GEERTZ, Clifford. A Religião Como Sistema Cultural.

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GEERTZ, Clifford. A Religião Como Sistema Cultural. In:_____. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. Em capítulo intitulado “A Religião como Sistema Cultural”, Clifford Geertz afirma que a antropologia da religião está em estado de estagnação. Ela vive da reduplicação e do academicismo. Os estudos antropológicos sobre religião, realizados após a segunda-guerra não trazem, então, grandes inovações para além do campo empírico. Mas de um ponto de vista mais teórico, os estudos na antropologia da religião continuam, segue o autor, utilizando o capital conceitual de estudos mais antigos, de uma tradição intelectual que inclui Durkheim, Weber, Freud e Malinowski: No trabalho antropológico sobre religião levado a efeito a partir da II Guerra Mundial, duas características destacam-se como curiosas quando se compara esse trabalho com o desenvolvido antes e após a I Guerra. Uma delas é o fato de não ter sido feito qualquer progresso teórico de maior importância; ele continua a viver do capital conceptual de seus antepassados, acrescentando muito pouco a ele, a não ser certo enriquecimento empírico. A segunda característica é que esse trabalho continua a extrair os conceitos que utiliza de uma tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski, e qualquer trabalho segue a abordagem de uma ou duas dessas figuras transcendentais, com apenas as poucas correções marginais exigidas pela tendência natural ao excesso das mentes seminais ou em virtude da expansão do montante da documentação descritiva religiosa. Praticamente ninguém pensa em procurar ideias analíticas em outro lugar na filosofia, na história, no direito, na literatura ou em ciências mais "exatas" - como esses homens fizeram. E o que me ocorre, ainda, é que essas duas características não deixam de ter relação uma com a outra. (GEERTZ, 2008, p. 65).

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GEERTZ, Clifford. A Religião Como Sistema Cultural. In:_____. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

Em capítulo intitulado “A Religião como Sistema Cultural”, Clifford Geertz

afirma que a antropologia da religião está em estado de estagnação. Ela vive da

reduplicação e do academicismo. Os estudos antropológicos sobre religião, realizados

após a segunda-guerra não trazem, então, grandes inovações para além do campo

empírico. Mas de um ponto de vista mais teórico, os estudos na antropologia da religião

continuam, segue o autor, utilizando o capital conceitual de estudos mais antigos, de

uma tradição intelectual que inclui Durkheim, Weber, Freud e Malinowski:

No trabalho antropológico sobre religião levado a efeito a partir da II Guerra Mundial, duas características destacam-se como curiosas quando se compara esse trabalho com o desenvolvido antes e após a I Guerra. Uma delas é o fato de não ter sido feito qualquer progresso teórico de maior importância; ele continua a viver do capital conceptual de seus antepassados, acrescentando muito pouco a ele, a não ser certo enriquecimento empírico. A segunda característica é que esse trabalho continua a extrair os conceitos que utiliza de uma tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski, e qualquer trabalho segue a abordagem de uma ou duas dessas figuras transcendentais, com apenas as poucas correções marginais exigidas pela tendência natural ao excesso das mentes seminais ou em virtude da expansão do montante da documentação descritiva religiosa. Praticamente ninguém pensa em procurar ideias analíticas em outro lugar na filosofia, na história, no direito, na literatura ou em ciências mais "exatas" - como esses homens fizeram. E o que me ocorre, ainda, é que essas duas características não deixam de ter relação uma com a outra. (GEERTZ, 2008, p. 65).

Apenas as variações de temas teóricos clássicos não alteram este estado. Para tal

seria necessário que os estudiosos se ativessem a problemas obscuros que possibilitem

descobertas. Isto não significa abandonar as tradições teóricas existentes até então, mas

tomá-las como ponto de partida para, assim, ampliar nossa percepção a partir delas:

Para conseguir isso não precisamos abandonar as tradições estabelecidas da antropologia social nesse campo, mas apenas ampliá-las. Pelo menos quatro dentre as contribuições dos homens que, como menciono, dominam nosso pensamento a ponto de paroquializá-lo- a discussão de Durkheim sobre a natureza do sagrado, a metodologia Verstehenden de Weber, o paralelo de Freud entre rituais pessoais e coletivos, e a exploração feita por Malinowski sobre a diferença entre religião e senso comum- parecem-me pontos de partida inevitáveis para qualquer teoria antropológica da religião que seja útil. (GEERTZ, 2008, p. 66).

