G. K. Chesterton - Hereges

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  • G.K. CHESTERTON

    HEREGES

    3 edio

    traduo e notasAntnio Emlio Angueth de Arajo

    Mrcia Xavier de Brito

    prefcio 2 edioAntnio Emlio Angueth de Arajo

    apresentaoIves Gandra da Silva Martins Filho

    posfcioJames V. Schall S.J.

  • Ao meu paiG.K. Chesterton

  • Sumrio

    CapaFolha de RostoDedicatriaPrefcio 2 edio | G.K. Chesterton e os hereges Antnio Emlio Angueth de Arajo

    1. Quem foi G.K. Chesterton2. Os hereges acusados por Chesterton3. O que levou Chesterton a escrever Hereges4. A atualidade de Hereges

    Apresentao | Hereges e G.K. Chesterton Ives Gandra da Silva Martins FilhoSobre a traduo e as notasI. Observaes iniciais sobre a importncia da OrtodoxiaII. O esprito negativistaIII. O Sr Rudyard Kipling e a criao de um mundo menorIV. O Sr Bernard ShawV. O Sr H.G. Wells e os gigantesVI. O Natal e os estetasVII. Omar e a vinha sagradaVIII. A brandura da imprensa marromIX. A impertinncia do Sr George MooreX. Sobre sandlias e simplicidadeXI. A cincia e os selvagensXII. O paganismo e o Sr Lowes DickinsonXIII. Os celtas e os celtfilosXIV. Alguns escritores modernos e a instituio da famliaXV. Os escritores espirituosos e a alta sociedadeXVI. O Sr McCabe e a divina futilidadeXVII. A ironia de WhistlerXVIII. A falcia da jovem naoXIX. Os romancistas dos bairros pobres e os necessitadosXX. Observaes finais sobre a importncia da OrtodoxiaPosfcio | Doutrina e dignidade: de Hereges a Ortodoxia James V. Schall, S.J.

    Pensar: uma ocupao perigosaQuem sero nossos mestres?Levando em conta o credoChesterton e o paradoxoA alegria final

    CrditosSobre a obra

  • PREFCIO 2 EDIO

  • G.K. Chesterton e os hereges

    1. Quem foi G.K. Chesterton

    Imagine um homem vivendo na segunda metade do sculo XIX, primeira metade do sculo XX, naInglaterra anglicana, em tempos de um racionalismo extremo, em que desabrochava o que Pe LeonelFranca veio a chamar, mais tarde, de atesmo militante. Imagine tambm que este homem sejacatlico, defensor ardoroso do Papa, grande admirador da Idade Mdia, grande crtico tanto docapitalismo quanto do comunismo. Imagine um homem volumoso e de talento extraordinrio quetodos, mesmo seus maiores adversrios, admiravam profundamente. Imagine esse homem atraindo ointeresse do mundo anglofnico por dcadas, com sua extraordinria produo literria: 80 livros,centenas de poemas, umas 200 novelas, 4000 ensaios e diversas peas teatrais. Comeamos a ter umaplida idia de quem foi Gilbert Keith Chesterton.

    Ele no foi um telogo, apesar de nos ter deixado as biografias de So Francisco de Assis e de SantoToms de Aquino, com comentrios teolgicos que demonstravam um profundo conhecimento dasgrandes questes da Doutrina Sagrada. Desta ltima biografia, tienne Gilson dizia:

    Considero, sem comparao alguma, que o melhor livro jamais escrito sobre Santo Toms. S um gnio podia fazer algo assim.Todo o mundo admitir, sem nenhuma dvida, que se trata de um livro inteligente; mas os poucos leitores que tiverem passadovinte ou trinta anos estudando Santo Toms de Aquino e publicado dois ou trs volumes sobre o tema tero de reconhecer que achispa de gnio de Chesterton lhes deixou a erudio ao rs do cho. Tudo o que eles tentavam expressar desajeitadamente emfrmulas acadmicas foi expressado por Chesterton.

    Chesterton tambm no foi um exegeta, mas nos deixou surpreendentes comentrios bblicos comoIntroduo ao Livro de J, cuja originalidade pode ser avaliada por trechos como este:

    A idia central de grande parte do Antigo Testamento pode ser chamada de idia da solido de Deus. Deus no somente oprincipal personagem do Antigo Testamento; Deus propriamente o nico personagem do Antigo Testamento. Comparadas suaclareza de propsitos, todas as outras vontades so pesadas e automticas, como aquelas dos animais; comparados Suarealidade, todos os filhos da carne so sombras.

    Tampouco foi Chesterton um economista, mas ningum que leia The Outline of Sanity deixa deaprender muitas coisas sobre economia e, sobretudo, sobre capitalismo e comunismo. No primeiropargrafo desse livro, h um trecho que j nos prepara para o que vem a seguir. Comentando sobrepropriedade privada, diz Chesterton:

    Um batedor de carteiras , obviamente, um campeo da empresa privada. Mas seria talvez um exagero dizer que um batedor decarteiras fosse um campeo da propriedade privada. A questo sobre o capitalismo atual que se prega realmente a extenso dosnegcios em vez da extenso das propriedades; e tem-se disfarado o batedor de carteiras com algumas das virtudes do pirata. Aquesto sobre o comunismo que ele somente cobe o batedor de carteiras pela proibio das carteiras.

    Ele est longe de ter sido um historiador, mas uma de suas obras-primas esboa toda a histria dohomem na Terra, O Homem Eterno.

    Filsofo ele tambm no foi. Mas escreveu tanto sobre filosofia que possvel compreender muitasdas grandes questes filosficas pela leitura de sua obra. Um exemplo disso o texto O Ressurgimentoda Filosofia Por qu? Outro exemplo The Approach to Thomism, que deve ser lido como umapequena, mas valiosa, introduo aos estudos tomistas.

  • Quem era ento G.K. Chesterton? Bem, respondamos logo: um grande escritor. J seria suficientepara qualquer um. Mas ele foi muito mais. Foi uma criana, com todo o frescor e contentamento dainfncia, em meio a adultos carrancudos e corrompidos. Foi um homem medieval vivendo no ps-Iluminismo. Foi um catlico em meio a um novo tipo de paganismo, o paganismo cientificista.

    Dele dizia Gustavo Coro:Quero dizer que a inteligncia que se interesse, hoje, por entrar em contato com as realidades mais significativas da culturauniversal, que deseje vivamente estar inserida nesse hoje do mundo, no pode deixar de lado, como pea meramente acessria, equi intil, a imensa obra de Gilbert Keith Chesterton.

    Dale Ahlquist, presidente da American Chesterton Society, acrescenta:Mas, mesmo que Chesterton j no seja ensinado nas escolas, voc no pode considerar-se educado enquanto no ler Chestertoncompletamente. Alm disso, ler toda a obra de Chesterton por si s uma educao quase completa. Chesterton realmente umprofessor, e dos melhores. Ele no ir somente surpreend-lo. No ir operar apenas o prodgio de faz-lo pensar. Ele ir maisalm: far voc rir.

    Talvez seja essa a nota essencial em Chesterton. Sua obra to monumental que , de fato, umprograma de estudos para a compreenso do mundo. Mas so estudos divertidos, com um professorespirituoso. So estudos, sobretudo, a ser empreendidos pelo homem comum, pois eles restabeleceroneste homem o senso comum. Chesterton j foi chamado de apstolo do senso comum. Sensocomum , segundo Marcel de Corte,

    reconhecer-se dependente em face da realidade e do seu Princpio transcendente; confessar, ao menos implicitamente, o laonupcial que une o ser do homem ao ser universal e sua Causa.

    E por que isso to importante? De Corte completa:eis a condio essencial imposta ao exerccio da inteligncia.

    E por que re-estabelecer? Porque, como ensina esse filsofo,foi no sculo XVIII que se romperam de todo as relaes entre a inteligncia e o real, e entre o homem e o universo.

    Assim, sem o senso comum a inteligncia se perde e por isso to importante ler o apstolo dosenso comum.

    Os leitores brasileiros tm ao seu dispor algumas obras traduzidas do escritor. Podem-se encontrarOrtodoxia (obra-prima sobre sua converso ao catolicismo), as vrias histrias do Pe Brown (seu maisconhecido personagem, um padre-detetive, um metafsico a lidar com crimes misteriosos), O Homemque Foi Quinta-Feira, Santo Toms de Aquino, So Francisco de Assis (as duas biografiasmemorveis). Em sebos, os leitores interessados encontram O Homem Eterno, A Volta de DomQuixote (uma deliciosa novela em defesa da Idade Mdia), Doze Tipos (crtica literria), O Homem deDuas Barbas, etc. A lista no grande, mas possvel comear a conhecer esse grande escritor.

    Em ingls, quase toda a obra de Chesterton j est em domnio pblico em muitos pases e pode sersimplesmente conseguida diretamente pela internet. A Ignatius Press tem publicado pouco a poucosua obra; ela j chega a mais de 40 volumes.

    Hereges parece nunca ter sido traduzido para o portugus at ento.

  • 2. Os hereges acusados por Chesterton

    Hereges um dos principais livros escritos por Chesterton. Na introduo de Ortodoxia, sua obra-prima, o autor afirma que aquele livro um complemento de Hereges. Assim, a precedncia deHereges estava clara para Chesterton.

    Hereges teve um destino muito diferente do de Ortodoxia e isso talvez possa ser explicado pelottulo. H que se admitir que nenhum dos dois ttulos soa bem aos ouvidos do homem moderno, filhodo Iluminismo, da Revoluo Francesa, do ceticismo e cientificismo dos sculos XIX e XX. Contudo, apalavra herege traz mente dos modernos as imagens de uma das mentiras mais bem-sucedidas dahistria da humanidade: aquela que pinta a Idade Mdia como Idade das Trevas, em que seiluminavam apenas com a luz das fogueiras onde a Igreja assava os hereges. Assim, o ttulo escolhidopor Chesterton pode ter afastado leitores de to importante obra. Tivesse Chesterton escolhido outrottulo, este livro teria sido to aclamado e lido quanto Ortodoxia. Para o gosto moderno o ttulo idealseria algo como Dilogo com meus contemporneos. Este seria um ttulo palatvel para o gostopoliticamente correto atual.

    De qualquer forma, hereges so todos os ditos intelectuais analisados por Chesterton. So eleshereges no sentido catlico do termo, sentido do qual me ocuparei mais abaixo. Antes, todavia, deveser observado que Chesterton escreve o livro anos antes de se converter ao catolicismo, o que surpreendente, e transforma o livro num testemunho do caminho trilhado pelo autor at que PadreOConnor o batize e lhe ministre a Primeira Comunho. A fogueira que o pr-catlico Chestertonprepara para seus contemporneos monumental. inegvel que ela seja uma fogueira medieval, poiso prprio autor admite que da Idade Mdia, diria eu, da Alta Idade Mdia, que ele se dirige aoshereges de seu tempo. inegvel tambm que ela envolva e queime os que nela so colocados, poisningum sai dela com a aparente vivacidade com que entrou. E, finalmente, inegvel que elapurifique. Ela purifica sobretudo quem assiste aos hereges crepitando no genial caldeirochestertoniano.

    O grande escritor Hilaire Belloc, contemporneo e amigo de Chesterton, escreve em As GrandesHeresias:

    Heresia significa, ento, distorcer um sistema por meio de uma omisso: escolhendo-se uma parte da estrutura, o que implicaque o esquema desfigurado pela retirada de uma de suas partes, negando-se uma parte dele, quer deixando o vazio sempreenchimento, quer preenchendo-o com alguma outra afirmao.

    Esta definio geral pode ser aplicada doutrina catlica e segue que, como diz Belloc:Seu significado particular o de desfigurar por excluso algo daquele sistema completo, a religio crist.

