GAMBINI a Alma Ancentral Do Brasil
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A ALMA ANCESTRAL DO BRASIL
Roberto Gambini
Tenho refletido sobre o Brasil apoiando-me em minhas duas
vertentes, a de socilogo e a de analista junguiano. Para entender
uma pessoa preciso compreender o meio em que ela vive e s posso
entend-lo se compreender a pessoa. Essas duas dimenses cominham
eternamente juntas e da mesma forma como me sinto sempre fascinado
para compreender os mecanismos do inconsciente, as idias de Jung e
a fenomenologia do esprito, sinto-me permanentemente atrado a
pensar sobre este pas. Minha maneira de refletir sobre o Brasil tem
sido atravs da imagem da alma - e quando digo alma, esta palavra to
usada e abusada pelo Catolicismo, digo algo que todo mundo entende.
Estou, h muito tempo, em busca da alma brasileira e para isso tenho
feito uma reflexo acerca de nossa origem, de nossa Histria e de
nosso drama arquetpico. Num certo momento da trajetria senti-me
compelido a retroceder no tempo para muito antes de nossa origem
europia e foram ento tomando forma a idia e o interesse por algo
que passei a chamar de "alma ancestral do Brasil".
Ns, como povo, temos um grande problema, que a ausncia de um mito
de origem. Temos vergonha de nosso passado, que encaramos como se
fosse um buraco negro, uma bruma, uma imagem vagamente aterradora
ou claramente desprezvel. Comeamos a contar nossa histria de povo a
partir de um ato fabuloso chamado Descobrimento - que sabemos ser
um inverdade e o termo correto, Invaso - e construmos um arremedo
de identidade a partir de 1500, o ano do encontro de duas parcelas
da Humanidade, uma caucasiana e outra autctone, indgena. Mas no
levamos em conta o mito de origem. Tal fato me parece acarretar
graves conseqncias no que diz respeito estruturao de nossa
conscincia coletiva e maneira como individual e coletivamente nos
relacionamos com as camadas profundas do inconsciente. Como negamos
nossa origem ancestral, ns a deturpamos, ns a transformamos em algo
diverso do que . Enquanto povo, comeamos j destruindo aquilo que
tnhamos de mais precioso. Acolho essa idia com bastante interesse,
porque acho que ela nos ajuda a entender o subdesenvolvimento, que
no nos "aconteceu" no sculo XX; ns j comeamos subdesenvolvidos.
Porque a alma ancestral brasileira de uma riqueza, de uma
importncia, de uma profundidade tal que, se no a tivssemos negado,
estaramos realizando atravs de nossa histria uma grande sntese de
duas maneiras de ser humano, a europia e a amerndia. Mas no foi
feita uma sntese histrica de duas polaridades; o que ocorreu
historicamente foi a negao de um plo pela predominncia arrasadora
de outro.
Seria bom se comessemos a pensar em ns mesmo do seguinte modo:
temos atrs de ns um tesouro inestimvel, sistematicamente negado e
ignorado atravs dos sculos. Como isso se deu historicamente a
partir do sculo XVI fcil pesquisar. Mais difcil reconhecer que essa
negao continua at hoje a se repetir no interior de nossa psique e
por essa razo que me sinto motivado a falar sobre esse tema. Gerao
aps gerao repete-se na cultura e em cada um a destruio de uma raiz
preciosa e jamais reconhecida. Jung nos ensinou claramente: a
inconscincia coletiva se auto-perpetua. Nossos filhos continuam a
carregar a mesmo coisa que ns. Ser que a conscincia coletiva
brasileira vai continuar ignorando e desqualificando sua raiz mais
profunda, base e sustentao de sua mais verdadeira individuao?
Quando digo raiz, estou pensando em coisas mais precisas. As
evidncias atuais da Arqueologia, que um campo em rpida transformao
em nosso meio, indicam que o territrio amerndio vinha sendo ocupado
por seres humanos no h dois, trs ou quatro mil anos, como sempre se
sups, mas h dez, vinte, trinta... Essa uma disputa terica que
envolve interesses acadmicos pesados, porque se houver o
reconhecimento de que o homem entrou, certamente pela Pennsula de
Yucat, na Amrica do Sul h cinqenta mil anos, isso muda muitas
afirmaes evolucionistas e muita teoria da Antropologia Fsica sobre
ocupao de territrios, expanso, adaptao, difuso de inventos e
periodizaes culturais. H muitos interesses pseudo-cientficos em
jogo. Mas hoje existe o mtodo de datao pelo carbono 14 e muita
coisa ficar esclarecida. Os professores de Histria do Brasil vo ter
que se reciclarem para poderem ento dizer s crianas algo do tipo:
"imaginem que este solo em que pisamos talvez h cinqenta mil anos j
era habitado..."
Isso significa que as grandes questes da humanidade, as eternas
questes do ser humano, j estavam sendo elaboradas e j tinham sido
resolvidas por esses povos indgenas h milhares de anos, muito antes
do surgimento de Portugal ou da prpria civilizao europia que veio a
ser a matriz de nossa atual conscincia. Que questes so essas? So as
seguintes: Como sobrevive e no se morre de fome, de abandono, de
ataques violentos? Como se vive em sociedade? Como se procria? Como
se organiza o convvio? Como se resolve o problema da cultura
material, da produo de bens de uso? Como se d sentido vida? O que o
bom, o belo, o justo? O que cruel, mau, injusto? O que a morte, e o
que h depois dela? O que a doena, como se promove a cura? Como tudo
comeou? O que torna a vida bela e nos faz ter vontade de viv-la?
Onde se pode cozinhar uma comida, onde se pode guardar gua, onde se
pode morar? Como se atravessa um rio, como se mata um ona?... Essas
questes foram todas, sem exceo, resolvidas pelos povos ditos
primitivos que habitavam as Amricas de Norte a Sul de maneira tal
que o resultado acumulado um saber altamente organizado, profundo,
completo, coerente, muito diverso do nosso e ao qual chamo de
tesouro (ou de raiz). um conjunto de observaes da natureza que se
estruturou e confirmou ao longo de sculos e sculos, produzindo
conhecimento sobre a terra, o corpo, a mente, o esprito, o grupo,
os outros e os deuses, a flora e a fauna, a metereologia, as guas,
o vento e o fogo, a cpula, os sentimentos, a dor, os desejos, a
morte e o alm, o horror, o encantamento e a eternidade. Isso tudo
cria alma.
