G A Eduardo Braga - CURSOS UEA · uma composição que complementa a publicação inaugural. ... da...

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GOVERNADOR DO AMAZONAS

Eduardo Braga

VICE-GOVERNADOR DO AMAZONAS

Omar Aziz

SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA

Robério Braga

SECRETÁRIA DE ESTADO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Marilene Corrêa

SECRETÁRIA EXECUTIVA

Delzinda Barcelos

ASSESSOR DE EDIÇÕES

Antônio Auzier

ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DA CULTURA

Saul Benchimol – Presidente

Av. Sete de Setembro, 154669005-141 – Manaus-AM-BrasilTels: (92) 633.2850 / 633.3041 / 633.1357Fax: (92) 233.9973E-mail: [email protected]

ANO-2, N.º 2

MANAUS, JANEIRO-JUNHO, 2004

Copyright © 2004 Governo do Estado do AmazonasSecretaria de Estado da CulturaUniversidade do Estado do Amazonas – UEA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

Reitor Lourenço dos Santos Pereira BragaVice-Reitor José Dantas Cyrino

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

Pró-Reitor Admilton Pinheiro Salazar

COORDENADORIA GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO

Coordenadora Maria de Fátima Mendes Acácio Bigi

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL

Coordenador Fernando Antonio de Carvalho Dantas

HILÉIA – REVISTA DE DIREITO AMBIENTAL DA AMAZÔNIA

COORDENADORES(AS)Profa. Cristiane DeraniProf. Sérgio Rodrigo Martinez

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Fernando Antonio de Carvalho DantasProf. Luiz Edson FachinProf. David Sánchez RubioProf. Ozório José de Menezes FonsecaProfa. Cristiane DeraniProf. Sérgio Rodrigo MartinezProfa. Solange Teles da Silva

PROJETO GRÁFICO (KINTAWDESIGN)Capa: Marcicley ReggoDiagramação: Patrícia Braga

REVISÃO

Marcos Sena

FICHA CATALOGRÁFICA

Ycaro Verçosa dos Santos– CRB-11 287

Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. ano. 2, n.º 2.Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas / Secretaria deEstado da Cultura / Universidade do Estado do Amazonas, 2004.

336 p. ISSN: 1679-931 (Semestral)

1. Direito Ambiental – Amazônia I. Universidade do Estadodo Amazonas

CDD: 344.046811CDU 344 (811)

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEAPrograma de Pós-Graduação em Direito AmbientalRua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar, Centro, CEP: 69010-170Manaus – Amazonas – BrasilTel./Fax. 55 92 627-2725E-mail: [email protected]: www.uea.edu.br

Solicita-se permuta/Solicitase canje/Exchange desiredOn demande l’échange/Vogliamo cambio/Wir bitten um Austausch

Sumário

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .07

PARTE 01

TRIBUTAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: O ICMS ECOLÓGICOFernando Facury Scaff - Lise Vieira da Costa Tupiassu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15

CULTURA Y NATURALEZA: LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIO AMBIENTAL BIO(SÓCIO)DIVERSOJoaquín Herrera Flores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

O TRIPÉ DO DESENVOLVIMENTO INCLUDENTEIgnacy Sachs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105

AMAZÔNIAS: SOCIEDADES DIVERSAS ESPACIALIDADES MÚLTIPLASJosé Aldemir de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

SOCIEDAD DEL CONOCIMENTO, BIOTECNOLOGIA Y BIODIVERSIDADJuan Antonio Senent de Frutos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115

PROJETISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: O CASO DOS PEQUENOS PROJETOSAna Carolina Cambeses Pareschi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145

PARTE 02

NORMAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONALEdson Ricardo Saleme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201

A “CIDADANIA ATIVA” COMO NOVO CONCEITO PARA REGER AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE ASSOCIEDADES INDÍGENAS E O ESTADO MULTICULTURAL BRASILEIRO

Fernando Antonio de Carvalho Dantas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .215

MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E A GARANTIA DO CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Sandro Nahmias Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .231

PARTE 03

O RISCO ACERCA DA UTILIZAÇÃO DA TRANSGENIA (ORGANISMOS GENETICAMENTEMODIFICADOS) NA AGRICULTURA MODERNA

Bruno Gasparini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .251

CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃOTiago Fensterseifer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .273

O RESGUARDO DO PATRIMÔNIO CULTURAL POR MEIO DA MEMÓRIA COLETIVAPaulo Fernando de Britto Feitoza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .299

PARTE 04

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO SEMESTRE (RESUMOS)

INSTITUTO DO TOMBAMENTO NA PROTEÇÃO DO BEM CULTURALRobério dos Santos Pereira Braga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .321

SOBERANIA NA AMAZÔNIA LEGAL SOB O ENFOQUE DA DOUTRINAJURÍDICA AMBIENTAL BRASILEIRA

Raimundo Pereira Pontes Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .323

RESPONSABILIDADE OBJETIVA NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURALPaulo Fernando de Brito Feitoza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .325

Introdução

Segundo número. Segunda voz. Como em umasinfonia, a revista Hiléia traz em seu segundo número

uma composição que complementa a publicação inaugural.Concentra-se em alguns temas, mas expande sua abordagem,passando pelo direito interno, internacional e comparado. Ofoco essencial são os direitos dos seres humanos a existiremem seu espaço peculiar, a Amazônia, num contexto deglobalização e internacionalização de direitos. Sócio ebiodiversidade, biotecnologia, autodeterminação dos povospara um desenvolvimento compatível com sua cultura enatureza compõem-se com a sempre presente questão deefetivação dos direitos. Todos estes temas estão presentes,amalgamados no desenrolar da vida, mas a abordagemcientífica exige que se os separe, e esclareça. De fato,apresentar a vida, a natureza e suas relações com os modos deviver e fazer humanos é sempre parcial e imperfeito, que aindarequer um esforço do teórico que, todavia, deve manter-se nahumildade de suas limitações.

Schönberg nos consola: “Se se nos perguntam porque semede a música em tempo, só se pode responder: porque nãopodemos apresentá-la de outra maneira. Medimo-la para fazê-la semelhante a nós mesmos, para limitá-la. Nós apenasconseguimos reproduzir o que está limitado”. (Armonia, Realmusical madrid, 1979, p. 238)

O Direito permeia de maneira expressa ou subjacentetodos os textos desta Hiléia científica, como uma sustentação

7Hiléia

Revista de DireitoAmbiental da Amazônia

harmônica constante para o desenvolvimento dos temasplurais e diversos. Assim, questões como o desenvolvimentosustentável de Ignacy Sachs, o espaço na condução dodesenvolvimento de José Aldemir de Oliveira e a discussãosobre os projetos de desenvolvimento de Ana CarolinaCambeses Pareschi, são políticas que se constroem sobre basesjurídicas, as quais facilitarão ou reterão a sua efetividade.

