GARCEZ, João P. (Hamlet e o Contemporâneo))

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SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1988. HAMLET E O CONTEMPORÂNEO i joão pedro garcez ii William Shakespeare, renomado dramaturgo inglês, nasceu em Stratford-upon-Avon em 23 de abril de 1564. Seu pai, John Shakespeare era um rico comerciante e teria ocupado vários cargos administrativos na cidade, e sua mãe, Mary Arden, seria oriunda de abastada família. Tal filiação, e também o fato da companhia teatral de Shakespeare - Global Theatre e depois King’s Men ter realizado constantes encenações na corte, podem ajudar a compreender o foco de Shakespeare em personagens nobres, como na peça aqui trabalhada, Hamlet, conduzida em torno do castelo de Elsinor, no reino da Dinamarca, e da nobreza deste reino. Shakespeare já era reconhecido dramaturgo e ator quando da escrita de Hamlet, em torno de 1600 (as datas são imprecisas). Sua obra é constituída por 38 peças, 154 sonetos e outros vários poemas. Curiosamente, sua produção fora em grande parte de releituras, com apenas uma obra original. iii Hamlet é das mais destacadas peças do grande repertório do inglês, se não a mais. Acredita-se que Shakespeare teria se baseado nas lendas escandinavas de Amleto, que foram preservadas no século Treze por Saxo Grammaticus em seu Gesta Danorum (Feitos Dinamarqueses, em latim), livro que até hoje é fonte essencial para a história medieval da Dinamarca. Ainda, acredita-se que uma peça intitulada Ur- Hamlet tenha sido encenada nos teatros elisabetanos cerca de uma década antes do Hamlet de Shakespeare. O texto aqui tratado é um teatro, a peça mais longa de Shakespeare, e é dividida em cinco atos, cada qual separado em cenas. Não há narrador, as falas partem unicamente dos personagens da narrativa, afastando assim o leitor de qualquer possível imparcialidade dentro da obra, ao passo que tudo que compreendemos acerca dela está sendo dita através de alguém, logo incrustada por suas

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Resenha do clássico Hamlet, de Shakespeare

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SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM,

1988.

HAMLET E O CONTEMPORÂNEOi

joão pedro garcezii

William Shakespeare, renomado dramaturgo inglês, nasceu em Stratford-upon-Avon

em 23 de abril de 1564. Seu pai, John Shakespeare era um rico comerciante e teria

ocupado vários cargos administrativos na cidade, e sua mãe, Mary Arden, seria

oriunda de abastada família. Tal filiação, e também o fato da companhia teatral de

Shakespeare - Global Theatre e depois King’s Men – ter realizado constantes

encenações na corte, podem ajudar a compreender o foco de Shakespeare em

personagens nobres, como na peça aqui trabalhada, Hamlet, conduzida em torno do

castelo de Elsinor, no reino da Dinamarca, e da nobreza deste reino. Shakespeare já

era reconhecido dramaturgo e ator quando da escrita de Hamlet, em torno de 1600

(as datas são imprecisas). Sua obra é constituída por 38 peças, 154 sonetos e outros

vários poemas. Curiosamente, sua produção fora em grande parte de releituras, com

apenas uma obra original.iii

Hamlet é das mais destacadas peças do grande repertório do inglês, se não a mais.

Acredita-se que Shakespeare teria se baseado nas lendas escandinavas de Amleto,

que foram preservadas no século Treze por Saxo Grammaticus em seu Gesta

Danorum (Feitos Dinamarqueses, em latim), livro que até hoje é fonte essencial para

a história medieval da Dinamarca. Ainda, acredita-se que uma peça intitulada Ur-

Hamlet tenha sido encenada nos teatros elisabetanos cerca de uma década antes do

Hamlet de Shakespeare.

O texto aqui tratado é um teatro, a peça mais longa de Shakespeare, e é dividida em

cinco atos, cada qual separado em cenas. Não há narrador, as falas partem

unicamente dos personagens da narrativa, afastando assim o leitor de qualquer

possível imparcialidade dentro da obra, ao passo que tudo que compreendemos

acerca dela está sendo dita através de alguém, logo incrustada por suas

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subjetividades. Um exemplo disto é a loucura do protagonista, Hamlet. Como

acompanhamos a narrativa principalmente através da sua voz, “compramos” que sua

loucura é fingida, como ele conta; porém, podemos refletir se caso o rei Claudio ou a

rainha Gertrudes detivessem maior enfoque e tempo de fala, será que não

acreditaríamos ser legítima a loucura do príncipe? Ele produz complexas reflexões

falando sozinho, foge da normalidade nas respostas, vê o fantasma de seu pai...

Talvez, de outra perspectiva, entenderíamos essas atitudes como sintomáticas da

loucura de Hamlet.

Como já entramos em alguns detalhes da trama, parece-me prudente esboçar uma

aproximação ao enredo. Hamlet, o personagem principal, é príncipe do reino da

Dinamarca, cenário da narrativa. Hamlet, a obra, é comumente tratada como narrativa

de vingança, pois o príncipe logo no primeiro ato ouve, através do fantasma do falecido

rei Hamlet, seu pai, que ele teria sido envenenado por seu irmão Cláudio, que então

assumira o trono e casara com Gertrudes, ex-mulher do rei Hamlet e mãe do príncipe.