O nome disso tudo alma ancestral, que passa a ser o patrimnio
humano supremo, transmitido pela educao quando possvel e que com o
passar do tempo acaba se incorporando como uma qualidade da cultura
e da conscincia. O que um arqutipo? Um arqutipo uma predisposio, um
formato imanente psique, mas com um ponto de origem no tempo, na
Histria e no espao. O arqutipo paterno ou materno nasceram no
escuro do passado, nos animais e depois nos seres humanos, atravs
de infinitas repeties, que se cristalizaram em nossa psique como
uma prontido para reagir a atuar em determinadas situaes que os
evocam. Ora, os arqutipos estavam se formando tambm no Brasil
pr-histrico, nesse passado remoto e negado que imaginamos como no
nos pertencendo e que vamos buscar nos livros e nas teorias que o
evocam alhures e nunca aqui. H arqutipo da psique brasileira que
esto muito bem datados e localizados no solo amerndio. Lembremo-nos
de Jung, que dizia que a psique tem um solo, a psique no vive no
ar. Terra e psique, esprito e matria so duas faces da mesma
realidade e no precisamos ler isso em Mysterium Conjunctionis
apenas. Isso est no solo brasileiro, os arqutipo tambm se fizeram
aqui, como em outras partes do planeta. Proponho que olhemos para
isso e nos perguntemos quantos deles esto adormecidos no nosso
inconsciente profundo e o que pode nos acontecer, enquanto povo e
enquanto indivduos, se soubermos entrar em contato com esse lenol
fretico atravs de uma raiz suficientemente funda. Eu queria ver
isso acontecer no Brasil no terreno da psique. A tarefa histrica
que nos cabe vitalizar essa raiz e absorver dessa camada profunda a
seiva que vai nos tirar do subdesenvolvimento. E nos tornar, a ns
que trabalhamos com isso, junguianos brasileiros - porque estaremos
expressando a alma que na verdade nos mantm. Quer reconheamos ou
no, atravessamos a vida montados na energia dessa alma - pois
negada ou no (como mandou Jung gravar sobre o portal de sua casa em
Ksnacht), ela est sempre presente.
H mitos em nosso imaginrio ancestral - como por exemplo o da
proibio de auto-devorao - cujo ncleo deve remontar poca perdida no
tempo em que o homem se condicionou a viver de caa e no de carne
humana, provavelmente quando estava descendo das rvores, procurando
o abrigo das cavernas e inventando as primeiras armas e
ferramentas. Ningum se aventurou ainda a fazer uma tentativa de
datao desses mitologemas - mas para qu faz-la, se a conscincia
contempornea no atribui a menor relevncia psquica incorporao desses
fragmentos perdidos de alma ancestral? A proibio do incesto
enquanto condies para o nascimento da cultura - tema to caro a
Freud, Jung ou Lvi-Strauss - est decretada nos mitologemas
brasileiros coetneos ou subsequentes ao aparecimento das primeiras
regras de parentesco. O mito segundo o qual a mulher transformada
em cobra no se acasala com o irmo, mas engole seu corpo e
posteriormente o regurgita coberto de pinturas, a demonstrao
brasileira da idia de que o incesto proibido porque, se no o fosse,
no haveria nem sociedade, nem arte. No aconchego dos ninhos quentes
do convvio endogmico, um rapaz se deixaria ficar para sempre com as
mulheres de seu sangue e no sairia jamais em busca de outras, com
as quais fundaria novas unidades de parentesco, reproduo e troca
econmica. No haveria circulao de mulheres (para usar a terminologia
de Lvi-Strauss), que ao lado da circulao de bens e de palavras
constitui uma das estruturas elementares da vida cultural em
sociedade. Onde h incestos no h cultura e no h troca, no h
humanidade, nem evoluo. Nossos mitos sabiam e prescreviam isso. Mas
ns no sabemos que nossos mitos j sabiam. Nem que tnhamos
mitos.
Ora, essa idia, que uma idia teoricamente trabalhada pela
Antropologia, pela Psicanlise ou pela Psicologia Analtica, est
muito bem representada na mitologia brasileira. No seria um motivo
de crescimento interno para ns entrarmos em contato com isso - ns,
que ficamos voltados para fora sempre, invejando talvez os quatro
mil anos do mito de Gilgamesh, o mais antigo da civilizao
ocidental... mas e os nossos mitos ignorados? Tenho certeza de que
se Jung tivesse tido a oportunidade de conhecer a histria indgena
das Amricas ele teria incorporado todo esse riqussimo material em
sua obra, como objeto de estudo per se ou como corpus
amplificatrio. A tarefa ficou para ns. Proponho justamente uma
reflexo sobre tudo isso em termos anmicos.
Ns analistas cuidamos da alma. Temos que perceber quais partes dela
esto silenciadas, quais partes esto presas, quanta libido est
cristalizada na alma brasileira - porque fundamentalmente isso que
vai nos ajudar a nos tornarmos aquilo que podemos nos tornar e
deixarmos de ser sub, isto , no chegarmos a ser aquilo que
potencialmente somos. Esse o nosso grande drama, essencialmente
brasileiro, e o nosso desafio - o desafio do atraso. Ficamos sempre
abaixo e aqum - e isso no se resolve nem estudando, nem absorvendo
o Primeiro Mundo, nem atribuindo essa tarefa Poltica, Economia, ao
Direito Internacional, Constituio. Essa uma tarefa psquica: sairmos
da maldio de no podermos ser aquilo que potencialmente somos
aprofundando nossa raiz nesse lenol fretico subterrneo onde jaz
fossilizada a alma brasileira.