O tema natureza e cultura, constância necessária aonosso programa de Pós-graduação em Direito Ambiental,emerge com matizes ricos e variados. Por Joaquin HerreraFlores somos conduzidos ao universo complexo que revela asimplicidade do fato que jamais se afasta: somos matériaforjada nas mãos da natureza e cultura. Neste tomdesenvolvem-se as composições de Juan Antonio Senent deFrutos, Fernando Antonio de Carvalho Dantas, Julio Gasparinie Paulo Fernando de Britto Feitoza.

Estamos aqui, não seria demasiado afirmar, no realizarda ciência, pelos passos esclarecedores de Mario de Andradeem relação à música erudita no Brasil: trazemos "ouniversalismo no homem, evidenciando as diferençasexistentes entre as raças e legitimando em todos osagrupamentos humanos a consciência racial". (PequenaHistória da Música, ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1987, p. 155).Cria-se o particular no universal, sem dele se depreender, eainda, pelo universal valorizado, no que o particular é diverso.Esta é a música da terra para o poeta, esta é a percepçãoaportada pela Hiléia em sua segunda edição.

E o direito continua sua melodia, permeando os referidostextos e ganhando predominância nos textos de FernandoFacury Scaff e Lise Vieira da Costa Tupiassu, assim como nostextos de Sandro Nahmias Melo e de Edson Ricardo Saleme.

Honrando a memória de Alexandre Ferreira, o segundonúmero de Hiléia mostra que conhecimento sobre a Amazôniaé polifônico, não se limitando a espaços artificiais de "ramos"do saber. Ainda, como o precursor baiano, nas palavras deArthur Reis, "sob a paixão e os impulsos de sua vocação" e"vendo com olhos de ver", segue a busca pela compreensão daAmazônia, seu espaço no mundo das relações humanas e aimportância do seu reconhecimento para o fazer e sentir.

8HiléiaRevista de DireitoAmbiental da Amazônia

Retenhamos a musicalidade nacional na produçãoacadêmica e teremos, sem dúvida, o vigor da produçãoinspirada que revela os tons da melodia do próprio, do local;que se harmoniza com os sons polifônicos das contribuiçõesdiversas e resulta na construção de um pensamento atento erevelador. Recebamos esta nova publicação da Hiléia com oentusiasmo de quem sabe as notas musicais e se impressionacom seus arranjos e combinações.

Foram muitas as mãos e mentes que dedilharam estesegundo número da Hiléia. Devemos agradecer aos autores; aonosso magnífico reitor professor Lourenço dos Santos PereiraBraga e ao secretario de estado da cultura Robério dos SantosPereira Braga. Aos professores do Programa de Pós-graduaçãoem Direito Ambiental, em especial a Andréa Borghi MoreiraJacinto que resumiu os textos e as nossas, sempre diligentes,secretárias Silvana e Clarissa. Por fim, aos mestrandos doPrograma, estímulo e esperança por um futuro possível.

Profa. Dra. Cristiane DeraniCoordenadora da Revista Hiléia

Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho DantasCoordenador do Programa de Mestrado em Direito Ambiental

9Hiléia

Revista de DireitoAmbiental da Amazônia

– PARTE 01 –

TRIBUTAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: ICMS ECOLÓGICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15

1. Tributação, Globalização e as Futuras Gerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15

2. O Direito Tributário como implementador de políticas públicas . . . . . . . . . . . . . . . .21

3. Os fundamentos do Federalismo Fiscal Ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23

4. O ICMS Ecológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25

5. O ICMS Ecológico na experiência de alguns Estados brasileiros . . . . . . . . . . . . . . . .28

6. Análise da Proposta de Implantação do ICMS Ecológico no Pará . . . . . . . . . . . . . . .31

7. Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35

CULTURA Y NATURALEZA: LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIO AMBIENTALBIO(SÓCIO)DIVERSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

1. De los vértices a los vórtices: abriendo el camino al imaginario ambiental

bio(socio)diverso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

2. La naturaleza es el lugar desde el que tenemos que elevarnos . . . . . . . . . . . . . . . . .43

2.1. La co-implicación entre naturaleza y cultura: mitos cosmogónicos y modificación de losentornos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43

2.2. La exigencia de vivir sintiendo en el Rey Lear y en Ciudadano Kane:

O rio comanda a vida y a vida comanda o rio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50

3. Contra los dos tipos de reduccionismos: el biologicismo y el aislacionismo cultural . .55

3.1. El reduccionismo biologicista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56

3.2. El aislacionismo culturalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57

4. El uso político de la naturaleza: la naturaleza como problema histórico

(El Capitán Cook, Joseph Conrad y la Carta de la Tierra) . . . . . . . . . . . . . . . .61

5. Lo cultural y lo “extracultural”: el principio cairológico y los derechos humanos . . . .70

6. Hacia la construcción del imaginario ambiental bio(socio)diverso:

El Imperativo Ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76

6.1. Bio(socio)diversidad y deberes básicos: procesos naturales y aspectos procedimentales

y éticos de las luchas por la dignidad humana en relación con la naturaleza . .76

6.2. Dune de Frank Ebert y el Imperativo Ambiental: los deberes de “sustentabilidad”

y de “precaución” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .80

6.2.1. El deber de sustentabilidad ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .84

6.2.2. El deber de precaución ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .89

O TRIPÉ DO DESENVOLVIMENTO INCLUDENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105

AMAZÔNIAS: SOCIEDADES DIVERSAS ESPACIALIDADES MÚLTIPLAS . . . . . . . . 109

SOCIEDAD DEL CONOCIMENTO, BIOTECNOLOGIA Y BIODIVERSIDAD . . . . . . . . . . .115

1. Biotecnología, recursos naturales y biodiversidad . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115

2. Análisis de los fundamentos culturales de la apropiación de la biodiversidad . . . . . .119

2.1. De la naturaleza como propiedad común del género humano a su

apropiación privativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .119

2.2. De la universalidad del “género humano” a los “pueblos civilizados” . . . . . . . . .127

2.3. La reducción cultural del trabajo humano específico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129

2.4. La reducción mercantilista de la funcionalidad económica de los bienes naturales .133

2.5. Pérdida de la interdependencia o de la racionalidad reproductiva . . . . . . . . . . . .134

3. El problema de la utopía en la sociedad del conocimiento: el caso de la

biotecnología frente a la biodiversidad . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .136

3.1. El nihilismo de la información frente a la naturaleza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .136

3.2. La paradoja de la utilidad y la racionalidad científica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .140

3.3. Descubriendo los límites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .142

PROJETISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: O CASO DOS PEQUENOS PROJETOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145

1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145

2. PP-G7 e PD/A como espaços de disputas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .146

3. Tensões nos pequenos projetos: entre o projetismo e o desenvolvimento sustentável 162

4. A gestão do projeto e a organização do trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .162

5. A organização social, política e institucional das comunidades e entidades . . . . . . .169

6. Assessoria técnica e as dificuldades de projetos com fins econômicos:

termos da parceria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .176

7. A Rede Frutos do Cerrado e o PD/A: do namoro ao projetismo e voltando . . . . . . . .181

8. Considerações Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187

Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .194

Tributação e PolíticasPúblicas: O ICMS Ecológico

Fernando Facury Scaff 1

Lise Vieira da Costa Tupiassu2

1. TRIBUTAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E AS FUTURAS GERAÇÕES

Omundo passa por grandes transformaçõeseconômicas, políticas e sociais.

