida no espaço público, desempenhando funções sociais particulares desse
espaço, a ênfase é dada “por meio de seu código de vestuário, pose e aparência em geral, [...]
[sendo], por comparação, representantes do conformismo, de atividades socialmente
desejáveis, como ir para o trabalho, ir às compras, etc” (CALDAS-COULTHARD e van
LEEUWEN, 2004, p.14).
Podemos entender os brinquedos, portanto, como textos passíveis de serem lidos e
interpretados, analisando a manifestação de discursos ali presentes como o da publicidade, o
da família, o da escola, dentre outros; a sua ligação com outros objetos, gerando uma
intertextualidade, tais como programas de TV, contos de fada, revistas em quadrinhos, etc;
seu dialogismo, na medida em que permite o estabelecimento de interações em seu uso.
37
Esse é apenas um dos exemplos sobre como podem ser representadas as identidades
sociais e como as relações sociais podem ser estabelecidas, mantendo, reafirmando ou
reformulando práticas sociais. Através dos brinquedos, vimos que há a manutenção de uma
prática que fortalece condições sociais discriminatórias. Não só porque relega determinados
posicionamentos para homens e mulheres como estabelece padrões de raça, classe e idade no
estabelecimento de atributos aos brinquedos – a boneca branca e loira, o boneco branco e
másculo, etc.
Explicitados alguns dos conceitos básicos para a formulação da proposta teórica e
metodológica da Análise de Discurso Crítica, é válido ressaltar que além de buscar seu
embasamento em áreas transdisciplinares, ela compõe também um modelo a ser utilizado não
só pela Linguística, mas também por disciplinas como a Sociologia, a Antropologia, a
Filosofia. É objetivo de seus principais autores (FAIRCLOUGH, 2001; Teun van Dijk, 2008)
o acesso e o domínio das categorias lingüísticas de análise, bem como a compreensão de
termos oriundos das ciências sociais para que se possa compreender e efetuar mudanças
sociais a partir do discurso.
3.2.2 A proposta de Norman Fairclough
As propostas de se estudar a Análise de Discurso Crítica variam segundo o principal
foco de abordagem de seus respectivos autores. Teun van Dijk (2008) enfatizou em sua
abordagem os aspectos cognitivos que envolvem o discurso e sua relação com as esferas
sociais. Em Discurso e Poder, o autor estabelece esse vínculo a partir dos seus estudos sobre a
mídia. Por sua vez, Wodak (2003) parte de uma perspectiva histórica para compor a base de
seus estudos sobre discurso. Com foco no âmbito social, Fairclough (2001) compõe a lista das
três principais vertentes que trabalham com Análise de Discurso Crítica.
Neste trabalho, nos basearemos, principalmente, em Fairclough (2001) para
estabelecer nossos critérios de análise. Recorreremos a van Dijk (2008) quando julgarmos
necessário para complementar nosso estudo.
Fairclough (2001) entende discurso como o uso da linguagem feito por sujeitos
dentro da prática social visto que se embasa nas teorias já apresentadas no tópico 4.2.. É
através do discurso que as pessoas efetuam três funções principais: agem sobre o mundo e
sobre os outros, representam-nos e significam-nos. Logo, as práticas sociais vão sendo
moldadas conforme esses modos de agir, de representar e de significar, ao passo em que o
discurso também é influenciado pelas práticas sociais.
38
O discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em
todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário,
pelas relações específicas em instituições particulares, como o direito ou a educação,
por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza
discursiva como não-discursiva, e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
A partir disso, o autor identifica três aspectos construídos e influenciados pelo
discurso, a saber: a constituição dos sujeitos enquanto tais, gerando a percepção de
identidades sociais; as relações entre os sujeitos envolvidos em determinado evento
discursivo; e os modos de construção de ideologias ou sistemas de conhecimento e crenças.
Tais aspectos correspondem às funções identitária, relacional e ideacional. As duas primeiras
correspondem à metafunção interpessoal de Halliday (1985 apud Resende e Ramalho, 2006),
a segunda corresponde à metafunção homônima do mesmo autor e há ainda uma terceira, a
metafunção textual.
Halliday (1985 apud Resende e Ramalho, 2006) através da Linguística Sistêmico-
Funcional serviu de base para a análise empreendida por Fairclough (2008), sendo as
metafunções do primeiro revistas e transformadas nos significados propostos pelo segundo:
acional, representacional e identificacional, aos quais se vinculam as ideias de modos de agir,
modos de representar e modos de ser (RESENDE e RAMALHO, 2006).
A concepção de como os sujeitos atuam, representam e significam o mundo e os
outros é a principal base para se entender os significados acima referidos propostos por
Fairclough (2001). Tendo em vista suas relações com a tríade gêneros, discursos e estilos, a
articulação desses três pontos nos textos e seus referentes nos eventos sociais. Os gêneros se
ligam ao significado acional, na medida em que é através da interação entre os sujeitos e em
sua construção através da linguagem, através dos textos, que eles se configuram. Os discursos
estão correlacionados ao significado representacional, através da representação de mundo, que
vai para além de escolhas lexicais, correspondendo a uma postura ideológica dos sujeitos
envolvidos. Por último, os estilos estão atrelados à construção e representação dos sujeitos no
discurso.
Através desses aspectos, são estabelecidos os vínculos entre o texto e a prática
discursiva. Gêneros, discursos e estilos fazem a ponte entre o texto e a esfera social. No
entanto, diferente de Halliday, ao estabelecer as macrofunções ideacional, interpessoal e
textual, Fairclough (2008) inclui a função textual em seu significado acional, já que considera
o texto como a concretização das relações sociais e de suas maneiras para materializar suas
percepções de mundo.
39
Tomando essas relações, e considerando que “a análise discursiva é um nível
intermediário entre o texto em si e seu contexto social – eventos, práticas e estruturas”
(RESENDE e RAMALHO, 2006, p. 61), podemos compreender a formulação tridimensional
do discurso proposta por Fairclough (2001), representada pela figura 2.
Figura 2: concepção tridimensional do discurso (Fonte: Fairclough, 2001).
A análise, portanto, será feita a partir de cada um desses níveis correspondendo às
etapas de descrição, interpretação e explicação já referidas anteriormente. Correspondem
também às etapas das tradições analíticas utilizadas pela ADC – Linguística e Ciências
Sociais – nas quais temos a análise textual lingüística, a tradição macrossociológica das
práticas sociais e a tradição microssociológica das atuações e recuperações por parte dos
sujeitos segundo saberes compartilhados.
É importante ressaltar que a proposta tridimensional do discurso proposta por
Fairclough (2001), apesar de sua relação direta com os significados propostos pelo mesmo
autor (cf. Fairclough, 2008)8, não é concomitante à formulação desses últimos. Isso implica
dizer que as categorias de análise por ele estabelecidas, as quais se relacionam com a proposta
de significados ligados ao trabalho de Halliday, passaram por modificações e já fornecem um
novo modelo metodológico que, no entanto, usaremos poucos recursos neste trabalho dada a
dificuldade de acesso à bibliografia necessária. A fim de suprir, em parte, essa lacuna,
buscaremos em Resende e Ramalho (2006) algumas explicitações, principalmente com o
objetivo de enriquecer a análise.
8 FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Oxon, UK: Routledge,
2008.
PRÁTICA SOCIAL
PRÁTICA DISCURSIVA
(produção, distribuição, consumo)
TEXTO
40
3.2.2.1 A prática discursiva
Optamos por iniciar pela prática discursiva a fim de seguir uma orientação proposta
por Fairclough (2001) segundo a qual, parte-se dela para compreender o contexto em que o
texto está inserido. Em seguida, considera-se a manifestação concreta do discurso: o texto.
Realizamos, portanto, em um segundo momento, a análise textual com o objetivo de pontuar
os elementos que compõem a prática discursiva. Por último, voltamos à análise mais abstrata
para relacionar os elementos já esmiuçados com a prática social. Diferentemente dos outros
dois aspectos, essa última análise não se insere em orientações fechadas, mas abrange um
leque de possibilidades extenso. Fairclough (2001) apenas sugere alguns pontos a serem
trabalhados, mas não encerra a discussão neles.
A análise da prática discursiva é voltada para os fatores de produção, distribuição e
consumo do texto. A prática discursiva diz respeito aos modos enunciativos que
correspondem a determinadas esferas sociais, econômicos, políticas, culturais, lingüísticas,
etc, constituídas historicamente e situadas em um tempo e espaço específicos. Assim, produzir
um texto implica condições sociais específicas para cada caso: uma reportagem implica na
atuação de um repórter, no seu envolvimento com fontes, na escrita das informações obtidas,
na edição destas, no enquadramento dado dentro do jornal – se ocupará a capa do jornal, se
apenas aparecerá nas páginas interiores. A distribuição dos textos diz respeito à abrangência
deles, às instituições envolvidas e à antecipação dos destinatários. O consumo do texto está
relacionado ao investimento de interpretação textual e os possíveis modos de interpretação
que um texto possibilita, podendo ser individual ou coletivo.
É importante definir também dois níveis de análise para a prática discursiva: os
microprocessos e os macroprocessos. Os primeiros estão relacionados a elementos de análise
mais ligados à análise textual, enquanto os segundos se aproximam da análise da prática
social, compondo dessa forma a ligação entre os elementos da figura 2. Fairclough (2001)
estabelece sete categorias de análise, quais sejam: Vocabulário, Gramática, Coesão, Estrutura
Textual, Força, Coerência e Intertextualidade, sendo esses três últimos mais ligados à análise
da prática discursiva e os quatro primeiros à análise textual, como é possível visualizar no
Quadro 1.
O campo da Coerência se encontra em branco porque, embora ele seja um dos pontos
de análise, o autor não oferece subcategorias que a fomentem. Ela é, em si, o ponto de análise
que contempla os processos de interpretação do texto, envolvendo a produção e o consumo do
texto sem, contudo, ser esmiuçada em subdivisões.
41
Força Coerência Intertextualidade
Análise da
prática
discursiva
Polidez Interdiscursividade
ou intertextualidade
constitutiva
Intertextualidade
manifesta
- Representação do
discurso
- Pressuposição
- Negação
- Metadiscurso
- Ironia
Cadeias intertextuais
- Ethos Quadro 1: elementos de análise da prática discursiva.
A linha divisória entre as análises, bem como entre as categorias não é estanque. Os
quadros que aqui tentam delimitar possibilidades de análises são interconectados a fim de
compor uma análise mais aprofundada. Os quadros servem como um recurso metodológico
para uma melhor visualização de como as categorias podem ser compreendidas e para uma
facilitação de nossa análise, a partir da qual explicitaremos as categorias por nós utilizadas e
que serão melhor definidas posteriormente, evitando uma explicação exaustiva e
desnecessária para esta pesquisa.
Resende e Ramalho (2006) e Magalhães (2000) se debruçam sobre a prática
discursiva segundo “os processos sociais de produção, distribuição e consumo de textos”
(MAGALHÃES, 2000, p. 87). Aqui, porém, é nosso objetivo chamar atenção para quais
categorias de análise podem ser utilizadas e situá-las como formas de visualizar a prática
discursiva.
3.2.2.2 O texto
Para a análise textual é importante considerar seus aspectos de produção,
interpretação e o esqueleto do texto. Na tradição lingüística, os textos são concebidos segundo
duas partes que se relacionam: formas e significados, ou significantes e significados, segundo
Saussure (2006). Para Fairclough (2001), ao efetuar a análise, não é possível dissociar as
questões sobre a forma e sobre o significado, ambos figuram concomitantemente. Ele defende
ainda a motivação social dos signos em contrapartida à arbitrariedade saussuriana, na medida
em que significantes particulares correspondem a significados particulares devido a fatores
sociais.
