Garimpeiros modernos

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74 + Monet + DEZEMBRO DEZEMBRO + Monet + 75 por José Gabriel Navarro fotos Marcus Steinmeyer NOS EUA, A CAçA POR ANTIGUIDADES E RELíQUIAS VIROU ARGUMENTO DE REALITY SHOWS DE SUCESSO. POR AQUI, EXISTE UM JEITO MAIS FáCIL DE VOCê SE SENTIR COMO UM INDIANA JONES DA TELEVISãO POR ASSINATURA E AINDA AJUDAR UMA BOA CAUSA: CONHEçA O MERCATUDO, CUJA ARRECADAçãO AJUDA A MANTER AS CASAS ANDRé LUIZ CAÇADORES DE RELÍQUIAS I QUARTAS, 22H, HISTORY, 82 E 528 (HD) Achados e nada perdidos – Alguns dos achados que encontramos na nossa visita ao Mercatudo, em Guarulhos (São Paulo), e nos levou a uma viagem por um passado não tão distante. Objetos superados por versões atualizadas, como máquinas registradoras, aparelhos de ultrassom, relógios de ponto, telefones, televisores e relógios são valiosos pelo design. E as bonecas despertam as memórias de infância de muita gente N UMA ÉPOCA EM QUE BENS DURÁVEIS SÃO IRONICAMENTE feitos para perecer logo, encontrar roupas, móveis, máquinas e brin- quedos antigos significa resistir não só a essa tendência do descarte, mas ao próprio tempo. Há inclusive quem entreveja no hábito de buscar objetos do passado um elemento da cultura atual. O historiador Eric Hobsbawn (1917-2012) alcançou fama justamente ao lançar, com o colega Terence Osborn Ranger, A Invenção das Tradições, na década de 1980. A du- pla sustentava que os eventos e produtos ditos tradicionais só passaram a ser assim considerados na Idade Contemporânea (ou seja, de uns três séculos para cá), para reforçar outra criação então recente: o nacionalismo, os países como os conhecemos. Histórias bonitas reforçam a identidade de um povo. Existe, porém, um terceiro elemento — também bastante recente — que se soma à resiliência dos itens antigos e às narrativas que evocam. A moda faz ten- dências irem e virem, e partirem de novo e retornarem novamente. Os óculos antes horrendos da avó se tornam o adereço mais cool da penteadeira da neta, o modelo de barba que o tio usava nos anos 1970 inspira o visual hipster do sobrinho. Quem vai querer telefo- nes sem fio em casa quando é possível ter um metálico, colorido, com fio enrolado e números dispostos em disco? Garimpeiros modernos

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7 4+M o n e t+d e z e m b r o d e z e m b r o+M o n e t+ 7 5

por José Gabriel Navarro fotos Marcus Steinmeyer

nos eua, a caça por antiguidades e relíquias virou argumento de reality shows de sucesso. por aqui, existe um jeito mais fácil de você se sentir como um indiana jones da televisão por assinatura e ainda ajudar uma boa causa: conheça o mercatudo, cuja arrecadação ajuda a manter as casas andré luiz

caçadoreS de relíquiaS

i quartas, 22h, history, 82 e 528 (hd)

achados e nada perdidos – Alguns dos achados que encontramos na nossa visita ao Mercatudo, em Guarulhos (São Paulo), e nos levou a uma viagem por um passado não tão distante. Objetos superados por versões atualizadas, como máquinas registradoras, aparelhos de ultrassom, relógios de ponto, telefones, televisores e relógios são valiosos pelo design. E as bonecas despertam as memórias de infância de muita gente

Numa época em que bens duráveis são ironicamente feitos para perecer logo, encontrar roupas, móveis, máquinas e brin-quedos antigos significa resistir não só a essa tendência do descarte, mas ao próprio tempo. Há inclusive quem entreveja no hábito de

buscar objetos do passado um elemento da cultura atual. o historiador eric Hobsbawn (1917-2012) alcançou fama justamente ao lançar, com o colega terence osborn ranger, A Invenção das Tradições, na década de 1980. a du-pla sustentava que os eventos e produtos ditos tradicionais só passaram a ser assim considerados na idade contemporânea (ou seja, de uns três séculos para cá), para reforçar outra criação então recente: o nacionalismo, os países como os conhecemos. Histórias bonitas reforçam a identidade de um povo.

existe, porém, um terceiro elemento — também bastante recente — que se soma à resiliência dos itens antigos e às narrativas que evocam. a moda faz ten-

dências irem e virem, e partirem de novo e retornarem novamente. os óculos antes horrendos da avó se tornam o adereço mais cool da penteadeira da neta, o modelo de barba que o tio usava nos anos 1970 inspira o visual hipster do sobrinho. quem vai querer telefo-nes sem fio em casa quando é possível ter um metálico, colorido, com fio enrolado e números dispostos em disco?