    Desta forma, os hereges que so combatidos por Chesterton subscrevem um corpo doutrinal que uma distoro ou uma omisso de um ou mais aspectos da doutrina multimilenar catlica. O espritoque move Chesterton magnificamente resumido na seguinte frase:

    No estou preocupado com o Sr Bernard Shaw como o homem vivo mais brilhante e um dos mais honestos; estou preocupadocom ele como um herege isto , um homem cuja filosofia muito slida, muito coerente, e muito errada.

    Este sempre o estilo chestertoniano: elogiar o adversrio no que ele tem de elogivel e combatersua doutrina filosfica no que ela tem de hertica.

    Entendamos a ousadia do jovem Chesterton, com apenas 31 anos de idade, lanando-se num combateintelectual e doutrinrio com seus contemporneos mais ilustres, entre os quais Bernard Shaw 20anos mais velho , H.G. Wells 10 anos mais velho , Rudyard Kipling 10 anos mais velho , JamesWhistler 40 anos mais velho e morto dois anos antes do lanamento do livro. H muitos outros

  • hereges de menor expresso que so devidamente analisados no livro.

  • 3. O que levou Chesterton a escrever Hereges

    Talvez no fosse de todo inoportuno nos deixar conduzir pelo prprio Chesterton no caminho que olevou at o presente livro.

    De tanto freqentar clubes literrios na Londres fin de sicle, clubes estes onde se promoviamdebates sobre as modas intelectuais da poca, ele comeou a chegar a algumas concluses. Eis aprimeira delas, sobre a qual ele nos conta em sua Autobiografia:

    A intelligentsia dos vagamente artsticos e anrquicos clubes constitua realmente um mundo estranho. E a coisa mais estranhasobre esse mundo, imagino, era que, enquanto ele pensava muito sobre o pensamento, ele realmente no pensava. Tudo pareciavir de segunda ou terceira mo; de Nietzsche ou Tolsti, de Ibsen ou Shaw; e havia uma agradvel atmosfera de discusso detodas as coisas, sem qualquer particular senso de responsabilidade de se chegar a qualquer concluso sobre elas.

    Chesterton comeava a notar que o ambiente intelectual reinante tinha abandonado o senso comum eo tinha substitudo por uma atmosfera agradvel. Tudo comeava a ser aparncia; a realidade dascoisas passava ao segundo plano.

    Ora, exatamente dos membros da intelligentsia surgiam duas tendncias que se abrigavam sob onome de emancipao da f, dos credos e dos dogmas. Para tal emancipao era necessrio criaruma religio para os homens razoveis. Estes se dividiam, segundo Chesterton, entre o tesmoidealista porque Deus est no Cu, tudo deve estar certo na Terra e o atesmo realista como noexiste Deus, tudo est errado na Terra.

    O que Chesterton observa com espanto que os dois grupos eram aliados. Mas ele pergunta: aliadoscontra qu? A genialidade de Chesterton foi descobrir a verdadeira natureza dos dois grupos:

    Para minha mente simplria, parecia que no poderia haver conexo, exceto contradio, entre o homem que tinha f naPaternidade de Deus, e o homem que dizia que no havia Deus ou o homem que dizia que Deus no era Pai. Para minha menteinocente, essas duas idias pareciam um pouco inconsistentes. Eu ainda no tinha descoberto a sntese superior que as conectava.Pois a sntese superior que as conectava consistia em usar gravatas liberty, barbas e chapus em formas curiosas e em se reunirem clubes culturais onde se bebia caf e (em esconderijos mais escuros e infames) suco de cacau. Esses doutrinadores cticos nose reconheciam por meio das doutrinas. Eles se reconheciam pela barba e pelo vesturio, como os animais inferiores sereconhecem pelo plo ou pelo cheiro.

    Eis a forma devastadora com que Chesterton descreve, em sua Autobiografia, a intelligentsia da suapoca. De novo, a atmosfera agradvel substitui o senso comum, que nos difere dos animaisinferiores.

    A partir dessas observaes possvel perceber como a autoridade dos intelectuais foi sendodesintegrada para Chesterton, sobretudo dos intelectuais doutrinadores, que estavam imbudos de umamisso doutrinal, no importando a rea de atuao de cada um. So desses intelectuais que ele seocupa no presente livro.

    Veio ento, em 1903-04, a tremenda batalha travada entre Chesterton e Robert Blatchford.Blatchford escrevera um livro intitulado Deus e Meu Prximo, que era um Credo racionalista, ao estilodo sculo que acabara havia pouco tempo. Como editor do jornal Clarion, Blatchford generosamenteabriu as pginas do jornal para os que dele discordavam, entre os quais, e principalmente, se incluaG.K. Chesterton. Os textos do grupo liderado por Chesterton acabaram sendo publicados num volumeintitulado As Dvidas da Democracia, mas os textos de Chesterton foram depois reunidos epublicados, pela Ignatius Press, sob o ttulo Controvrsias com Blatchford. So quatro ensaios em queo autor afia magistralmente sua espada, que ser usada com toda a preciso em Hereges, em 1905.Podem-se escutar os ecos do debate com Blatchford tanto em Hereges quanto em Ortodoxia. As idiasque Chesterton desenvolve no calor da batalha no Clarion so, nestes dois livros, lapidadas,

  • desenvolvidas, consolidadas.Para se ter uma idia do quanto foram importantes esses embates intelectuais para a maturao das

    principais idias de Chesterton, basta ler em Ortodoxia a seguinte afirmao, que a muitos podeparecer uma frase de efeito:

    Li a literatura ctica e cientfica do meu tempo nada li de qualquer cunho filosfico. As obras sensacionalistas que tambm lipertenciam de fato a uma tradio herica e sadia do cristianismo; mas eu no sabia disso naquele tempo. Nunca li uma linha deapologtica crist. Leio o menos possvel disso atualmente. Foram Huxley, Herbert Spencer e Bradlaugh que me trouxeram devolta teologia ortodoxa.

    Ora, os leitores de Hereges vo compreender perfeitamente o que Chesterton diz a. Foi no combatecom os intelectuais doutrinadores de seu tempo que ele foi descobrindo que a teologia ortodoxa, queestes procuram desacreditar ou substituir, era, de fato, a nica s doutrina. Na realidade, era a nicaarma contra tais doutrinadores, como sempre tinha sido contra todos os tipos de heresia. Em certosentido, Chesterton foi convertido pelos hereges. Este s mais um dos muitos e admirveisparadoxos chestertonianos.

  • 4. A atualidade de Hereges

    Pode-se perguntar se Hereges um livro atual, se o leitor moderno ganha alguma coisa ao l-lo,depois de mais de um sculo de sua publicao. A resposta que Hereges mais atual hoje do quequando foi escrito. De l para c os hereges s cresceram em nmero. A intelligentsia hoje comanda omundo; no s o mundo das idias, mas o poltico, o financeiro, o social, o intelectual e o religioso.Estamos cercados de hereges por todos os lados, hereges s vezes muito menos capazes, mas muitomais eficazes do que os anteriores. Mais eficazes porque hoje estamos mais isolados das razes da sdoutrina do que estavam Chesterton e seus contemporneos. Mais eficazes porque a mdia se tornouonipresente e onipotente, e os hereges controlam a mdia mundial. Mais eficazes porque hoje osistema educacional, praticamente sem exceo, controlado por eles. Por isso, em certo sentido, aleitura de Hereges hoje obrigatria.

    H obras atuais que se assemelham a Hereges, em sua combatividade e no alvo do combate, apesarde diferirem no mtodo, no estilo e no ponto de partida. Cito apenas quatro, dentre muitas. No Brasildois livros se destacam. A Invaso Vertical dos Brbaros, de Mrio Ferreira dos Santos, descreve oataque da intelligentsia de que fala Chesterton que o autor chama de brbaros ao ncleo central dadoutrina crist que fundamentou a Civilizao Ocidental. O Imbecil Coletivo, de Olavo de Carvalho, um clamor de sanidade em meio loucura ambiente. Nos EUA, The Vision of the Anointed [A Visodos Ungidos], de Thomas Sowell, uma descrio objetiva da casta da intelligentsia que controla apoltica, a justia e a economia americanas. A obra explica as estratgias de controle usadas pelosungidos para nos controlar, ns que somos os brbaros. Na Inglaterra, Os Intelectuais, de PaulJohnson, narra as idias e a vida de alguns dos grandes intelectuais desde o Iluminismo, e mostra oquanto a vida est distante das idias, o quanto a vida nega os ideais defendidos nos seus escritos.

    Mas a leitura dessas obras modernas, embora aconselhvel, no substitui a leitura de Hereges, pois oponto de vista do combate diferente. Hereges um combate da Idade Mdia, a Idade das Trevascomo querem seus detratores modernos, contra a Idade das Luzes. O resultado que no h luzes naIdade das Luzes. Dito de outra forma, frente s luzes da Idade Mdia, a Idade das Luzes mostra toda asua escurido.

    Hereges um combate da grande civilizao crist contra seus inimigos modernos. Estes inimigosno querem apenas defender um lugar ao sol, no querem apenas formular uma viso de mundoalternativa viso crist.

    Belloc, nAs Grandes Heresias, profeticamente descreveu estes inimigos que agora, neste momentoem que vivemos, percebemos se movimentar entre ns:

    E o inimigo que agora avana contra ns est cada vez mais consciente do fato de que no pode haver neutralidade na luta. Asforas agora se opem f para destru-la. A batalha se d, daqui em diante, segundo uma linha de clivagem bem definida,envolvendo a sobrevivncia ou a destruio da Igreja Catlica. E toda no apenas uma parte de sua filosofia.

    Hereges o combate de um homem contra esse inimigo. um documento de inestimvel valor quepor isso merece de ns a mxima ateno.

    Belo Horizonte, abril de 2010Antnio Emlio Angueth de Arajo

  • APRESENTAO

  • Hereges e G.K. Chesterton

    SE VOC EST DEPRIMIDO por alguma circunstncia, chateado com algum ou pessimista em relao vida e suas perspectivas, pode lanar mo de diferentes expedientes para recuperar a alegria de viverou ento afogar as mgoas e esquecer os problemas: tomar um ansioltico ou uns tragos com osamigos, descontar nos outros as prprias frustraes ou ter um bom livro mo, que mude o modode ver o mundo, as pessoas e a existncia.

    Um desses autores que tem a capacidade de resgate do lan vital, uma vez que seus livros, sem seremde auto-ajuda pois sequer esse conceito existia na poca em que escreveu , transbordam deotimismo, o jornalista ingls Gilbert Keith Chesterton, que se notabilizou no incio do sculo XXcomo polemista e verdadeiro cultor da arte dialtica, que esgrimia com rara destreza, sendo conhecidopelo freqente uso do paradoxo para desmontar falsos argumentos e apresentar verdades incmodas ouaparentemente incompreensveis.

    Sua figura grande e redonda, seu sorriso cndido e sincero, sua distrada postura a esconder umafulgurante vivacidade de raciocnio lembravam o inigualvel Doutor Anglico medieval, ambosgigantes do realismo filosfico, que mostra a vida como ela , em todas as suas grandezas e misrias,mas apontando para um saldo altamente positivo. Para isso, faz-se necessrio mostrar o erro daquelesque a encaram com desprezo, desespero ou pessimismo.