42
Quanto ao significado, em particular, o autor chama atenção para a distinção entre o
significado potencial de um texto e sua interpretação. O significado potencial diz respeito ao
leque de possibilidades que um texto evoca devido à pluralidade de significados condensados
em uma prática discursiva pautada em convenções sociais. Ao ser interpretado, o texto passa a
sinalizar um significado em detrimento de outros possíveis nas mais variadas formas de
interpretação possibilitadas pelo significado potencial do texto.
Esclarecidos esses aspectos, vamos aos itens de análise textual. Embora, sejam
estabelecidos itens para a análise textual, a análise da prática discursiva e a análise da prática
social, as dimensões do discurso ocorrem simultaneamente. A análise textual compreende,
como dito anteriormente:
1) Vocabulário;
2) Gramática;
3) Coesão;
4) Estrutura textual.
Cada um desses itens se relaciona, podendo ser compreendidos de forma ascendente:
vocabulário compreende a escolha das palavras, individualmente, utilizadas por um sujeito; a
gramática se volta para a combinação das palavras localizadas em frases e orações; a coesão
diz respeito às ligações entre frases e orações; e a estrutura textual, da organização do texto
como um todo. A análise textual pode ser melhor compreendida a partir do quadro 2.
Estrutura
textual Coesão Gramática Vocabulário
Análise
textual
Função
interpessoal
da linguagem
e significados
interpessoais
- Relação
- Identidade
Controle
interacional:
- Tomada de
turno;
- Estrutura de
troca;
- Controle de
tópicos;
- Controle de
agendas;
- Formulação.
Modalidade
Função
ideacional da
linguagem e
sentidos
ideacionais
- Significação
- Referência
Conectivos e
argumentação
Transitividade
e tema
Significado
de palavras
Criação de
palavras
Metáfora
Quadro 2: elementos de análise textual.
43
Fairclough (2001) faz essa divisão acerca das funções interpessoal e ideacional com
o intuito de verificar mais detidamente a análise do eu e das relações sociais, respectivamente
função identitária e função relacional correspondentes à função interpessoal; e aos
mecanismos de representação e significação do mundo presentes no texto através da função
ideacional. Como já foi dito, as funções vão dar lugar, posteriormente, aos significados
representacional, identificacional e acional.
Sobre a análise do texto, Magalhães (2000, p. 83) explica que:
[ela] se baseia em formas tradicionais de análise lingüística, incluindo a análise do
vocabulário e dos aspectos semânticos, como também a gramática das frases, o
sistema fonológico e o sistema de escrita. Refere-se também à organização textual,
que inclui processos lingüísticos além da frase.
Ao deixar claro o ponto entre a análise centrada nos elementos de períodos ou
mesmo de frases, mas também em aspectos como coesão e coerência no âmbito do texto, a
autora refere-se ao fato de que uma análise centrada na linguagem não se refere apenas em
classificações de sujeito e predicado, e categorizações próprias da Gramática Normativa,
assim como a preocupação não é unicamente com um português “bem escrito”, mas essas
relações entre frases, períodos e do texto como um todo, resultando, por fim, na preocupação
discursiva, reflete o modo como nós agimos no mundo e o modo como o significamos. Nesse
caso, por meio da linguagem.
Tendo em vista as categorias que serão utilizadas em nossa análise, explicaremos a
seguir com mais detalhes sobre o que se trata (i) a Modalidade, (ii) a Transitividade e tema, e
(iii) os conectivos e a argumentação.
A Modalidade diz respeito ao grau de interação que os interlocutores estabelecem
com aquilo o que é dito, estabelecendo graus de maior ou menor subjetiva/objetividade a fim
de criar efeitos discursivos por meio de marcadores modais. A transitividade está ligada aos
tipos de escolhas do falante na construção de seu texto, relacionados ao tipo de processo (se
denota uma ação, um evento, uma relação ou um aspecto mental) bem como os papéis
desempenhados pelos sujeitos, se são mais ou menos ativos, se são passivizados ou não. O
tema diz respeito àquilo que contextualiza uma determinada informação e que serve como
ponto de partida do enunciado; as tematizações de um texto partem das escolhas do falante de
representar o mundo de uma determinada maneira. Por último, os conectivos e a
argumentação correspondem ao modo como os interlocutores estabelecem elos de coesão,
garantindo o encadeamento textual de modo a fazer sentido, ou seja, torná-lo coerente.
44
3.2.2.3 A prática social
Enquanto as outras práticas possuem estruturas concretas de análise em maior ou
menor grau, a prática social se constitui como o plano mais abstrato dentre as três. Por essa
questão, as categorias aqui propostas são apenas um indício e uma sugestão baseados em
Fairclough (2001) de como ela pode ser empreendida. Outros pontos podem ser estabelecidos,
bem como a possibilidade de interpretação. O importante é que não se tomem as análises
completamente desvinculadas umas das outras, mas que se efetue a interligação entre umas e
outras para uma melhor compreensão e, consequentemente, uma melhor atuação sobre a vida
social.
Acerca da prática social, Fairclough (2001) se volta para as relações entre discurso,
ideologia e poder. Para o discurso, o autor busca as concepções de Foucault e de teorias
lingüísticas necessárias, inclusive para compor e complementar o que diz respeito às matrizes
textuais não abordadas por Foucault, como já foi dito. A fim de debater o conceito de
ideologia, são trazidas as contribuições do marxismo do século XX.
As bases teóricas que tenho em mente são três importantes asserções sobre
ideologia. Primeiro a asserção de que ela tem existência material nas práticas das
instituições, que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas
materiais de ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia „interpela os
sujeitos‟, que conduz à concepção de que um dos mais significativos „efeitos
ideológicos‟ que os lingüistas ignoram no discurso (segundo Althusser, 1971:161, n.
16) é a constituição dos sujeitos. Terceiro, a asserção de que os „aparelhos
ideológicos do estado‟ (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos
locais e marcos delimitadores na luta de classe, que apontam para a luta no discurso
e subjacente a ele como foco para uma análise de discurso orientada
ideologicamente (FAIRCLOUGH, 2001, p. 116 e 117).
Ou seja, a ideologia é assim discutida segundo suas implicações acerca de três pontos
principais: 1) Práticas discursivas; 2) Constituição dos sujeitos; e 3) Instituições. Tais pontos
se refletem na concepção de discurso. Ao formular sua proposta sobre discurso, Foucault
(2008) pontua as formações discursivas, o assujeitamento e a influência das instituições na
constituição dos dois primeiros. Em seus trabalhos, Foucault se deteve a instituições como o
sistema carcerário e as clínicas psiquiátricas, e debateu a constituição da sexualidade, da
loucura, dentre outros.
Para Fairclough (2001), a ideologia pode ser concebida tanto na estruturação de
eventos passados como na produção de novos eventos e na atualização, seja reproduzindo ou
modificando as estruturas nas quais o evento está fundamentado. Tais estruturas dizem
respeito às ordens do discurso, conceito debatido por Foucault (2009), nas quais se imbricam
45
os discursos, resultando em formações interdiscursivas a partir de uma rede complexa entre os
elementos acima pontuados: sujeitos, instituições e discursos.
O poder, por sua vez, está intimamente ligado à ideologia e à hegemonia. A
hegemonia consiste na forma de atuação de um determinado grupo, através da liderança, em
relação a outros. Essa liderança vincula-se ao exercício do poder por parte desse grupo,
sedimentado através da concessão dos demais grupos envolvidos e dos investimentos
ideológicos do grupo hegemônico. Conforme seja a utilização do poder, este pode adquirir
conotação positiva ou negativa, resultando no caso do segundo, abusos de poder, e relações de
dominação/subordinação entre os grupos sociais.
Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que
simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios
ideológicos para ganhar seu consentimento. Hegemonia é um foco de constante luta
sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou
romper alianças e relações de dominação/subordinação (FAIRCLOUGH, 2001, p.
123).
Muitos dos trabalhos sobre gêneros chamam a atenção para a posição subordinada da
mulher no intuito de modificar sua situação social. Porém, é importante que se ressalte a
atuação dessas mulheres como forma de opor-se ou resignar-se às condições estabelecidas,
sendo ela própria a fonte das mudanças sociais relativas a si, não só resistindo às práticas de
abuso de poder físicas, mas também àquelas ligadas a investimentos simbólicos, às práticas de
abuso de poder sexual, moral, dentre outras.
Hegemonia e ideologia são pontos centrais para o investimento das análises
propostas por Fairclough, pelas quais nos propomos a descrever, explanar e interpretar a
configuração social através de sua proposta tridimensional do discurso.
O conceito de discurso nos auxilia nessa tarefa [de descrição, de explanação e de
interpretação], fornecendo para o discurso tanto uma matriz – uma forma de analisar
a prática social à qual pertence o discurso em termos de relações de poder, isto é, se
essas relações de poder reproduzem, reestruturam ou desafiam as hegemonias
existentes – como um modelo – uma forma de analisar a própria prática discursiva
como um modelo de luta hegemônica, que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens
de discurso existentes (FAIRCLOUGH, 2001, p. 126).
Para a melhor compreensão das relações entre os elementos da prática social,
propomos uma síntese através do quadro 3 abaixo:
.
46
Matriz social
do discurso Ordens de discurso
Efeitos ideológicos e
políticos do discurso
Análise da
prática social
Relações entre
as estruturas
sociais e
discursivas
- Convencional
- Inovadora
- Opositiva
Etc
Relação entre as práticas
sociais e discursivas
- Efeitos de transformação
- Efeitos de reprodução
Efeitos ideológicos e
hegemônicos
particulares
- Sistemas de
conhecimento e crenças
- Relações sociais
- Identidades sociais
Quadro 3: elementos de análise da prática social.
Como é possível observar no quadro 3, a prática social é pensada conjuntamente com
a prática discursiva, pelo simples fato de que a concepção tridimensional do discurso aponta
para a concepção de texto, prática discursiva e prática social concomitantemente. A separação
é feita apenas para a formalização do debate teórico.
O quadro retoma também a idéia de que a prática discursiva figura como a interseção
entre o texto e a prática social, daí a justificativa para sua presença no quadro da prática
social. A matriz social do discurso relaciona as estruturas sociais e discursivas a fim de as
situar como Convencional/Normativa, Criativa/Inovadora, o que se liga às ordens de discurso,
na medida em que uma transforma ou reproduz a outra e é também por ela transformada ou
reproduzida.
As ordens de discurso, conceito formulado por Foucault (2009b), corresponde às
discussões feitas acerca da constituição dos discursos e de seu caráter constitutivo,
trabalhando, para isso, com o conceito de interdiscurso. Para Foucault (2008), as formações
discursivas trabalham com a ressignificação de outras formações discursivas que se formam
no momento do discurso em ato, mas que não correspondem apenas a uma construção
enunciativa pragmática, mas que acarreta uma retomada discursiva situada social e
historicamente. Logo, ao atualizar e ressignificar o mundo, o sujeito pode dar continuidade
aos significados construídos social e historicamente ou empreender mudanças, e, como em
uma via de mão dupla, as práticas discursivas agem sobre as práticas sociais e vice-versa.
Os efeitos ideológicos e políticos do discurso acompanham toda a perspectiva da
Análise de discurso, já que a linguagem é uma maneira de veicular o sistema de conhecimento
e crenças de uma dada sociedade, de um grupo social ou mesmo de um sujeito. Ao optar por
uma construção e ao preencher um lugar social em detrimento de outros, os sujeitos se
posicionam ideologicamente. As instituições da qual fazem parte e pelas quais são
circunscritos, seus modos de se constituir, a escolha que fazem em seu vestuário, em seus
gostos musicais, as atividades que desempenham, tudo isso diz respeito a posicionamentos
47
ideológicos e à construção de identidades sociais. Bem como, através das relações sociais,
práticas hegemônicas são solidificadas ou modificadas. Os sujeitos e os grupos sociais em
suas interações revêem ou reestabelecem posicionamentos que, à primeira vista, podem
parecer naturais, quando, na verdade, são reflexo de escolhas políticas e ideológicas.