Cada paciente nosso traz dentro de si essa histria em miniatura,
dizendo sem claramente dizer: "eu podia ser um pouquinho mais
aquilo que no fundo sei que sou". E ns, escutando outras palavras,
ouvimos exatamente isso e seja qual for nossa linda de trabalho,
tentaremos atingir essa camada no vivida do paciente. E para isso
temos que entend-lo como uma pequena pea de um todo que tambm
espera ser compreendido, e nos entendermos a ns mesmos como
instrumento de desvelamento do adormecido.
Esse o ncleo da reflexo que tenho feito sobre nossa alma ancestral
e agora eu gostaria , talvez para equilibrar a argumentao, de dizer
algo sobre a alma brasileira que se desenvolve a partir da negao da
ancestralidade, historicamente em 1500. Foi a que anos atrs comecei
meu estudo, a partir de uma perspectiva em que se combinam a
Psicologia Analtica, a Histria e a Antropologia. Minha tese de
formao no Instituto C.G. Jung de Zurique foi uma anlise da
correspondncia jesutica. Essas cartas, escritas no decorrer do
sculo XVI, so os primeiros documentos brasileiros, a semente de
nossa literatura e de nossa conscincia coletiva crist. A primeira
delas de 1549, na qual o recm-chegado missionrio Manoel da Nbrega
inicia um relato, ao qual se juntariam outras vozes, em que
descrita a terra brasileira e seus habitantes. Achei que entender o
que vinha exposto nessas cartas me ajudaria a perceber, enquanto
analista, qual o conflito original a partir do qual teria comeado a
se estruturar a alma brasileira.
O ano de 1500, se relembrarmos as consideraes que faz Jung em Aion,
um ano marcado arquetipicamente, configurando um dos pontos de
inflexo da dualidade que determina a histria dos dois mil anos da
era de Peixes. Na imagem astrolgica, a metade do segundo peixe
corresponde ao ano de 1500 e ao Renascimento italiano - e, como
sabemos, ao Descobrimento (melhor dizendo, Invaso) do Brasil pelos
portugueses. portanto o ano da retomada da alma ocidental, da alma
latina. Mas Jung no diz, porque essa realidade no lhe era to
presente, que esse tambm o ano (arredondemos as datas) do encontro
entre brancos e amerndios. A "descoberta" do Novo Mundo no apenas
uma conseqncia dos progressos da navegao desenvolvida pela escola
de Sagres, da expanso mercantil ou do extremado arrojo portugus
constelado nesse perodo, mas um fato histrico determinado
arquetipicamente: o encontro de duas partes da humanidade
estruturadas sobres bases distintas. Cada parte envolvida viveu e
vive at hoje as consequncias desse portentoso evento. Para
Portugal, foi o apogeu de sua coragem ultramarina, de sua
capacidade de penetrao e conquista - e o momento de encontrar sua
alteridade, seu oposto. Para a nova terra, foi o comeo da destruio
de sua alma ancestral e de suas populaes autctones. Dois arcos
cruzando-se no tempo: um em ascenso, outro em declnio.
Para ns junguianos essa idia, ou esse fato histrico, pode render
muito. Porque o processo de individuao, pessoal ou coletivo, a
busca do Um pelo Outro. Cada um de ns procura um outro desconhecido
dentro si, assim como este pas deve procurar outro, melhor, mais
verdadeiro, mais fincado na prpria essncia, mas oculto pelo pas
oficial. Nossa conscincia busca seu outro, que o inconsciente,
manancial de onde provm tudo aquilo de que feita e de onde emana
tambm sua renovao. Nosso ego busca seu outro, que um ego no apoiado
apenas na sombra e na persona, mas um ego sabedor de si e seus
limites e portanto servidor do Self. A busca pelo outro sempre uma
busca arquetpica e para ns esse outro o ndio. Literal e
simbolicamente. Cada um de ns carrega um ndio dentro de si na
medida em que carregamos um inconsciente e em que no somos apenas
isto que mostramos uns para os outros e para ns mesmos. H mais.
Esse mais eu chamo de ndio.
Quando retomamos a idia de que na histria do nosso pas o ndio
imediatamente catequizado e escravizado e que j em 1500 sua cultura
(nossa alma ancestral) comea a ser destruda, vemo-nos diante de
dois possveis objetos de anlise: nosso pas e nossa psique.
Percebemos ento de imediato que nosso trabalho de resgate no vai
poder ser feito numa vida, porque a destruio foi calamitosa e
atingiu confins ainda no mapeados. Estruturou-se em ns uma
conscincia que perdeu o acesso a esse ndio, ela no tem conceitos
nem categorias para tanto e na verdade no sabe como acess-lo.
preciso ento admitir que ao lado desse nosso ser conscientizado e
corporificado h uma alma penada, um fantasma de uma essncia humana
que no tem mais corpo porque no houve sntese. A alquimia s pode
ocorrer em ns e como ela no acontece, o pedao no integrado um pria
na nossa psique e na sua prpria terra, um exilado, uma alma
descorporificada que no encontra corpo nunca mais.
Isso uma perda, uma maldio, em nada menos trgica do que as que se
abateram sobre Tebas ou Micenas; um fator desagregante a operar sem
trgua em nossa vida consciente e inconsciente. Est aqui bem ao
nosso lado, sobre nosso ombro esquerdo, esse Outro nosso que no
temos condies de incorporar. No porque no queiramos, mas porque no
h como. H na verdade muito trabalho a ser feito at que isso seja
psiquicamente possvel. O conhecimento da alma ancestral, da cultura
indgena e da mitologia precisaria se espalhar pelo Brasil inteiro,
para que as novas geraes fossem educadas trazendo em seu imaginrio
todas as cobras, todas as onas e arco-ris, todos os espritos da
floresta, as maravilhas, os terrores e as metamorfoses que jazem
desativados no fundo do inconsciente de todos ns. Quando esse mundo
renegado for introduzido no imaginrio das crianas, elas comearo a
desenvolver naturalmente outros conceitos e outros valores e a
partir de um certo ponto comearo a perguntar por que sim e porque
no, por que o Brasil assim, por que se faz um represa que acaba
secando um rio (o Tocantins), por que a floresta est sendo
destruda, por que os ndios esto acabando - ou seja, que modelo de
pas esse que nos subjuga. E esse questionamento todo no ser o
resultado de um doutrinamento ideolgico e poltico, mas resultar sim
do estado em que se encontrar um dia o imaginrio da nova gerao. Que
se nutre de imagens e de nada mais.
