Gabriel o pensador

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Biografias e resumos de carreiras de artistas, atletas, cientistas, bruxos, santos, terroristas, políticos, putas, ou qualquer outro tipo de pessoas que se tornaram ou foram tornadas famosas, normalmente contêm alguns erros e falsas informações que vão sendo tão repetidos, ouvidos e lidos e relidos, que se transformam em quase-verdades indiscutíveis capazes de durar até mais do que a própria permanência do ilustre biografado na Terra. Espero que este esboço de biografia não contribua para isso e não espalhe nenhuma informação incorreta que possa ser copiada e publicada continuamente por aqueles que têm preguiça de checar a origem dos textos. Sim, mas neste caso eles podem relaxar, eles e todos os outros que por algum motivo estejam lendo isto agora, pois desta vez quem está escrevendo o resumo (!) é o próprio sujeito e objeto da narrativa. É claro que nem por isso os erros deixarão completamente de existir, mas vou tentar caprichar na memória e na clareza daquilo que eu quiser (ou me obrigar a) lembrar e esclarecer. O resto os jornalistas competentes e incansáveis podem sempre me ajudar a recordar e divulgar. O nome. Bom, contrariando dezenas de matérias que quase mudaram meu sobrenome para Zontino ou Zantino por causa de um único erro de datilografia numa revista conhecida, eu me chamo Gabriel Contino (pelo menos até aqui eu não tenho nenhuma dúvida). O nome italiano vem da turma do avô do meu pai, um fotógrafo que trocou o sul da Itália pelo do Brasil no finzinho do século XIX (ou comecinho do XX) e acabou se casando com duas gaúchas e fazendo seis filhos com cada, ao que tudo indica com uma de cada vez. O primeiro do seu segundo casamento veio ao mundo em Alegrete em 1911 e trocou o Rio Grande do Sul pelo De Janeiro logo após ter perdido a mulher, com quem tivera dois filhos em Porto Alegre, para uma terrível doença chamada leptospirose. O mais novo destes dois, Miguel, tinha só um aninho e ficou com uma tia até os cinco, quando veio finalmente morar com o pai e sua nova companheira em Copacabana. Cresceu, passou para medicina na Universidade do Estado da Guanabara (hoje UERJ) e um dia conheceu uma linda menina tijucana chamada Belisa. A garota era a mais velha dos três filhos do casal de cariocas

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 Biografias e resumos de carreiras de artistas, atletas, cientistas, bruxos, santos, terroristas,

políticos, putas, ou qualquer outro tipo de pessoas que se tornaram ou foram tornadas

famosas, normalmente contêm alguns erros e falsas informações que vão sendo tão repetidos,

ouvidos e lidos e relidos, que se transformam em quase-verdades indiscutíveis capazes de

durar até mais do que a própria permanência do ilustre biografado na Terra. Espero que este

esboço de biografia não contribua para isso e não espalhe nenhuma informação incorreta que

possa ser copiada e publicada continuamente por aqueles que têm preguiça de checar a

origem dos textos. Sim, mas neste caso eles podem relaxar, eles e todos os outros que por

algum motivo estejam lendo isto agora, pois desta vez quem está escrevendo o resumo (!) é o

próprio sujeito e objeto da narrativa. É claro que nem por isso os erros deixarão completamente

de existir, mas vou tentar caprichar na memória e na clareza daquilo que eu quiser (ou me

obrigar a) lembrar e esclarecer. O resto os jornalistas competentes e incansáveis podem

sempre me ajudar a recordar e divulgar.

       O nome.

       Bom, contrariando dezenas de matérias que quase mudaram meu sobrenome para

Zontino ou Zantino por causa de um único erro de datilografia numa revista conhecida, eu me

chamo Gabriel Contino (pelo menos até aqui eu não tenho nenhuma dúvida). O nome italiano

vem da turma do avô do meu pai, um fotógrafo que trocou o sul da Itália pelo do Brasil no

finzinho do século XIX (ou comecinho do XX) e acabou se casando com duas gaúchas e

fazendo seis filhos com cada, ao que tudo indica com uma de cada vez. O primeiro do seu

segundo casamento veio ao mundo em Alegrete em 1911 e trocou o Rio Grande do Sul pelo

De Janeiro logo após ter perdido a mulher, com quem tivera dois filhos em Porto Alegre, para

uma terrível doença chamada leptospirose. O mais novo destes dois, Miguel, tinha só um

aninho e ficou com uma tia até os cinco, quando veio finalmente morar com o pai e sua nova

companheira em Copacabana. Cresceu, passou para medicina na Universidade do Estado da

Guanabara (hoje UERJ) e um dia conheceu uma linda menina tijucana chamada Belisa.