    H um paralelismo entre as duas grandes obras de Santo Toms de Aquino e duas das obras-primasde Chesterton. Na Summa Theologiae, o Doutor Anglico, partindo da Revelao e utilizando aFilosofia como ferramenta, vai aprofundando e explicando a f crist, naturalmente para um pblicode cristos familiarizados com as Escrituras e a prpria filosofia aristotlica. No entanto, em suaSumma contra Gentiles, Santo Toms parte de uma perspectiva distinta, qual seja, a do leitor pago,muulmano ou judeu, que no comunga da mesma f. Da que v argumentando a partir dos eventuaispreconceitos existentes, para, desfazendo-os, poder mostrar que a f crist no repugna razo nemcorresponde a muitas falsas idias que se tm dela. Em suma, comea por destruir preconceitosinfundados para depois construir os conceitos corretos.

    Da mesma forma, h uma ligao estreita entre Hereges e Ortodoxia de Chesterton. Ao escrever oprimeiro livro, atacando com firmeza e destreza as doutrinas filosficas em voga na Inglaterra de seutempo, foi contestado por um tal Sr G.S. Street. Assim o refere a iniciar o Ortodoxia:

    A nica desculpa possvel para este livro o fato de ser ele a resposta a um desafio. Um atirador, por pior que seja, torna-sedigno de respeito quando aceita um duelo. Quando, h algum tempo, publiquei, sob o ttulo de Hereges, uma srie de ensaiosescritos apressadamente porm com sinceridade, alguns crticos, cuja inteligncia admiro (refiro-me especialmente ao Sr G.S.Street), declararam que eu incitava todos a tornarem pblicas suas teorias sobre os problemas csmicos, mas evitava,cautelosamente, apoiar meus preceitos com o exemplo. Comearei a me inquietar com minha filosofia disse, nessa ocasio, oSr Street quando o Sr Chesterton nos tiver apresentado a sua. Era, talvez, uma imprudente sugesto feita a quem est semprepreparado para escrever um livro mais leve provocao. Apesar de tudo, embora o Sr Street tenha inspirado e criado este livro,no necessrio que ele o leia. No entanto, se o fizer, ter a oportunidade de verificar que me esforcei por apresentar nestaspginas, de forma vaga e pessoal por intermdio de uma srie de imagens mentais mais do que por uma seqncia de dedues, aquela filosofia na qual acabei por acreditar. No a chamarei de minha filosofia, porque no fui eu quem a fez. Deus e aHumanidade a fizeram; ela me fez a mim.

    A primeira edio brasileira de Ortodoxia foi por ns organizada e publicada em 2001, na qual, ao

  • traarmos uma biografia de Chesterton, falvamos do livro que hoje nos cabe prefaciar em suatambm 1 edio brasileira:

    Chesterton publica em 1905 um livro que cair como uma bomba nos meios intelectuais ingleses: trata-se de Heretics [Hereges],obra em que ataca, com fino humor e numa lgica desconcertante, todos os dolos literrios da poca, por considerar que, atravsdeles, se est dando o envenenamento intelectual de toda uma gerao. Assim, condena como hereges a George Moore, pelo seusubjetivismo tico, a Bernard Shaw, por seu socialismo desumanizador, a Rudyard Kipling, por seu imperialismo discriminatrio,a H.G. Wells, por seu historicismo naturalista, e a Oscar Wilde, por seu esteticismo atico. Nem os amigos escapam de sua pena,que esgrime, sem ira, a defesa de algo que j comeava a delinear em sua mente: uma concepo global do mundo, plasmadanuma filosofia ou religio, que norteasse os aspectos dspares destacados pelos vrios literatos que combate, por seremreducionistas da realidade, que muito mais rica do que as teorias por eles propostas. Comea j a falar da teologia geral crist,que muitos odeiam e poucos estudam, e que principia a lhe servir de norte para suas meditaes. Hereges termina por consagrarChesterton, fazendo com que todos, concordem ou no com suas idias, sintam-se na obrigao de l-lo e critic-lo em suasresenhas jornalsticas. O segredo da popularidade desse jovem jornalista a fora da sua autenticidade, que defende aquilo emque realmente acredita e no por mera retrica ou interesse pessoal.

    Chesterton sabia separar os erros daqueles que erram, as idias de seus mentores, atacando aquelas erespeitando estes. A prova de que nunca levava as crticas para o campo pessoal o fato de que muitosdos escritores atacados em Hereges eram seus amigos e com eles se deliciava em debates, como nocaso de Bernard Shaw, com quem tinha um programa de rdio na BBC de Londres, fazendo o pblicodo auditrio chorar de rir diante dos sutis achincalhes que Chesterton dava nas teorias pessimistas doamigo e da reao bem britnica de Shaw, meio rabugento, meio atordoado. Ambos chegaram aestrelar juntos, no comeo dos anos 20 do sculo passado, um filme de cowboys dirigido por JamesBarrie, autor de Peter Pan

    A relao estreita entre Hereges (1905) e Ortodoxia (1908) , portanto, patente. E a trilogia de obrasprimas de Chesterton se completa com O Homem Eterno (1925). O itinerrio intelectual e espiritual deChesterton bem visualizado nessas trs grandes obras. E poderemos segui-lo.

    Nascido em Londres a 29 de maio de 1874, filho de Edward Chesterton e Marie Louise Keith, Gilbertteve uma infncia marcada pela alegria constante do meio familiar: uma casa sempre cheia de primose amigos, povoada de fadas, gnomos e duendes do teatro de marionetes com que seu pai, aposentadoprecocemente por uma doena cardaca, divertia as crianas, a ponto de a me de Chesterton chegar adizer que tinha, na verdade, trs filhos.

    Essa alegria infantil contrastada com o ambiente severo e formal do colgio, onde se destacoucomo polemista no Junior Debating Club (1890), e acabou por dar lugar ao agnosticismo, talveznascente na Escola de Arte na qual ingressou em 1892, mas certamente maturado durante os anos detrabalho de revisor em editoras londrinas, nos quais chegou a ler mais de 10.000 originais de romancese ensaios, angariando uma cultura enciclopdica, graas sua prodigiosa memria, mas,concomitantemente, uma descrena no racionalismo vigente.

    Em 1896, conhece, atravs de um amigo, a sua futura esposa, Frances Blogg, pela qual se apaixona jno primeiro encontro, esquecendo todos os demais que esto sua volta. As disparidades entre os doisno poderiam ser maiores: ele com 22 e ela com 27 anos; ele com 1,96 e gordo, ela com 1,56 m emagra; ele idealista e distrado e ela prtica e de fortes convices religiosas. Apesar de ostemperamentos serem to distintos, a afinidade literria foi o elemento de unio.

    Chesterton ganhou sua notoriedade inicial durante a Guerra dos Beres na frica do Sul, entreingleses e holandeses, pelos seus corajosos artigos no semanrio liberal The Speaker, condenando oconflito, o que sacudiu a opinio pblica, imbuda de fervor patritico em favor da guerra. Acabou porser convidado como jornalista do Daily News, obtendo a fonte de renda fixa para poder se casar comFrances Blogg em 1901. Com o casamento, os debates passaram a ser tanto pblicos quanto

  • domsticos. Em casa, as dificuldades iniciais do jovem casal se faziam notar: enquanto Frances eraordenada, comedida e pontual, Gilbert era o tpico gnio distrado, prdigo, desleixado com aaparncia pessoal e sem ter idia do tempo. Em 1906 tiveram um duro golpe: mesmo depois de umaoperao cirrgica, verificou-se que Frances no poderia ter filhos. Para quem amava as crianascomo Chesterton, foi uma verdadeira provao, que, no entanto, levaria com garbo e bom humor.

    A publicao de Hereges em 1905, seu primeiro grande livro (fora os ensaios que j havia trazido alume), traz a Chesterton fama e convites para conferncias nos mais distantes pontos da Inglaterra,com a aquisio de novos e importantes amigos, alm de Hilaire Belloc, provenientes de distintoscrculos literrios, como Joseph Conrad, Henry James, Baden Powell, Winston Churchill e ThomasHardy.

    Agnstico em sua juventude, Chesterton comea a se revoltar com o racionalismo de sua poca, que,cheio de si, no lhe d as respostas que busca para muitos dos problemas que assolam o mundo e a suaprpria alma. Da ter brandido a espada do senso comum para derrubar os dolos intelectuais de suapoca. Ao menos os caseiros, da velha Inglaterra. Esse o livro que temos em mos e o comeo datrilogia, pelo trabalho de desmitificao da filosofia racionalista, idealista e niilista do final do sculoXIX e comeo do XX.

    Em 1908, alm de O Homem que Foi Quinta-Feira, Chesterton publica Ortodoxia, em que descreveseu prprio processo de converso para o Cristianismo, partindo de uma perspectiva realista dafilosofia. Alerta, j na introduo, que no ser original apesar de todo o livro ser uma apresentaooriginalssima das verdades que procura expor porque no foi ele que criou essa filosofia, mas adescobriu, justamente ao tentar ser original:

    Por diversas vezes, imaginei escrever um romance sobre a aventura de um navegador ingls que, em virtude de ter cometido umligeiro erro de clculo em sua rota, veio a descobrir a Inglaterra, pensando tratar-se de uma nova ilha nos mares do Sul. []Provavelmente, a impresso que se teria de um homem que desembarcasse (armado at os dentes e falando por sinais) para fincara bandeira inglesa nesse barbaresco templo, que depois seria o Pavilho de Brighton, a de que ele se sentisse um tanto tolo.[]. preciso, porm, mencionar que tive uma razo particular para me referir ao navegador que descobriu a Inglaterra. Eu souaquele homem: fui eu quem descobriu a Inglaterra. [] Sou eu o homem que, com a maior ousadia, descobriu aquilo que j foradescoberto muito antes. Se h alguma farsa no que se vai seguir, tal farsa se deve a mim, pois este livro vai explicar como meconvenci de que tinha sido o primeiro homem a pr o p em Brighton, para finalmente descobrir que fui o ltimo a l chegar.Aqui se narram as minhas elefantescas aventuras em busca do bvio. [] Com todo o ardor juvenil, exauri a voz a proclamar asminhas verdades, mas fui castigado pela maneira mais singular e mais justa: guardei como minhas tais verdades, depois descobri,no que elas no eram verdades, mas, simplesmente, que no eram minhas. Quando pensava estar sozinho, vi-me na ridculasituao de ter todo o Cristianismo minha volta. possvel e Deus me perdoe que eu tenha tentado ser original, mas averdade que consegui apenas engendrar, por mim mesmo, uma cpia inferior das j existentes tradies da religio civilizada.O navegador pensou ter sido o primeiro a encontrar a Inglaterra, e eu pensei ter sido o primeiro a encontrar a Europa. Tenteiencontrar uma heresia para mim e, quando j lhe tinha dado os ltimos retoques, descobri que se tratava da ortodoxia.

    Nessa sua 2 obra prima, Chesterton traa os parmetros de suas mais arraigadas crenas e dtestemunho de seu prprio processo interior de converso. Brotam, assim, algumas de suas idias-chave: 1) o racionalismo exacerbado, separado do senso comum, conduz ao suicdio do pensamento;2) o reconhecimento do carter democrtico da tradio (dar o direito de voto aos nossosantepassados); 3) a teoria da felicidade condicional (moral do pas das fadas, onde tudo permitido,em troca de uma pequena coisa que negada); 4) o acerto paradoxal da doutrina crist (o ponto deequilbrio entre virtudes contrrias).

    Esse processo interior de converso, que culminar com seu ingresso na Igreja Catlica em 30 dejulho de 1922, ser lento e meditado, marcado por obras nas quais j vai explicitando romanescamentesua admirao pelo catolicismo: A Esfera e a Cruz (1909), novela de fantstica imaginao, e a srie

  • de romances policiais que tem o Pe John OConnor, sacerdote irlands, amigo de Chesterton, comoinspirador, que so A Inocncia do Padre Brown (1911), A Sabedoria do Padre Brown (1914), AIncredulidade do Padre Brown (1926), O Segredo do Padre Brown (1927) e O Escndalo do PadreBrown (1935).