Somos portanto possuidores de uma verdadeira Enciclopdia Britnica
de imagens brasileiras e elas no esto alimentando nosso imaginrio.
Para falar com a alma preciso alma, para falar com o imaginrio
preciso imagens. Isso vai demorar. No chegaremos a ver. Mas temos
que fazer o que possvel, aqui e agora - no nosso caso de analistas,
me parece, o que podemos fazer trabalhar e criticar a conscincia e
mostrar-lhe novas possibilidades. Rever e repensar nossas
categorias e nossa pseudo-mitologia. A maneira como a Histria do
Brasil ensinada brutalmente anti-psicolgica, alm de ser falsa em
muitos aspectos. preciso ensinar que o Brasil no foi descoberto mas
ocupado; que isto no era terra de ningum, mas de algum que permitiu
que o invasor entrasse por achar que este que chegava era seu
salvador, algum que viria trazer-lhe o que faltava. Os ndios
abriram os braos e as pernas para receber o europeu. Que veio e
fincou uma cruz na carne da religio indgena, como um punhal a
atravessar-lhe a alma. O padro de Porto Seguro, primeira marca da
conquista - equivalente, numa analogia moderna, bandeira americana
plantada no cho poeirento da Lua pelo astronauta tornado heri - uma
pedra que traz esculpidas numa face as armas de Portugal e na outra
a cruz de Cristo. Esses so os smbolos do comeo de nossa Histria. O
que significa psicologicamente essa unio entre cruz e espada? Como
olhar para a cena da Primeira Missa celebrada no Brasil, tema
ufanista de nossa pintura acadmica, e no perceber nela o comeo do
genocdio religioso? Quem o verdadeiro Sacrificado dessa eucaristia?
No o corpo de Cristo, mas a alma indgena - e precisamente essa idia
subversivamente nova e incmoda que a conscincia coletiva deve agora
abrigar em seu centro, j que por sculos a manteve negada e
reprimida.
Urge perceber que a histria dessa primeira missa e de todas as
outras que se seguiram no porm a alma indgena, como seria de se
supor, por ser ela o verdadeiro objeto do sacrificado eucarstico.
Transsubstanciada, a alma ancestral sacrificada, como a hstia,
seria pela prpria coerncia simblica da missa redevolvida perene e
fortalecida pela sua juno ao esprito de Cristo. Mas no. No foi esse
o mistrio operado pela missa. A missa indgena o inverso do processo
de individuao, um ritual para desfazer identidades. Na missa que
Anchieta verteu para o tupi (Glria), os aclitos ndios eram
ensinados a pedir a Cristo, cantando:Vem trazer-me a alegria,
trazer-me a tua virtude.
Que eu cumpra a tua palavra
e te ame no meu corao.
Tu te tornaste criana
porque querias viver.
Vem! E tomara que o mal
se afaste de mim para sempre.
Ou seja, a missa instaurava como verdade dogmtica que o Mal era
imanente essncia dos homens da terra e que s a religio do
conquistador poderia redimi-los de tal sina perdida. A a cruz e a
espada se casaram em perfeita e indissolvel comunho de bens.
O que as missas de todo o perodo colonial de 1549 em diante fizeram
descer pela goela abaixo de uma populao conquistada no foi a hstia
da valorizao da alma, mas a de sua destruio. Foi a hstia de um
catolicismo defensivo, atacado pela Contra-Reforma, que reinstaura
sempre o mesmo mecanismo de projeo da sombra. O catolicismo
defensivo faz com que o homem ibrico s veja virtudes em si e
projete toda a sua sombra sobre o ndio, que passa a ser visto como
um ser pecaminoso, criado pelo demnio, que no obedece a ningum, sem
lei e sem Deus, um ser inbil para o trabalho, ocioso e preguioso,
um lascivo incorrigvel, portador de todos os pecados, vcios e
imperfeies de que capaz a natureza humana - se que humanos chegavam
a ser. O invasor se sente assim eticamente legitimado a melhorar
esse ser ignbil, dando-lhe uma alma para que ao menos se eleve
categoria de homem. Os missionrios jesutas passaro ento a
reencontrar o mito da Criao, sendo eles obviamente Deus e os ndios
a argila a ser moldada imagem e semelhana do criador. Este o comeo
de nossa alma civilizada e esta nossa pseudo-mitologia.
A pedagogia instaurada no Brasil nascente consistia em tomar um
aprendente e lhe dizer, como o fez Jos de Anchieta, o patrono da
educao: "esquea quem voc , tenha vergonha de si mesmo, largue tudo,
olhe para mim e queira ser como eu". Isso ainda est vivo no Brasil,
porque quando olhamos para o Primeiro Mundo at hoje fazemos a mesma
coisa, especialmente com relao ao pensamento de l: "esquea, esquea,
esquea, olhe para o outro, queira ser igual ao outro, pense como
ele pensa". A pequena escola jesutica, em torno da qual formavam-se
os primeiro ncleos habitacionais e para onde convergiam os ndios
cristianizados, considerada o marco inicial da sociedade
brasileira: meninos ndios ensinados por missionrios, casas de
taipa, cercas, primeiras ruas. Mas a pedagogia que se praticava
nessas escolas - So Paulo comeou assim, 1554, nos campos de
Piratininga - era da negao do ser indgena.
Esses fatos histricos todos precisam ser revistos e interpretados
sob um novo prisma que nos ponha no encalo da alma perdida e da
individuao abortada. As crianas de hoje precisam ouvir que ao
chegar aqui a esquadra descobridora cometeu o primeiro ato
anti-ecolgico, a derrubada do pau brasil que nos nomeia. Portanto
em 1500 que se origina nosso atual problema de devastao florestal e
de destruio da natureza. Uma imagem que expressasse essa idia
deveria aparecer na capa dos livros escolares patrocinados pelo
Ministrio da Educao at que fosse fixada e lanasse raiz, em
substituio a toda uma galeria de imagens alienantes que trazemos no
poro da mente e que s nos afastam de ns mesmos por nos manterem na
inconscincia. A rvore pau brasil um smbolo do nosso Self. Comeamos
derrubando a rvore que nos nomeia. O que isso tem a nos dizer sobre
nossas prprias dificuldades de crescimento?