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Sua análise da religião se restringirá essencialmente a sua dimensão cultural. Ele

afirma entender a existência múltipla do termo cultura, assim define que “o conceito de

cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos nem qualquer ambiguidade

fora do comum, segundo me parece: ele denota um padrão de significados transmitido

historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas

expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam

e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (GEERTZ, 2008,

p. 66).

A partir desses pressupostos Geertz, nos apresenta um paradigma sobre a

religião. Estabelecendo dois conceitos fundamentais, o Ethos e visão de mundo, este

paradigma diz que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo e

sua visão de mundo mais ampla sobre a ordenação das coisas. Os símbolos religiosos

estabelecem uma harmonia fundamental entre um estilo de vida particular (ethos) e uma

metafísica especifica (visão de mundo). A religião ajusta as ações humanas a uma

ordem cósmica e projeta imagens desta ordem cósmica no plano da experiência

humana, o que ocorre no cotidiano de cada povo.

Geertz reduz este paradigma a uma definição, e, a partir daí, passa a dissecá-la.

Segundo tal definição uma religião consiste em:

um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas (GERRTZ, 2008, p. 67).

O sentido de símbolo aqui utilizado é o de “objeto, ato, acontecimento,

qualidade ou relação que serve como veículo a uma concepção – a concepção é o

“significado do símbolo” (GEERTZ, 2008. p. 67). O estudo de uma atividade na qual o

simbolismo forma o conteúdo positivo, uma atividade cultural, é a realização de uma

análise social. Os atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas

simbólicas, são acontecimentos sociais como quaisquer outros. Contudo, nos mostra

Geertz, por mais que o social, o cultural e o psicológico estejam imbricados na vida

cotidiana, é útil separá-los a nível de análise.

Os sistemas ou complexos de símbolos são chamados de padrões culturais e

representam fontes extrínsecas de informação. Eles fornecem programas para os

processos social e psicológico que modelam o comportamento público. As fontes

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extrínsecas, ou seja, os padrões culturais, tornam-se vitais, pois o comportamento

humano é instavelmente estabelecido pelas fontes de informação intrínsecas (genes e

fisiologia). Também é possível afirmar que os padrões culturais são modelos. Contudo,

no caso dos padrões culturais o termo modelo assume duas dimensões: modelo “da”

realidade e modelo “para” a realidade. Os modelos “para” funcionam para estabelecer

informações para padrões de comportamento. Já os modelos “de” são a representação de

modo simbólico destes padrões de comportamento, algo que, segundo o autor,

provavelmente só acontece entre os humanos. Os modelos “de” são concepções gerais e

os modelos “para” são disposições mentais. É esse duplo aspecto que separa os

símbolos de outras espécies de formas significativas. O esquema abaixo representa os

principais conceitos do autor discutidos até agora.

A intetransponibilidade dos “modelos de” e dos “modelos para” é bastante

visível quanto aos símbolos religiosos. Os símbolos concretos envolvidos apontam para

ambas as direções, expressam o clima do mundo e o modelam. O modelam induzindo o

crente a certo conjunto distinto de disposições, ou seja, a que exista uma probabilidade e

uma determinada atividade seja exercida. Quanto a atividades religiosas duas são as

espécies de disposição: ânimo e motivação. A motivação é uma inclinação crônica para

executar certos tipos de atos e experimentar certas espécies de sentimentos em

determinadas situações, ou seja, motivações são duradouras e significativas quanto a seu

fim. Já os ânimos são significativos quanto a seu surgimento, são intensos enquanto

duram, mas possuem menor duração que as motivações, surgem e desaparecem com

facilidade.

Os mesmos símbolos definem as disposições que estabelecemos como religiosas

e colocam estas disposições em um arcabouço cósmico. A religião, além de induzir

motivações e disposições, formula idéias gerais de ordem, caso contrário, segundo

Geertz, ela seria apenas um conjunto de normas morais. Nesse sentido, a religião, tem

sempre a necessidade de explicar a ordem geral das coisas, independente de como esta

explicação se desenvolva.

Geertz aponta a dependência do homem aos símbolos e sistemas simbólicos.

Eles parecem ser decisivos para que o próprio ser humano seja viável enquanto criatura,

havendo quase nenhuma transigência a sugestão que a capacidade de criar, apreender e

utilizar símbolos pode falhar. Se isto acontecesse, nos diz o autor, seria o caos – um

túmulo de acontecimentos ao qual faltam interpretações e interpretabilidade. Três são os

pontos no qual o caos ameaça o homem: 1. nos limites de sua capacidade analítica – a

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maioria dos homens não conseguem deixar sem esclarecimento problemas de analise

não esclarecido, uma inquietação profunda ocorre quando há o fracasso do aparato

explanatório; 2. nos limites de seu poder de suportar – a religião oferece a capacidade de

compreender o mundo e definir as emoções, permitindo suportá-las, não saber como

interpretar as emoções causa um sofrimento ainda mais profundo; 3. nos limites de sua

introspecção moral – quando algo dificulta a possibilidade de fazer julgamentos morais

ditos corretos, de utilizar o sistema simbólico que nos oferece o aparato ético e moral.