       A garota era a mais velha dos três filhos do casal de cariocas Eneida e Affonso - uma bela

e inteligente professora de escola pública e um mulatão atlético de quase dois metros que era

policial do Exército, sem por isso deixar de ser poeta e sambista e tocar (até hoje) viola,

pandeiro e piano.

       O ritmo do Affonsão pode ter vindo no sangue negro da família de sua mãe, mas a veia

poética - se é que a poesia pode ser hereditária - foi herança do seu pai pernambucano, que

quando era vivo escrevia e recitava poemas de amor para a futura avó da Belisa, em Niterói, no

estado do Rio, ou melhor, da Guanabara.

       Eneida, por sua vez, trazia nos genes uma certa mistura portuguesa e espanhola, com

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mais uma dose de sangue gaúcho, já que sua mãe tinha vindo de um lugarzinho chamado

Santo Antônio da Patrulha pra viver com um tenente carioca, mesmo sem o consentimento dos

seus velhos, que se recusaram a assistir ao casamento... Que rolo! Se isso era pra ser um

resumo, imagina eu contando a estória completa! Mas se não fossem todos esses detalhes

aparentemente insignificantes este texto não estaria aqui, nem você, e eu então muito menos.

       O namoro entre Miguel e Belisa, isso, o namoro! Bem, corria tranquilo e calmo até que

uma cartela de pílulas anti-concepcionais (ainda uma novidade na época) foi descoberta pelos

pais da moça em sua bolsa e quase arruinou o romance. Rolou um estresse na família,

separam o casal por um tempo, mas Miguel conseguiu sobreviver à ira do Affonsão e da dona

Eneida e fez questão da mão da gata em matrimônio. Um ano depois os dois se casaram " e

viveram felizes para sempre". Mas, talvez traumatizados pela confusão causada pelas pílulas,

eles optaram pela camisa-de-vênus como modo de evitar uma gravidez. Num belo dia foram

fazer um passeio de carro até a praia de Jaconé, no caminho de Saquarema, e lá mesmo no

banco traseiro do Fusca de cor preta e placa EA-9845, começaram a fazer amor, ou sexo, para

ser mais explícito. A tarde estava bonita e tentadora e os dois não tinham levado camisinha, só

daquela vez.

       Cinco meses depois, com 19 anos de idade e cinco meses de gestação, a estudante

Belisa foi internada com a bolsa d'água estourada e uma gravidez de alto risco, no mesmo

hospital onde o marido recém formado fazia residência médica para se especializar em

oftalmologia. Enquanto os médicos diziam sem cerimônia que o bebê poderia nascer cego ou

surdo, se saísse com vida, a jovem ficou lá de molho esperando, até que numa Quarta-feira de

Cinzas, de madrugada, em quatro de março de 1974, o bebê não aguentou mais a demora e,

talvez não exatamente por pressa, mas por algum desses motivos que só os fetos de sete

meses e meio conseguem entender, resolveu dar o ar de sua graça. E por falar em graça, seria

batizado como Pablo se a mãe não tivesse gostado tanto do livro Cem Anos de Solidão, do

colombiano Gabriel García Marquez, lido durante a internação de 42 dias.

       Na noite do parto inesperado, o obstetra responsável não estava de plantão e quem teve

que assumir foi um jovem obstetra residente, que graças a Deus foi feliz no que deve ter sido o

primeiro parto daquele tipo da sua carreira. Mas o drama ainda não terminava ali no

nascimento, pois o menino de dois quilos e cem gramas nasceu com uma série de problemas e

teve que ir direto pra CTI neo-natal. Pra você ter uma idéia, existe uma pontuação que os

médicos dão aos bebês conforme as suas características logo após o parto: o APGAR, que

avalia as condições de aparência, peso, respiração e etc. A nota do Gabrielzinho, numa escala

de zero a dez, foi dois.