No âmbito econômico, a tônica é a intensificação do processo deglobalização, fenômeno marcado pela quebra do paradigmasocialista, fruto da falência3 do socialismo real,4 que tornou ocapitalismo um processo ideologicamente totalitário.5 A revoluçãotecnológica, especialmente nos meios de comunicação, vemtransformando a sociedade, através da intensificação da relação detrocas econômicas.

Existem paradoxos neste processo de globalização, pois aomesmo tempo em que se trata de um fenômeno real, palpável, deve-se registrar a explosão de nacionalismos em várias partes do globo,sendo intensa nos países do leste europeu,6 e também existente na

1 Doutor em Direito pela USP, Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal doPará e Advogado.

2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Direito Publico pela Université des SciencesSociales de Toulouse.

3 A falência do paradigma apenas acelerou o processo de globalização, e não o fez surgir, pois a consolidação e aexpansão do capital para além das fronteiras nacionais têm origens remotas.

4 Não do ideal socialista, mas da tentativa de colocá-lo em prática através dos modelos de Estado autodenominadosde socialistas.

5 Pois monopoliza todos os poderes componentes da sociedade, mesmo os politicamente mais periféricos; é baseadona educação e massificação de propaganda em seu próprio favor e desconsidera a exposição de idéias divergentescomo “fora de padrão”, entre outras características.

6 A questão dos Bálcãs envolvendo a Iugoslávia é um exemplo.

15Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

África.7 Outro paradoxo diz respeito ao papel deste processo deglobalização quase exclusivamente à livre circulação do capitalfinanceiro, e muito pouco à circulação de pessoas e bens. Nesteaspecto, as barreiras alfandegárias e de imigração8 estão presentes ese intensificando.

No âmbito político estamos frente a uma transformação domodelo de Estado, que antes era de Bem-Estar e hoje é marcado peloneoliberalismo. A declarada intenção é reduzir o tamanho do Estado,a fim de que sua participação econômica ocorra muito mais pelaatuação sobre o domínio econômico, como agente normatizador demercados, do que como agente de produção/comercialização de bensou serviços, ao atuar no domínio econômico.9 O neoliberalismo,portanto, necessita de manutenção do Estado fiscalizador, a fim deque as regras do jogo econômico sejam asseguradas e o “livremercado”10 possa atuar. Resta saber, atuar em prol de quem?

No âmbito social, vemos um processo marcado por amplastransformações, seja pela maior complexidade dos sistemas sociais,seja pela mais ampla participação ativa dos agentes sociais nocenário econômico.11 Novas formas de organização da sociedade comoas organizações não-governamentais, estão mudando o perfil dasociedade.

Dentro deste prisma é que está em processamento umaalteração dos conceitos de soberania, território e povo. E, porconseguinte, a concepção e o papel do Direito na sociedade.

O conceito de povo, por exemplo: de singela massa de manobranos discursos políticos,12 passa a ser considerado também como ummero e descartável índice econômico, uma simples variável dosgrandes movimentos de capital em disparada pela melhor posiçãoeconômica global. Daí surge o fenômeno do desemprego estrutural, ea colocação em cheque do modelo anteriormente existente nasociedade. Do pleno emprego passamos ao desemprego estrutural e à

7 As lutas entre as etnias tutsi e hutu é outro exemplo.

8 A grande exceção é a União Européia, apenas para os cidadãos dos países membros. Tal pauta de preocupações nãoencontra eco nem mesmo na proposta da formação de blocos comunitários, como o Nafta e o Mercosul, e muitomenos na Alca.

9 Sobre os úteis e instrumentais conceitos de intervenção sobre e no domínio econômico, ver Eros Roberto Grau, AOrdem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 3.ª ed., 1997, p. 156-8.

10 Não existe mercado livre, mas mercado forjado e conformado pelos interesses humanos envolvidos nas relações detrocas econômicas. Assim, não há uma mão invisível, mas um projeto humano, visibilíssimo, estabelecendo asregras do jogo.

11 Ver o excelente estudo de Jorge Correa Sutil, “Modernización, democratización y sistemas judiciales”, In: LaEconomia Política de la Reforma Judicial. Washington: Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1997, coord.Edmundo Jarquín y Fernando Carrillo, p. 173-187.

12 Ver Friedrich Müller Quem é o Povo: A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998,incluindo um esplêndido prefácio de Fábio Konder Comparato.

16 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

flexibilização do direito do trabalho, que reduz grande parte dosdireitos sociais, colocando-os em um patamar de livre negociação,necessária (sob o argumento do capital) para poder permitir que asempresas sobrevivam em um mundo de acirrada concorrência.13

Trata-se de livre negociação entre partes formalmente iguais, porémeconomicamente em desequilíbrio, o que transforma negociação emimposição.

Em suma, é importante recolocar o homem como o centro daspreocupações da sociedade. Os operadores jurídicos devem trabalhar paraque o estudo das humanidades e a globalização dos direitos humanossejam o principal foco de atenções nestes tempos que correm.14

Deve-se também reelaborar o conceito de território.Devemos passar a raciocinar com os grandes blocos

econômicos, do tipo Nafta e União Européia. No mesmo sentido aembrionária Alca e o quase finado Mercosul. Logo, o Direito de estatalpassou a ser gerido nos ambientes multiestatais, com diversoscentros de poder instrumentalizando as decisões.

No mesmo sentido deve-se analisar as relações de poder privado.Com o incremento das relações de troca, o centro das decisõesestratégicas saiu das filiais das empresas localizadas em determinadoterritório para a matriz, onde são gestadas as decisões de investir,consumir e poupar, que afetam os agregados macroeconômicos emtodos os países em que aquelas empresas negociam.

Não é à toa que se rediscute o papel das atividades diplomáticastradicionais em todo o mundo, centralizando as atividades dosprofissionais ligados a essa área muito mais nas atividadeseconômicas que propriamente de representação estatal.