4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Neste capítulo, apresentaremos o nosso corpus, definiremos as categorias de análise
a serem utilizadas para análise e já debatidas no capítulo anterior para, em seguida,
empreendermos a análise a partir das entrevistas coletadas, deixando clara a natureza de nossa
pesquisa. Explicitaremos como foram captadas as entrevistas e os critérios estabelecidos para
tanto. A seguir, daremos início à apresentação e análise efetiva de nosso corpus.
4.1 METODOLOGIA
Em nosso trabalho, procuramos empreender uma pesquisa de natureza qualitativa,
com o objetivo de focalizar aspectos discursivos nas falas de nossas entrevistadas, mais do
que buscar diversas falas que evidenciassem uma dada recorrência. Em parte, a limitação do
número de entrevistadas se deu devido ao curto tempo para realização da pesquisa. Com isso,
nossa pesquisa parte de um estudo de caso da relação entre mulher e gênero que se dividiu em
cinco fases, a saber:
1. Definição de critérios dos sujeitos da pesquisa
a) Jornalistas mulheres;
b) Trabalhar ou ter trabalhado em jornal impresso;
c) Ter, pelo menos, 5 anos de atuação em jornal impresso;
d) Residir, atualmente, em Fortaleza
2. Elaboração de questionário e modelo de entrevista semiestruturada
3. Contato com jornalistas mulheres via e-mail e telefone
4. Realização de entrevistas
5. Transcrição das entrevistas
6. Análise das entrevistas
O questionário foi elaborado, inicialmente, com treze questões, sendo algumas de
caráter objetivo e outras de caráter subjetivo. Ao entrar em contato pela primeira vez com as
jornalistas, via e-mail, foi conferida a elas a opção de fazerem o questionário e reenviarem ou
de optar pela entrevista gravada, deixando claro o meu desejo de desenvolver a pesquisa por
meio de entrevistas gravadas presencialmente dada a riqueza de detalhes e a possibilidade de
desenvolver melhor os temas a serem abordados proporcionadas pela interação face a face.
Somente uma das jornalistas respondeu, optando por responder o questionário via e-
mail e reenviando-me no dia seguinte. Posteriormente, entrei em contato por telefone com
mais duas jornalistas e estas concordaram com a entrevista gravada. Por último, enviei um e-
mail a outra jornalista e ela optou pela entrevista gravada, resultando em quatro sujeitos para
49
nossa pesquisa, das quais, uma optou por responder o questionário e três, pela entrevista
gravada.
O material utilizado para captação e transcrição das entrevistas consistiu de um
gravador Panasonic, cabo USB e um notebook para audição e armazenamento das entrevistas.
Não usamos o protocolo específico da Análise de Discurso Crítica, embora seja nossa base
metodológica, por não haver encontrado material bibliográfico sobre normas para transcrição
tal como ocorre com o projeto NURC9; outro motivo pelo qual não nos preocupamos com as
marcações propostas por protocolos de transcrição é que não é nosso objetivo analisar pausas,
hesitações, truncamento, sobreposição de vozes, tomada de turno ou elementos que tornassem
a marcação gráfica necessária; um terceiro motivo é a inviabilidade de se executar esse
trabalho de transcrição mais detalhe no prazo estabelecido.
Com o intuito de analisar o conteúdo das entrevistas e as escolhas empreendidas
pelas jornalistas, nos deteremos em suas escolhas léxico-gramaticais, bem como no modo
como constroem e articulam sua fala, a fim de chegar à relação desses elementos com suas
implicaturas políticas e ideológicas. Para focar mais especificamente a identidade das
jornalistas mulheres, deslocaremos a análise para a modalização, a transitividade e o tema,
conectivos e argumentação, além de tratar de aspectos como a intertextualidade e a
interdiscursividade. Tal escolha se dá pela possibilidade de trabalharmos com o modo como a
jornalista avalia e percebe seus próprios enunciados, intensificando-os ou abrandando-os, em
sua interação e constituição com e a partir (d)o outro, constituindo assim a função interpessoal
da linguagem; e pelo modo como ela constrói e referencia o mundo através de escolhas
gramaticais e lexicais, constituindo a função ideacional.
4.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS
O nosso corpus foi constituído de três entrevistas gravadas nos dias 03/05, 12/05 e
13/05 com jornalistas que trabalham ou tenham trabalhado no meio impresso em Fortaleza
por mais de 5 anos. A quarta entrevista foi feita através de meio eletrônico, via e-mail, por
meio do qual a entrevistada respondeu a 13 perguntas elaboradas por meio de questionário. As
quatro primeiras perguntas do questionário também foram aplicadas às entrevistadas
pessoalmente. As demais perguntas foram desenvolvidas durante a entrevista, servindo de
uma base para direcionamento, não sendo fechada em si. Durante as entrevistas, inclusive,
apareceram outros temas que não estavam previstos em nosso questionário.
9 Projeto da Norma Urbana Oral Culta. Oferece uma padronização gráfica para marcação de silêncios,
truncamentos, sobreposição de falas em interações comunicativas orais.
50
A primeira entrevista durou uma hora e cinco minutos e foi realizada no Sindicato
dos Jornalistas; a segunda e terceira entrevistas tiveram duração de meia hora e foram
realizadas, respectivamente, na Universidade Federal do Ceará e no Diário do Nordeste. As
entrevistadas vão ser aqui identificadas como Inf.1, Inf.2, Inf.3 e Inf.4. Todas trabalham ou
trabalharam em grandes jornais de circulação em Fortaleza.
4.3 APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
Optamos por trabalhar a análise dos dados em duas seções: uma relativa à relação
entre Profissão e gênero, e outra referente à relação Profissão e família, a partir das relações
de gênero. Nossos objetivos, com isso, são (i) perceber a construção de identidade de
categoria e de gênero, bem como seu entrecruzamento, na medida em que acreditamos na
existência de diferenças socialmente estabelecidas de categoria e de gênero; (ii) entender, em
que medida, essas diferenças implicam em desigualdades também de categoria e de gênero;
(iii) compreender de que forma se dá a interseção entre a família e a profissão; e (iv) como as
relações de diferença identitária entre ambos os lugares sociais ocasionam também
desigualdades.
4.3.1 Profissão e gênero
A relação entre profissão e gênero é estabelecida na entrevista de duas formas: com
foco no fazer jornalístico e, portanto, no modo como ela se constitui jornalista – através de
qualificações da profissão, narrativizações do seu percurso dentro do Jornalismo, dentre
outros –, incluindo-se aí a formação acadêmica, e sua natureza, e na discussão acerca do papel
feminino dentro das redações.
A motivação para entrar no Jornalismo constitui ponto importante para a constituição
da identidade de jornalista, na medida em que elenca caracteres que marcam esse lugar social,
gerando um sentimento de pertença que caracteriza o grupo social. As marcas na fala de E4,
que segue abaixo, marcam essa ampliação para o grupo de jornalistas e não apenas sua
experiência pessoal.
Inf.4/Tr.1: E sim, eu tinha ansiedade, muita ansiedade de conhecer o mundo, de viajar, de
conhecer as pessoas, e eu achava que através da notícia você conhecia o mundo, você sabia o
que tava acontecendo, ia saber, naquela época assim, muito jovem, ia saber o que estava
acontecendo na Rússia, ia saber o que estava acontecendo nos Estados Unidos, no Rio, ou,
enfim, a notícia te colocava em contato com o mundo. [...] E eu achava também que, através
do Jornalismo, eu podia dar uma contribuição social, né? Como depois eu fiz muitas
51
reportagens de cunho social, e que eu acho que o pouco que me coube deu pra fazer alguma
coisa, que me cabe, né? E foi isso, foi paixão pelo mundo, conhecer o mundo, conhecer a, né,
o que acontecia no mundo, que o principal motivo, e a possibilidade de criar, fazer textos
criativos, né?
Em sua fala, Inf.4 esclarece seus motivos para ter seguido a carreira de jornalista,
marcadamente dentro do enunciado: “eu tinha ansiedade, muita ansiedade de conhecer o
mundo [...] e eu achava que através da notícia você conhecia o mundo”. Mas ao estabelecer
como isso ocorreria, ela modifica o actante, que passa a ser você. Ou seja, ela se retira do
conhecer o mundo e sinaliza um você que não tem referente empírico, criando um efeito de
generalização, no qual o você se relaciona com a notícia – carregada semanticamente pelo
discurso jornalístico – e que pode ocupar dois lugares, o de produtor da notícia ou o de
consumidor da notícia. O você, então, se correlaciona ao você-leitor ou ao você-jornalista,
ambos de modo geral. O lugar que ela ocupa, no entanto, não é a de leitora, o que fica
explícito em “E eu achava também que, através do Jornalismo, eu podia dar uma contribuição
social, né?”, no qual o lugar de jornalista confere a ela a possibilidade de contribuir
socialmente.
O/a jornalista, através da fala de Inf.4, é situado segundo o seu desejo de conhecer o
mundo, de poder contribuir socialmente através de sua produção, do desejo de saber e
conhecer, e da possibilidade de exercer sua criação através de textos. A valorização do texto
como principal produto do jornalista e a partir do qual é construído seu papel social é marca
também em In1./Tr.1.
Inf.1/Tr.1: É óbvio que o considero fundamental, relevante e de interesse público. Há no
jornalismo a missão de reportar, contar histórias, trazer boas narrativas, coletivizar o
público e, muitas vezes, lançar um olhar diferenciado sobre o particular. Assim, o jornalismo
é, metaforicamente, uma espécie de elo a entrançar os vários universos, as várias realidades,
projetar cenários... Sem entrar na discussão da plataforma, que tem dominado os debates na
nossa área, não imagino uma sociedade sem a circulação da informação.
Para a jornalista, o seu campo de atuação é incontestavelmente importante dada a
utilização da modalidade categórica que atua no seu próprio ato de fala, o qual enfatiza a sua
assertiva, através da forte qualificação por meio de óbvio, de que o Jornalismo é
“fundamental, relevante e de interesse público”. Dentro de uma polaridade entre positivo e
negativo, correspondente a ser e não ser, o Jornalismo é colocado por Inf.1, seguramente, na
polaridade positiva quanto a todos os atributos relacionados a ele. A escolha lexical por ela
empreendida é sólida: mais do que a atividade de reportar, contar histórias, etc, ela refere-se
às ações enquanto missão. O profissional se constrói, então, como aquele capaz de cumprir a
52
missão de reportar, contar histórias, trazer boas narrativas, coletivizar o público, lançar um
olhar diferenciado sobre o particular, entrançar universos e realidades, projetar cenários e
fazer circular a informação.
Por meio da utilização da impessoalidade, Inf.1 atribui de forma não-específica as
características da atividade a todos os profissionais, de maneira geral, e, consequentemente,
estabelece suas correspondências quanto ao lugar social do jornalista, que deve, portanto,
transitar pelos espaços públicos e privados, sabendo articular informação e estabelecendo o
intercâmbio social por meio de suas narrativas.
Para que isso se torne possível, faz-se necessário um profissional que consiga
articular bons textos tanto do ponto de vista estrutural quando do ponto de vista semântico e
pragmático. Outro ponto relevante é que ele saiba se situar nos ambientes pelos quais transita
e que, portanto, tenha conhecimento do contexto com o qual está trabalhando. Tomamos,
portanto, a formação desse jornalista como ponto de debate para a constituição de sua
identidade e que se reflete no fato de todas as nossas informantes serem formadas.
Quanto à formação, todas as jornalistas entrevistadas têm pós-graduação ou,
atualmente, participam de algum curso de pós-graduação. A relação entre a formação que
recebem no ensino superior é relevante, embora haja divergências entre o tipo de formação
que é dado ao profissional, o que se reflete em sua atuação.