       Pra encurtar um pouquinho esta estória, foram duas semanas na incubadora com

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aparelhos respiratórios e tudo a que tinha direito, sem visitas além das do pai e da mãe, que

demorou uns longos dias até poder pegar o filho no colo pela primeira vez, rapidamente, ainda

na CTI. O menino apresentava uns preocupantes tremeliques, mexendo involuntariamente os

braços em estranhos impulsos que pareciam o movimento de um abraço no vazio.

Suspeitavam de um tumor no cérebro, ou edema, e chamaram uma equipe do renomado

Hospital Jesus, especializada em prematuros com problemas neurológicos, que trouxe sua

parafernália usada em testes com esses bebês, incluindo uma corda, onde Gabriel ficaria

pendurado para ver se tinha força e reflexo suficientes nas mãos, como uma criança normal.

Tinha. Quando conseguiu se pendurar, todos aplaudiram na sala - Belisa, Miguel e seus

colegas, da oftalmologia e de todo o Hospital Pedro Ernesto (em Vila Isabel), que tinham se

juntado pra assistir ao desafio e torcer. Porém, a jovem mãe de 19 anos ainda estava

preocupada com a previsão sinistra dos médicos sobre o futuro do garoto: "ou vai morrer ou vai

ficar com graves distúrbios mentais".

       Bom, dos males o menor! Pelo menos o coitado não morreu! Quanto à mente perturbada

fica a dúvida no ar, que permanece até hoje e talvez para sempre. Mas o fato é que ele resistiu,

e sua mãe notando isto resolveu resgatá-lo de lá, mesmo contra a vontade de um dos médicos,

que acabou consentindo em dar alta, com a condição de que os pais assinassem um termo de

responsabilidade. Assinaram e se responsabilizaram, o levando pra continuar o tratamento lá

na casa da Dona Eneida, onde o garoto desfrutou seu primeiro mês de liberdade. Ainda fazia

aqueles movimentos malucos com os braços, e a última coisa que os médicos tinham achado

sobre tal "tique" nervoso é que poderia ser fruto de uma carência de magnésio no sangue.

Conseguiram então umas ampolas de sulfato de magnésio, que vieram de São Paulo, e cuja

injeção o próprio Miguel tinha que lhe aplicar diariamente, com a mão querendo tremer e

suando, não tanto pelo tamanho da agulha, mas pelo do seu frágil bebezinho - seu peso tinha

caído pra dois quilos depois de nascer e era conferido diariamente numa balança no quarto

onde dormia, e a cada grama que engordava a casa inteira vibrava em comemoração.

       Gabrielzinho melhorou daquele troço, mas pintou uma hérnia que o obrigou a encarar uma

cirurgia no terceiro mês de vida. Tranquilo, sem neurose. Encarou aquilo numa boa, o moleque.

Depois foi crescendo e Miguel e Belisa se divorciaram quando ele tinha seis meses de idade.

Ficou morando com ela e contando com a ajuda da Dona Eneida e de seus filhos Affonsinho e

Beatriz, que agora viam a irmã trocar o emprego de balconista que tinha numa loja por uma

vaga modesta de estagiária no Jornal do Brasil. Ganhando menos, mas pra fazer o que queria.

       Engatinhou, balbuciou suas primeiras palavras, e cada gesto simples desses era um alívio

pra toda a família, assim como deve estar sendo pra você que está lendo isso e não aguenta

mais esse monte de descrições médicas, químicas, físicas e psicológicas. Anda logo Gabriel!

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Gabriel andou. E passou por vários bairros com as mudanças de Belisa, quando ela já podia

bancar o seu próprio aluguel e se mudou, e mais tarde se casou e se mudou mais umas

vezes… Mas a vovó estava (e está) sempre sediada na Tijuca, no mesmo endereço onde

Belisa crescera, na Rua Carvalho Alvim. Outro ponto fixo de referência que surgiu um pouco

depois, e que seria na verdade um interessante contraponto para a sua vida meio nômade com

a mãe, o irmão Tiago e os diferentes padastros que viriam com o tempo, foi o apartamento

onde o pai fixou-se em Copacabana com a segunda esposa. Aquele pequeno lar não era nem

um pouco careta, no sentido ruim da palavra, mas servia como um retrato de uma família mais

típica e fácil de entender: O pai, a madrasta, os dois irmãos que pintaram (Joana e o caçula