Inegavelmente, houve uma sensível redução das fronteirasentre os países em razão da revolução tecnológica que vem sendodesenvolvida.

Em face dos fatores acima mencionados, que acabaram porgerar mutações no conceito de território e de povo, verificamos que oconceito de soberania também foi particularmente afetado.

O centro de decisões de um país encontra-se parcialmentedeslocado para outras partes do mundo, por agentes públicos e

17Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

13 Ver, sob o aspecto econômico, Viviane Forrester, O Horror Econômico. São Paulo: Unesp, 1997. Sob o aspectojurídico, Rosita de Nazaré Sidrin Nassar, Flexibilização do Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 1991; Arion SayãoRomita, “A Globalização da Economia e o Poder dos Sindicatos”. In: Ordem Econômica e Social – Estudos emhomenagem a Ary Brandão de Oliveira. São Paulo: LTR, 1999, coord. Fernando Facury Scaff.

14 Fundamental sobre este tema é a coletânea Direitos Humanos no Século XXI, organizada por Paulo Sérgio Pinheiroe Samuel Pinheiro Guimarães, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais e Fundação Alexandre de Gusmão,2 vols., bem como o excelente livro de Fábio Konder Comparato, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. SãoPaulo: Saraiva, 1999.

privados de outras cidadanias, sem nenhuma responsabilidade socialcom o que se desenvolve naquele país e, muitas das vezes, afastado dapossibilidade de ser alcançado pelas decisões dos Poderes locais.

Um país não é mais soberano com antes, cotejado com a épocaem que Jean Bodin cunhou o conceito. A soberania encontra-se maisrelativizada do que nunca.

Por conseguinte, a delimitação do Direito como objeto de aplicaçãode normas estatais (soberania), sobre determinada área geográfica(território), a fim de regular as relações entre as pessoas (povo) encontra-se colocada em cheque, sendo necessário pensarmos o Direitoglobalmente, como um instrumento de desenvolvimento entre asnações, centrado na dimensão humana global.

E daí surge todo um novo âmbito de discussão, uma vez que oDireito que temos utilizado é um Direito pensado e criado para funcionardentro de uma matriz determinada pelos conceitos de soberania, territórioe povo que hoje não mais existem como dantes, amplamente modificadospela tecnologia e pelo incremento do sistema de trocas.

Tudo que acima foi exposto afeta profundamente o DireitoTributário, que é um Direito centrado fortemente na noção deterritório. A extraterritorialidade do Direito Tributário é umaexcepcionalidade decorrente dos tratados internacionais para evitar abitributação. Ou ainda, quando inserido no contexto de uma uniãoaduaneira ou mercado comum, sempre visando a equilíbrio tributáriodentre os países envolvidos.

É ainda um Direito centrado fortemente no formalismo dasconcepções, onde as relações sempre ocorrem dentro de um prismaque envolve apenas a função de arrecadar, e não visando a obtençãode resultados extrafiscais, que alcançam objetivos para além dasingela fórmula de disponibilizar dinheiro privado para a consecuçãodas necessidades públicas, fazendo-o através do Estado.

Desta forma, as modificações ocasionadas pela interseção entreo rígido territorialismo do Direito Tributário e o mundo globalizadovem gerando diversas perplexidades que deixam muito mais dúvidasdo que certezas dentre os estudiosos do Direito.

As respostas para estas perplexidades entre a teoria tradicionale a realidade multifacetada e dinâmica hoje encontrada devem serbuscadas dentro dos grandes pilares do Direito, que são os PrincípiosJurídicos, e não nas regras que os implementam. Daí ser necessáriofalar das distintas dimensões do Direito para se poder pensar emsoluções globais para problemas locais.

18 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

Historicamente os direitos fundamentais surgiram como umadefesa do cidadão contra o Estado. Tal concepção estava inseridadentro da análise da luta contra o Absolutismo, combativa da totalcentralização do Poder.

Desta época é o ressurgimento da idéia de liberdade e deigualdade, pois, uma vez conquistadas tais garantias individuais, aordem natural se encarregaria de fazer com que o bem-estar e aprosperidade adviessem. Acreditava-se que a ordem natural domercado possibilitaria fazer surgir o desenvolvimento.

Ocorre que a ordem natural apenas privilegiou os que possuíampoder econômico, fazendo maior o fosso existente com aqueles queapenas portavam sua força de trabalho como elemento de troca nomercado. As soluções individuais não foram suficientes para resolveras questões sociais.

Constatada a insuficiência de implementação desta fórmula dedireitos e garantias fundamentais, foi necessário ampliar o espaço decompreensão destes Princípios. Observe-se que não se trata deultrapassar esta concepção de direitos fundamentais, mas de ampliá-lavisando alcançar as prestações positivas que a sociedade necessita quesejam desenvolvidas pelo Estado, ou por ele impostas aos gruposeconômicos mais fortes e dominantes. Daí surge uma candentediscussão sobre a expressão geração de direitos, que pressupõe oultrapassamento de um rol de direitos por outro, e a expressão dimensãode direitos que implica na ampliação daquele rol inicial, sem oafastamento do anterior.

Nesse momento surge a ampliação daqueles direitos, a fim dealcançar o homem em um grupo determinado, permitindo que direitosreferentes a esta sua condição pudessem ser exercidos e garantidospelo ordenamento jurídico. Surgiram então as conquistas dos direitossociais em vários ordenamentos jurídicos do planeta, dentre eles obrasileiro, no início do século XX. Não se trata apenas de direitos dapessoa contra o Estado, mas do homem inserido no sistema econômicode produção, com a necessária intervenção do Estado para diminuir asdesigualdades sociais e econômicas existentes.

Porém a evolução dos estudos jurídicos constatou serinsuficiente a preocupação com o coletivo, sendo também necessárioque o Direito se ocupasse dos interesses difusos da sociedade, que sãoaqueles que atingem um grupo indeterminado, e indeterminável, depessoas. São tais as lesões causadas por poluição ambiental,congestionamentos de tráfego, problemas de direito do consumidor etc.Não se pode determinar a quantidade de pessoas alcançadas pelo dano.

19Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

A solução individual e a coletiva não conseguiram dar soluçãoa este tipo de questão resses difusos o conceito de futuras gerações.E aí surge uma nova compreensão dos direitos fundamentais.

Passam a ser considerados também os direitos dos que aindanão nasceram. A dimensão da pessoa humana é projetada no futuro,não mais apenas como a dimensão civilista do nascituro, mas de todauma futura (e ainda nem mesmo gestada) geração de pessoashumanas.