    Chesterton dar a notcia de sua converso ao catolicismo ao amigo Belloc numa carta em que dir:A Igreja Catlica o lar natural do esprito humano. A estranha perspectiva da vida, que ao princpioparece um quebra-cabea sem sentido, tomada sob esse ponto de vista, adquire ordem e sentido.Nesse mesmo ano escrever So Francisco de Assis.

    Finalmente, Chesterton, como fruto maduro de seu processo de converso, completa sua trilogiafilosfico-teolgica em 1925 (mesmo ano de A Volta de Dom Quixote) com O Homem Eterno, no qualfala do desenvolvimento da Humanidade luz da figura dO Homem, que Jesus Cristo, o DeusEncarnado. um verdadeiro tratado, ao estilo chestertoniano desordenado, de AntropologiaFilosfica. O ser humano s se entende perfeitamente, conforme nos deixou registrado o Papa JooPaulo II, no comeo de seu pontificado, conhecendo a figura de Cristo, que mostra o homem aoprprio homem. Nessa esteira, escreve de um supeto, em 1933, uma biografia de Santo Toms deAquino que ser tida por tienne Gilson como definitiva.

    Falando de suas biografias de santos, Chesterton dir que cada uma delas para um sculo concreto:para o racionalista e ctico sculo XIX, a humildade de S. Francisco, e para o sentimentalista edesarvorado sculo XX, a luz intelectual de Santo Toms. Sua ltima obra ser sua Autobiografia(1936) talvez a biografia para o sculo XXI , ditada a Dorothy, cujo ltimo pargrafo recolhe suaexclamao de resumo de vida: Para mim, meu final meu princpio. Suas ltimas palavras, apsreceber a extrema uno, so dirigidas a sua mulher Frances (Ol, carinho!) e a sua secretriaDorothy (Ol, querida!) nos momentos em que acorda do coma no qual se encontrava. Termina avida com a mesma alegria com que a comeou.

    Percorrendo rapidamente a vida de G.K. (como gostava de assinar) podemos dizer que a trilogiachestertoniana iniciada por Hereges constitui um verdadeiro itinerrio filosfico-literrio-espiritualque nos conduz ao encontro de ns mesmos com o melhor do nosso ser, que aquele permeado dootimismo existencial de conhecermos a nossa origem e o nosso destino. O mesmo otimismo queChesterton coloca, em sua biografia de Santo Toms de Aquino, em contraste com a angstia doexistencialismo moderno, de razes mais profundas e antigas: Enquanto o intelectual renascentista seperguntava Ser ou no ser, eis a questo, o pesado doutor medieval respondia com voz de trovo:Ser, eis a resposta.

    Hereges ser, portanto, o retrato dos defeitos dessa filosofia de razes renascentistas que,autodenominando-se Humanista, desumaniza o homem. Saber por que a filosofia moderna temconduzido ao pessimismo razo suficiente para enfrentar o livro e os que se lhe seguem, queconduzem a um otimismo essencial. Ainda mais nesta primorosa edio brasileira da Ecclesiae, comtraduo impecvel de Antnio Emlio Angueth de Arajo e Mrcia Xavier de Brito. A todos, boaleitura e reflexo!

    So Jos dos Pinhais, janeiro de 2011Ives Gandra da Silva Martins Filho

  • Sobre a traduo e as notas

    CHESTERTON NUNCA pensou que transcenderia sua poca e, muito menos, a Inglaterra. Escrevia para oscontemporneos, para os mais prximos, para o homem comum que morava ao lado, figura muitoquerida, como veremos num dos captulos da presente obra. Portanto, traduzi-lo sempre um esforo,no s porque Chesterton possua um impressionante domnio da lngua inglesa o que lhe permitiabrincar com as palavras e criar os famosos paradoxos , como tambm pelo carter jornalstico desuas obras, que nos foram a mergulhar no universo da Inglaterra edwardiana e de suas personagens,na desconcertante variedade de filosofias que preencheram o vazio deixado pela era vitoriana. Almdisso, no podemos deixar de lado a deliciosa nota de bom humor e inteligncia que reveste todas assuas observaes. Criar um segundo original to rico em nuances sempre um desafio.

    A presente obra foi traduzida tendo por base o texto original em ingls publicado no primeirovolume da edio das obras completas da Ignatius Press (The Collected Works of G.K. Chesterton Volume I: Heretics, Orthodoxy, The Blatchford Controversies, with Introduction and notes by DavidDooley), acrescida da dedicatria de Chesterton, presente na primeira edio de 6 junho de 1905,muitas vezes suprimida em edies posteriores.

    Para dar ao leitor a chance de imergir nesse universo chestertoniano, sugeri uma edio crtica.Incorporei, ampliei e retifiquei algumas notas da edio da Ignatius Press, no entanto notei que para oleitor nacional ainda havia muitas lacunas. Decidi, ento, acrescentar mais notas de tipos diversos.

    As notas biogrficas tratam das personagens citadas por Chesterton que, pelo hiato geogrfico etemporal (afinal so mais de 136 anos!), j no soam to familiares; as notas literrias trazem otrecho, a obra citada e a data de publicao, de modo a permitir ao leitor aprofundar a leitura, sepreferir. Acrescentei tambm notas que poderamos chamar de culturais, ou seja, explicao decostumes e hbitos ingleses ou do perodo em que a obra foi escrita, bem como optei por acrescentaras datas de fundao e extino das publicaes citadas por Chesterton, e identifiquei todas aspassagens e referncias bblicas, escolhendo reproduzir, quando explicitamente citadas, a traduo daBblia de Jerusalm. Por fim, tive de fazer algumas notas de traduo, pois nem sempre possvelreproduzir toda a relevante carga semntica do texto, bem como notas que corrigem imprecises decitao do prprio Chesterton. Raramente tomei a liberdade de explicitar o contedo de algumapassagem interpretando, na nota, a inteno do autor. Nos momentos em que tal interpretao foinecessria, contei com a erudio do querido padre Ian Boyd C.S.B., presidente do Chesterton Institutefor Faith & Culture e um dos maiores especialistas em Chesterton no mundo, que com muitasolicitude ajudou-me a ver o trecho com olhos chestertonianos. Embora tenha feito, aqui, umaclassificao das notas, as mesmas aparecem indistintas ao longo da obra.

    Sou suspeita para falar do livro. sempre um privilgio traduzir Chesterton. Ele nos faz mergulharnuma leitura profunda, numa verdadeira meditao, to profunda que por vezes parecia que umrotundo anjo sussurrava ao meu ouvido de onde tirara esta ou aquela citao. E, muitas vezes, pareciaque gargalhvamos juntos! Ramos de to queridos oponentes de conhecida guerra, de uma guerra jvencida de batalhas perdidas, a guerra da criatura homem com seu Criador.

    Rio de Janeiro, novembro de 2010Mrcia Xavier de Brito

  • CAPTULO I

  • NObservaes iniciais sobrea importncia da Ortodoxia

    ADA INDICA, de modo mais inusitado, o enorme e silencioso mal da sociedade moderna do que oestranho uso que feito, em nossos dias, da palavra ortodoxo. No passado, o herege se

    orgulhava de no ser herege. Os reinos do mundo, a polcia e os juzes que eram hereges. Ele eraortodoxo. No se orgulhava de se ter rebelado; eles que se tinham rebelado contra ele. Os exrcitoscom sua cruel segurana, os reis com suas frias fisionomias, os decorosos processos do Estado, osrazoveis processos da lei tudo isso se desviara. O homem tinha orgulho de ser ortodoxo, tinhaorgulho de estar certo. Caso ficasse isolado num deserto imenso, era mais que um homem; era umaigreja. Era o centro do universo; em torno dele giravam as estrelas. Todas as torturas extirpadas deinfernos esquecidos no poderiam faz-lo admitir que fosse um herege. Mas umas poucas expressesmodernas o fizeram orgulhar-se disso. Diz, com um sorriso deliberado, Acho que sou muitohertico, e olha ao redor em busca de aplausos. A palavra heresia no s deixa de significar estarerrado como praticamente significa ser lcido e corajoso. A palavra ortodoxia no s deixa designificar estar certo como praticamente significa estar errado. Tudo isso s pode expressar uma coisa,e uma coisa somente: as pessoas se preocupam menos em estar filosoficamente certas. Obviamente,um homem deve confessar estar louco, antes de reconhecer ser herege. O bomio, de gravatavermelha, deve se aborrecer com a prpria ortodoxia. O dinamitador, ao armar uma bomba, devesentir que, seja o que for, ao menos, ortodoxo.

    uma tolice, em geral, um filsofo abrir fogo contra outro filsofo no Mercado Smithfield1 porqueno concordam a respeito das teorias sobre o universo. Isso foi feito com muita freqncia nos ltimose decadentes perodos da Idade Mdia, e a prtica fracassou completamente em seu objeto. Mas halgo infinitamente mais absurdo e intil do que queimar um homem por causa de sua filosofia; ohbito de dizer que sua filosofia no importa. E isso feito universalmente no sculo XX, nadecadncia do grande perodo revolucionrio. Teorias gerais so desprezadas em todos os lugares; adoutrina dos Direitos do Homem posta de lado juntamente com a doutrina da Queda do Homem. Oprprio atesmo, aos olhos do mundo atual, muito teolgico. A revoluo , em grande parte, umsistema; a liberdade , em grande parte, uma represso. No teremos generalizaes. O Sr BernardShaw2 resumiu a situao num perfeito epigrama: A regra de ouro que no h regra de ouro.Tendemos cada vez mais a discutir detalhes em arte, poltica e literatura. A opinio de um homemsobre os bondes tem importncia; sua opinio sobre Botticelli3 tem importncia; sua opinio sobretodas as coisas no tem importncia. Ele pode mudar de opinio e explorar milhes de objetos, masno deve encontrar aquele objeto estranho, o universo, pois se o fizer, ter uma religio, e estarperdido. Tudo tem importncia, exceto tudo.

    Quase no precisamos de exemplos de total leviandade sobre o tema da filosofia csmica. Quase noprecisamos de exemplos para mostrar que, seja o que for que pensemos sobre os assuntos prticos, nopensamos que importa se um homem pessimista ou otimista, cartesiano ou hegeliano, materialistaou espiritualista. Permitam-me, contudo, que eu tome um exemplo aleatrio. Em qualquer inocentemesa de ch, podemos facilmente ouvir um homem dizer que A vida no vale a pena ser vivida.Damos crdito a isso como damos crdito afirmao de que o dia est belo hoje. Ningum pensa que

  • isso possa ter qualquer efeito srio sobre o homem ou sobre o mundo. No entanto, se tal discurso fosselevado realmente a srio, o mundo estaria de cabea para baixo. Assassinos receberiam medalhas porlivrarem os homens da vida; bombeiros seriam denunciados por evitarem a morte dos homens;venenos seriam usados como remdios; mdicos seriam chamados quando as pessoas estivessemsaudveis; a Real Sociedade Humanitria4 seria erradicada como uma horda de assassinos. Mesmoassim, nunca especulamos se o pessimista socivel fortalecer ou desorganizar a sociedade, poisestamos convencidos de que teorias no importam.