Fernando), o mesmo apartamento, a mesma mesa de jantar, os mesmos passeios, os mesmos

amigos do pai, as mesmas diversões, as mesmas implicâncias da madrasta, que talvez fossem

interpretadas assim por Gabriel mais pelo ciúme que ele tinha do pai do que pela "chatice" da

mulher em obrigá-lo a arrumar a cama quando ia dormir lá com eles nos fins de semana - um

sim, outro não e em outros talvez. Aquela rotina que duraria cerca de vinte anos no mesmo

lugar e com as mesmas qualidades e defeitos acabou sendo muito importante na infância, na

adolescência e até na juventude do garoto, que mudou de escola várias vezes e de casa e de

padrasto muitas outras.

       Esse negócio de dividir a mãe com os padrastos era mil vezes mais complicado do que a

relação com a esposa do pai, não só por sentir muito mais ciúmes da mãe, naturalmente, mas

também porque ela trabalhava demais (enquanto o pai ele sempre encontrava nos dias de

folga), e ainda por cima havia o irmão, que tinha chegado quase quatro anos depois dele pra

aumentar mais ainda o ciúme. Irmão 24hs era só o materno, e por isso foi com este irmão que

Gabriel brigou muito enquanto eram crianças, coisa que começou ainda na época da Rua

Uruguai, quando a mãe ficou alguns anos morando com o jornalista Tarcísio Baltar, o pai do

Tiago, o que certamente deve ter gerado o questionamento infantil do tipo "por que o pai dele

mora aqui e não o meu?". E tome briga com o irmão, reclamação e castigo.

       Até aí tudo bem, pois Gabriel era muito pirralho e hoje nem se lembra direito dos detalhes,

mas houve uma fase mais difícil, quando tinha uns dez ou onze anos e realmente sofreu com

as confusões que via rolarem entre a mãe e um outro marido, em um outro lar em outro bairro.

Nessa altura ele já tinha feito até terapia infantil com uma psicanalista, mas foi na escola

Senador Correia que começou a exercitar sua rebeldia pra curar ou esquecer esses conflitos.

Ficou um ano no colégio, que era muito liberal, cheio de filhos de artistas e de alunos que

virariam artistas no futuro. Como em quase todo colégio, também havia a turminha aprendiz de

"marginal". Entre as aulas de artes e as artes que a pequena e atuante "banda podre" do

colégio o ensinava, foi ali que Gabriel aprendeu algumas coisas erradas, mas também se

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interessou pela música. Chegou a fazer umas cinco musiquinhas de rock, com letra e melodia

(apesar de não tocar nenhum instrumento), e uma delas foi inspirada no episódio do flagrante

nas Lojas Americanas, onde tinha sido pego por um segurança furtando uma caixa de giz de

cera durante o horário de recreio - é que todos os alunos podiam sair da escola e comer pão de

queijo na padaria da praça, ou fazer o que bem entendessem. Este episódio que virou música

entrou para a história do Senador Correia, pois a loja quis explicações do diretor da escola, que

não gostou nem um pouco da gracinha e resolveu tornar as regras um pouco menos liberais

pra todo mundo: a partir do dia seguinte, quem quisesse colocar os pés na rua na hora do

recreio deveria trazer a autorização por escrito dos pais. E tudo isso foi por culpa do "Pixote"

(ninguém o chamava de Gabriel), que depois de dois dias suspenso teve medo de ser

levemente linchado pelos colegas, punição extra que felizmente não sofreu.

       No ano seguinte sua mãe o mandou para o Andrews, uma escola mais rígida e tradicional,

onde o garoto ficaria até o fim da oitava série incrivelmente sempre entre os primeiros da

classe, apesar de uma dose de bagunça inevitável, mas já sem roubar (nem matar, estuprar ou

qualquer coisa parecida, muito menos na hora do recreio). A verdade é que a mudança de

colégio coincidiu com sua ida para São Conrado, já aos doze, onde pôde trocar a diversão de

pichar muros pelo rabiscar das ondas e das rodas do skate, e rapidamente deixou de ser

"Pixote" para virar o "Pequeno". Ele tinha começado a pegar onda um pouco antes, quando

ainda morava na Lagoa, mas foi mesmo no chamado Cantão ali da praia, ao conhecer e fazer

amizade com a galera da favela da Rocinha, que acabou ficando muito mais viciado.