Em resumo, a difícil compreensão de certos acontecimentos leva a dúvida, que se torna

bastante inconfortável, quanto à existência de uma ordem de mundo verdadeira.

Contudo a religião elabora, em contraponto a toda esta dúvida, uma ordem genuína do

mundo que dará conta das eventuais ambiguidades. Nesse sentido, a religião pode ser

entendida como uma forma de conhecimento do mundo.

O problema do significado (o fato de existirem a perplexidade, a dor e o

paradoxo moral) é uma dos principais impulsionadores da crença religiosa. O axioma

básico da perspectiva religiosa é que “aquele que tiver de saber precisa primeiro

acreditar” (GEERTZ, 2008, p.81). Uma perspectiva religiosa é um modo de ver, um

entre outros modos. Esta perspectiva difere da do senso-comum, da ciência e da estética.

Ela repousa em uma aura “verdadeiramente real”, a qual suas atividades simbólicas se

devotam a produzir.

Os rituais mais elaborados e mais públicos são os que costumam definir a

consciência espiritual de um povo. O ritual é o mecanismo que faz com que todo esse

sistema simbólico religioso, adquira autoridade sobre os indivíduos, pois é nesse

momento que se efetiva a fusão entre a visão do mundo e o ethos e a intransponibilidade

entre o modelo “de” e o modelo “para”. Eles reúnem tanto uma gama de disposições e

motivações como concepções metafísicas. Geertz propõe o termo, utilizado por Singer,

“realizações culturais” para nomear essas cerimônias.

Ninguém vive a todo tempo no mundo formado pelos símbolos religiosos, mas

no mundo cotidiano dos objetos do senso-comum. Geertz aponta que as pessoas podem

viver sem percepção artística, científica ou religiosa, mas não sem um entendimento do

senso-comum. Assim, o impacto mais importante dos rituais está fora dos limites da

duração do seu acontecimento, está na influência que exerce na concepção individual de

mundo usada cotidianamente. Para o autor o movimento entre a religião e o senso-

comum é bastante recorrente empiricamente e precisa ser melhor observado pelos

pesquisadores.

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Geertz aponta uma dificuldade encontrada entre os antropólogos da religião, a de

conseguir uma síntese do que observa em campo sem recai nas opiniões extremas

encontradas entre indivíduos do grupo estudado.

Um dos maiores problemas metodológico ao escrever cientificamente sobre

religião é deixar de lado, ao mesmo tempo, o tom do ateu da aldeia e o do pregador da

mesma aldeia, bem como seus equivalentes mais sofisticados, de forma que as

implicações social e psicológica de crenças religiosas particulares possam emergir a

uma luz clara e neutra. (GEERTZ, 2008, p.89)

Para um antropólogo a importância da Religião esta na sua capacidade de servir

como “modelo de” e “modelo para”. Os conceitos religiosos servem aos fieis um

arcabouço de idéias gerais, não apenas a questões metafísicas, mas a grande parte da

existência humana. Assim, a partir do entendimento do papel da religião no social e no

psicológico é possível alcançar a compreensão de como o “verdadeiramente real” e as

disposições se colocam na vida cotidiana dos fieis.

Para Geertz, o estudo antropológico da religião deve ser realizado em dois

estágios: 1. análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a

religião propriamente dita; 2. análise do relacionamento desses sistemas aos processos

sócio-estruturais e psicológicos. O autor critica que os estudos dos antropólogos

contemporâneos negligenciam este segundo estagio e dão mais ênfase ao primeiro.

Geertz propõe neste texto uma série de questões sobre o fazer da antropologia da

religião contemporânea. Estes pontos podem nos levar a um interessante debate sobre

nossas experiências teóricas e empíricas. Tomando os questionamentos suscitados por

ele podemos refletir até onde estamos presos aos clássicos, e não existe uma produção

que amplie a percepção teórica a partir deles, como o próprio Geertz propõe? Estamos

mesmo fugindo das questões mais obscuras, e mais interessantes, que suscitam os

estudos sobre a religião, as relegando a outras disciplinas? Os antropólogos

contemporâneos têm de fato deixado de analisar os significados dos símbolos que

formam a religião?