Inf.3/Tr.1: Sim, eu acho que tem que aliar as duas coisas, mas eu acho que a técnica é
imprescindível. Porque tem muita gente que chega no jornal sem saber escrever um “o” com
uma quenga, né? Aí cai pra quem já tá trabalhando lá e já sabe, entendeu?
Inf.3/Tr.2: Mas eu acho que essa história do conhecimento, eu acho que o curso pode
incentivar, eu acho que ele num, que ele não tem condições de fazer isso ao pé-da-letra, não.
Ele pode incentivar, ele pode ser um agente incentivador, potencializador dessa formação,
mas eu acho que a função, pelo curto espaço de tempo, é mais essa coisa de técnica, eu acho
que essa formação humanística é mais, ela é muito mais pessoal do que até curricular.
Para Inf.3, é importante que o profissional possua domínio sobre ambas as coisas:
conhecimentos técnicos para exercício do trabalho e conhecimentos políticos, culturais,
sociológicos, dentre outros, para a execução de seu trabalho. Isso se torna perceptível através
de marcadores modais em seu enunciado como “eu acho que”, o que é seguido pelo seu
posicionamento favorável ao intercâmbio entre o técnico e o humanístico: “[...] que tem que
aliar as duas coisas”. No entanto, ao estabelecer argumentos para a formação desse
profissional, Inf.3 modaliza cada um de maneiras diferentes, como, por exemplo na relação de
oposição que ela estabelece e a atribuição de qualificação: “[...] mas eu acho que a técnica é
imprescindível”.
53
Em seguida, ela oferece subsídios que sustentem o caráter imprescindível de um
profissional técnico e o correlaciona à habilidade de produção escrita de um texto, sem deixar
claro se a metáfora utilizada (um “o” com uma quenga) se refere à articulação e
encadeamento de ideias do produtor do texto, à grafia e à utilização de elementos textuais de
forma apropriada, ou a ambas as coisas, apesar de a metáfora sugerir uma preocupação com a
forma como algo é feito e não com as implicaturas desse fazer. Outro ponto importante a ser
ressaltado é que o ator dessa proposição, aquele que se liga diretamente a ela é generalizado.
Não é estabelecido um ator específico àquele que chega no jornal sem saber escrever, mas,
sim, é referenciado como muita gente. Logo, através de um processo relacional, Inf.3
estabelece as causas da formação ou da falta de formação a partir da relação entre os
envolvidos e o desempenho de tarefas ligadas à escrita do texto.
Ocorre então, para Inf.3, uma transferência de responsabilidades, na qual, quem vai
desempenhar essa formação técnica, quando não trabalhada anteriormente, são aqueles que já
trabalham nos jornais. A asserção de Inf.3 é marcadamente conclusiva: “Aí cai pra quem já tá
trabalhando lá e já sabe”. A carga semântica de cai implica um comprometimento dos
jornalistas já sedimentados na profissão de forma a realizar algo que não lhes cabe.
Em sua fala acerca da formação humanística, a modalização é feita de outra forma.
Ao relacionar a formação aos cursos superiores de Jornalismo – formação explicitada à
entrevistada em minha pergunta -, há um forte uso do marcador modal pode, assim o
agenciador, o responsável pelo posicionamento e tomada de ações, tem sua atuação
parcialmente comprometida, ou seja, sua atuação é responsável, apenas em parte, por essa
formação, assim temos: “o curso pode incentivar”, “ele pode ser um agente incentivador,
potencializador dessa formação”. No entanto, a modalização se modifica ao atribuir as
funções de uma formação humanística e de uma formação técnica, Inf.3 passa à modalidade
categórica, ao estabelecer que a função do curso “é mais coisa de técnica”, ao passo que “a
formação humanística é mais, ela é muito mais pessoal do que até curricular”. Dentro dessa
modalidade categórica, Inf.3 realça e intensifica esse caráter pessoal da segunda.
É importante ressaltar que a modalização ocorre em dois âmbitos: um sobre a
atuação dos agenciadores e, consequentemente, dentro do seu enunciado; outro sobre o
próprio ato de fala, quando ela se posiciona referente à sua afirmação através dos marcadores
“eu acho” referentes à sua enunciação e utilizados reiteradamente, o que gera um não
comprometimento por parte de Inf.3 com sua fala, deixando em aberto a possibilidade de que
possa ocorrer da forma como disse assim como pode não ocorrer.
54
Assim, a busca de conhecimento é legada ao desejo pessoal do jornalista de buscá-la
por si, mais do que através do impelimento de um curso superior, mas principalmente pela sua
própria vontade.
Inf.4, por sua vez, se posiciona de forma contrária a Inf.3 quanto à formação dada ao
profissional do Jornalismo.
Inf.4/Tr.2: eu acho que deveria ser mais humanística. Eu acho que há um erro aí. Eu acho
assim que, hoje, quem está saindo da faculdade, eu acho que ele sabe mais línguas, eu acho
que ele sabe mais mexer no computador, ele sabe, ele domina mais as novas tecnologias, mas
eu acho que há uma ausência muito grande das questões sociais, há uma ausência das
questões políticas, há uma ausência das questões humanísticas. E é o profissional que o
mercado está querendo. Infelizmente. [risos] Bom, mas, eu acho que, isso aí, você diz assim,
„isso aí é o padrão geral, é o padrão geral‟. Porém, quando você vai olhar o texto das
pessoas, quando você vai sentir o texto das pessoas, qual é o texto que você vai ler? É o texto
meramente objetivo? É o texto meramente informativo? Não é. É o texto sensível, é o texto
que tem uma crítica, é o texto que faça, que tenha riqueza de fontes, que tenha informação.
Eu acho que o leitor mais atento, pro leitor faz diferença.
Da mesma forma que Inf,3, Inf.4 se posiciona quanto à sua assertiva através do
marcador “eu acho”. Quanto à formação humanística, ela modaliza através da utilização do
deveria, posicionando-se acerca do tipo de formação dada. E é categórica quanto a relação
estabelecida entre como as faculdades trabalham isso, o que é antecipado por “aí”, e como
deveria ser: “Eu acho que há um erro aí”. Para Inf.4, aqueles que saem da faculdade se
caracterizam pelo domínio das tecnologias da sociedade atual, bem como têm o conhecimento
acerca de idiomas, mas que o debate acerca das questões sociais e políticas possui muitas
lacunas. Segundo ela, essa formação é dada a fim de fomentar o mercado e possui, portanto,
uma legitimição econômica, figurando de forma naturalizada, ou seja, visto como um “padrão
geral”, tal qual coloca Inf.4, e que é situado dentro do texto através da intertextualidade, na
medida em que o lugar dessa fala é na palavra de um Outro atribuída ao você, elemento
generalizador, que, na verdade, não aponta um determinado sujeito. Em seguida, contrapõe o
estabelecimento do padrão geral ao consumo dos textos atribuídos de valores – sensível, que
tem uma crítica, que faça, que tenha riqueza de fontes, que tenha informação – a um
beneficiário que experiencia a produção, mas que aparece no texto de forma generalizada, em
um você que não tem um referente específico. Ao final de sua fala, Inf.4 evidencia a diferença
no consumo textual, apontando para o papel do leitor na produção do texto. Ou seja, essa
importância dada à elaboração da escrita e, consequentemente, do exercício profissional se
constrói, principalmente no caso dos jornalistas, na relação entre produção, distribuição e
55
consumo textual presentes na prática discursiva. A importância que se tem na produção do
texto fica clara no retorno do Outro, na captação do Outro, entendido aqui como o leitor.
Inf.2/Tr.1: Eu acho que é imprescindível ter essa formação mais humanística, sabe, assim,
questões como Ética, como Sociologia, como Filosofia, elas são importantes para a
compreensão de mundo. Assim, então, eu não concebo um jornalista que só sabe escrever um
lead, né, um jornalista eminentemente técnico é um jornalista limitado, eu acho, assim, se ele
não fizer esses questionamentos e se ele não conseguir ter dimensão desse papel social que
ele tem de mediador e de tentar mostrar os vários lados de uma notícia, enfim, tentar ser o
mais crítico possível, porque a questão da imparcialidade é bem delicada, você nunca vai
atingi-la completamente, mas é complicado você ver algumas matérias hoje em que só se vê
um lado, ou aquilo não é criticado, o repórter não questiona aquela pauta ou não tenta ir
além dela, eu acho que isso é prejudicial para a profissão e para os leitores, para os
telespectadores, enfim, para os que recebem aquela informação.
Assim como em outros trechos de outras informantes aqui já colocados, Inf.2 inicia
através de uma modalização de seu enunciado, qualificando a formação humanística como
imprescindível e especificando-a: “como Ética, como Sociologia, como Filosofia”. Inf.2
implica, então, que o caráter imprescindível da formação humanística se contrapõe à
formação técnica, na qual o profissional se prende à proposta elementar do Jornalismo: dizer
quem, fez o quê, quando, como, onde, e por que fez, elementos imbuídos na marca do
discurso jornalístico presente na fala de Inf.2 – lead.
Ao contrário, o jornalista, para Inf.2, através de uma formação humanística, se
constrói enquanto ser consciente de seu papel social, crítico, e capaz de atualizar diversas
vozes que vão ser confrontadas dentro da notícia. “Os vários de uma notícia” correspondem à
busca pela mediação dessas vozes feita pelo jornalista.
Ela também desmistifica um dos caracteres atribuídos ao jornalista, a saber: a
imparcialidade, e também chama a atenção para a necessidade de se buscar um Jornalismo
democrático tanto para aquele que o realiza como aqueles para quem é feito. Atualmente, os
trabalhos acerca de Jornalismo (cf. Lage, 2006) já chamam a atenção para o mito da
imparcialidade: ao construir um texto, operamos escolhas e nos posicionamentos, ainda que
invistamos uma pluralidade de vozes. Enquanto nos constituirmos como sujeitos investidos
política e ideologicamente, não poderemos atingir uma imparcialidade absoluta.
Quanto às dificuldades enfrentadas pelas jornalistas durante o exercício de suas
funções, o posicionamento discursivo delas confere heterogeneidade à leitura que elas
mesmas fazem de seu posicionamento diante do fazer jornalístico.
56
Inf.4/Tr.3: Quando eu estava na reportagem, se eu não estava ferindo frontalmente o
interesse da empresa ou então algum tema, não é nem tanto interesse... eu tenho um tema que
a empresa diz „não, esse tema não, a gente quer outro‟, porque muitas vezes também eu fazia
proposta de pauta, né? Então, quando eu ia atrás da fonte, eu me dispunha a pesquisar, eu
acho que eu sempre fui muito bem sucedida. Agora, hoje, como eu estou em Cidade, aí, você
lida com a limitação do tempo, aí, muitas vezes, você não pode aprofundar, a matéria é pra
hoje. Se a matéria é pra hoje você tem que fazer com as condições que você tem. Com aquilo
que está dentro dos limites. Por exemplo, minha carga horária é sete horas. Em sete horas
você está lidando o quê, com a fonte que não está no lugar pra onde você está ligando, com a
fonte que não se atém aquela informação, não ter tempo de pesquisar mais. Você vai lidar
com o que você tem, você vai trabalhar com o que é possível trabalhar, da melhor maneira
possível, mas no cenário que lhe é dado, né? Você não pode ir além disso porque, se você
negocia que é pra outro dia, pra outra semana, uma matéria maior que entra em Cidade, aí é
ok. Mas se é uma notícia, você tem que trabalhar com a realidade da notícia pro dia seguinte.