Os portugueses aqui chegaram com uma fantasia de Paraso na cabea,
uma fantasia de encontrar mulheres nuas, fartas e disponveis, em
tudo diversas da mulher da Contra-Reforma, ambientadas numa
natureza dadivosa onde tudo fosse permitido e nada fosse pecado -
como alis j lhes garantira o Papa Alexandre VI ao decretar que no
havia pecado ao Sul do Equador, o que eqivale a dizer que a sombra
aqui podia correr solta. Um bom documento para ser interpretado num
curso de formao de analista seria a carta de Pero Vaz de Caminha, a
primeira a descrever a nova terra e sua gente, na qual claramente
se percebe a profecia de que este pas teria que agentar sobre as
frgeis costas uma descomunal e perigosssima projeo de Paraso - que
ademais aqui se constitua para gozo e desfrute exclusivo do
portugus, j que o mesmo de sua psique emanava, e jamais da imaginao
do habitante da terra, para quem a floresta era sempre (como at
hoje se constata) Paraso, perigo e dureza ao mesmo tempo. O que
iria ento acontecer? Toda uma obra histrica, absolutamente
masculina e flica, que a Conquista, ser realizada por homens
brancos de um lado e mulheres ndias, de outro. As mulheres
portuguesas nem mesmo nas caravelas embarcaram. Isso j h alguns
anos me tem feito pensar no seguinte: a anima estava ausente na
formao do Brasil. O portugus traz consigo uma imagem de mulher que
no a anima, mas uma fantasia que jamais ser capaz de integrar, pois
para tanto amadurecer era preciso. Porque se em lugar dessa falta
de eros e de sentimento estivesse presente a verdadeira anima
portuguesa, aquela que se manifesta nos sonetos de Cames, na lrica
de Gil Vicente, nas cantigas de amor e de amigo, a maneira como os
homens teriam se relacionado com as mulheres teria sido outra e em
lugar do mero acasalamento, que foi o que ocorreu, uma juno psquica
poderia ter sido ensaiada. O que se deu entre o homem e a mulher
desses dois mundos foi apenas uma miscigenao a nvel biolgico, fsico
e gentico, mas no psicolgico. sem absolutamente nada a ver com os
refinados sentimentos descritos pelo grande Poeta das navegaes
lusitanas, sentimentos peninsulares que no chegaram a atravessar o
Atlntico.
Somos portanto um caso histrico de anima ausente. Amrico Vespcio
chega aqui e batiza a terra com a forma feminina de seu nome, mas
no de sua alma. O nome "Amrica" sem dvida uma projeo, mas a projeo
de um vazio, de um buraco, que ao se materializar nega e destroi a
verdadeira anima que lhe antecedia, porque toda a alma ancestral
feminina em sua prpria no-racionalidade. Na hora que o princpio
masculino chega aqui - quer dizer, a conscincia crescentemente
racionalizante do sculo XVI - ele no se junta ao feminino, mas
nega-o ao mesmo tempo em que sobre ele projeta uma fantasia de
feminino. Isso pode ser lindamente percebido nos mapas desenhados
nessa poca, por exemplo o que estabelece a demarcao das capitanias
hereditrias. A linha vertical absolutamente reta do Tratado de
Tordesilhas cortada pelas horizontais igualmente retas que definem
os lotes destinados aos primeiros capites da terra. A temos
Descartes subitamente implantado sobre a mata Atlntica! Na alma
ancestral e feminina no h essa linha reta porque ela no funciona de
modo cartesiano. A masculinidade psicolgica que aqui desembarca
chega para arrasar e o faz indo sempre diretamente ao alvo de sua
ilimitada cobia.
H uma ausncia do feminino contemporneo dessa racionalidade porque
tambm na Europa da Contra-Reforma (certamente no na cultura
renascentista) ele estava reprimido. Portanto o que nos coube foi
um feminino projetado. A nvel sociolgico o que vai decorrer disso a
criao de um povo a partir do acasalamento exclusivo de branco com
ndia. O primeiro hbrido o primeiro brasileiro. Esses mestios vo se
multiplicando e gravitando em torno das aldeias que iam se
formando, das primeiras capelas e escolas jesuticas em Porto
Seguro, no Arraial da Ajuda, em Salvador, Olinda, Vitria, So
Vicente, So Sebastio do Rio de Janeiro, So Paulo de Piratininga. Os
ndios vo sendo atrados e catequizados, as mulheres vo gerando
filhos hbridos e esses primeiros mestios circulam por esses
arraiais criados pelos jesutas como cristo convertidos, selvagens
domesticados.
Essa a proto-clula de nossa sociedade, o comeo de nosso povo. E a
comea o drama de nossa identidade. Esse filho no pode se
identificar nem com o pai, nem com a me. Uma ndia que se acasalou
com um branco e foi batizada no mais aceita em sua aldeia de
origem, ela saiu e para l no pode mais voltar. E nem sua lngua pode
transmitir ao filho, fosse ela de que etnia fosse, porque a lngua
que seu filho falaria era o tupi, lngua geral que se imporia sobre
as centenas de lnguas que ento se falava no Brasil, e o portugus a
seguir. A religio ela certamente no transmitiria ao filho, pois
acabava de formalmente renunciar que tinha quando forosamente
aceitava a do dominador, e se alguma mitologia hipoteticamente
tentasse ensinar nova gerao, seria por certo o que mais ajudaria a
esta na impossvel tarefa de se descobrir a si mesma no novo ciclo
histrico que se inaugurava.