       Por favor, não confundam as coisas nem entendam errado: quando eu digo "viciado" é

pura e somente viciado no esporte, e não em outras coisas que o preconceito nos ajuda a

associar automaticamente à palavra "favela". Talvez se tivesse continuado com alguns

pequenos delinquentes de classe média, que eram os seus amigos mais íntimos de poucos

meses antes, poderia aí sim passar por problemas com drogas junto com eles; o que também

não quer dizer que na turminha da Rocinha não existisse nenhum coleguinha de praia que

fosse mais tarde se tornar viciado, ou até em alguns casos, traficantes e defuntos precoces.

Mas o que importa é que aconteceu e não o que podia ter acontecido com o Pequeno, e o que

aconteceu foi coisa boa. Ele se juntou com a galera que só queria saber de surfar no canto da

praia, andar de skate no half-pipe do morro, andar de bicicleta no asfalto do Pepino, jogar

"bobinho" no condomínio e vídeo-game Atari em sua casa, onde morava com a mãe, o irmão

Tiago e o novo padrasto.

       Esse era um ator da TV Globo, muito famoso, assim como a Belisa, que nesta altura já

tinha apresentado os principais telejornais da emissora e conduzia seus próprios programas na

TV Bandeirantes. Gabriel morou ali até os quinze, e a enorme variedade de ambientes e de

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pessoas que conheceu nessa fase ajudou a definir sua personalidade e a sua postura diante da

vida. Vida que era vista e vivida como uma estrada imprevisível, cheia de entradas e saídas

abertas, desvios, mudanças, avanços, retornos, atalhos, acidentes…; rua clara, beco escuro,

túnel e ponte, onde não se anda em círculos e até o chão parece estar se movendo em

silêncio. No caminho de sua vida passavam os rebeldes ou pacatos colegas do mundo da

classe média - com seus largos horizontes projetados nas paredes internas dos muros, os

muros protetores e certinhos que os deixavam com vontade de pulá-los ou quebrá-los de uma

vez - às vezes reprimidos e cheios de conflitos, confusos com a imprecisa descoberta de uma

estranha e constrangedora "obrigação" de ser feliz (como os companheiros de escola ou das

inesquecíveis idas à Colônia de Férias de Miguel Pereira, onde rolava muito esporte,

brincadeira e "azaração", com direito a choradeira emocionada no final); e passavam nesse

caminho de sua vida a impetuosidade irreverente da fala em voz alta do morro e a pureza e a

esperteza malandra dos seus gestos, modestos e ao mesmo tempo imponentes, nas bocas

sorridentes de quem sente que precisa usar os dentes e usa, mordendo, mastigando e

engolindo as frustrações e escondendo um sonho ou dois que ainda resistem de forma gostosa

debaixo da parte mais doce da língua (como a garotada e marmanjada da Rocinha e também

dos barracos ou casebres construídos na encosta do condomínio, sendo um deles o do melhor

amigo "Janjão", que ganhou o apelido por fazer dupla com o Pequeno, feito os inseparáveis

Janjão e Pequeno do desenho animado); e também passou nesse pedaço da estrada da vida

de Gabriel um interessantíssimo elenco de amigos da mãe e do padrasto, famosos ou não, de

todos os tipos, contrastando e se igualando com a turminha de amigos anônimos e igualmente

interessantes do pai e da madrasta em Copacabana. Na mesma estrada onde passava, por

outro lado e no mesmo sentido, sua própria família materna com seu jeito mais simples e

conservador de família tijucana.

       Gabriel, mesmo sem se dar conta, ficava observando as diferenças e principalmente as

semelhanças entre aquelas várias espécies de figuras, assim como deve ter percebido, quase

inconscientemente, as relações possíveis e impossíveis entre um baile funk adolescente numa

garagem de ônibus com a presença do tráfico e uma excursão de teenagers brasileiros ao

mundo de Disney com a presença do Mickey.