    Certamente no era essa a idia daqueles que criaram as condies para nossa liberdade. Quando osantigos liberais removeram as mordaas de todas as heresias, sua idia era a de que descobertasfilosficas e religiosas poderiam, ento, ser feitas. A viso deles era de que a verdade universal era toimportante que cada um de ns deveria dar um testemunho independente. A idia moderna de que averdade universal to sem importncia que no importa o que cada um diz. Os liberais se livraramda investigao como quem liberta um nobre co de caa; os modernos se livraram da investigaocomo quem devolve ao mar um peixe inadequado ao consumo. Nunca houve to pouca argumentaosobre a natureza dos homens como agora, quando, pela primeira vez, qualquer um pode discutir isso.A velha restrio significava que somente o ortodoxo podia discutir religio. A moderna liberdadesignifica que ningum pode discuti-la. O bom gosto, a ltima e a mais desprezvel das supersties,teve sucesso em silenciar-nos onde todos fracassaram. Sessenta anos atrs, era de mau gosto ser umateu declarado. Ento, surgiram os bradlaughitas,5 os ltimos homens religiosos, os ltimos homens ase preocuparem com Deus; mas no puderam alterar a situao. Ainda de mau gosto ser um ateudeclarado. Mas a agonia deles conseguiu apenas isto agora igualmente de mau gosto ser um cristodeclarado. A emancipao apenas trancou o santo na mesma torre de silncio do heresiarca. Assim,falamos sobre lorde Anglesey6 e o clima, e chamamos isto de completa liberdade em relao a todosos credos.

    Mas h algumas pessoas entre as quais me incluo que pensam que a coisa mais prtica eimportante sobre o homem ainda sua viso a respeito do universo. Cremos que para a proprietriaque analisa um possvel inquilino importante saber sua renda, mas ainda mais importante conhecersua filosofia. Cremos que para um general prestes a lutar contra um inimigo importante saber aquantidade de inimigos, mas ainda mais importante conhecer a filosofia do inimigo.

    Cremos que a questo no se a teoria do cosmo afeta as coisas, mas se, no longo prazo, algo maisas afeta. No sculo XV, os homens interrogavam e atormentavam uma pessoa por pregar algumaatitude imoral. No sculo XIX, festejamos e lisonjeamos Oscar Wilde7 porque prega a mesma atitudee, ento, o decepcionamos, trancafiando-o na priso por ter realizado o que proclamava. A questo saber qual dos dois mtodos o mais cruel; no h dvida de qual o mais ridculo. A poca dainquisio pelo menos no teve a infelicidade de produzir uma sociedade que idolatrou um mesmohomem por pregar exatamente as mesmas coisas que o tornariam um prisioneiro por pratic-las.

    Ora, em nossa poca, a filosofia ou a religio, ou seja, a teoria das coisas fundamentais foi expulsamais ou menos ao mesmo tempo dos dois campos que costumava ocupar. As idias geraiscostumavam dominar a literatura. Foram de l expelidas pelo clamor da arte pela arte. Idias geraiscostumavam dominar a poltica. Foram de l expelidas pelo clamor da eficincia, que pode sergrosseiramente traduzido por poltica pela poltica. De forma persistente, nos ltimos vinte anos, asidias de ordem ou de liberdade minguaram em nossos livros; as ambies de inteligncia eeloqncia minguaram em nossos parlamentos. A literatura se tornou propositalmente menos poltica;a poltica se tornou propositalmente menos literria. As teorias gerais sobre as relaes das coisasforam extirpadas de ambas; e estamos na posio de perguntar: O que ganhamos ou perdemos com

  • essa expulso? Ser que a literatura melhorou, a poltica melhorou, por ter descartado o moralista e ofilsofo?.

    Quando tudo num povo enfraquece e se torna ineficiente, esse povo comea a falar de eficincia.Assim, tambm, quando o corpo de um homem comea a fraquejar, ele, pela primeira vez, comea afalar de sade. Organismos vigorosos no falam de seus processos, mas de seus objetivos. No hmelhor prova da eficincia fsica de um homem do que a animao ao falar sobre uma viagem ao fimdo mundo. E no h melhor prova de eficincia prtica de uma nao do que a constante meno uma viagem ao fim do mundo, uma viagem ao dia do juzo e nova Jerusalm. E no h sinal maisclaro de uma sade debilitada do que a tendncia a buscar elevados e extravagantes ideais. noprimeiro vigor da infncia que tentamos alcanar a lua. Nenhum homem enrgico das eras fortesentenderia o que queremos dizer com trabalhar para eficincia. Hildebrand8 teria dito que noestava empregando seus esforos para ser eficiente, mas pela Igreja Catlica. Danton teria dito queno estava labutando para ser eficiente, mas pela liberdade, igualdade e fraternidade. Mesmo se oideal de tais homens fosse o ideal de empurrar algum escada abaixo, eles pensariam na finalidadecomo homens e no no processo como paralticos. No diriam: Ao elevar eficientemente minhaperna, vocs podero notar que utilizando os msculos da coxa e da panturrilha, que esto emexcelente forma. O sentimento deles seria bem diferente. Estariam tomados pela bela viso de umhomem estatelado ao trmino dos degraus que, neste xtase, o restante se seguiria num segundo. Naprtica, o hbito de generalizar e idealizar no significa, de forma alguma, fraqueza. O tempo dasgrandes teorias foi o tempo dos grandes resultados. Numa poca de sentimentalismo e de palavraselegantes, ao final do sculo XVIII, os homens eram realmente robustos e eficientes. Ossentimentalistas conquistaram Napoleo.9 Os cnicos no conseguiram pegar De Wet.10 H cem anos,nossos assuntos, fossem para o bem ou para o mal, eram tratados triunfantemente por retricos.Agora, nossos assuntos so irremediavelmente desorganizados por homens fortes e silenciosos. Eassim como o repdio das grandes palavras e das grandes vises nos trouxe uma raa de anes napoltica, trouxe tambm uma raa de anes nas artes. Nossos polticos modernos tentam desfrutar dosmritos de Csar11 e do super-homem12 e alegam que so muito prticos para serem puros e muitopatriticos para serem morais. Mas o resultado disso ter um medocre como Ministro da Fazenda.13Nossos novos filsofos artsticos exigem mesma licena moral, por uma liberdade para devastar cuse terras com sua energia; mas o resultado disso ter um medocre como poeta laureado.14 No digoque no haja homens mais fortes que estes, mas ser que algum dir que h homens mais fortes doque os de outrora, dominados pela filosofia e impregnados pela religio? Se a servido melhor que aliberdade, isso uma questo a ser discutida. Mas que a servido dos antigos fez mais que a nossaliberdade ser difcil negar.

    A teoria da amoralidade na arte se estabeleceu firmemente na classe artstica; esto livres paraproduzir qualquer coisa que desejarem. Esto livres para escrever um poema como O ParasoPerdido,15 em que Sat conquistar Deus. Esto livres para escrever uma Divina Comdia16 em que oParaso pode estar abaixo do nvel do Inferno. E o que fizeram? Ser que produziram, em suauniversalidade, algo mais grandioso ou mais belo do que a criao do impetuoso gibelino catlico17ou do rgido mestre-escola puritano?18 Sabemos que produziram apenas uns poucos ronds.19 Miltonno os vencia somente pela sua devoo, vencia-os pela sua prpria irreverncia. Em todos os livrecosem versos, no encontraremos um desafio a Deus mais sofisticado que o de Sat. Tampoucosentiremos a grandeza do paganismo da forma como aquele ardoroso cristo descrevera Faranata20erguendo a cabea em puro desdm pelo inferno. E a razo muito clara. A blasfmia um efeitoartstico, pois depende de uma convico filosfica. A blasfmia depende da crena e, com ela,

  • definha. Caso algum duvide disso, faa-o sentar e tentar, com seriedade, ter pensamentos blasfemos arespeito de Thor.21 Penso que a famlia desse sujeito, ao fim do dia, o encontrar exausto.

    Nem o mundo da poltica, nem o da literatura conseguiu ter sucesso com a rejeio das teoriasgerais. Pode ter sido por causa dos muitos ideais equivocados e lunticos que de tempos em temposatingiram a humanidade, mas seguramente no houve ideal posto em prtica mais equivocado eluntico do que o ideal da praticidade. Nada perdeu tantas oportunidades como o oportunismo de lordeRosebery.22 Ele , de fato, um smbolo permanente de sua poca o homem que teoricamente umhomem prtico, e, praticamente, menos prtico do que um terico. Nada neste universo est to longeda sabedoria quanto aquela espcie de venerao da sabedoria mundana. Um homem que estcontinuamente pensando se esta ou aquela raa mais forte, ou se esta ou aquela causa maispromissora, um homem que nunca acreditar em algo por tempo suficiente para faz-lo prosperar. Opoltico oportunista como um homem que pra de jogar bilhar porque perdeu no bilhar e que pra dejogar golfe porque perdeu no golfe. No h nada mais prejudicial aos propsitos prticos que essaenorme importncia dada vitria imediata. No h nada que fracasse mais que o sucesso.

    E, tendo descoberto que o oportunismo realmente fracassa, fui induzido a consider-lo maisdetalhadamente e, em conseqncia, a ver que ele tem de fracassar. Percebi que muito mais prticocomear pelo comeo e analisar as teorias. Vi que os homens que se matavam pela ortodoxia doHomousion23 eram muito mais sensveis que as pessoas que esto discutindo a Lei da Educao,24visto que os dogmticos cristos estavam tentando estabelecer um reino de santidade e tentandodefinir, primeiramente, o que era realmente santo. Mas nossos modernos educadores esto tentandoproduzir uma liberdade religiosa sem tentar definir o que religio ou o que liberdade. Se os antigospadres impunham um juzo humanidade, pelo menos fizeram algum esforo prvio para torn-loclaro; sobrou para a moderna turba de anglicanos e no-conformistas25 a perseguio por causa dedoutrina sem sequer indicar qual seja.

    Por essas razes, e por muitas outras, por exemplo, comecei a acreditar na volta aos fundamentos.Tal a idia deste livro. Quero tratar com os mais distintos contemporneos, no pessoalmente ou deuma maneira meramente literria, mas em relao ao verdadeiro corpo doutrinrio que ensinam. Noestou preocupado com o Sr Rudyard Kipling26 como um artista vvido ou uma personalidadevigorosa. Ocupo-me dele como um herege isto , um homem cuja viso das coisas tem a audcia dediferir da minha. No me interesso pelo o Sr Bernard Shaw como um dos homens vivos maisbrilhantes e mais honestos; estou interessado nele como um herege isto , um homem cuja filosofia muito slida, muito coerente, e muito errada. Retrocedo aos mtodos doutrinais do sculo XIII, naesperana de conseguir obter algum resultado.

    Suponhamos que surja em uma rua grande comoo a respeito de alguma coisa, digamos, um postede iluminao a gs, que muitas pessoas influentes desejam derrubar. Um monge de hbito cinza, que o esprito da Idade Mdia, comea a fazer algumas consideraes sobre o assunto, dizendo maneirarida da Escolstica: Consideremos primeiro, meus irmos, o valor da luz. Se a luz for em si mesmaboa. Nesta altura, o monge , compreensivelmente, derrubado. Todo mundo corre para o poste e ope abaixo em dez minutos, cumprimentando-se mutuamente pela praticidade nada medieval. Mas,com o passar do tempo, as coisas no funcionam to facilmente. Alguns derrubaram o poste porquequeriam a luz eltrica; outros, porque queriam o ferro do poste; alguns mais, porque queriam aescurido, pois seus objetivos eram maus. Alguns se interessavam pouco pelo poste, outros, muito;alguns agiram porque queriam destruir os equipamentos municipais; outros porque queriam destruiralguma coisa. E h uma guerra noturna em que ningum sabe a quem atinge. Ento, aos poucos einevitavelmente, hoje, amanh, ou depois de amanh, voltam a perceber que o monge, afinal, estava

  • certo, e que tudo depende de qual a filosofia da luz. Mas o que poderamos ter discutido sob almpada a gs, agora teremos que discutir no escuro.