É dentro deste preceito que se encontra o Direito aoDesenvolvimento Econômico, que é “um direito humano inalienável e quea igualdade de oportunidade para o desenvolvimento é uma prerrogativatanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações”.15

O interesse protegido não é o da atual geração, mas suapreservação para as futuras gerações. Não é mais um interesse doindivíduo contra o Estado, ou inerente apenas a certa coletividade,mas um interesse difuso e que abrange não apenas as atuais, mas asfuturas gerações, que deve ser interpretado de comum acordo com aidéia de globalização, de forma a abranger toda a espécie humana,atualmente existente e a ser futuramente gerada.

É esta nova dimensão dos direitos fundamentais que deve estarpresente em nossa mente ao interpretar vários dos PrincípiosJurídicos dispostos em nosso ordenamento.

É antiga a expressão que enquadrava o mundo como umaaldeia global. Contudo, apenas hoje, com o progresso dos meios decomunicação é que se passa a ter uma pálida idéia do que representaesta afirmação. Qualquer alteração das condições econômicas emuma parte do globo terrestre acarreta influências imediatas emoutros países.

Verifica-se desta forma que a compreensão jurídico-tributáriadeve estar inserida em toda a problemática acima exposta, pois énecessário que o Estado exerça sua soberania para arrecadar osrecursos gerados pelo povo localizado em um determinado território.Mas não se pode perder de vista que tais conceitos vêm sendocolocados em cheque, como acima exposto. Desta forma, não se devepensar o Direito Tributário apenas como um instrumento dearrecadação, mas também como um instrumento para a consecuçãode políticas públicas em diversas outras áreas do conhecimentohumano, como, por exemplo, a área ambiental.

Por enquanto – e espero que este prazo seja curto –, nosencontraremos frente a um conflito entre o caráter eminentemente

20 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

15 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, ONU, 1986, preâmbulo.

nacional e territorial do direito tributário contemporâneo e suaperspectiva de transformação em um direito tributário das futurasgerações, marcado pela necessária globalização de direitos, devendofazer frente às atividades econômicas transnacionais que sedesenvolvem sem pátria. Os recursos advindos desta arrecadaçãopermitirão a implementação de um sistema jurídico mais efetivo e,quiçá, centrado no homem, como destinatário único e final daexistência de uma sociedade organizada, seja em Estadosindividualmente considerados, seja em constelações pós-nacionais.16

Deste modo, é imprescindível levar em consideração nas análisesjurídicas contemporâneas esta cisão entre um direito tributárioeminentemente nacional, formal e centrado na arrecadação, e oimpacto da globalização, que elimina as fronteiras nacionais nacirculação de bens e, especialmente, na circulação de serviços, fazendocom que seja necessário colocar o direito tributário a serviço dasdemais áreas do conhecimento, no presente caso, da Ecologia, ao tratarda tributação ambiental. Deve-se sempre ter em mente a necessáriatransformação do direito tributário atual para um direito tributário dasfuturas gerações, onde se configure que a arrecadação atual servirápara construção de um mundo com fronteiras mais tênues, porémunificado pela efetivação dos direitos humanos.

2. O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO IMPLEMENTADOR DEPOLÍTICAS PÚBLICAS

O Direito cumpre vários papéis, dentre eles, um dos maisrelevantes no mundo contemporâneo é o de implementar políticaspúblicas, através da ação ordenada e coordenada da intervenção doEstado na atividade econômica. Assim, o Direito deixou de ser acristalização das realizações sociais para passar a ser uminstrumento de transformação da sociedade, visando a realização desuas aspirações.17 Decorre desse fato a estreita conexão entre oDireito e a implementação das políticas públicas, uma vez que estastraduzem os meios necessários para alcançar os valores estabelecidospelos Princípios Jurídicos que veiculam as finalidades a seremalcançadas pela sociedade. Pode-se exemplificar tais Princípios quetraduzem finalidades como aqueles que na Constituição da Repúblicabrasileira estabelecem como objetivos nacionais à construção de uma

16 Para a compreensão deste conceito ver Jürgen Habermas, A Constelação Pós-Nacional.

17 SCAFF, Fernando Facury. Projeto de Lei do ICMS Ecológico.

21Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimentonacional, erradicando a pobreza e a marginalização, e reduzindo asdesigualdades sociais e regionais, abolindo qualquer espécie dediscriminação (art. 3.º).

Ou ainda, entre aqueles que mencionam ser a Ordem Econômicaser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,visando assegurar a todos, existência digna, de conformidade com aJustiça social, observados vários princípios, dentre eles, o da defesa domeio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme oimpacto ambiental (art. 170, Constituição).

O direito tributário possui destacada atuação nestas atividades,o que permite sua utilização como um instrumento para aconsecução daquelas finalidades. Diante deste prisma, a conexãoentre a tributação e a questão ambiental assume, a cada momento,uma importância mais destacada em todo o mundo globalizado.

Daí ser bastante curioso este entrelaçamento entre umaatividade com forte caráter globalizante, pois uma emissão poluenteocorrida no Peru pode ter influências no Marajó, fruto da via naturaldo rio Amazonas, e um direito fortemente territorializado, como otributário.

A preservação de um meio ambiente saudável e a manutenção dodesenvolvimento sustentável são metas incontestáveis, fundamentosde nossa sobrevivência, que devem ser privilegiadas diuturnamente.

Assumindo seu papel de gestor das políticas de interessecoletivo, deve o Estado buscar meios para atender à necessidade deproteção dos recursos naturais para a presente e para as futurasgerações, inscrita no artigo 225 de nossa Constituição Federal e noart. 252 de nossa Carta Constitucional Estadual, aliando o interessepúblico ao desenvolvimento sustentável, com auxílio dos entesmunicipais, que também exercem papel fundamental na Federação.

A interpretação sistemática da estrutura normativa nacional,partindo-se dos princípios fundamentais da Constituição Federal,obriga-nos a observar todos os mandamentos por ela impostos e,além de compatibilizá-los entre si, assegurar a sua satisfação atravésdas normas infraconstitucionais e das orientações políticas seguidapelos poderes públicos.

Em face dessa realidade, não se pode excluir a relevância doDireito Tributário que, como parte do sistema, deve ter explorada suafinalidade social, ressaltando a função extrafiscal dos tributos, quepodem ser amplamente utilizados em benefício dos interessescoletivos administrados pelo Estado. De fato, os tributos, em função

22 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

de sua própria natureza, devem exercer uma finalidadeeminentemente voltada ao bem comum, devendo ser otimizada suautilização como instrumento de implementação das políticas deproteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável.

Em razão disto, ponderando os princípios constitucionaistributários e a sua relação com a função ambiental do Estado, bemcomo tirando proveito de várias experiências e possibilidadeseconômicas voltadas para a questão ambiental, procurar-se-áexaminar a questão do federalismo fiscal em benefício do meioambiente, especialmente no que diz respeito à questão do ICMSEcológico, discorrendo rapidamente sobre as experiências nacionaisem sua utilização e sobre a proposta apresentada para a suaimplementação no Estado do Pará.