Ao falar sobre a atuação, mais especificamente sobre suas atuações no Jornalismo, as
entrevistadas operam escolhas léxico-gramaticais próprias do discurso jornalístico, assim
como “estava na reportagem”, “proposta de pauta”, “fonte”, “como eu estou em Cidade”, “a
matéria é pra hoje”, “notícia”. A identidade da jornalista vai sendo, assim, construída a partir
da sua relação com o tempo e com o espaço, com os outros sujeitos envolvidos em sua
atuação, com os processos de escrita e, consequentemente, com os gêneros discursivos
produzidos, com o estabelecimento de subgrupos – editorias - dentro do grupo social maior –
Jornalismo.
A Transitividade na fala de Inf.4 aponta para a circunstanciação temporal e espacial,
ou seja, primeiro ela sinaliza em que época e qual posição ela ocupava para, em seguida,
situar as dificuldades que ela teve. Estas, por sua vez, estão ligadas à contextualização
marcada pelo circunstante, ou seja, o tratamento de determinados temas frente à empresa, ao
oferecer resistência, está relacionado ao fazer reportagem da jornalista. Por outro lado, ao
situar seu trabalho na editoria de Cidades, produzindo notícias sobre uma outra lógica
temporal e espacial, sua dificuldade muda para a urgência de se concluir o trabalho. Um fato
interessante que acontece na fala de E4 é que, ao sinalizar a dificuldade na produção de
reportagem e mesmo ao comentar sua atuação, como em ”porque muitas vezes também eu
fazia proposta de pauta, né” e em “quando eu ia atrás de fonte, eu me dispunha a pesquisar”,
ela se situa dentro dos enunciados como a agenciadora, ela se aproxima do fazer, da ação. No
entanto, ao falar da limitação do tempo, ocorre o contrário, ela se distancia e opera uma
distanciação, o que gera um efeito de generalização com o uso do você: “Agora, hoje, como
eu estou em Cidade, aí, você lida com a limitação do tempo, aí, muitas vezes, você não pode
aprofundar, a matéria é pra hoje. Se a matéria é pra hoje, você tem que fazer com as condições
que você tem”. A tematização marcada subjetivamente no início, apontando para a
57
experiência profissional dela, funciona como contextualização para o que vem a seguir, que já
aparece marcado pelo você. Ao criar o efeito de generalização, Inf.4 aponta para o você-
jornalista, aquele que lida em seu dia-a-dia com a limitação do tempo e da pesquisa, e que está
sujeito às condições de produção da notícia.
O mesmo acontece mais à frente, quando Inf.4 tematiza uma experiência sua e, em
seguida, generaliza novamente através de você: “Por exemplo, minha carga horária é sete
horas. Em sete horas, você está lidando o quê”. E prossegue até o final de sua fala através de
um posicionamento atribuído não somente a si, mas aos jornalistas em geral.
Quanto à modalidade, é importante notar que, diferente do que foi percebido acerca
de seus posicionamentos quanto à formação acadêmica dada aos jornalistas, o tema das
dificuldades enfrentadas pelos profissionais não apresenta muitos marcadores modais como
“eu acho”, mas, sim, feita de maneira categórica, o que atribui um caráter mais sedimentado
às suas informações, mais pontual.
Outro ponto colocado como limitador da atuação do/da jornalista é a estrutura das
empresas para suprir as demandas de seus profissionais a fim de executar suas tarefas.
Inf.2/Tr.2: A falta de estrutura das empresas, ela acaba prejudicando também os
profissionais. Já houve casos de eu esperar uma hora e meia por um carro e, esse tempo, eu
podia tá na redação apurando, ligando pra algumas pessoas, pesquisando alguma coisa na
internet, né. Então, esses problemas estruturais, eles afetam o cotidiano do repórter muito
mais do que deveriam, eu acho.
Inf.2 investe a falta de estrutura das empresas de agenciação e apaga os atores
sociais envolvidos/responsáveis por essa falta de estrutura, ao mesmo tempo em que enfatiza
ao inserir outro referente para o sintagma nominal – ela. Apesar de a jornalista não
aprofundar, nesse trecho, sobre que outros pontos são responsáveis pelo comprometimento da
atuação do jornalista, ela deixa claro que esse não é o único problema enfrentado por ela em
“ela acaba prejudicando também os profissionais” e exemplifica com um caso que aconteceu
consigo, mostrando que o prejuízo causado pela empresa compromete a sua atuação de outras
formas dentro do jornal, e a sua dedicação ao exercício do Jornalismo, o que reflete na sua
identidade profissional.
Retomando a diferença da modalidade entre as temáticas, sua diminuição também
ocorre com menos frequência na fala de Inf.3:
Inf.3/Tr.3: Olha, as minhas principais dificuldades, na minha profissão, na minha trajetória
profissional, foi ter passado 8 anos e meio na editoria de Cidades, foi não ter tido
oportunidade de ir pra outro lugar, foi de ter alimentado isso durante muito tempo, foi ver
58
que eu trabalhei lá durante 8 anos e meio, eu só ganhei experiência, não tive nenhuma
projeção do ponto de vista de... de destaque, de oportunidade de assumir uma outra função,
de ganhar um salário melhor. Não é uma coisa restrita a minha pessoa, eu quero deixar isso
bem claro, nem ao fato de eu ser mulher. É uma política do jornal, eu acho que é pior com a
mulher, eu acho que é bem pior com a mulher, mas é uma política dos meios de comunicação,
principalmente, o ( ), por exemplo, tem gente que tá lá, é o mesmo editor desde que o jornal
foi criado, tem gente que tá lá fazendo a mesma matéria há 20 anos e reclamando, com as
mesmas reclamações, com o mesmo texto, as mesmas falhas de apuração, gente que não pode
contar com ninguém, sem renovação, então...
Também aqui a presença de marcadores modais ligados à enunciação como “eu
acho” é reduzida. Ao partir de sua vivência, Inf.3 encadeia o seu texto de modo pontual,
factual. O marcador aparece quando a jornalista se posiciona acerca da política da empresa
quanto à mulher: “É uma política do jornal, eu acho que é pior com a mulher, eu acho que é
bem pior com a mulher”. Não só ela deixa bem marcada a sua opinião, como ela intensifica
esse posicionamento que é feito a partir da modalidade categórica “É uma política do jornal”,
“É uma política dos meios de comunicação”. Dessa forma, o jornal e, de maneira mais ampla,
os meios de comunicação trabalham com esses jogos de poder referentes à mulher, já que
Inf.3 situa seus posicionamentos enquanto políticas. Ao mesmo tempo, esses jogos de poder
são naturalizados, na medida em que há uma correlação estática entre as políticas dos grupos
sociais envolvidos e a situação da mulher, ou seja, isso é pior com a mulher, porque são
políticas do jornal ou dos meios de comunicação.
Por outro lado, as dificuldades elencadas por Inf.3 no início apagam-na como sujeito
de ação e a situam de forma passiva frente aos acontecimentos citados, o que, inclusive,
aparece de forma explícita em sua fala: “foi de ter alimentado isso durante muito tempo”. O
isso, porém, só se refere ao que foi explicitado anteriormente, o que acaba por delegar a ela o
motivo dos dois primeiros pontos, em contraposição aos motivos delegados à empresa que
figuram logo em seguida. Nesse sentido, nós temos, então, as práticas das empresas
jornalísticas de manterem relações de poder naturalizadas enquanto políticas e que, por isso, o
acabam por serem atenuadas, e que são reiteradas pela tomada de uma posição passiva por
parte dos atores sociais, os quais, nesse caso, se colocam como pacientes sociais.
Inf. 3/Tr.4: E fiquei lá como repórter da editoria de Cidades durante 8 anos e meio. Eu saí no
final do ano passado. É, depois desse tempo... eu nunca fui promovida, é, pelo que me diziam
era uma, não era uma repórter medíocre. É, recebi um convite, apenas um ou dois convites
de assumir uma, um lugar lá que era sub-edição, mas que não tinha nenhum acréscimo no
salário. Eu ia ter que trabalhar de noite, nunca fui. Mais, com mais responsabilidade, em
outro horário que era inviável pra quem tem filho e, aí eu não fui.
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Aqui, Inf.3 se coloca como atora social ao falar de sua atividade jornalística, mas
também, volta a se estabelecer como paciente de ações que não possuem um promovedor,
visto que só é explicitada a sua condição: “eu nunca fui promovida”, ao passo que o agente é
apagado. Também o convite oferecido a Inf.3 é situado em lugar de desprestígio na medida
em que não possui um referente explícito, mas que ocupa um lugar no discurso – “um lugar
lá”. Outros agravantes são apontados para a desqualificação do convite como a inadequação
do horário e a falta de retorno financeiro correspondente às suas atividades. É importante
notar que a mudança no modo como ela se referencia, atribui-lhe um outro lugar social: “[...]
em outro horário que era inviável pra quem tem filho”. Ou seja, ocupar o lugar social de
jornalista sob essas condições choca com a ocupação do lugar social de mãe que, nesse
contexto, possui um peso maior do que o primeiro.
Há também uma relação forte entre as questões sobre gênero e o exercício de
cargo de chefia nos relatos das jornalistas. O par gênero/chefia é apontado por muitas delas
como um possível lugar em que se pode perceber as diferenças entre homens e mulheres dada
a pouca quantidade delas nesse patamar.
Inf.2/Tr.3: Bem, quando eu comecei, os meus editores eram homens. No jornal X, eu nunca
trabalhei tendo uma editora, mulher.
No trecho acima, Inf.2 percebe a ausência total da participação de mulheres em
cargos acima dos de repórter, como o de editor, no começo de sua carreira. Em Inf.4/Tr.4, que
segue abaixo, isso acontece também atualmente, com a diferença de que há mais mulheres
ocupando cargos de chefia ainda de forma não muito visível.
Inf.4/Tr.4: Não, eu acho que não tem muito essa questão de gênero, não, no Jornalismo.
Talvez a gente possa dizer que, talvez nas chefias hoje exista uma presença maior de
mulheres em chefia, né? Pode não ser muito visível, mas eu acho que sim. [...] E, o que é que
acontece, eu percebo um pouco o avanço das mulheres em cargo de chefia, em edições, né,
em chefia de reportagem.
A modalização negativa em sua fala implica em um certo apagamento das questões
de gênero, o que não faz, contudo que elas se apaguem completamente, já que “se não tem
muito”, é porque, de alguma forma, há. Inf.4 constrói sua fala no sentido de potencializar a
atuação feminina nos cargos de chefia e tornar opacas as relações de gênero existentes nesse
espaço. Primeiro, ela modaliza sua fala negativamente acerca do embate acerca de gênero e,
em seguida, foca sua fala, positivamente, na presença de mulheres na chefia.
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Inf.1, que ocupa um cargo de chefia, vê essa relação de maneira diferente. Para ela, a
atuação jornalística independe de seu lugar social enquanto homem ou mulher. A atribuição
feita por ela à atuação enquanto jornalista é colocada de forma positiva na medida em que,
ela, enquanto mulher, infere um grau de afetividade por aquilo que faz e pelo modo como o
faz. A condição que se estabelece em “Tanto melhor se o fato de eu ser mulher tem a ver com
a paixão que tenho pelo exercício do jornalismo, pela seriedade e pelo prazer com que encaro
meu trabalho” não parte da condição de gênero para qualificar uma determinada atuação, ou
seja, sua atuação não é melhor pelo fato de ela ser mulher, mas de estabelecer que, talvez,
pelo lugar de gênero que ela ocupa, há um investimento de motivação sobre o exercício de ser
jornalista.
Inf.1/Tr.2: Não tenho essa reflexão da atuação jornalística numa perspectiva feminina. Nem
sei se isso existe. Somos jornalistas, independente de gênero. Temos nossas afinidades,
nossos compromissos e a nossa paixão pela profissão. Tanto faz ser homem ou mulher. Tanto
melhor se o fato de eu ser mulher tem a ver com a paixão que tenho pelo exercício do
jornalismo, pela seriedade e pelo prazer com que encaro meu trabalho.