    1 Mercado central de carne em Londres.2 George Bernard Shaw (18561950) foi um dramaturgo, romancista, contista, ensasta e jornalista irlands. Vegetariano, socialista e membro da sociedade fabiana, ainda assimconseguia manter uma polmica amizade, fundada na admirao mtua, com Chesterton e Hilarie Belloc (18701953). As divergncias entre Chesterton e Shaw sempre foramobjeto de crticas e observaes mordazes entre os dois escritores, fato que gerou, da parte de Chesterton, no s o captulo IV da presente obra, como diversas observaesesparsas contra as idias de Shaw e o ensaio, de 1909, intitulado George Bernard Shaw. Por ocasio da morte de Chesterton, em 1936, Shaw o descreveu como gniocolossal.3 Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi (14451510), conhecido como Sandro Botticelli, foi um clebre pintor da Escola Florentina do Renascimento.4 Instituio de caridade britnica fundada em 1774, cuja patrona a Rainha, que promove intervenes salva-vidas e concede premiaes por atos de bravura, como medalhas,comendas e certificados.5 Seguidores de Charles Bradlaugh (18331891), o mais famoso ateu militante do sculo XIX na Inglaterra. Associou-se com Annie Besant (18471933) [tesofa, ligada maonaria, ao socialismo fabiano e associada Helena P. Blavatsky (18311891)] na defesa do controle de natalidade. Teve direito a assumir uma cadeira no parlamento semjurar sobre a Bblia.6 Referncia ao marechal de campo Henry William Paget (17681854), primeiro marqus de Anglesey e comandante da cavalaria aliada na batalha de Waterloo.7 Oscar Fingal OFlahertie Wills Wilde (18541900) foi um dramaturgo e escritor irlands, promotor do esteticismo ou dandismo. Tornou-se um dos dramaturgos mais famososda Inglaterra na dcada de 1890, tendo a carreira interrompida pela acusao e priso por homossexualismo.8 Nome do Papa So Gregrio VII, um dos maiores pontfices que a Igreja conheceu e que esteve no trono de Pedro de 1073 a 1085.9 Napoleo Bonaparte (17691821) foi o dirigente efetivo da Frana a partir de 1799, adotando o nome de Napoleo I. Foi imperador da Frana de 18 de maio de 1804 a 6 deabril de 1814, posio que voltou a ocupar por poucos meses em 1815 (20 de maro a 22 de junho). Alm disso, conquistou e governou grande parte da Europa central eocidental. Figura importante no cenrio poltico mundial de sua poca, deveu o sucesso ao talento como estrategista e ao esprito de liderana.10 Christiaan Rudolph de Wet (18541922), poltico sul-africano e general ber na Guerra dos Beres.11 Caio Jlio Csar (100 a.C.44 a.C.) foi um patrcio, lder militar e poltico romano. Suas conquistas na Glia estenderam o domnio romano at o oceano Atlntico;proclamou-se ditador e empreendeu uma srie de transformaes administrativas e econmicas. Seu assassinato por um grupo de senadores impediu a continuidade do trabalho eabriu caminho a uma instabilidade poltica que viria a culminar no fim da Repblica e incio do Imprio Romano. Os feitos militares de Csar so conhecidos atravs do prpriopunho e por relatos de autores como Suetnio (69141) e Plutarco (46126).12 Referncia ao termo alemo bermensch, descrito no livro Assim Falou Zaratustra (18831885), do filsofo alemo Friedrich Nietzsche (18441900), em que explica ospassos pelos quais algum pode se tornar um super-homem ou homem superior.13 Chancellor of the Exchequer o ttulo do ministro britnico que trata de todos os assuntos econmicos e financeiros e desempenha um papel semelhante aos postos deMinistro das Finanas ou Secretrio do Tesouro em outros pases. Nesta ocasio, provavelmente Chesterton estava se referindo a Austen Chamberlain (18631937), polticoconservador que esteve na pasta de 1903 a 1905, sendo sucedido por Herbert Henry Anquith (18521928).14 Termo que designa o poeta oficialmente indicado pelo governo para compor poesias para datas cvicas e outros eventos governamentais. No Reino Unido, desde o reinado deCharles II (16301685) um ttulo honorfico conferido pelo monarca. A titulao existe em outros pases como Canad, Estados Unidos, Nova Zelndia, Pas de Gales eEsccia. Chesterton, nesta ocasio, estava se referindo a Alfred Austin (18351913).15 O poema pico O Paraso Perdido (1667) uma das obras mais conhecidas de John Milton (16081674), um dos mais importantes representantes do classicismo ingls. Aobra, escrita em versos brancos, trata do tema do pecado original e expulso do homem do paraso. Neste relato lrico incorpora referncias pags e gregas, lida com temas comocasamento e poltica, alm de vrios tpicos controversos de Teologia, como: destino, predestinao, Trindade, pecado, anjos, anjos decados e Satans.16 Considerada uma das obras mximas do gnio humano, um poema de vis pico e teolgico, escrito pelo poeta e poltico florentino, Dante Alighieri (12651321). Divididaem trs partes (Inferno, Purgatrio e Cu), foi elaborada entre os anos de 1304 a 1321. Tornou-se uma das matrizes da lngua italiana atual e a melhor representao dacosmoviso medieval que temos hoje.17 Referncia a Dante Alighieri (12651321), o primeiro e maior poeta da lngua italiana. Na cidade de Florena, nos sculos XII e XIII, havia duas faces polticas: os guelfos,partidrios do papado (divididos em brancos e negros), e os gibelinos, partidrios do Imprio. A descrio de Chesterton parece paradoxal, j que Dante, um guelfo branco, foimultado e obrigado a se exilar de Florena, por volta de 1302, quando os guelfos negros chegaram ao poder. No entanto, essa pode ser uma boa descrio de Dante no final davida.18 Referncia ao poeta John Milton (16081674). Ao contrrio do que Chesterton afirma, no foi um professor primrio no sentido usual. Foi tutor dos dois filhos de sua irm eseu tratado Of Education (1644) demonstra que parece ter sido um preceptor bastante exigente.19 O rond um tipo de verso usado na poesia inglesa que foi inventado por Algernon Charles Swinburne (18371909). uma variao do rondeau francs e faz uso derefros, repetidos segundo determinado padro estilizado.20 Chesterton erra na grafia do nome. No Canto X do Inferno, Dante encontra Farinata degli Uberti (12121264), lder dos gibelinos de Florena.21 Divindade que representa a fora da natureza no paganismo germnico.22 Archibald Primrose, 5 Duque de Rosebery (18471929). Poltico ingls que, alm de muitos cargos administrativos, foi primeiro-ministro entre os anos de 189495,sucedendo William E. Gladstone (18091898). Era entusiasta da idia do Imprio Britnico e de uma forte defesa nacional. Embora fosse contra o socialismo, pregou umareforma social em seu pas nos moldes da esquerda. Como lder dos imperialistas liberais, se opunha diametralmente posio de Chesterton.23 O conceito de Homousion pode ser visto como a sntese do grande Conclio de Nicia. A palavra grega Homo-ousios significa da mesma substncia de ou com a mesmaessncia, o consubistantialem (consubstancial), introduzido no ano de 325 no Credo de Nicia, em oposio noo hertica de Homoi-ousios (de natureza semelhante)defendida pelo Arianismo.24 Chesterton se refere ao polmico Education Act de 1902, que estabeleceu um sistema de controle estatal para o ensino fundamental e mdio na Gr-Bretanha e que se tornouum dos principais temas polticos da poca. Entre as principais reformas estava a abolio dos conselhos escolares e a substituio por autoridades locais de educao. Acontrovrsia contribuiu para a vitria do Partido Liberal nas eleies gerais de 1906.25 Nomenclatura usada, aps o Act of Uniformity de 1662, para distinguir os que no pertencessem a qualquer denominao crist, pregassem a liberdade religiosa ou fossemdissidentes da Igreja Anglicana. No sculo XVII, eram considerados desse grupo os Presbiterianos, os Congressionalistas, os Batistas e os Quackers, e posteriormente seacrescentaram os Metodistas, os Unitaristas e os membros do Exrcito da Salvao.26 Joseph Rudyard Kipling (1865 - 1936) foi um poeta e escritor britnico dos mais populares de sua poca, tendo escrito grandes clssicos da literatura infantil, incluindo ofamoso The Jungle Book [O livro da selva], que conta, entre outras, a famosa histria do menino selvagem Mogli. Seus contos chegaram mesmo a inspirar movimentos ligadosao escotismo por meio de temas empregados em suas histrias. Por abordar recorrentemente a temtica militar e disciplinar, ficou conhecido como o profeta do imperialismobritnico.

  • CAPTULO II

  • MO esprito negativista

    UITO TEM sido dito, e com verdade, a respeito da morbidez do ascetismo, a respeito da histeriaque freqentemente acompanha as vises de eremitas ou de freiras. Contudo, nunca nos

    esqueamos que essa religio visionria , em certo sentido, necessariamente mais saudvel que nossasbia e moderna moralidade. mais saudvel por poder contemplar a idia de sucesso ou triunfo nadesesperanada luta pelo ideal tico, algo que Stevenson27 chamou, com habitual e extraordinriafelicidade, de a fracassada luta pela virtude.28 A moralidade moderna, por outro lado, s podeindicar, com absoluta convico, os horrores da violao lei; sua nica certeza a certeza do mal. Spode mostrar a imperfeio. No h nenhuma perfeio a que possa se dirigir. Mas um mongemeditando sobre Cristo ou Buda tem na mente a imagem da sade perfeita, algo de aspecto lmpido ear puro. Pode contemplar esse ideal de completude e felicidade muito mais do que deveria; podecontempl-lo a ponto de negligenciar ou excluir coisas essenciais; pode contempl-lo at que se torneum sonhador ou um parvo; mas, ainda assim, a completude e a felicidade que ele est contemplando.Pode enlouquecer; mas enlouquece por amor sanidade. O estudante moderno de tica, mesmo quepermanea so, permanece so por um temor insano da insanidade.

    Um anacoreta que rola sobre pedras num furor de submisso , fundamentalmente, uma pessoa maissaudvel que muitos homens sbrios de chapus de cetim que caminham por Cheapside.29 Paramuitos, esses homens so bons somente por um conhecimento degenerado do mal. No estou, nomomento, reivindicando, para o devoto, nada mais que esta vantagem primria: a de que emborapossa, pessoalmente, estar se fazendo fraco e miservel, est, mesmo assim, fixando os pensamentos,sobretudo, numa fora e felicidade gigantes, numa fora que no tem limites e numa felicidade queno tem fim. Sem dvida, h outras objees razoveis que podem ser levantadas contra a influnciade deuses e vises na moralidade, seja na cela do monge, seja nas ruas. Mas a moralidade mstica deveter sempre esta vantagem: sempre mais alegre. Um jovem pode evitar o vcio pela lembranacontnua da doena. Pode evit-lo tambm pela lembrana contnua da Virgem Maria. Pode haverdvida sobre qual mtodo mais razovel, ou mesmo qual mais eficiente. Mas certamente no podehaver dvida sobre qual mais saudvel.

    Lembro-me de um panfleto, escrito por um secularista talentoso e sincero, Sr G.W. Foote,30 quecontinha uma frase que simbolizava e dividia categoricamente esses dois mtodos. O panfleto sechamava A cerveja e a Bblia, duas coisas muito nobres, tanto mais por estarem associadas ao SrFoote que, no estilo rgido de um velho puritano, parecia estar sendo sarcstico, mas que confesso crerestar sendo relevante e encantador. No tenho o panfleto comigo, mas lembro que o Sr Footerepudiava com desdm qualquer tentativa de tratar o problema da bebida por meio de ofcios ouintercesses religiosas, e disse que a imagem emoldurada de um fgado de bbado seria mais eficaz,em matria de temperana, do que qualquer orao ou louvor. Esta pitoresca expresso pareceencarnar perfeitamente a incurvel morbidez da tica moderna. Nesse templo, as luzes so fracas, aspessoas se ajoelham e hinos solenes so entoados. Mas o altar perante o qual todos os homens seajoelham no mais o da carne perfeita, do corpo e da substncia do homem perfeito; ainda decarne, mas de carne doente. o fgado do bbado do Novo Testamento31 que deteriorado por ns, eque tomamos em memria dele.