3. OS FUNDAMENTOS DO FEDERALISMO FISCALAMBIENTAL

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 158, determinaquais receitas tributárias arrecadadas pelos demais entes dafederação pertencem aos municípios. Dentre tais verbas encontra-seo montante de 25% da arrecadação estadual decorrente do Impostosobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços(ICMS), cujos critérios de repartição entre os diversos municípiosestão definidos no parágrafo único do dispositivo.

O mandamento constitucional estabelece expressamente queno mínimo ¾ dos 25% de ICMS pertencentes aos municípios devemser repassados conforme o valor adicionado fiscal das operaçõesrealizadas para cada ente municipal. A Constituição define, então,um critério de medição econômica, simplificadamente decorrente dadiferença entre as notas fiscais de venda e as notas fiscais de comprado município.18 Nos termos dispostos pelo mandamento consti-tucional, portanto, a lógica de repartição das receitas do ICMSprivilegia os municípios que mais produzem, ou seja, os maisdesenvolvidos economicamente, capazes de gerar maiores receitastributárias provenientes da circulação de mercadorias e serviços.

No entanto, deixa o constituinte originário a cargo dos Estadosa definição dos critérios de repasse de cerca de ¼ do valor cabível aosmunicípios. Tal faculdade permite uma interferência direta da

23Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

18 Os detalhes sobre o cálculo do Valor Adicionado Fiscal encontram-se nos parágrafos do Art. 3º, da Lei Complementar63, de 11 de janeiro de 1990.

administração estadual no processo de desenvolvimento municipal,19

tendo em vista que os critérios de repasse de verbas influemfundamentalmente sobre as políticas públicas adotadas, podendo, sebem planejados, constituir-se em um amplo fator de induçãoeconômica.

Tradicionalmente, porém, os Estados pouco se utilizam o podereconomicamente indutivo contido no permissivo constitucional,repetindo normalmente o mesmo critério adotado para os demais ¾20,utilizando-se de fatores demográficos ou conferindo partes iguais atodos os entes municipais.21

Na realidade atual, entretanto, os municípios mais populososou que mais geram circulação de mercadorias são os que têm, em seuterritório, mais condições de desenvolver atividades economicamenteprodutivas, que culminam, no mais das vezes, em externalidadesnegativas através do desenvolvimento de uma estrutura predatóriaem relação aos bens ambientais.

Assim, incluindo este quadro no raciocínio da repartição dereceitas do ICMS, verificamos que os municípios que se dedicam aodesenvolvimento econômico em detrimento da preservação ambien-tal, são aquilatados com maior quantidade de repasses financeiros,pois têm mais possibilidade de gerar receitas em função da circulaçãode mercadorias. Por outro lado, aqueles que arcam com aresponsabilidade de preservar o bem natural, trazendo externa-lidades positivas que beneficiam a todos, têm restrições em suacapacidade de desenvolvimento econômico e, conseqüentemente,recebem menos repasses financeiros por contarem com uma menorcirculação de mercadorias e serviços. Esta lógica necessariamentedeve ser alterada, pois não dá conta da dinâmica da realidade e,principalmente, não se conforma com a proteção constitucionalconferida ao meio ambiente, tampouco com o instrumentoprincipiológico do poluidor-pagador.

A intervenção do Estado sobre domínio econômico-ambientalsurge, então, buscando corrigir as falhas trazidas pelas exter-nalidades ecológicas, por ele também sofridas quando tem deresponsabilizar-se perante a sociedade para com políticas de proteção

24 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

19 Notadamente daqueles que não são fortemente beneficiados pelo critério do Valor Adicionado Fiscal.

20 Conforme explica WILSON LOUREIRO, “...em 8 Estados o critério do repasse pelo Valor Adicionado Fiscal está acimados 75% determinados pela Constituição Federal...” (LOUREIRO, Wilson. O ICMS ecológico na biodiversidade, p. 8). Issodemonstra que muitos Estados privilegiam mais ainda os municípios mais ricos, não se utilizando, de forma plena, dopermissivo que lhes é constitucionalmente concedido, para a definição de outros critérios de repasse de ICMS.

21 Escapa dos objetivos deste texto a discussão acerca da legitimidade ou não do dispositivo constitucional definidordos critérios de repartição de receitas, tampouco dos critérios complementares estipulados pelos Estados, os quais,por certo, têm base em fortes razões políticas e econômicas. Assim, não nos preocuparemos em julgar até queponto são justos, convenientes, ou se estão em harmonia com os demais princípios constitucionais.

ambiental e despoluidoras, em conseqüência de ações danosas aomeio ambiente toleradas gratuitamente.

Dentro dessa perspectiva, inúmeras foram às reivindicaçõesdos municípios detentores de áreas de preservação ambiental,mananciais hídricos, reservas indígenas, etc., tendo em vista quesofrem historicamente uma dupla penalização, seja pela restrição dautilização economicamente produtiva de parte do seu território emface da afetação ambiental, seja pela conseqüência economicamentenefasta de tal restrição, que implica num menor nível de repasseorçamentário, sem que recebam qualquer recompensa pelasexternalidades positivas que proporcionam à sociedade.

Necessário se fez aos Estados conciliarem os ditamesconstitucionais de modo a também incentivarem a conservação dosrecursos naturais, proporcionando, ao menos, algum meio decompensação financeira aos municípios que sofrem limitações deordem física para o desenvolvimento produtivo, em razão de seucomprometimento territorial com áreas ambientalmente protegidas.

Diante disso, aproveitando a faculdade que lhes foiconstitucionalmente conferida, relativa ao estabelecimento decritérios próprios para o repasse de ¼ da parcela de ICMSpertencente aos municípios, vem sendo criada, em alguns Estados,uma nova política, cujos parâmetros estabelecidos para o repassefinanceiro são de ordem notadamente ambiental.

Percebe-se, neste contexto, o início de uma clara e simples formade compatibilizar a sistemática financeira com a preservaçãoambiental, fornecendo incentivos para que os municípios mantenhamas áreas de conservação ambiental sem sofrerem demasiadamente asperdas decorrentes do limitado desenvolvimento econômico.

4. O ICMS ECOLÓGICO

O ICMS Ecológico22 tem sua origem relacionada à busca dealternativas para o financiamento público em municípios cujasrestrições ao uso do solo são fortes empecilhos ao desenvolvimento deatividades econômicas clássicas. O instituto traz resultadossurpreendentes capazes de conferir nova feição a todas as políticasambientais nacionais.

25Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

22 Conforme ficou conhecido este critério de repartição, buscando a divulgação e popularização do termo, emborareconheçamos que é utilizado com certa impropriedade, uma vez que não se trata exatamente de enquadrar aprópria figura tributária (ICMS) na questão ambiental, e sim os recursos financeiros dela provenientes através deum mecanismo de federalismo fiscal.