Inf.1/Tr.3: Tenho dificuldade em fazer esse recorte [atuação feminina nas redações]. Parar e
pensar para ter esse olhar é elaborar e vou te dizer que é uma profissão que tem forte
presença feminina. Por onde passei, no exercício da profissão, vi sempre muitas mulheres
fortes, batalhadoras, competentes, corajosas, apaixonadas e contadoras de boas histórias.
Da mesma forma, vi homens também. Posso te dizer é que não imagino o universo do
jornalismo sem as mulheres, assim como qualquer universo.
Nos dois trechos, Inf.1 deixa claro que não tem bastante formulada a reflexão sobre o
recorte acerca da atuação das mulheres no Jornalismo, em parte, por não fazer uma separação
de gênero, em parte, por não se deter de fato à essa discussão. O segundo ponto está
diretamente ligado ao primeiro e é justificado pela grande presença das mulheres e na maneira
como elas têm atuado dentro do Jornalismo. No entanto, o fato de elas terem uma forte
presença e de essa presença ter uma grande qualidade não define as relações sociais
estabelecidas dentro do campo.
Para Inf.3, há uma preferência dada ao homem em cargos de chefia, assim como
também há uma restrição para aquelas mulheres que são chefes: elas não são mães. Não que
seja uma condição pré-estabelecida, mas incorpora-se à identidade da mulher-chefe como
algo consolidado, embora maleável. A percepção de Inf.3 para a existência de lugares implica
também que não se restringe somente ao espaço da chefia, mas a outros lugares dentro do
Jornalismo nos quais existe “essa diferença mesmo”. No caso da diferença apontada por Inf.3,
mais do que uma diferença, ela se configura em desigualdade de gênero.
61
Inf.3/Tr.5: Os homens, eles têm uma facilidade maior de ter, é, destaque em cargo de chefia,
mas não é uma constante, porque, lá no X, tem muita mulher que é chefe. Lá, não tem mulher
que tem filho pequeno, lá, sendo chefe, não. Certo? Eu acho que, no Jornalismo ainda tem,
em alguns lugares - eu acho uma visão provinciana até - eu acho que ainda tem esse, ainda
tem preconceitos. Eu acho que não é uma posição consolidada, eu acho que, que tem essa
diferença mesmo, tem essa diferença mesmo. Por exemplo, é, um dos, uma editora lá, isso foi
ela que me disse - não chegou a ser oficial - que me convidou pra ir pra uma editoria de
Reportagem que é uma editoria que faz matérias trabalhadas, aí disse que eu não fui, que o
meu nome não foi aceito, porque eu não podia viajar. Ninguém chegou pra mim pra
perguntar se eu podia viajar. Eu posso passar uma semana fora, dez dias viajando de férias,
por que que eu não posso passar dez dias trabalhando? Né? Num é programado? Eu fui
cortada, porque eu não podia viajar, por quê? Porque eu tinha filho. Vem cá, não fui eu que
disse isso, chegaram às conclusões, né.
Essa desigualdade é trabalhada no trecho acima a partir de um caso pessoal
ocorrido com Inf.3, no qual, foi atribuída a ela a impossibilidade de viajar e,
consequentemente, a impossibilidade de exercer outra função dentro do jornal, na qual as
práticas de produção e distribuição de textos demandam mais tempo e um maior
deslocamento, melhor apuração e trabalho mais apurado. Inf.3 não só questiona a tomada
dessa decisão sem uma consulta a si, como aponta uma resposta: “Porque eu tinha filho”. Os
agenciadores dessa decisão são, no entanto, apagados, através de uma indeterminação dos
sujeitos implicados.
Inf.3 também sugere formas de mudanças para reelaborar as políticas adotadas
pelo jornal, reestruturando, dessa maneira, as relações de poder que ali existem.
Inf.3/Tr.6: Eu acho que poderia ter, isso é uma, é uma... política geral, podia ser adotada
uma política de carreira, incentivo como, por exemplo, por ano, você passar 5 anos no
jornal, você recebe uma coisa a mais, porque você tá lá. Eu acho que pode ter tanto um
incentivo financeiro como um incentivo profissional. Eu acho que tem que, que... as mulheres
poderiam ser melhor aproveitadas pra algum tipo de editorias, acho que poderia ter rodízio
que era uma forma de incentivar as pessoas a mudarem, a sair da mesmice...
Suas sugestões são inseridas através do marcador modal, retomando o mesmo
posicionamento que é feito quanto à formação acadêmica, abrindo as possibilidades de poder
ser/poder não ser. Tanto que, além dele, temos “poderia ter [...] uma... política geral”, “podia
ser adotada uma política de carreira, incentivo”, “pode ter tanto um incentivo financeiro como
um incentivo profissional”, “as mulheres poderiam ser melhor aproveitadas pra algum tipo de
editorias” e “poderia ter rodízio”, todos marcando uma sugestão passível de ser acatada ou
não.
62
4.3.2 Gênero e família
Já havendo pincelado alguns pontos sobre gênero, vamos nos voltar mais
detidamente para esses aspectos nas falas de nossas entrevistadas. Os posicionamentos são
bastante heterogêneos e apontam para uma pluralidade de visões quanto à participação da
mulher dentro do Jornalismo, ao mesmo tempo em que se encontra bastante ligado à esfera da
família e aos papéis que ela desempenha nessa esfera.
Inf.3/Tr.7: Quando eu ingressei [na universidade], eu era uma mulher do mundo. Tinha hora
pra chegar, só tinha hora pra chegar no trabalho. O resto era... num tinha isso, não. [...] E
depois das transformações, vira tudo regrado. Porque você tem, passa a ter hora pra tudo,
você não tem mais tempo pra nada, eu não tinha tempo nem de ir pro shopping que é uma
coisa que eu adoro. Eu não tinha tempo nem de ir pro shopping. Aí, é, o meu marido é
médico, é cirurgião, é uma pessoa que não tem tempo, não tem tempo, se eu não tinha, ele
não existe. Ele não tem tempo pra nada. Então, essa decisão de sair do (jornal X) foi uma
coisa muito conversada e tudo. Apesar d‟eu, d‟eu, de ele praticamente assumir grande parte
das despesas da casa, é uma coisa que foi muito bom, pra casa, pra ele, pros meninos, porque
eu tenho mais tempo disponível, pra assumir papel de mulher mesmo, de mulher, de mãe, de
dona-de-casa, de menino, de tudo. Hoje, por exemplo, hoje eu passei o dia inteiro sentada no
computador fazendo matéria pra (jornal Y), mas num é todo dia que eu faço isso. Ontem, por
exemplo, eu num fiz nada, eu só mandei essa pauta.
A utilização dos referentes nesse trecho marca a relação entre o período antes das
transformações – casar, ter filhos – e o período pós-transformações. O circunstante temporal
“Quando eu ingressei”, situa o leitor no período de quando ela entrou no curso de Jornalismo
e marca a localização temporal na qual ela se coloca como mulher do mundo. A metáfora
utilizada por E3 para se referenciar opõe-se à mulher de família que surge com o exercício de
papéis ligados ao âmbito doméstico, ao mesmo tempo em que se liga à flexibilidade de seus
horários e de seus fazeres. O período pós-transformações, ao contrário, é marcado pela
restrição temporal de seus afazeres, os quais ela coloca de forma generalizada e depois vai
especificando: “E depois das transformações, vira tudo regrado”. A flexibilidade quase geral
que ela possuía antes – à exceção de seu horário de entrada no trabalho – se converte em uma
restrição geral. Em seguida, ela busca explicar o fato de tudo passar a ser regrado, mas há um
apagamento de si mesma através do uso de você. E3 se retira do enunciado e só se recoloca ao
especificar para quais atividades não havia mais tempo, embora, até então, ela tenha
polarizado sua fala por meio de marcadores como tudo e nada. A sua retomada é feita em “eu
não tinha tempo nem de ir pro shopping que é uma coisa que eu adoro. Eu não tinha tempo
nem de ir pro shopping” e modalizada por nem que enfatiza a sua impossibilidade de fazer
63
algo que gosta, também qualificado por “que é uma coisa que eu adoro” e o qual ela chama
novamente a atenção através da repetição.
Em seguida, ela modifica a progressão de sua fala, e situa seu marido como tema e
que aparece como informação nova no trecho 7, servindo de base para a continuidade de sua
fala acerca dos papéis sociais desempenhados por ele e sua qualificação por parte de Inf.3: “o
meu marido é médico, é cirurgião, é uma pessoa que não tem tempo, não tem tempo, se eu
não tinha, ele não existe”. Também aqui, ela intensifica o não ter tempo através da repetição e
estabelece a comparação entre a ausência de tempo para si, até então enquanto jornalista, e a
ausência de tempo para o médico. Para dar continuidade, Inf.3 faz uso de uma conjunção
conclusiva, então, que relaciona a falta de tempo do cirurgião à sua saída do jornal bastante
conversada por sujeitos apagados do enunciado, embora implícitos e passíveis de serem
retomados como Inf.3 e seu marido, na medida em que o período é uma conclusão do que ela
havia dito anteriormente.
A continuação no trecho 7 estabelece a oposição entre os pontos positivos e
negativos de sua saída do jornal para os sujeitos envolvidos. Como ponto negativo, Inf.3
coloca a responsabilidade de seu marido pela grande parte das despesas da casa, em
oposição aos benefícios trazidos para a esfera doméstica e àqueles ligados a esta dada a sua
disponibilidade de tempo para exercer o papel social de mulher, o qual é investido e situado
dentro da esfera do lar, na medida em que a progressão de Inf.3 relaciona essa “mulher
mesmo” às atribuições de mulher enquanto esposa, de mãe, de dona-de-casa, de sua relação
com os meninos, e novamente uma generalização que ao acompanhar todo um campo
semântico ligado à esfera doméstica, se torna circunscrito também a ela. E ao assumir todos
esses papéis que são colocados como um ponto positivo de sua decisão, os beneficiários
também são referenciados: a casa, o marido e os meninos. O marido aparece como
beneficiário da decisão de Inf.3 e também como ator social que continua a desempenhar seu
papel na esfera pública e que passa a desempenhar um papel econômico prioritário na esfera
doméstica, o que é colocado como não favorável na medida em que figura como uma
sobrecarga para ele; ao passo que ela modifica sua atuação na esfera pública, mudando de
emprego e assumindo uma carga horária menor, e não aparece como beneficiária em
momento algum.
O Tr.7 marca então três períodos: um referente às pré-transformações e dois, às pós-
transformações. No primeiro, Inf.3 possui mais disponibilidade de tempo e parece haver
marcas de compromisso maiores consigo mesma; no segundo, ela passa a exercer suas
atividades de jornalista em interseção com as atividades referentes ao lar, gerando uma
64
indisponibilidade de tempo caracterizadora da dupla jornada ou mesmo tripla jornada que
muitas mulheres enfrentam ao optar por trabalhar fora e por não haver uma divisão clara de
tarefas dentro do âmbito doméstico, permitindo um desempenho simétricos de atividades
extra-lar tanto por parte do homem como por parte da mulher, o que acarreta, no caso de Inf.3,
uma sobreposição do ofício dele, talvez em parte pelo status atribuído à profissão de médico
em detrimento do de jornalista; por último, ela retoma a disponibilidade de tempo para
desempenhar suas funções dentro do lar sem abandonar de todo suas atividades de jornalista,
mas os benefícios são marcadamente atribuídos ao homem, aos filhos e ao lar.
No excerto que segue abaixo, Inf.2 fala das medidas disponibilizadas no meio
jornalístico para dar assistência às mães e de como ela lidou com a relação maternidade-
emprego, se valendo de seus direitos.