       No meio disso tudo, no fundo da cena, havia sempre alguma trilha sonora. A música

estava sempre no ar, na vitrola ou no rádio, no carro ou no quarto, na festinha no playground

de alguém ou num pagode improvisado num quintal. Talvez em função da já citada variedade

de ambientes e personagens que fazem parte dessa estória, seu acompanhamento musical era

quase tão variado quanto podia ser num país com tantos gostos diferentes como o nosso. E

isso é gostoso lembrar, porque a música dura mais na nossa memória do que as cenas

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embaladas por ela. E as raízes do som permanecem fincadas pra sempre em qualquer coração

que um dia bateu no seu ritmo.

       Na infância, misturava samba-enredo com MPB e outras coisas tocadas os cantadas pelos

pais de brincadeira, mas nada que se destacasse e o marcasse realmente, até um pouco mais

tarde, quando aconteceu o sucesso fenomenal de Michael Jackson com o Thriller, para o

fascínio de crianças do mundo todo, como se fosse um Harry Potter da época ou algo parecido.

A febre tomou conta do prédio onde morava o Pixote, no Humaitá, e dos outros prédios em

volta, onde os garotos começaram a se juntar para fazer passos de dança e dali a pouco

estavam todos rodando de costas no chão. Era a descoberta do break, a dança inovadora da

cultura hip hop, que ninguém sabia ainda o que era, mas já dava pra notar que era "chocante".

Foi o tempo de ir ao cinema assistir ao Beat Street - na onda do break algumas vezes, e depois

pegar no vídeo pra ver outra vez. Um mundo totalmente novo era mostrado e saboreado, não

só em suas expressões corporais e vocais ou musicais, mas nos muros! Justamente quando o

"Pixote" surgia pra sei lá porque razão idiota sujar os muros e ônibus com suas pichações,

esse filme divulgava a arte proibida dos grafites coloridos nas paredes e nos trens de Nova

York. Não há como negar que isso foi mais um fator de atração do moleque ao que hoje todos

chamam de cultura hip hop - mas diga-se de passagem: pichação é uma coisa (lamentável), já

a arte do grafite é uma outra totalmente diferente.

       E nas rodas de break às vezes pintava um som novo. Gabriel não conseguia rodar de

cabeça pra baixo e nem fazer o "moinho de vento", que eram passos difíceis, e na verdade não

se empenhou muito neste sentido. Preferia tentar traduzir algumas letras das músicas do filme,

e também de outras obras como Breakdance, Breakdance Special e o que mais aparecesse,

aproveitando pra tentar executar uns "scratches", mexendo escondido no prato giratório da

vitrolinha indefesa da mãe. Conhecia então o rap, a música falada e rimada em cima das bases

com batidas eletrônicas, nas vozes de Grandmaster Flash, Kurtis Blow, Doug E Fresh, e até do

iniciante Ice-T, e já curtia entender o que os caras cantavam e a estrutura das rimas, mas não

sabia o nome de ninguém nem tinha um rapper preferido. Depois andou ouvindo muito o

chamado funk dos bailes cariocas da época, que era bem melhor do que o que é feito hoje, no

que se refere à qualidade da produção musical, e a maioria das músicas era americana

mesmo, ou versões em português em cima das bases instrumentais originais. A fonte no fundo

era mais ou menos a mesma, a nova música negra americana, a batida eletrônica do hip hop,

mas de uma vertente específica, conhecida mais na frente por aqui como Miami Bass. Quando

saiu de Humaitá para morar na Lagoa, Gabriel não tinha mais amigos envolvidos com o break

ou o rap. E continuou ouvindo tudo que ouvia desde antes, e que não tinha deixado de curtir só

por causa de sua admiração pelo som do Beat Street e etc.

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       Legião Urbana, Titãs, Blitz, Paralamas do Sucesso e Ultraje a Rigor, só pra citar os mais

ouvidos no rádio e em disco, fizeram parte desse mosaico auditivo junto com tantos outros que

estavam ou estiveram estourados nas rádios, como o Lobão, o Léo Jaime, várias bandas do

nosso rock dos anos 80, além de tudo mais que pintasse nos festivais de TV ou nas trilhas de

novela ou de cinema e agradasse. Desde Fábio Júnior com seus 20 e poucos anos até Camisa

de Vênus e o "eu não matei Joana D'arc", passando por um disco do Queen aqui, um do U2 ali,

outro do The Cure acolá e por aí ia. Os presentes que o menimo Gabriel mais gostava de

receber eram revistinhas em quadrinhos e discos, embora não ganhasse tantos discos assim,

mas gostava, principalmente por volta da época do primeiro Rock in Rio, quando juntou alguns

LPs de coletâneas diversas a seus velhos discos de criança Os Saltimbancos, do Chico

Buarque, e Arca de Noé, do Vinicius de Moraes. Antes de ganhar suas primeiras bolachas, já

ouvia as do pai e as da mãe, por iniciativa própria ou não, conhecendo assim um pouquinho de

nada de MPB, só de leve, coisas como Gonzaguinha, Caetano, esses monstros sagrados, que

só iriam entusiasmar os seus ouvidos e tocar pra valer uns aninhos depois.