A identificao com a figura materna era portanto invivel. E com o
pai tampouco podia esse filho vir a identificar-se, uma vez que na
Pennsula Ibrica um mestio, mameluco e bastardo no tinha lugar na
sociedade de estamentos regidamente delimitados. Se um certo Dom
Manuel de Faria resolvesse, depois de trinta anos de Brasil,
regressar para Coimbra levando consigo na caravela os filhos que
com vrias ndias tivera, estes no poderiam seguir carreira militar,
nem religiosa, nem acadmica, nem civil, e muito menos casar-se com
moas da mesma condio social de seu pai - esses filhos brasileiros
seria prias na terra paterna.
Quem pois esse homem do Novo Mundo que no pode se identificar nem
com pai nem com me? Nas palavras de Darcy Ribeiro, que melhor do
que ningum levou adiante esta reflexo, ele um Z Ningum. Portanto a
alma brasileira que se plasma a partir do contato entre duas
grandes tradies a alma do annimo ningum. Daquele que no sabe quem e
no pode ter uma raiz nem para o lado de c, nem para o lado de l,
portanto um desarraigado a carregar consigo uma pesada problemtica
existencialista j no sculo XVI que nem Heidegger conseguiria
equacionar.
No decorrer dos prximos trs sculos, a essa crescente massa amorfa
junta-se o triste contingente de africanos escravizados, igualmente
arrancados de seu contexto e misturados entre si para que se
anulassem as diferenas tnicas e culturais de origem. A segunda
matriz brasileira, aquela resultante da unio entre branco e negra e
todas as possveis demais combinaes - mantido evidentemente parte o
ventre branco - gerar os mestios mulatos que sofrero a mesmo
imposio existencial de no poderem saber quem so e de onde vm. Mas
de ventre branco tambm nasceram bastardos. Preocupados com a
devassido de costumes sexuais que to cedo se implantava no Brasil,
os jesutas logo se apressaram a solicitar que a Companhia de Jesus
em Lisboa despachasse para a Colnia mulheres brancas para que se
garantisse um mnimo de eugenia. E eis que em meados do sculo XVI
aporta no litoral a nau das prostitutas, desembarcadas aps
receberem a bno a bordo. Com elas veio a sfilis para uma terra que
at ento desconhecia esse e outros males. E com elas as portugueses
acasalaro como alternativa s ndias por recomendao expressa dos
missionrios, que com esse gesto demonstram coloc-las no mesmo
plano. Vemos portanto que a fantasia de feminino que os portugueses
traziam em sua mente era mesmo a da puta. E as mulheres da terra
tiveram que carregar essa projeo sobre a cabea.
A Grande Me do Brasil uma ndia, esse o nosso mito e nossa verdade
histrica e psicolgica. Temos que comear a considerar esse mito, e
no apenas o da grande me babilnica, grega ou romana, que tanto se
estuda nos crculos junguianos. De novo: se Erich Neumann conhecesse
a mitologia brasileira, ele sem dvida a teria includo em seu
trabalho sobre o tema. J nosso conscincia coletiva no reconhece
mesmo a existncia dessa me ancestral, que no aparece em produto
algum de nossa cultura ou de nossas especulaes pseudo-psicolgicas
de que escola for.
Mas para no perder o fio: diz Darcy Ribeiro, a meu ver de modo
brilhante, que foi preciso, no sculo XIX, inventar-se um pas
chamado Brasil para que esse povo de Z Ningum pudesse dizer que
pertencia a alguma coisa. Essa a verdadeira questo por trs da
factualidade ostensiva da proclamao da Independncia pelo filho
rebelde do monarca portugus, identificado com a jovem nao que
pretendia ser levada a srio. como se a psique coletiva, atingido
aquele ponto de saturao, estivesse a pressionar no plano
institucional pela formalizao de um mnimo de persona coletiva, para
assim assegurar a manuteno do vcuo psquico interior de que ramos
feitos. O povo brasileiro estava finalmente querendo ser dono de
seu prprio nada. Ganhamos ento um pas internacionalmente
reconhecido que nos permitia sermos o pouco que ramos. E preciso
olhar para o passado histrico nesses termos, porque s assim se
entre em contato com aquela revolta no fundo do estmago que
possibilita a recusa do status quo, que permite dizer: "no precisa
necessariamente ser assim".
Contamos hoje com um dos plantis genticos mais ricos do planeta e
com um dos complexos culturais mais diversificados que se possa
conceber no mundo atual. O desafio que nos cabe : ser ou no possvel
extrair a quintessncia alqumica dessa matria prima? Ser que nossa
conscincia j chegou a esse ponto? A alma ancestral brasileira hoje
uma alma penada; e aquela que se constitui a partir de 1500 sofre
de um complexo nacional de inferioridade e est com sua energia
criativa reprimida. No tem sido mais possvel sonhar no Brasil, um
sonho coletivo compensatrio das misrias de uma sociedade injusta
que nos dissesse o que o inconsciente espera de ns e o que nos
reserva como possibilidade histrica. Esse sonho foi esboado nos
anos 60, mas a represso militar foi longe demais e traumatizou
nossa ousadia onrica.
Gostaria de ir concluindo estas reflexes abordando dois temas: um
mito que rapidamente comentarei e alguns sonhos que o grande paj
Kamaiur Takum teve em setembro de 1996 durante uma passagem sua por
So Paulo (esses sonhos foram registrados pela antroploga Carmem
Junqueira, que em seu contato de muitos anos com o paj tem estudado
a sabedoria ancestral desses ndios). Comecemos pelos sonhos. Takum
chega e inicialmente hospedado numa casa de praia adjacente a uma
rea de mata onde j haviam sido vistas cobras. Ele foi alertado
sobre o perigo, especialmente porque tinha consigo a mulher e dois
filhos pequenos. Em sua primeira noite nessa casa ele sonhou: "Uma
enorme cobra apareceu e tive medo. Mas fiquei calmo quando ela me
disse que era ela quem tomava conta daquela mata, ela era o chefe
das cobras. Disse ento que eu no precisava ficar preocupado, porque
nada de ruim aconteceria para ns". Eis a a alma ancestral se
manifestando sob forma de cobra, dando-lhe fora e proteo para
enfrentar cobras literais ou metafricas de nosso mundo civilizado.