Inf.2/Tr.4: Quando eu fui pro X, dois anos depois eu tive filho. Aí, e aí, assim, mas é uma
garantia que a gente tem na nossa convenção, tanto pro X, tanto pro Y, que é de creche,
auxílio-creche, né, a gente tem. A gente tem outra cláusula que prevê uma hora a menos na
carga horária de mães de filhos de até um ano. Então, foram coisas que eu reclamei e eu fiz
valer pra mim. Por exemplo, assim, eu não consegui, no X, chegar, sair uma hora antes nesse
período. Eu, então, conversei e disse “então, eu vou chegar uma hora depois, porque é um
direito meu, é um direito que tá garantido e que eu vou querer usufruir dele”.
Inf.2 contextualiza e situa seu leitor quanto ao período em que teve filhos, dois anos
após ingressar no jornal para, em seguida, falar das garantias que assistem as mulheres
jornalistas e que não são restritas a um único veículo de comunicação, mas que se estendem.
Nesse ponto, a escolha do referente a gente abrange a noção de garantia para a categoria e não
somente para ela. Após explicitar as garantias de auxílio-creche e carga horária reduzida, ela
volta a centrar sua fala em uma experiência pessoal: “Então, foram coisas que eu reclamei e
eu fiz valer pra mim”. A escolha por reclamei aponta a necessidade de ela ter de buscar seus
direitos, ou seja, não foi algo gentilmente cedido pela empresa a ela. Ao contrário, para
garantir o exercício e o cumprimento de seus direitos, ela se coloca como atora social e sujeito
de seu fazer. O beneficiário também é claramente marcado em sua fala: mim. Seu direito é
então garantido através de acordo conversado, que ela explicita por meio de intertextualidade,
no qual aparece sua fala marcada por aspas que denota o discurso direto, embasando e dando
sustentabilidade à sua ação.
Ao estabelecer o vínculo entre família e profissão, a maternidade aparece bastante
marcada na fala das mulheres, embora algumas estabeleçam explicitamente essa correlação de
forma positiva e outras de forma negativa, no sentido de que não vêem comprometimento do
65
exercício de suas profissões com a maternidade. Os próximos dois trechos estabelecem uma
relação de oposição entre a visão que elas têm acerca do assunto.
Inf.4/Tr.5 - Vejo [a maternidade como diferencial na atuação feminina] não, vejo não, porque
a gente tem maravilhosas jornalistas que são mães que se impõem pela competência e podem
ter jovens jornalistas ou não tão jovens jornalistas que não são mães e que não estão se
impondo... eu acho que o que predomina, no caso, que eu observo, é o desempenho da
mulher: quando ela é mãe, tudo bem, você pode até dizer assim „as empresas preferem as que
não são mães‟, né? Eu acho que não, que quando ela é mãe e competente, essa barreira não
existe. Quando ela é mãe e competente. Agora, assim, se ela é mãe, ela, ainda assim, ela
própria diz „eu não vou fazer tal coisa porque eu sou mãe, eu não vou fazer tal viagem
porque eu sou mãe‟, aí tudo bem, eu acho que ela tá conduzindo a vida dela pra atuar um
pouco mais discretamente na profissão e dar um pouco mais de atenção à família. Eu digo,
eu estou falando assim, por exemplo, quando o meu filho tinha seis meses de idade, chegaram
pra mim e fizeram uma proposta de emprego pra eu ir pro interior do estado fazer uma
reportagem, e eu podia ter me negado a ir. [...] Se eu estava certa, eu não sei, mas a pauta foi
uma pauta que me apaixonou, que era o perfil do menor de idade, o perfil da infância no
interior do estado. [...]. E como eu quis fazer a pauta, a reportagem, eu sacrifiquei um pouco
meu filho pra fazer essa reportagem. Então, assim, foi uma opção que eu fiz. Se eu estava
correta, eu não sei, sei que eu quis fazer, fiz, acho que ficou boa. Eu não me arrependi
porque era uma pauta que, naquele momento, também ia me realizar. Então assim, eu digo
assim, pode ter alguma limitação: eu trabalhava à noite, até altas horas, aí, talvez, eu acho
que se dê alguma preferência ao homem. [...] então eu acho que as empresas podem ter
mesmo, sabe, suas restrições, mas eu acho que a mulher faz por onde quebrar esses tabus.
A repetição em “vejo não, vejo não” dá ênfase ao seu posicionamento quanto à
temática de haver diferença entre a atuação da mulher que é mãe e aquela que não o é. A sua
argumentação, por conseguinte, estabelece uma oposição não entre mulher-mãe e mulher-
não-mãe, mas entre competência/não-competência, sem vínculo entre uma (maternidade) e
outra (competência). Em seguida, ela modaliza sua fala para falar do desempenho da mulher e
especifica sua fala, focando naquela que é mãe: “quando ela é mãe, tudo bem, você pode até
dizer assim „as empresas preferem as que não são mães‟, né?”. Ao fazer isso, ela insere o
discurso do outro e, através da intertextualidade, fala através de um você, que gera o
apagamento do eu no discurso e que tem sua atuação modalizada por meio do pode até.
Dentro da fala distanciada de si, Inf.4 situa a empresa como agente responsável pela exclusão
das mães, fazendo com que um ente abstrato ocupe o lugar hegemônico e opere as relações de
dominação. Todos esses mecanismos de afastamento e generalização contextualizam o seu
posicionamento que vem em seguida “Eu acho que não, que quando ela é mãe e competente,
essa barreira não existe” e que é reiterado pela repetição. Sua colocação, no entanto, é
quebrada logo adiante: “Agora, assim, se ela é mãe, ela, ainda assim, ela própria diz „eu não
vou fazer tal coisa porque eu sou mãe, eu não vou fazer tal viagem porque eu sou mãe‟, aí
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tudo bem, eu acho que ela tá conduzindo a vida dela pra atuar um pouco mais discretamente
na profissão e dar um pouco mais de atenção à família”. O agora, ao invés de estabelecer uma
relação de tempo, acaba por receber um sentido adversativo ao que havia sido dito, ou seja,
ela, enquanto mãe e profissional competente, tem seu lugar garantido, excetuando-se quando
ela própria opta por não atuar sob determinadas condições. A construção da fala dela,
jornalista-mãe, feita por Inf.4, atribui ao exemplo da não ida à viagem o argumento do ser
mãe. A ocupação dos dois papéis sociais pela mulher faz com que ela abra mão, de forma
consentida, de determinadas atribuições da esfera pública sob a prerrogativa de cumprir suas
atribuições na esfera doméstica.
Inf.4, por outro lado, não coloca essa situação como sendo determinada em si
mesmo, já que a sua própria experiência nos mostra a prevalência de sua realização no
desempenho de sua função como jornalista, embora, em alguns momentos de sua fala, o seu
vínculo com a família, mais especificamente ao filho, seja colocada sob abalo, o que se torna
perceptível no uso de sacrifiquei. Nesse sentido, as relações afetivas são substituídas pelas
relações profissionais.
Ao final, as restrições são novamente atribuídas à empresa e ela ressalta o papel
desempenhado pelas mulheres na tentativa de quebrar com as relações de poder, as quais
acabam sendo consideradas possíveis por ela, visto que há limitações, colocadas de maneira
modalizada, mas já considerando de forma passível a existir, por Inf.4: podem ter limitações.
Para Inf.3, ao contrário do que figura no Tr.5 de Inf.4, as relações de poder na
redação ocorrem de maneira efetiva, o que, posteriormente, aparece também na fala de Inf.4.
Inf.3/Tr.8: Olha, eu tenho uma crítica muito forte com essa história de, da função da mulher
na redação. Eu acho que alguns lugares, como, por exemplo, a minha experiência no jornal
Y, como mulher, ela é muito positiva na medida em que eu não tenho filho. Como se eu,
porque eu nunca, assim, eu faltei o trabalho poucas vezes, porque o meu filho tava doente, eu
sempre procurava a ajuda da minha mãe. Eu, muitas vezes, eu não conseguia nem buscar
eles na escola porque eu não saía na hora. Eu pedia a minha mãe pra pegar ou então meu
marido que não pode nunca, não pode nunca, mas é porque a atividade dele é isso. Eu...
nunca foi diferente e, assim, um dos problemas que eu saí foi porque eu não tinha hora, não
tinha hora. Então, quando existe uma pessoa que não tem hora e outra que não tem hora, não
dá certo, né. As crianças ficam abandonadas. E, é, essa minha crítica, assim, por exemplo, eu
tive uma experiência, eu sei que não é, eu sei que não foi, eu sei que não é uma coisa de
maldade, mas quando eu fui... Eu pedi demissão três vezes, cheguei a pedir demissão, não,
três vezes, não, pedi demissão uma vez, aí ele me, meu chefe me convenceu a continuar lá,
disse que tinha planos pra mim, que, algumas vezes, eu não tinha... que eu passei muito
tempo fora do jornal. Por que que eu passei tempo fora do jornal? Porque eu fiquei de
licença maternidade. Certo? Eu passei tempo fora do jornal e perdi algumas coisas, algumas
oportunidades que apareceram. Isso, segundo ele. É, quando eu fui sair, ele me disse que o
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meu problema era que eu tinha filho demais. Ele disse isso brincando, mas ninguém brinca
com esse tipo de coisa, né. Ninguém brinca com esse tipo de coisa.
Sua fala se inicia por chamar a atenção de seu interlocutor para sua fala, enfatizando o
que está por ser dito e adianta sua posição quanto à sua própria proposição, esclarecendo que
se trata da função da mulher. Para ela, a relação que se estabelece entre a mulher que é mãe e
sua atuação enquanto jornalista é inversamente proporcional. A argumentação da jornalista se
encadeia em sua experiência pessoal para tratar do vínculo entre ser mãe e ser jornalista:
“Porque eu nunca, assim, eu faltei o trabalho poucas vezes, porque o meu filho tava doente”.
Ela tem, portanto, que se ausentar de um lugar social para ocupar outro, o que acaba por
resultar no preenchimento de seu lugar de mãe por outras pessoas (mãe e marido) quando ela
havia de atuar como jornalista. O que percebemos é que o marido é colocado no lugar da mãe
por pegar os meninos no colégio, tarefa que não pode ser exercida por ele dada a sua falta de
tempo em virtude do trabalho. O discurso de Inf.3 apresenta traços de um discurso patriarcal
no qual os dois se encontram em uma mesma situação – ausência de tempo que compromete a
esfera doméstica – e, no lugar de buscar uma solução equilibrada para ambos os lados, ela
opta por se ausentar da esfera pública e legitima o lugar do marido, colocando-o de forma
naturalizada, em que, se algo é assim, não tem porque ser de outro jeito, nem pode: “mas é
porque a atividade dele é isso. Eu... nunca foi diferente”.
Além de a hegemonia masculina ser sedimentada pela mulher, há também o
relacionamento dela com a empresa que também firma sua posição secundária frente ao papel
masculino e que é colocada desse modo pelo fato de ela ser mãe. Por meio do discurso
indireto livre, ela apresenta os dois motivos dados pelo editor, o primeiro de que a ausência
dela da redação fosse a causa de ter perdido oportunidades, e o segundo de que a causa dessa
ausência eram os seus filhos. Nas duas, a responsabilidade de ela não crescer dentro da
empresa ou não ter acesso a oportunidades é sua. Embora Inf.3 justifique como sendo
brincadeira, consideramos que brincadeiras, piadas e gêneros afins também veiculadores de
ideologias e retratam um jogo político, a única diferença é que fazem isso por meio do humor,
tanto é que ela rejeita tal brincadeira, vedando não só a ele que a faz, mas a todos.
Da mesma forma, em outro momento da entrevista, Inf.4 considera a existência de
diferenças de gênero no Jornalismo, principalmente em relação às mães.