Ao descobrir isso, o príncipe enfurece-se com Cláudio e engendra a vingança. Se o

fato que catalisa o desejo de vingança de Hamlet acontece no primeiro ato, e a

vingança consuma-se no último, os três atos intermediários a isto são perpassados

por reflexões, dúvidas e temores morais do príncipe.

É neste âmbito que a literatura de Shakespeare cria empatia com o leitor. Identificamo-

nos com as inquietações de Hamlet. Seus incômodos morais são percebidos em

alguns momentos-chave, cabíveis de descrição: quando o príncipe arranja, junto com

a trupe teatral que chega ao reino, a encenação do envenenamento do rei Hamlet por

Cláudio (o teatro no teatro! característica do autor), justamente para ao ver a reação

deste, ter a certeza de que o assassinato teria realmente acontecido e que, assim,

sua vingança teria fundamentos; ou quando, já após ter confirmado isto, tem a

oportunidade de assassinar Cláudio mas não o faz, por ele estar orando, logo esta

não seria a hora mais adequada. Acompanhemos o solilóquio do príncipe, onde

porventura podemos identificar ressonâncias da moral cristã, que, se ecoa nos dias

de hoje, talvez ainda mais no contexto da lenda escandinava e da escrita de

Shakespeare:

HAMLET: Eu devo agir é agora; ele agora está rezando. Eu vou agir agora – e assim ele vai pro céu; E assim estou vingado – isso merece

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exame. Um monstro mata meu pai e, por isso, Eu, seu único filho, envio esse canalha ao céu. Oh, ele pagaria por isso recompensa – isso não é vingança. Ele colheu meu pai impuro, farto de mesa, Com todas suas faltas florescentes, um pleno maio. E o balanço desse aí – só Deus sabe, Mas pelas circunstâncias e o que pensamos Sua dívida é grande. Eu estarei vingado Pegando-o quando purga a alma, E está pronto e maduro para a transição? Não. Para espada, e espera ocasião mais monstruosa! Quando estiver dormindo bêbado, ou em fúria, Ou no gozo incestuoso do seu leito; Jogando, blasfemando, ou em qualquer ato Sem sombra ou odor de redenção. Aí derruba-o, pra que seus calcanhares deem coices no céu, E sua alma fique tão negra e danada Quanto o inferno, pra onde ele vai. Minha mãe me espera; Este remédio faz apenas prologar tua doença; (Sai.)

[SHAKESPEARE, 1988, p.86, grifo meu]

Cabe ainda retornarmos a algumas provocações que Leandro Karnal (2015) feziv,

relacionando Hamlet ao cotidiano contemporâneo. A indagação é até cômica: o que

teria o príncipe a dizer em tempos de Facebook? O historiador ressalta o

comportamento de Hamlet que foge as regras e etiquetas do período. Envolto em

melancolia, responde rispidamente quando indagado e não muito se importa com o

que os outros vão pensar de seu comportamento. Tanto que, durante sua trama de

vingança, além de matar Polônio e Laertes, também se envolve na morte de Gertrudes

e no suicídio de sua amada Ofélia, além do seu próprio fim. Já hoje, conforme Karnal,

a construção do eu nas redes sociais se dá para o público, buscaríamos nele a

afirmativa de uma vida-bem-vivida. Então, em contraponto ao príncipe, nossa

melancolia é mascarada, pois num momento de likes, “kkkkk” e selfies, o pesar

hamletiano é como um comportamento inaceitável. Quem sabe melancólico, Karnal

afirma “Hamlet é o anti-Facebook. Ele não só não é feliz como não faz questão de

parecer feliz. Hamlet é melancólico. Tem uma consciência brutal. E quem tem

consciência brutal não sorri nem compartilha sua vida medíocre o tempo todo”. O

entendimento do Facebook de Karnal, aproxima-se assim da releitura do panóptico

comportamental que Olivier (2011) fez da rede social.v

Hamlet mostra-se uma prazerosa leitura, de texto ágil e linguajar rebuscado, ainda

que Millôr Fernandes, tradutor da edição lida, tenha suavizado nas “eruditices”, como

dito na contracapa. Percebemos através desta peça questionamentos que podem ser

pertinentes tanto ao século da lenda (Treze), ao de Shakespeare (Dezesseis) e ao

nosso, como trabalhado. Ao mais, o dramaturgo inglês é como um baú de novas

palavras, assim a experiência adquirindo outro nível de apreciação. Por fim, já me

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parece que a indicação de seu exame é iminente, pois além do que fora escrito, o

texto shakespeariano não atravessa séculos sendo massivamente lido gratuitamente,

o que minha experiência de leitura só ajudou a retificar.

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i Texto produzido para a disciplina de História Medieval, ministrada pelo prof. Dr. Paulo Bittencourt, em agosto de 2015. ii Graduando do curso de Licenciatura em História, na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim. E-mail: [email protected] iii Segundo fala do professor Leandro Karnal, “Hamlet de Shakespeare e o mundo como palco”, feita ao cpfl cultura, em 2015. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/2015/04/28/hamlet-de-shakespeare-e-o-mundo-como-palco-com-leandro-karnal/> Acesso em 05/08/2015. iv Na referência da nota anterior. v OLIVIER, Bert. Facebook, cyberspace, and identity. Psychol. Soc., Durban, n. 41, Jan. 2011. Disponível em <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1015-60462011000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 05/08/2015.