Ela o grande poder do inconsciente. o verbete mais longo de
qualquer dicionrio de smbolos. Esta uma cobra me, que comanda o
prprio mal, fazendo-se presente de maneira to viva no sonho de um
ndio preocupado com a selva dos brancos.
Mas vejamos o ltimo sonho de Takum imediatamente antes de seu
regresso ao Parque Nacional do Xingu: "Um ndio bem velho chegou
perto de mim e me perguntou se estava tudo bem e se eu tinha
conseguido alguma coisa. Respondi no, no consegui nada." A
antroploga que o hospedava ficou cismada ao ouvir esse sonho e
perguntou o que era essa "alguma coisa". Ele respondeu: "um Fax".
Os Kamaiur esto organizando uma associao cultural e esto pensando
em obter um aparelho desses. Esse sonho, quinze dias depois da
cobra, mostra que o inconsciente de Takum abarca desde a serpente
arquetpica at a tecnologia de ponta. Ns junguianos estamos querendo
sonhar mais com a cobra. Duas linhas se cruzam: alguns de ns
queremos entrar um pouco no lado de l, e os ndios no de c. E a
situao agora de ou vai, ou racha, porque eles esto por um fio de
desaparecerem por completo. Hoje h pouco mais de duzentos mil ndios
no Brasil, quando na poca do Descobrimento havia de seis a dez
milhes. Havia mais de mil lnguas indgenas, tesouros
irremediavelmente perdidos. Uma lngua leva mais de mil anos para se
constituir. Como um milagre, sua estrutura emerge inteira do
inconsciente. Centenas de lnguas j desapareceram no Brasil sem
terem deixado o menor registro e continuam at hoje a morrer.
Algumas so faladas por meia dzia de pessoas e provvel que l pela
metade do prximo sculo j no tenha sobrado mais nenhuma. O trabalho
dos que esto coletando mitos vivos nas lnguas originais portanto da
maior importncia, como por exemplo o que vem sendo realizado pela
antroploga Betty Mindlin.
Os ndios esto perdendo a terra e a cultura. No final de 1996 os
jornais publicaram a notcia de que um cartel internacional
especializado na comercializao de gens humanos para pesquisa
industrial est oferecendo amostras de sangue Suru. Essas amostras
genticas sero vendidas por enormes quantias para indstrias
farmacuticas interessadas em pesquisar novas formas de combater a
obesidade a partir da manipulao gentica. Esse mal, to difundido nas
sociedades de consumo devido ao desequilbrio das formas de
alimentao inexistente entre as populaes indgenas. Se for criado um
medicamente eficaz, baseado num princpio novo, certamente os lucros
sero considerveis - mas os Suru no estaro por certo na lista de
distribuio de dividendos. O sangue indgena, capaz de curar males da
nossa civilizao, continua a ser roubado - eis a uma imagem
absolutamente high-tech e contempornea que merece nossa ateno. Os
novos smbolos que denunciam o contnuo drama de nossa alma ancestral
vazam at pelos jornais; mas a conscincia coletiva ainda no sensvel
o bastante para elabor-los enquanto tema de auto-conhecimento.
Outra verso moderna da pirataria que imperava na poca das grandes
navegaes leva o nome de Plant Medicine Corporation. Esta organizao,
voltada para assegurar royalties de substncias curativas do
Terceiro Mundo que podem mais uma vez dar lucro ao Primeiro, j
patenteou o uso do cip aluciongeno huasca. O trfico de especiarias
ou de pau-brasil ainda no terminou, ele se renova e se reatualiza a
cada dcada e como se esse contnuo saque cultura milenar no tivesse
ainda sido compreendido em todas as suas implicaes - especialmente
as psicolgicas. Caso o Brasil, portanto, venha a adotar uma poltica
de efetiva proteo de seus recursos naturais e culturais e decida
produzir industrialmente o ch de huasca, que embora ainda no
pesquisado em seus potentes efeitos serve de base para a organizao
de novas religies (Santo Daime e Unio do Vegetal) e permite a um
crescente nmero de adeptos a vivncia imediata da transcendncia do
ego, ser necessrio que nosso governo pague royalties a uma corporao
americana pelo uso de uma erva medicinal milenarmente nossa. Nos
anos 60, um assunto desses inflamaria a retrica anti-imperialista
dos movimentos de esquerda; hoje, j no mobiliza mais ningum. E no
entanto, eis a, deslavado, mais um smbolo que reflete a degradao de
nossa alma ancestral e que sintetiza o estado de inviabilidade
histrica que ameaa essa parte cada vez menor de nossa populao
atravs da qual nos conectamos s razes. Os ndios ao final perdero
suas terras, morrero de doenas vrias, sero assimilados como
mo-de-obra no qualificada na camada mais baixa da sociedade
brasileira. No surgiu at hoje uma poltica indigenista que
minimamente funcionasse e os defendesse em seus direitos mais
elementares. Mesmo aqueles que honesta e sinceramente defendem os
ndios no sabem mais o que fazer em mbito nacional.
Terminarei esta reflexo com um breve comentrio sobre um dos mitos
coletados por Betty Mindlin em sua pesquisa de campo. Desde que o
ouvi no fiquei mais em paz. Algumas poucas vezes nos reunimos em
meu consultrio para falar dessas histrias, cada um a partir de seu
ponto de vista. No pretendamos chegar a interpretaes completas, mas
antes a tocar o fundo do poo. Ainda no se tem uma metodologia
adequada que d conta de um material to vasto, com tantas variaes, e
que permita uma leitura tanto potica quanto antropolgica e
psicolgica. O mtodo junguiano tem a um enorme desafio sua frente.
Pessoalmente, no me afino com a metodologia de Lvy-Strauss, que s v
nos mitos diagramas cifrados de uma estrutura social abstrata e
nunca da alma que os gerou e que portanto pode estar neles
espelhada. O mito em questo pode ser intitulado "A cabea voraz", "A
cabea voadora" ou ainda "A cabea que perdeu o corpo" e narrado em
vrias tribos. Vou reproduzir, resumidamente, a verso Makurap.