Inf.4/Tr.6: Eu acho que, assim, na nossa [área], ela [discriminação] pode até existir, mas é
uma coisa assim, mais disfarçada, eu acho que, a não ser assim, digamos, eu acho que
antigamente existia um pouco. Tipo, pra quem ficava até o fechamento, dava-se preferência
ao homem. Por quê? Porque a mulher tem filho, achavam que a mulher podia resistir ficar
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até altas horas e também na editoria de Polícia, e também eu vejo um predomínio de homens
na editoria de Esporte, né? Vez ou outra é que você tem uma colega. Que eu acho também
que a mulher não procura muito esses espaços. Por isso que eu digo que essa discriminação
não é tão forte porque a mulher não busca muito esses espaços.
A existência de discriminação de gênero na área do Jornalismo é modalizada por Inf.4,
sugerindo possibilidades e não certezas e sedimentações, o que evita até um
comprometimento por parte da jornalista, ao mesmo tempo também em que é justificada pela
dificuldade de ser percebida já que ela é mais disfarçada. Ao situar a ocorrência de
discriminações em um dado tempo, ela localiza a discriminação no tempo passado, na
preferência dada ao homem em detrimento da mulher, sob a justificativa de que ela poderia se
recusar a ficar. Vale retomarmos o trecho 5 de Inf.3, quando ela diz “Vem cá, não fui eu que
disse isso, chegaram às conclusões, né”. Outro ponto importante é que ao falar daquela
mulher que sofria discriminação, Inf.4 se reporta a ela em um tempo presente: “Porque a
mulher tem filho”, logo, se as condições dessa mulher continuam as mesmas, e a
discriminação era atribuída a essa condição, o mais provável é que ela continue disfarçada.
Quanto às editorias, há uma percepção clara de espaços masculinos. Entenda-se
“masculinos” aqui não como uma atribuição qualitativa, na qual os espaços possuem traços
masculinos ou natureza masculina, porque recorremos à essência de gênero, mas a espaços
por onde quem circula majoritariamente é o homem e, aos quais, se acaba por atribuir o
atributo de espaços para homens, sob a afirmação de que é da natureza masculina e não da
natureza feminina, o que constitui prejuízo para os dois lados.
Como bem coloca Inf.4, parte dessa territorialização dos homens ocorre porque a
mulher não busca preencher espaços nessas editorias. A discriminação de gênero, ou seja, o
ato de colocar a mulher à parte desses lugares é fonte de suas próprias escolhas, o que faz com
que ela ateste a sua marginalização em ambientes como os referidos Polícia e Esporte.
Inf.2 chama a atenção para a condição de mulheres e homens que têm filhos,
contrapondo com aqueles que estão em início de carreira e aqueles que não mães ou pais. A
escolha lexical em sua fala marca os papéis assumidos por homens e mulheres.
Inf.2/Tr.5: E também eu não era mãe ainda, quando eu trabalhava no jornal X, eu não tinha
filho. É, então assim, era uma coisa meio “Ah, se você não tem filho, você... tem que
trabalhar mais”. É meio como se fossem colocados em categorias diferentes, né. Mães ou
homens... mulheres e homens que não têm filhos ou que estão no comecinho de carreira são
aqueles que acabam levando mais no ombro, assim. É uma coisa meio de, talvez seja uma
frase meio pesada isso, mas assim, como se você tivesse que dar toda a sua energia pra
mostrar serviço quando você tá entrando, quando você tá no começo de carreira. Sabe? Eu
acho que eu senti isso e acho que muitos colegas também. É uma coisa de “você tem que
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render”. E aí aos poucos eu acho que eu fui tentando me impor mais e dizer “olha, esse
horário não dá, ontem a gente trabalhou até não sei... assim, de tentar negociar pra a carga
de trabalho ser respeitada, pra que os limites da gente como, né, como humano, como pessoa
que tem outras coisas pra resolver, que não pode viver pra trabalhar, serem respeitados.
A jornalista, nesse trecho, parte do seu papel de mãe para trabalhar de uma maneira
mais geral a articulação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres na redação
e suas respectivas funções. Esses papéis são, segundo ela - de forma atenuada -, “meio como
se fossem colocados em categorias diferentes”. A escolha que ela faz em seguida situa as
mulheres como mães, mas não acontece o mesmo em relação aos homens, o que é modificado
por Inf.2, antes de dar continuidade, restringindo as mulheres e homens por ela referenciados:
aqueles/aquelas que não têm filhos. A jornalista acaba atualizando também um discurso de
categoria que precisa ser repensado, na medida em que os direitos dos/das jornalistas são
comprometidos, não só para aqueles/aquelas que são pais e mães, mas também para os que
não o são e para os que estão começando. Dessa forma, é possível tirar o peso apontado por
Inf.2, da mesma forma como ela o fez e que é marcado intertextualmente dentro de seu
discurso ao mostrar seu posicionamento a fim de fazer valerem seus direitos. Ao fazer isso,
ela abrange sua fala e marca não só sua atuação, como a dos demais jornalistas, ao inseri-los
em “a gente trabalhou até não sei”, deixando em aberto a delimitação temporal, e, mais à
frente, os limites também abrangem uma categoria de sujeitos de maneira ampla: não são
apenas os seus limites que aparecem, mas os da categoria (“os limites da gente”). Limites não
só de caráter profissional, mas humano.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise qualitativa de nossa pesquisa aponta que a identidade de gênero das
jornalistas construída através do discurso se relaciona tanto com a posição que ela ocupa
dentro das redações, quanto com as editorias a que pertencem, constituindo diferenças entre
repórteres, editoras e chefes de reportagem, bem como entre as funções/papéis das jornalistas
da editoria de Cidade, de Esporte ou de Polícia. Essa constituição de identidades de jornalistas
enquanto atividade social, na medida em que as jornalistas traçam pontos em comum sobre
essa constituição a partir de cada editoria e de cada papel social, e estabelecem pontos
divergentes que os cerceiam, marcando a heterogeneidade de cada um se comparado aos
demais. As relações de gênero também são marcadas, tendo em vista que a identidade das
mulheres em posição de chefia é constituída de maneiras diferentes daquelas em posição de
repórter, assim como a constituição da identidade das jornalistas que trabalham na editoria de
Brasil diferem das de Cidade. Tendo em vista essa relação, percebemos que as diferenças
estabelecidas a partir de categoria e gênero são utilizadas para marcar a desigualdade nas
ocupações de cargo dentro da redação. É muito presente essa relação de gênero e categoria
quando nossas informantes falam sobre as mulheres em cargo de chefia. A própria
sedimentação dessas desigualdades é legitimada pelas jornalistas.
Do ponto de vista da relação Profissão e Família, há uma forte influência da
maternidade no exercício de sua profissão. As questões sobre gênero aparecem de forma mais
marcada por conta do papel social de mãe que a mulher “tem” de exercer. A análise
qualitativa permite avaliar que também os papéis de esposa e dona-de-casa aparecem como
influenciadores na constituição da identidade da mulher. Esses papéis (mãe, dona-de-casa e
esposa), muitas vezes, são colocados como fatores de desigualdade dentro das redações, visto
que, tanto são usados como um motivo para o cerceamento de suas atividades em que ela não
pode desempenhar uma determinada função porque demandaria mais dedicação e
disponibilidade, como as próprias jornalistas priorizam suas relações com a família em
detrimento da profissão.
Partindo de um estudo de caso, atingimos nosso objetivo de perceber a construção de
identidade de jornalistas, ainda que seja necessário um aprofundamento posterior no que
concerne à ampliação de nosso corpus, o qual não corresponde a uma representatividade da
categoria de jornalistas, assim como para compreender essa constituição, se faz necessário um
estudo que abranja outras categorias de jornalistas, como chefes de reportagem, sub-chefes,
editores/as, repórteres, ombudsman, e também jornalistas homens para compreender como se
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dá sua respectiva atuação. Somente dessa forma, podemos entender em que medida há
diferenças e similaridades.
Contudo, isso não invalida nosso trabalho, pelo simples fato de que as ocorrências
encontradas aqui implicam na busca por mudanças estruturais e funcionais dentro das
redações já que indicam traços da constituição de identidades femininas da profissão, havendo
relações de poder que precisam ser revistas.
Foi possível perceber ainda que o posicionamento das jornalistas marca uma atuação
muito forte por meio da qual elas buscam a consolidação de uma identidade em que o papel
das jornalistas seja marcado pela agenciação, no sentido de atuarem de forma ativa sobre a
sociedade. Ao falar sobre suas atuações, não só cada uma delas se refere a suas experiências
individuais, mas também situam a profissão da qual fazem parte, colocando-a como atora
social. Suas experiências, normalmente, são categóricas, ao passo que os posicionamentos que
elas estabelecem em suas falas são modalizadas negativa ou positivamente.
Compreendemos a relevância que o papel de profissional jornalista tem para essas
mulheres e a força com que a relação trabalho-família se apresenta no cotidiano delas.
Também reconhecemos o universo obscuro que é a relação entre os profissionais da área,
independente de sexo, e a clara distinção que existe entre os papéis exercidos por cada uma
delas a partir da mudança de editoria. Ser jornalista parece permitir-se vivenciar
constantemente a ousada possibilidade de competir pela possibilidade de pautas e poderes,
mas ser uma jornalista mulher parece impor, além da habilidade de produção de texto que a
própria profissão impõe, a delicada arte de romper com os limites do tempo e do espaço,
aprendendo a suportar uma sobrecarga de responsabilidades para não “sair da cena”.
É desta maneira que nosso trabalho prova sua validade no contexto acadêmico:
trazendo à tona uma discussão há muito travada, embora nunca resolvida. E, da mesma
maneira, abre espaço para que outros debates sejam levantados a partir do que aqui
consideramos.
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APÊNDICE A
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - Jornalismo
Os dados deste questionário serão utilizados como informações restritas para compor a
análise de monografia do curso de Jornalismo da Faculdade 7 de Setembro, sendo
preservadas as identidades das informantes.
Ciente e de acordo:
____________________________________________________________
Questionário aplicado em: ___/ ___ / ___
Aluna responsável: Camila Stephane Cardoso Sousa.
QUESTIONÁRIO PARA JORNALISTAS
1) Nome:____________________________________________________________
2) Idade:____________________________________________________________
3) Grau de Escolaridade:_______________________________________________
4) Salário: ( ) 1 a 2 salários ( ) 3 a 4 salários ( ) 5 a 6 salários ( ) 7 a 8 salários
( ) 9 a 10 salários ( ) a cima de 10 salários
5) O Seu salário é o mesmo do salário de um jornalista, cumprindo a mesma função?
( ) sim ( ) não
Caso a resposta seja negativa, responda:
Como você se sentiu quando obteve esta informação? Como reagiu?
___________________________________________________________________________
6) Você já passou por uma situação de desigualdade salarial?
( ) sim ( ) não
Caso a resposta seja afirmativa, responda:
Como você se sentiu quando vivenciou esta situação? Como reagiu?
___________________________________________________________________________
7) Já passou por uma situação de desigualdade de gênero?
( ) sim ( ) não
Caso a resposta seja afirmativa, descreva:
___________________________________________________________________________
8) Quando começou a exercer a profissão de jornalista?
8.1) Como se deu sua inserção no mercado de trabalho?
9) Em que áreas do jornalismo atuou?
9.1) Atuou somente no jornalismo?
76
( ) sim ( ) não
Caso a resposta seja afirmativa, responda:
Quais outras áreas? Por quê?
___________________________________________________________________________
10) Como qualifica sua atuação como jornalista?
11) Qual a importância do exercício de sua profissão para a sociedade?
11.1) Como você vê a atuação feminina dentro do jornalismo?
11.2) Como você vê a atuação feminina nos espaços em que atuou?
11.3) E a sua atuação específica, enquanto mulher, no jornalismo?
12) Relaciona suas atividades profissionais às de lazer?
( ) sim ( ) não
12.1) Como você vivencia o seu tempo de lazer?
___________________________________________________________________________
12.2) Como você vivencia o lazer à vida familiar?
___________________________________________________________________________
13) Qual a relação tempo-espaço entre sua família e você-jornalista?