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essa combinação de fatores históricos e a ainda viçosa economia americana mantêm nos eua um mercado ativo (e, no geral, nada barato) de anti-quários e restauradores. os dois lados dos balcões de belas quinquilharias são retratados, respecti-vamente, em Caçadores de Relíquias e Mestres da Restauração, ambos do History.

no primeiro programa, mike Wolfe e Frank Fritz põem os pés na estrada em busca de bugi-gangas que, após um trato simples, são revendidas em média pelo triplo do preço pago. a área de interesse abrange desde óculos de aviador até uma máquina dispensadora de cigarros. enquanto isso, danielle colby-cushman tenta gerenciar o inco-mum negócio do par de antiquaristas.

os tais mestres da restauração, por sua vez, são rick dale, dono da rick’s restorations, e seu qua-dro de empregados, do qual fazem parte também o filho adolescente e o irmão mais novo do protago-nista. eles recebem ofertas, pechincham, compram cacarecos de todos os tamanhos (de esculturas a motocicletas) e, com trabalho superpreciso, os transformam em inusitados tesouros.

Parece improvável que o galpão de 1.700 metros quadrados em guarulhos, na grande são paulo, possa estar abarrotado de eletrodomésticos, móveis, roupas, livros, cds, discos, bibelôs, brinquedos, máquinas foto-

gráficas, registradoras, tacos de golfe, espadas. mas está. trata-se de um dos dez mercatudos que as casas andré luiz mantêm no

estado de são paulo — e de onde obtêm 30% da verba que sustenta sua unidade de longa permanência, também em guarulhos. lá são atendidas cerca de 1.600 pessoas com deficiência intelectual. a ideia de revender itens doados pela popu-lação tomou forma em 1959, dez anos após a inauguração do ambulatório.

o lucro vindo desses mercados de produtos de segunda ou vigésima mão, po-rém, tem sido ameaçado por certas inovações e pela má-fé de alguns cidadãos.

no caso das tvs, por exemplo, há um problema incontornável: só têm sido doados aparelhos ultrapassados, conforme a tv digital e os equipamentos com tela plana se popularizam a cada dia. o mesmo começou a acontecer com compu-tadores, o que gerou uma ação paralela de reciclagem de lixo eletrônico, dois anos atrás. por outro lado, há gente mais disposta a se desfazer de estorvos do que a ajudar. escolhem um móvel inutilizável e, diante da recusa dos funcionários da ong em recolhê-lo, decidem não doar mais nada, mesmo que já o tenham prometido.

trata-se de um transtorno para o gerente geral rubens santos de oliveira, de 47 anos, 27 deles dedicados às casas andré luiz, e no novo cargo há seis meses. “re-cebemos muitos jogos de sofá, entre 1.500 e 1.800 por mês, mas só conseguimos recuperar, no máximo, 15% deles”. por isso, a instituição está começando a tentar reciclar os estofados, como já vem fazendo com colchões há um ano. no entanto, o ideal é continuar sobrevivendo das vendas. “tentamos conscientizar as pessoas a doarem coisas em bom estado. não adianta doar lixo”, reforça a profissional de marketing anelise ramos. “a maioria doa não pela vontade de ajudar, mas por querer se livrar de objetos.”

a triagem e a precificação dos produtos, que envolve cerca de 2% dos 600 empregados pelos mercatudos, fe-lizmente dribla a má vontade de tantos. é o que se verifica ao observar um casal passando em frente a uma alienígena máquina de ultrassom da primeira metade do século 20. “o que é isso?”, ela pergunta. “é um túnel do tempo”, ele diz, e ambos riem. mas há certa verdade na resposta.

PARA AJUDAR >> retiradas de doações podem ser agendadas pelo site www.andreluiz.org.br e pelo telefone (11) 2459-7000

duas vias – O projeto do Mercatudo, que traz itens dos mais variados, desde discos de vinil (sim, eles estão na moda de novo) até vestidos, pode receber apoio de duas maneiras – dando e comprando objetos que serão revertidos em verba para a manutenção das Casas André Luiz. No destaque, o gerente geral das lojas, Rubens Santos de Oliveira

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se o profissionalismo do setor nos eua chegou ao ponto de criar dois programas de sucesso sobre o tema — ambos datam de 2010 e já passaram da quarta temporada —, no brasil os antiquários e brechós podem guardar grandes achados a peque-nos preços. ou não tão pequenos, mas certamente mais em conta que os valores estipulados em dólar que se vê na televisão importada.

o mercatudo, iniciativa beneficente das casas andré Luiz, tem dez unidades espalhadas pelo território paulista (confira o que encontramos em uma delas ao lado). a equipe da organização não governamental vai até a residência de quem deseja doar algo em bom estado, os itens passam por avaliação técnica, são precificados e colo-cados à venda, quase sempre, a preços muito abaixo dos praticados no mercado. é numa dessas lojas que começa um ciclo cada vez mais frequente no brasil: donos de brechós, sebos literários e antiquários vão ao mercatudo, com-pram produtos baratíssimos, os recuperam e, por fim, vendem por um valor bem superior.

O Mercatudo, em Guarulhos, contribui com 30% da verba da Unidade de Longa Permanência

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