"Marido e mulher vivem em harmonia. Tudo vem bem em sua vida na
aldeia. Toda noite eles dormem juntos na rede e toda noite a cabea
da mulher se desprende do pescoo e vai voando em busca de comida em
outras aldeias. A cabea se alimenta durante a noite e antes do dia
raiar volta e se encaixa novamente no pescoo. Quando acorda, o
marido v a mulher a seu lado como sempre, mas com uma pequena gota
de sangue no pescoo. Ambos ignoram o que a cabea faz em seu vo
solitrio noturno. Um dia, a me da moa entra na maloca e surpreende
o genro ao lado do corpo decapitado da filha e imediatamente o
acusa. O corpo enterrado e a tribo toda se volta contra o marido, a
quem s resta fugir. A cabea volta e no encontrando mais o corpo que
lhe corresponde, pousa no ombro do marido, onde se fixa como uma
segunda cabea. Este fica desorientado, porque quando quer uma
coisa, a cabea quer outra. Esta comea a entrar em decomposio. O
homem tenta se livrar dela, mas ela resiste. Finalmente ele a
arranca do ombro, foge pela floresta adentro e ela o persegue at
que o bacurau acaba levando-a para o reino dos pssaros..."
Creio que as imagens deste mito absolutamente brasileiro e autctone
nos dizem que a busca de conhecimento arquetipicamente vedada s
mulheres. Por algum tempo possvel encontrar alimento novo, mas este
no pode ser integrado. O tabu ento determina que a mente da mulher
deve ficar ali ao p do fogo onde cozinha, l que sua vida transcorre
e l estariam seu sentido e seus limites. Encontrei uma idia similar
no trabalho de Alcia Fernndez, uma psicopedagoga argentina que
estuda as dificuldades das professoras em desenvolverem um
pensamento prprio. Essa autora encontra no Gnesis a origem desse
mandato proibitivo: Eva punida por ter ousado aceitar da serpente o
fruto da rvore do Conhecimento proibido por Deus. O tema amplo e
pode nos levar longe, mas aqui no se trata apenas de um problema
arquetpico da mulher indgena, e sim algo que diz respeito ao
princpio feminino como um todo, manifestado tanto nas mulheres como
nos homens, na cultura ou na alma.
Mas h tambm outra possibilidade de leitura. Houve um tempo mtico em
que o princpio masculino e o feminino estavam equilibrados e em
harmonia, mas a partir de um certo ponto o ltimo no pde mais se
expandir porque no mais possvel integrar qualquer transformao.
Nossa alma ancestral como essa cabea. Ela perdeu o corpo, que seria
a materializao de uma nova sntese - o corpo no existe mais, foi
enterrado, desintegrou-se no inconsciente - e busca outro, ao qual
no entanto no pode ser conectar por uma impossibilidade natural. No
se trata aqui de uma analogia figura alqumica do andrgino, porque
nesta masculino e feminino esto diferenciados mas unidos na base,
num corpo que pertence s duas cabeas. No nosso mito a imagem outra,
a situao psquica outra. Essa cabea desencorpada nossa alma perdida
vagando penada pela noite da inconscincia sem poder se encaixar
naquele corpo que seria nossa prpria realidade humana aqui e agora,
uma realidade fsica, corprea, psquica, cultural, social e poltica.
O simulacro de integrao do princpio feminino arquetpico - isto ,
ancestral e imemorial - justamente por no ser uma verdadeira
integrao mas algo falso, forado, postio, apodrece e cria dissociao,
obscuridade, fastasmagoria. A conscincia que nos orienta a todos
procura ento loucamente se livrar daquele encosto maldito, para
poder continuar unilateralmente estruturada em sua racionalidade
dominante. E aquilo que poderia transform-la e revitaliz-la
desaparece do campo conhecido: dissolve-se no cu do Cruzeiro do
Sul, de onde at hoje nunca mais voltou. Vejo portanto nesse mito o
drama da separao no redimida dos opostos e esse o grande problema
arquetpico que nos afeta essencialmente a todos.
(Palestra proferida em outubro de 1996 no Moitar, encontro
promovido em Campos do Jordo pela Sociedade Brasileira de
Psicologia Analtica. Foram feitos alguns acrscimos. O autor
analista formado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique, membro da
Sociedade Internacional de Psicologia Analtica e da Sociedade Sua
de Psicologia Analtica. socilogo, advogado e Mestre em Cincias
Sociais pela Universidade de Chicago. Publicou O Espelho ndio - os
jesutas e a destruio da alma indgena, Ed. Espao e Tempo, 1988, e
vrios artigos.)
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Ediciones Nueva Visin, Buenos Aires, 1992.
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s/d.
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alma indgena. Editora Espao e Tempo, Rio de Janeiro, 1988.
4. GAMBINI, Roberto. "The soul of underdevelopment - the case of
Brasil". The San Francisco Jung Institute Library Journal 57, vol.
15, n. 1, 1996. Publicado tambm nos Proceeding of the 13th
International Congress for Analytical Psichology, Daimon, Zurich,
1996. Publicado tambm como "Die seele der unteertwicklung - der
fall brasilien". Gorgo, Heft 30, Jahrgang 1996.
5. JUNG, Carl Gustav. "Conscious, Unconscious ond Individuation",
in Collecte Works 9, Part I. Princeton University Press, Princeton,
1977.
6. JUNG, Carl Gustav. Aion. Rescarches into the Phenomenology of
the Self. Collected Works 9, Part II. Princeton University Press,
Princeton, 1951.
7. JUNG, C.G. "Mind and Eart". Collected Works 10. Princeton
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8. JUNQUEIRA, Carmen. Os ndios de Ipavu. tica, So Paulo,
1975.
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1969.
10. LVI-STRAUSS - Anthropologie Structurale. Plon, Paris,
1958.
11. MINDLIN, Betty and Suru Narrators. Unwritten Stories of the
Suru Indians of Rondonia. Institute of Latin American Studies,
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12. MINDLIN, Betty. Tuparis e Tarups - Narrativas dos ndios Tuparis
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16. VEJA, Garcilaso de la. Comentarios Reales. Origen e historia de
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17. ZOJA, Luigi. Crescita e Colpa. Psicologia e limiti dello
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posted by Padre at 12:17 PM