  • Bem, este o grande hiato da tica moderna, a ausncia de imagens vvidas de pureza e de triunfoespiritual, e que repousa no fundo da verdadeira objeo sentida por muitos homens sos com relao literatura realista do sculo XIX. Caso qualquer homem comum diga que ficou horrorizado pelosassuntos discutidos em Ibsen32 ou Maupassant,33 ou pela linguagem simples com que foramdescritos, tal homem est mentindo. A conversa comum dos homens comuns, em toda a civilizaomoderna, em qualquer classe ou atividade, se d de forma tal que um Zola34 jamais sonhariaempregar. Nem o hbito de escrever sobre tais coisas algo novo. Ao contrrio, o melindre e osilncio vitorianos que so novos, embora j estejam desaparecendo. A tradio de dar nome aosbois35 comea muito cedo na literatura inglesa e declina muito mais tarde. No entanto, a verdade que o homem comum e honesto, seja qual for a explicao imprecisa que possa ter dado aossentimentos, no estava desgostoso, nem mesmo chateado, com a sinceridade dos modernos. O que odesgostava, e muito justificadamente, no era a presena de um claro realismo, mas a ausncia de umclaro idealismo. Sentimentos religiosos genunos e fortes nunca fizeram objeo ao realismo; aocontrrio, a religio era a coisa realista, algo brutal e o que dava nomes s outras coisas. Esta agrande diferena entre alguns recentes eventos no-conformistas e o grande puritanismo do sculoXVII. Toda a argumentao dos puritanos foi dizer que os no-conformistas no davam a mnima paraa decncia. Os jornais no-conformistas modernos se distinguem por suprimir, precisamente, osnomes e adjetivos com que os fundadores da no-conformidade se distinguiam ao investirem contrareis e rainhas. Mas, caso uma das principais pretenses da religio seja falar francamente do mal, amaior de todas as pretenses falar francamente do bem. O que levado a mal, e creio, com justia,na grande literatura moderna da qual Ibsen um exemplo tpico, que embora o olhar que percebe ascoisas erradas cresa com clareza inquietante e devastadora, o olhar que percebe as coisas certas ficacada vez mais nebuloso, a ponto de quase ficar cego pela dvida. Se compararmos, digamos, amoralidade de A Divina Comdia com a moralidade de Os espectros36 de Ibsen, veremos o querealmente tem feito toda a tica moderna. Ningum, imagino, acusar o autor do Inferno de mostrar ahipocrisia vitoriana ou um vitoriano otimismo podsnapiano.37 Mas Dante descreve trs instrumentosmorais: Cu, Purgatrio e Inferno a viso da perfeio, a viso do aprimoramento e a viso dofracasso. Ibsen tem apenas um o Inferno. Muitas vezes dito, com absoluta verdade, que ningumpode ler uma pea como Os espectros e ficar indiferente necessidade de um autocontrole tico. Isso verdade, e o mesmo deve ser dito da maioria das descries materiais e monstruosas do fogo eterno. certo que realistas, como Zola, promovem, em certo sentido, a moralidade promovem-na nosentido em que o carrasco a promove, no sentido em que o demnio a promove. Mas somente atingeaquela pequena minoria que aceitar qualquer virtude de coragem. A maioria das pessoas saudveisdespreza esses perigos morais, tal como desprezam a possibilidade das bombas e dos micrbios. Osrealistas modernos so, de fato, terroristas, como os dinamitadores, e fracassam igualmente nosesforos de criar sensaes. Tanto realistas quanto dinamitadores so pessoas bem-intencionadas,envolvidas na tarefa, em ltima instncia obviamente impossvel, de usar a cincia para promover amoralidade.

    No desejo que o leitor me confunda, nem por um momento, com aquelas pessoas incertas queimaginam que Ibsen aquilo que chamam de pessimista. H muitas personagens saudveis em Ibsen,muitas pessoas boas, muitas pessoas felizes, muitos exemplos de homens agindo sabiamente e coisasterminando bem. No isso o que quero dizer. O que digo que Ibsen tem do comeo ao fim, e noconsegue disfarar, certa ambigidade, uma atitude cambiante e duvidosa no que se refere ao que realmente sabedoria e virtude nesta vida uma ambigidade que extraordinariamente contrasta com adeterminao com que ataca aquilo que percebe ser a raiz do mal, seja uma conveno, um engano ou

  • alguma ignorncia. Sabemos que o heri de Os espectros louco e sabemos por que ele assim.Sabemos tambm que Dr Stockman38 saudvel, mas no sabemos por que ele assim. Ibsen noafirma saber como se produz a virtude e a felicidade, na medida em que afirma saber como seproduzem nossas tragdias sexuais modernas. A falsidade produz runas em Os Pilares daSociedade,39 mas a verdade tambm produz runas em O Pato Selvagem.40 No h virtudes cardeaisno ibsenismo. No h homem ideal em Ibsen. Tudo isso no s admitido, como tambm alardeado,em A quintessncia do ibsenismo41 do Sr Bernard Shaw, o mais valioso e profundo elogio a Ibsen. OSr Shaw resumiu o ensinamento de Ibsen naquela frase, A regra de ouro que no h regra de ouro.Aos olhos do Sr Shaw, a ausncia de um ideal durvel e positivo, a ausncia de um cdigo permanentepara a virtude, o grande mrito de Ibsen. No discuto, nesse instante, se isso totalmente assim ouno. Atrevo-me a observar, com reforada firmeza, que tal omisso, boa ou m, nos deixa face a facecom o problema de uma conscincia humana repleta de imagens muito bem definidas do mal e semqualquer imagem definida do bem. Para ns, a luz deve ser, daqui em diante, algo de obscuro umacoisa de que no podemos falar. Para ns, como para os demnios de Milton no Pandemnio,42 aescurido que visvel. A raa humana, segundo a religio, caiu uma vez, e ao cair conheceu o bem eo mal. Agora decamos uma segunda vez, e somente o conhecimento do mal permanece conosco.

    Um grande colapso silencioso, um enorme e indizvel dissabor, recaiu, em nossos dias, sobre acivilizao do hemisfrio norte. Todas as eras anteriores derramaram suor e foram crucificadas natentativa de compreender a vida verdadeiramente correta, o que realmente era o homem bom. Umadeterminada parcela do mundo moderno chegou concluso, sem qualquer sombra de dvida, de queno h resposta para tais questionamentos, e que o mximo que podemos fazer colocar algunsquadros de aviso nos lugares em que o perigo bvio, para alertar os homens, por exemplo, contra aembriaguez at a morte, ou para adverti-los, caso no levem em conta a simples existncia doprximo. Ibsen o primeiro a retornar dessa desnorteada caada e nos traz notcias de um grandefracasso.

    Todos os ideais e expresses populares modernos so uma evaso para evitar o problema do que obem. Gostamos de falar de liberdade, ou seja, temos um pretexto para evitar discutir o que bom.Gostamos de falar do progresso, ou seja, temos um pretexto para evitar discutir o que bom.Gostamos de falar de educao, ou seja, temos um pretexto para evitar discutir o que bom. Ohomem moderno diz: Deixemos de lado todos os padres arbitrrios e abracemos a liberdade. Casoisto seja logicamente compreendido, significa: No decidamos o que bom, mas deixemos que sejaconsiderado bom no decidir. Diz tambm: Fora com nossa antiga frmula moral; sou peloprogresso. Isso, logicamente compreendido, significa: No fixemos o que bom; masestabeleamos se vamos receber mais do mesmo. Diz ainda: No nem na religio nem na moral,meu amigo, que repousa a esperana da raa, mas na educao. Isso, claramente expresso, significa:No podemos decidir o que bom, mas deixemos que seja dado aos nossos filhos.

    O Sr H.G. Wells,43 que um homem de extraordinrio discernimento, ressaltou num recentetrabalho que isso aconteceu por questes econmicas. Os velhos economistas, diz ele, fizeramgeneralizaes, e estas estavam (na viso do Sr Wells) erradas, em grande maioria. Mas os novoseconomistas, diz ele, parecem ter perdido o poder de fazer qualquer generalizao. E ocultam talincapacidade ao apresentar a tese geral de que so, em casos especficos, especialistas umaalegao suficientemente prpria para um cabeleireiro ou um mdico da moda, mas indecente paraum filsofo ou um homem de cincia.44 No entanto, apesar da animadora racionalidade com que o SrWells faz tal observao, podemos dizer que at ele caiu no mesmo grande erro moderno. Nasprimeiras pginas do excelente livro Mankind in the Making,45 despreza os ideais da arte, religio,

  • moralidade abstrata e tudo mais, e diz que vai considerar o homem no seu principal propsito, afuno de paternidade (ou maternidade). Discutir a vida como um emaranhado de nascimentos.No indagar o que far surgir santos ou heris satisfatrios, mas o que far surgir pais e messatisfatrios. Tudo apresentado de modo to sensvel que levar alguns minutos at que o leitor se dconta de que isso outro exemplo de evaso inconsciente. Como saber qual o bem em gerar umhomem at que tenhamos compreendido qual o bem em ser um homem? Estamos apenas passandoao leitor um problema que ns mesmos no ousamos resolver. como se algum fosse perguntado:Para que serve um martelo?, e a pessoa respondesse: Para fazer martelos; e quando lhe fosseperguntado: E esses outros martelos, para que servem?, tal pessoa respondesse: Para fazer outrosmartelos. Esse homem estaria perpetuamente evitando a questo do supremo uso da carpintaria. Damesma forma, o Sr Wells e todos os demais, pelo bom uso dessas expresses, evitam a questo dovalor ltimo da vida humana.

    O exemplo do discurso geral sobre progresso , de fato, extremo. Como enunciado nos dias dehoje, o progresso simplesmente um comparativo do qual no determinamos o superlativo. Opomoscada ideal de religio, patriotismo, beleza, prazer sensual ao ideal alternativo do progresso isto ,contrapomos cada proposta de conseguir algo do que conhecemos com a proposta alternativa de obtermuito mais daquilo que ningum conhece. O progresso, devidamente compreendido, tem, de fato, umsignificado muito digno e legtimo. Mas, se usado em contraposio a ideais morais definidos, setorna absurdo. Assim, mesmo no sendo verdade que o ideal de progresso deva ser confrontado com afinalidade tica ou religiosa, o inverso verdadeiro. Ningum pode usar a palavra progresso amenos que tenha um credo definido e um rgido cdigo moral. Ningum pode ser progressista sem serdoutrinal. Quase poderia dizer que ningum pode ser progressista sem ser infalvel de qualquerforma, sem acreditar em certa infalibilidade. Pois o progresso, pelo prprio nome, indica uma direo;e no momento em que temos a mais nfima dvida sobre qual direo tomar, ficamos, da mesmaforma, em dvida sobre o progresso. Talvez, desde o comeo do mundo, nunca tenha havido umperodo com menos direito de usar a palavra progresso do que o nosso. No catlico sculo XII, nofilosfico sculo XVIII, a direo pode ter sido boa ou ruim, os homens podem ter discordado mais oumenos a respeito do quanto progrediram, e em qual direo, mas, no geral, concordavam a respeito dadireo tomada, e conseqentemente tinham a genuna sensao de progresso. Todavia, discordamosexatamente sobre a direo. Se a futura excelncia reside em ter mais ou menos leis, em ter mais oumenos liberdade; se a propriedade ser finalmente concentrada ou finalmente dividida; se a paixosexual alcanar um patamar saudvel num intelectualismo quase virgem ou numa completa liberdadeanimal; se devemos amar a todos com Tolsti46 ou se no devemos poupar ningum comoNietzsche;47 a respeito dessas coisas que lutamos hoje em dia. No s verdade que a poca quemenos determinou o que o progresso seja a mais progressista das pocas, como, alis, verdadeiroque o povo que menos estabeleceu o que o progresso seja o povo mais progressista. massacomum, aos homens que nunca se preocuparam com o progresso, talvez possa ser confiado oprogresso. Os indivduos particulares que falam sobre o progresso correriam para os quatro cantos domundo quando o disparo do tiro assinalasse o comeo da corrida. No digo, portanto, que a palavraprogresso no tenha significado; digo que no tem significado sem a definio prvia de umadoutrina moral, e que tal definio s pode ser aplicada a grupos de pessoas que mantenham umadoutrina comum. O progresso no uma palavra ilegtima, mas parece ser logicamente evidente que ilegtima para ns. uma palavra sagrada, uma palavra que s poderia ser usada acertadamente peloscrentes fervorosos e nas eras de f.