Note-se que a política do ICMS Ecológico representa uma clara in-tervenção positiva do Estado, como um fator de regulação não coercitiva,23

através da utilização de uma forma de subsídio, tal como um incentivofiscal intergovernamental.24 Tal incentivo representa um instrumentoeconômico extrafiscal com vistas à consecução de uma finalidadeconstitucional de preservação, promovendo justiça fiscal, e influenciandona ação voluntária dos municípios que buscam um aumento de receita, euma melhor qualidade de vida para suas populações.

Aliás, mister ressaltar que o intuito inicialmente compensatórioconferido ao instituto logo se viu substituído por uma franca conse-qüência incrementadora, tendo em vista que um número crescente demunicípios passou a implementar políticas públicas ambientais,almejando receber uma parte dos valores distribuídos segundo taiscritérios, conforme se verá a seguir. A política obteve muito sucessoporque redimensiona e valoriza todos os aspectos fundamentais paraum meio ambiente saudável, incentivando os municípios a investiremna qualidade de vida de sua população.

Pioneiramente o instituto foi concebido no Estado do Paraná,em 1991, e hoje já se encontra efetivamente implantado também emEstados como Minas Gerais, Rondônia, São Paulo, Mato Grosso doSul, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Tocantins e Pernambuco. Alémdisso, inúmeros outros Estados, dentre os quais o Pará, Rio deJaneiro, Goiás, Santa Catarina e Ceará têm projetos do gênero emfase de discussão legislativa.25

A concretização do ICMS Ecológico não exige complexas alteraçõeslegislativas.26 Esquivando-se das longas discussões no Congresso Nacio-nal, responsáveis por anos de tramitação das propostas que visam alterara legislação tributária ou emendar a Constituição,27 a implementação doICMS Ecológico normalmente depende apenas de lei estadual, uma vezque os princípios basilares da repartição financeira já se encontram naConstituição Federal e na maioria das Constituições Estaduais, muitasesperando há mais de 10 anos pela devida regulamentação.28

23 Ribeiro, Maurício Andrés. O ICMS e o Princípio Não Poluidor – Recebedor.

24 Ver a respeito LEITE, Fábio Heuseler Ferreira. O ICMS Ecológico no Rio de Janeiro, p. 33.

25 Para mais detalhes acerca da implementação do ICMS Ecológico, suas experiências e propostas, consultar:TUPIASSU, Lise V. da Costa. Tributação Ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais naimplementação do Direito ao Meio Ambiente saudável, p. 158 e s.s.

26 Embora esteja, antes de tudo, vinculada a acirradas disputas políticas diante dos supostos prejuízos suportadospelos municípios acostumados a explorar predatoriamente o meio ambiente, conforme se verá a seguir.

27 As quais seriam indispensáveis para a implementação da maior parte das demais hipóteses de utilização dosmecanismos econômicos em benefício do meio ambiente.

28 Como é o caso do Art. 225, § 2.º, da Constituição do Estado do Pará, a qual já contém desde a sua origem (1989)mandamento assegurando privilégio de tratamento para os municípios que abrigam unidades de conservação emrelação à parcela de repasse de ICMS de que trata o Art. 158, parágrafo único, II da Constituição Federal.Disposição esta que aguarda há 12 anos sua regulamentação.

26 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

Conforme comumente ocorre, através dos debates estaduais sãoestabelecidos diversos critérios de mensuração do valor a ser recebido atítulo de repasse financeiro, sempre levando em conta as peculiaridadesnaturais de cada região. Daí porque cada um dos Estados que seutilizam o sistema estabelece diferentes montantes a serem repartidossegundo a apreciação de diferentes aspectos ecológico-sociais.29

Os valores e critérios legalmente estabelecidos passam então aser quantificados30 diante dos dados fáticos, proporcionando adefinição de um ranking ecológico dos municípios. Deste modo, cadamunicípio receberá um montante proporcional ao compromissoambiental por ele assumido, o qual será incrementado conforme amelhoria da qualidade de vida da população.

Um dos pontos chaves da política é, portanto, a não criaçãode novo tributo, não subsistindo qualquer ônus financeiro para oEstado ou aumento da carga tributária dos contribuintes.31 Trata-se, unicamente, da adoção de critérios ambientalmenterelevantes para a repartição das receitas normalmente obtidas.32

Além disso, o ônus operacional é mínimo.33 Normalmente, paraa realização do cadastro das unidades de conservação e quantificaçãodos itens elencados pela legislação – cuja atualização deve serconstante a fim de proporcionar a perfeita consonância dos repassesfinanceiros com a realidade municipal, a própria estruturaadministrativa já existente poderá ser utilizada.

27Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

29 Neste sentido é possível observar exemplificativamente que os Estados do Paraná e Rondônia adotam critériosecológicos para o repasse aos municípios de 5% do valor total do ICMS arrecadado, enquanto que São Paulo afeta0,5% e Minas Gerais 1%. Embora todos os Estados privilegiem o critério unidades de conservação, outros fatoressomam-se a este, como no caso de Minas Gerais, que incentiva também o desenvolvimento de redes de saneamento;ou Paraná, que traz como critério adicional os municípios que dispõem de mananciais de água servindo amunicípios vizinhos. Para quadro detalhado dos critérios utilizados por cada um dos municípios ver BACHA, CarlosJosé Caetano & SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Experiências brasileiras na implementação do ICMS Ecológico, p. 189;Grieg-Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in Brazil; CAMPOS, LéoPompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e alternativas naAmazônia.

30 Alguns critérios adotados pelos Estados necessitam de uma análise um pouco mais complexa do que a simplesquantificação aritmética. No caso do Paraná, por exemplo, realiza-se também uma análise qualitativa das unidadesde conservação. Em Minas Gerais, o critério relativo à implementação de sistemas de saneamento toma emconsideração a porcentagem da população beneficiada com a estrutura sanitária.

31 “Na verdade não se trata de uma nova modalidade de tributo ou uma espécie de ICMS, parecendo mesmo que adenominação é imprópria a identificar o seu verdadeiro significado, de vez que não há qualquer vinculação do fatogerador do ICMS a atividades de cunho ambiental. Da mesma forma, como não poderia deixar de ser, não hávinculação específica da receita do tributo para financiar atividades ambientais. Não obstante, a expressão jápopularizada ICMS ECOLÓGICO está a indicar uma maior destinação de parcela do ICMS aos municípios em razão desua adequação a níveis legalmente estabelecidos de preservação ambiental e de melhoria da qualidade de vida,observados os limites constitucionais de distribuição de receitas tributárias e os critérios técnicos definidos emlei”. Pires, Éderson. ICMS Ecológico – Aspectos Pontuais – Legislação Comparada.