       Nessa salada maluca, sempre que possível Gabriel prestava mais atenção às letras do

que ao resto, fossem as comédias musicadas do Eduardo Dusek ou o som mágico das

guitarras do Dire Straights, traduzindo como podia o que era em inglês e entendendo como

podia o que era em português, o que deve explicar o fato de ele nunca ter tido vontade de

aprender a tocar um instrumento qualquer. Gostava de escrever redações no colégio e de

desenhar, às vezes inventando uma ou outra estória em quadrinhos com textos. Volta e meia

fazia suas próprias versões para letras de músicas que ouvia, e nessa brincadeira acabou

criando também algumas músicas inéditas, com letra e melodia, que gravou numa fitinha

cassete. Isto foi quando estudava no Senador Correia, onde cursou a quinta série, e uma das

músicas foi a tal inspirada na pitoresca "ocorrência" das Lojas Americanas. Esta música ficou

na cabeça de alguns colegas do Pixote, que a inscreveram no Sarau do colégio no ano

seguinte, quando ele já tinha ido pro Andrews. E os desgraçados não fizeram nem um esforço

para localizá-lo e avisá-lo do concurso, o que foi uma pena, pois só mesmo muitos anos mais

tarde Gabriel ficou sabendo que a sua música tinha sido a grande campeã do Sarau, cantada e

tocada por seus ex-colegas, que pelo menos não deixaram de dizer pra galera que aquela era

a música do Pixote, se bem que a letra já deixava isso bem claro.

       Uma curiosidade: uma das músicas concorrentes, que falava sobre o sumiço (fictício) da

chave do colégio e havia sido criada e apresentada por uma menina chamada Ana Célia, ficou

em segundo lugar na votação, que era feita através da medição (visual e auditiva mesmo) dos

aplausos. Quando anunciaram a vitória da composição do Pixote, essa menina se lembrava

vagamente do moleque, pois já o tinha visto num dia do outro ano, quando quis saber quem era

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o culpado pela mudança nas regras restringindo a sagrada saída no recreio e lhe apontaram o

próprio, que distraidamente jogava seu futebol. Nem ele nem ela poderiam imaginar que no

futuro se conheceriam, se apaixonariam e formariam um casal, e que entre outras coisas

maravilhosas como beijo, cafuné e criança, iriam passar a fazer também música juntos. Coisas

do destino.

       Além da música vencedora, Gabriel tinha feito outras quatro, sendo que uma delas,

chamada Prefeito vagabundo, também ficou entre as primeiras colocadas no mesmo Sarau. E

ninguém avisou nada pro Pixote. Sacanagem!

       Talvez se tivesse sabido do sucesso dessas musiquinhas que tinha feito aos onze anos

em forma de brincadeira, Gabriel continuasse pensando mais em música aos doze, aos treze e

aos quatorze, mas não. Nessa altura o Pequeno tinha ido pra São Conrado e só queria surfar e

praticar esportes, sem deixar de escrever redações elogiadas na escola, mas não muito mais

do que isso. Ouvia muita música, como sempre, principalmente do Run DMC e dos Beastie

Boys, numa mesma fitinha cassete que fazia os alto-falantes pedirem arrego. Ouvia tanta coisa

e gostava de muita também, mas aquela estória de fazer musiquinhas tinha sido mesmo um

momento isolado e esquecido até então; e mesmo que ainda tenha chegado a fazer umas

rimas satirizando colegas na sala de aula e fazendo os amigos cairem na risada, ou alguma

outra coisa parecida em São Conrado que o Janjão até hoje diz que lembra e o Pequeno nem

consegue mais achar na memória, a verdade é que a música não era nem de longe um objetivo

na mente do garoto. Mas também não havia nenhum outro grande objetivo por lá. Era cedo

para isso.