  • 27 Robert Louis Stevenson (18501894), romancista e poeta escocs, autor de clssicos como A ilha do tesouro (1883) e O mdico e o monstro (1886).28 Citao de um trecho do ensaio Pulvis et Umbra de Robert Louis Stevenson (18501894), que apareceu na obra Across the Plains em 1892. Em ingls, o trecho seria: Stillobscurely fighting the lost fight of virtue, still clinging, in the brothel or on the scaffold, to some rag of honour, the poor jewel of the souls!.29 Rua no bairro financeiro de Londres.30 George William Foote (18501915) foi um livre-pensador secularista que exerceu grande influncia no movimento ingls dos freethinkers. Em 1882, foi acusado deblasfmia por publicar vrias charges de temas bblicos e preso em 1883. Aps doze meses de priso, foi libertado e considerado, at o fim da vida, um heri para os crculos doslivres-pensadores.31 Provavelmente Chesterton se refere aos convidados embriagados citados na passagem das Bodas de Can em Jo 2, 10.32 Henrik Johan Ibsen (18281906) foi um dramaturgo noruegus, considerado um dos criadores do teatro realista moderno.33 Henry Ren Albert Guy de Maupassant (18501893) foi um escritor e poeta francs. Apreciava as situaes psicolgicas e de crtica social; para isso, utilizava a tcnicanaturalista. Foi amigo de Gustave Flaubert (18211880).34 mile-douard-Charles-Antoine Zola (18401902), ou simplesmente mile Zola, foi um consagrado escritor francs, considerado criador e representante mais expressivo daescola literria naturalista, alm de uma importante figura libertria da Frana.35 Em ingls, to call a spade a spade, literalmente, chamar uma p de p, ou seja, chamar as coisas pelo prprio nome. Como Chesterton utilizou um provrbio paraexpressar sua idia, decidimos substituir por um provrbio em lngua portuguesa de sentido equivalente.36 Pea teatral de 1881. Critica o senso de dever e a hipocrisia da moral burguesa, a instituio do casamento, o cristianismo e lida com temticas como alcoolismo, doenasvenreas e eutansia. No Brasil, em 1895, a pea foi recebida com crticas por defender o amor livre.37 O Sr Podsnap uma personagem de Charles Dickens (18121870), usada para fazer uma cida crtica alta classe mdia inglesa da era vitoriana na obra Our Mutual Friend.A obra, bastante admirada por Chesterton, foi publicada em folhetins entre maio de 1864 e novembro de 1865. Presunoso, pomposo e cheio de si, Dickens dedica um captulointeiro da obra para descrev-lo (captulo 11).38 Personagem da pea O inimigo do povo de 1882. O mdico, cidado honrado, constata que a qualidade das guas da cidade balneria da Noruega onde residia era pssima. Adivulgao desse fato acabaria com o turismo local, mas o mdico insiste em fazer prevalecer a verdade. Isso o torna detestado por todos e o transforma em inimigo do povo;contudo, permanece sustentando a verdade at o fim.39 Pea de 1877 que tambm ataca a falncia da moral e dos costumes. Ao final, a personagem Lona Hessel conclui dizendo que o esprito da verdade e o esprito da liberdade so eles os pilares da sociedade.40 Pea de 1884. Rene elementos de mistrio durante um jantar na casa de um rico industrial. Nessa noite se descobre um srdido cenrio de falsidades e manipulaes queculminar na morte da menina Hedvig. Ambies, fraquezas, leviandades, egosmos e radicalismos vo sendo descobertos e a nica soluo para vencer tais males a redenoda mentira pelo dilogo franco.41 Obra crtica de George Bernard Shaw (18561950), de 1891, escrita em resposta s controvrsias surgidas a partir da apresentao das peas de Ibsen nos palcos de Londresno final da dcada de 1880. Vale acrescentar que, nesta obra, Shaw se apropria ideologicamente de Ibsen e o v como um arauto da libertao individualista, atribuindo-lheexageradamente uma importncia maior que a de Shakespeare no teatro.42 Capital do inferno que significa o lugar de todos os demnios. No poema pico de 1667, Paraso Perdido, o profundo inferno descrito da seguinte forma: A terrvelmanso, torva, espantosa / Priso de horror que imensa se arredonda / Ardendo como amplssima fornalha. / Mas luz nenhuma dessas flamas se ergue; / Vertem somenteescurido visvel (canto I, versos 7983).43 Herbert George Wells (18661946), conhecido como H.G. Wells, foi um escritor britnico e membro da Sociedade Fabiana, a quem Chesterton dedica o captulo V dopresente livro.44 Citao do livro A Modern Utopia, de 1905, no captulo 3, seo 3, onde H.G. Wells trata dos economistas utpicos.45 Publicado em 1903, a obra foi escrita como continuao de Anticipations (1901). O livro apresenta uma teoria geral para o desenvolvimento social e a conduta poltica. A tesecentral a defesa de um estado cientfico e eficiente, e, dentre as previses para o futuro, vale citar a crena de que as mudanas morais dos prximos cem anos se dariam namesma proporo das mudanas mecnicas ocorridas no centenrio anterior. Alm dessa defesa, ridiculariza o conceito positivista de eugenia criado por Francis Galton (18221911) e defende a expanso de polticas educacionais, pois cr que a educao seja o melhor mtodo para melhorar a qualidade da raa humana.46 Liev Nikolievich Tolsti (18281910) foi um dos grandes escritores russos. No fim da vida se tornou um pacifista e pregou uma vida simples em contato com a natureza.Para conferir a opinio de Chesterton sobre este autor, ver captulo X deste livro.47 Friedrich Nietzsche (18441900) foi um filsofo alemo que criticou a cultura ocidental e a moral judaico-crist. Pregou uma nova genealogia de valores para desmascarar ospreconceitos e iluses do gnero humano. Entre as novas virtudes de Nietzsche esto, por exemplo, o orgulho, o amor sexual, a inimizade, a vontade inabalvel, a disciplina daintelectualidade superior e a vontade de poder.

  • CAPTULO III

  • NO Sr Rudyard Kipling e acriao de um mundo menor

    O H, NA TERRA, assunto desinteressante; a nica coisa que existe so pessoas desinteressadas.Nada to necessrio quanto a defesa das pessoas enfadonhas. Quando Byron48 dividiu a

    humanidade em entediantes e entediados,49 deixou de notar que as mais altas qualidades estototalmente presentes nos entediantes e as mais baixas, nos entediados, entre os quais se inclua. Oentediante, pelo brilhante entusiasmo, pela solene felicidade, pode, de alguma forma, ter se tornadopotico. O entediado, certamente, provou ser banal.

    Podemos, sem dvida, considerar um estorvo contar todas as folhas de grama ou as folhas dasrvores; no por ousadia ou alegria, mas pela falta de ousadia ou alegria. O entediante seguiria emfrente, ousado e alegre, e consideraria as folhas de grama to esplndidas quanto as espadas de umexrcito.50 O entediante mais forte e mais feliz do que somos; um semideus no, um deus. Poisos deuses no se cansam da repetio das coisas. Para eles, o entardecer sempre novo, e a ltima rosa to vermelha quanto a primeira.

    O sentimento de que tudo potico algo consistente e absoluto, no mera questo de fraseologia oupersuaso. No simplesmente verdade, algo determinvel. Os homens podem ser incitados a neg-lo; podem ser provocados a mencionar qualquer coisa que no seja uma questo de poesia. Lembro-meque, h muito tempo, um sensato editor assistente se aproximou de mim com um livro nas mosintitulado Sr Smith ou A famlia Smith, ou algo parecido. Disse-me: Bem, creio que nodescobrirs neste livro nada do teu miservel misticismo, ou coisa semelhante. Fico contente emdizer que o decepcionei; mas a vitria foi to bvia e fcil! Na maioria dos casos, o nome no potico, mas o fato o . No caso de Smith, o nome to potico que deve ser rdua e herica a tarefade viver sua altura. O nome de Smith o nome de uma profisso51 respeitada at mesmo por reis,um nome que pode reivindicar metade da glria da arma virumque52 que todos os picos aclamaram.O esprito do ferreiro est to prximo do esprito da cano que se mesclaram em milhes depoemas, e cada ferreiro um harmonioso ferreiro.

    At as crianas do vilarejo sentem que, de uma forma um tanto obscura, o ferreiro potico comono o so o dono da mercearia e o sapateiro ao danar em meio a fagulhas e ensurdecedorasmarteladas na gruta da violncia criativa. O repositrio bruto da natureza, a apaixonada capacidade dohomem, o mais resistente dos metais da Terra, o mais estranho dos elementos da Terra, oinconquistvel ferro subjugado pelo nico conquistador, a roda e o arado, a espada e o martelo avapor, as armaduras militares e todas as lendas de lutas armadas, todas essas coisas esto escritas brevemente, verdade, mas bem legveis no carto de visitas do Sr Smith. Mesmo assim, nossosromancistas chamam seus heris de Aylmer Valence, que nada significa, ou ainda VernonRaymond, que tambm nada significa, quando est ao alcance deles dar o nome sagrado de Smith nome feito de ferro e fogo. Seria natural que certa nobreza, certo maneio de cabea, certo gesto noslbios, distinguisse cada um dos que trazem o nome de Smith. Talvez assim seja; creio que sim. Quemquer que sejam os novos-ricos, os Smiths no o so. Desde a mais obscura aurora da histria, esse clse lanou na batalha; seus trofus esto em cada mo; seu nome est em todo o lugar; mais antigoque as naes e seu smbolo o martelo de Thor.

  • Mas, como tambm mencionei, esse no bem o caso. muito comum que coisas comuns sejampoticas; no to comum que nomes comuns sejam poticos. Na maioria dos casos, o nome oobstculo. Muitas pessoas falam como se a afirmao de que todas as coisas so poticas fosse meracriatividade literria, um jogo de palavras. O oposto a mais pura verdade. A idia de que algumascoisas no so poticas que literria isso que mero produto das palavras. O nome cabina desinaleiro53 no potico. Mas a coisa cabina de sinaleiro potica. um local onde homens, naagonia da vigilncia, acendem luzes vermelho-sangue e verde-mar a fim de evitar a morte de outroshomens. Essa a descrio pura e simples do que a palavra; a prosa s aparece no que nomeado. Onome caixa de correio54 no potico. Mas a coisa caixa de correio o ; o lugar a que amigos eamantes confiam mensagens, conscientes de que quando assim o fazem, sero sagradas