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Cachimbo da PazGabriel PensadorA criminalidade toma conta da cidadeA sociedade põe a culpa nas autoridadesUm cacique oficial viajou pro PantanalPorque aqui a violência tá demaisE lá encontrou um velho índio que usava um fio dentalE fumava um cachimbo da pazO presidente deu um tapa no cachimbo e na horaDe voltar pra capital ficou com preguiçaTrocou seu paletó pelo fio dental e nomeouO velho índio pra ministro da justiçaE o novo ministro chegando na cidade,Achou aquela tribo violenta demaisViu que todo cara-pálida vivia atrás das gradesE chamou a TV e os jornaisE disse: "Índio chegou trazendo novidadeÍndio trouxe o cachimbo da pazMaresia, sente a maresiamaresia, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistolaManda a fumaça do cachimbo pra cacholaAcende, puxa, prende, passaÍndio quer cachimbo, índio quer fazer fumaçaTodo mundo experimenta o cachimbo da florestaDizem que é do bom, dizem que não prestaQuerem proibir, querem liberarE a polêmica chegou até o congressoTudo isso deve ser pra evitar a concorrênciaPorque não é Hollywood mas é o sucessoO cachimbo da paz deixou o povo mais tranqüiloMas o fumo acabou porque só tinha oitenta quilosE o povo aplaudiu quando o índio partiu pra selvaE prometeu voltar com uma toneladaSó que quando ele voltou "sujou"!!!A polícia federal preparou uma cilada"O cachimbo da paz foi proibido, entra na caçamba vagabundo!Vamô pra DP! Ê êê! Índio tá fudido porque lá o pauVai comer!"Maresia, sente a maresiamaresia, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistolaManda a fumaça do cachimbo pra cacholaAcende, puxa, prende, passaÍndio quer cachimbo, índio quer fazer fumaçaNa delegacia só tinha viciado e delinquenteCada um com um vício e um caso diferenteUm cachaceiro esfaqueou o dono do bar porque eleNão vendia pinga fiadoE um senhor bebeu uísque demais, acordou com um travestíE assassinou o coitadoUm viciado no jogo apostou a mulher, perdeu a apostaE ela foi sequestradaEra tanta ocorrência, tanta violência que o índioNão tava entendendo nadaEle viu que o delegado fumava um charuto fedorentoE acendeu um "da paz" pra relaxarMas quando foi dar um tapinhaLevou um tapão violento e um chute naquele lugar

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Foi mandado pro presídio e no caminho assistiu umAcidente provocado por excesso de cerveja:Uma jovem que bebeu demais atropelouUm padre e os noivos na porta da igrejaE pro índio nada mais faz sentidoCom tantas drogas porque só o seu cachimbo é proibido?Maresia, sente a maresiamaresia, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistolaManda a fumaça do cachimbo pra cacholaAcende, puxa, prende, passaÍndio quer cachimbo, índio quer fazer fumaçaNa penitenciária o "índio fora da lei"Conheceu os criminosos de verdadeEntrando, saindo e voltando cada vez maisPerigosos pra sociedade, aí, cumpádi, tá rolandoUm sorteio na prisão pra reduzir a super lotaçãoTodo mês alguns presos tem que ser executadosE o índio dessa vez foi um dos sorteadosE tentou acalmar os outros presos:"Peraí..., vamo fumar um cachimbinho da paz"Eles começaram a rir e espancaram o velho índioAté não poder mais e antes de morrer ele pensou:"Essa tribo é atrasada demais...Eles querem acabar com a violência,mas a paz é contra a lei e a lei é contra a paz"E o cachimbo do índio continua proibido mas se você quer comprar é mais fácil que pãoHoje em dia ele é vendido pelos mesmos bandidos que mataram O velho índio na prisãoMaresia, sente a maresiamaresia, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistolaManda a fumaça do cachimbo pra cacholaAcende, puxa, prende, passaÍndio quer cachimbo, índio quer fazer fumaçaMaresia, sente a maresiamaresia, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistolaSente a marisiaÍndio quer cachimbo, índio quer fazer fumaçaApaga a fumaça do revólver, da pistolaSente a marisia, acende, puxa, prende, passa, uuu...Apaga a fumaça do revólver, da pistola