32 “Na prática, o que aconteceu foi uma reciclagem do dinheiro que antes já era distribuído por outro critério, o valoradicionado”. LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivo econômico à conservação da biodiversidade, umaexperiência exitosa no Brasil, p. 56.

33 LOUREIRO comenta a respeito, de acordo com os dados do Paraná, onde “o custo total para a execução do Programapara o IAP, em 1995, foi de aproximadamente R$ 56.000,00 (cinqüenta e seis mil reais), considerando salário detécnicos, encargos sociais, combustível, depreciação de veículos, etc.” LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivoeconômico à conservação da biodiversidade, uma experiência exitosa no Brasil, p. 56.

Ao fim, caberá aos Tribunais de Contas (também no exercício desuas funções constitucionalmente definidas), e principalmente, àpopulação – utilizando-se dos inúmeros meios de pressão e controleque lhe são legalmente disponibilizados – o acompanhamento efiscalização dos repasses financeiros, da utilização dos valoresrecebidos e da busca pelo seu incremento, bem como o exame daveracidade das informações prestadas, que basearam a distribuição.

Ressalte-se que tal atitude pode ser estimulada e otimizada pelaprópria ação dos Estados, os quais arcam com a tarefa de informarnão só as administrações municipais, mas também a população,dando transparência à execução da política fiscal-ecológica.

Desta forma, mais facilmente será construída uma consciênciaecológico-social que, numa cadeia positiva, incentivará a otimização dasações ambientais realizadas pelos municípios com vista ao aumento dorepasse financeiro e também ao bem-estar da sociedade como um todo.

5. O ICMS ECOLÓGICO NA EXPERIÊNCIA DE ALGUNSESTADOS BRASILEIROS

O Paraná foi o primeiro Estado brasileiro a adotar instrumentosnormativos que implementassem novos critérios de repartição dereceitas do ICMS, como solução diante de reivindicações dasautoridades municipais prejudicadas com as restrições aodesenvolvimento clássico, em função da proteção ao meio ambiente.

Assim, foi aprovado um dispositivo na Constituição Estadual e,sucessivamente, adotados a Lei Estadual n.º 9.491, a LeiComplementar n.º 59 e o Decreto Estadual n.º 974/91, queintroduziram e regulamentaram critérios ecológicos para repasse dasverbas municipais do ICMS.

Por conseguinte, o Paraná foi o primeiro Estado a experimentar osresultados extremamente positivos da adoção do ICMS Ecológico. Onúmero de municípios beneficiados eleva-se a cada ano. Em 1992,foram 112; em 1998, o número já havia aumentado para 192municípios.34 Conseqüentemente, os dados da preservação ambiental noEstado mantém-se em constante crescimento. Estima-se que, desde aaprovação da Lei do ICMS Ecológico, em 1991, as áreas protegidas noParaná aumentaram 950%,35 e que nos cinco anos de efetivo

28 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

34 LOUREIRO, Wilson. Incentivos fiscais para conservação da biodiversidade no Brasil, p. 41.

35 LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivo econômico à conservação da biodiversidade, uma experiência exitosa noBrasil, p. 56.

desenvolvimento do projeto, conseguiram-se resultados maiores emelhores do que em 60 anos de políticas públicas em áreas protegidas.36

O segundo Estado a adotar a política do ICMS Ecológico foi SãoPaulo, com uma Lei Complementar promulgada no fim de 1993.37

Desde lá, muitas áreas já foram beneficiadas, como a região do Valeda Ribeira, onde as possibilidades de desenvolvimento produtivo semostravam, a princípio, bastante limitadas em função das proibiçõesde pesca e extrativismo.

Com o ICMS Ecológico os municípios localizados nesta área deMata Atlântica já se sentem mais recompensados, buscandoalternativas para o seu desenvolvimento aplicando vultuososrecursos em projetos de ecoturismo. Aliás, com a implantação donovo sistema de eco-repartição financeira, verificou-se um sensívelaumento de receita em cerca de 23,56% dos municípios de SãoPaulo,38 muitos dos quais passaram a ter, pelos critérios do ICMSEcológico, a maior parcela de seus recursos, representandofundamental avanço em seu desenvolvimento. A título de exemploveja-se o caso de Iporanga, cujo percentual de 77% de todo o repassede ICMS a que faz jus é proveniente dos critérios ecológicos.39

Seguindo a linha dos bons resultados, o número de municípiosbeneficiados elevou-se de 104, em 1994, para 152 em 1999,chegando a 169 em 2003.40 Tal crescimento incentivou a adoção deoutro sistema que considera, inclusive, a ação ambiental domunicípio em relação às áreas protegidas.41

Experiência vitoriosa e bastante difundida é a da implantação doICMS Ecológico em Minas Gerais. Com a adoção da Lei Estadual n.º12.040, de 28 de dezembro de 1995 – conhecida como “Lei Robin Hood”– Minas Gerais revolucionou os critérios de repasse dos 25% de ICMSaos municípios, passando a beneficiar não apenas os municípios queabrigam unidades de conservação, como também aqueles que possuemsistema de tratamento de esgoto ou disposição final de lixo – atendendoa maior parte da população –, introduzindo também critérios deeducação, patrimônio histórico e saúde, entre outros.

29Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

36 IAP. ICMS Ecológico: o presente do Paraná para o futuro do Brasil.

37 Lei Complementar Estadual n.º 8.510, de 23 de dezembro de 1993.

38 CAMPOS, Léo Pompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais ealternativas na Amazônia, p. 15.

39 Ver ICMS Ecológico beneficiou 169 municípios de São Paulo em 2002, p. 1. Ver também BACHA, Carlos JoséCaetano; SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Experiências brasileiras na implementação do ICMS ecológico, p. 202.

40 Ver ICMS Ecológico beneficiou 169 municípios de SP em 2002, p. 1.

41 Embora instituído pela Lei n.º 9.146, de 9.03.95, o sistema ainda aguarda regulamentação, não estando em vigor.CAMPOS, Léo Pompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais ealternativas na Amazônia, p. 15.

No que tange ao objetivo redistributivo, o resultado do ICMSEcológico mineiro foi imediato. Logo no primeiro ano – quando aindanão estavam em vigor os índices definitivos – quase 500 municípiosobtiveram aumentos de receita maiores que 100%, sendo que em 38deles, o aumento superou 1.000%. A parcela per capita mínima, queera de R$ 0,88, elevou-se para R$ 15,12, enquanto que a parcela percapita máxima de R$ 684,53, diminuiu para R$ 587,99.42

A introdução do federalismo fiscal ecológico na regiãoamazônica foi realizada pelo Estado de Rondônia,43 através daredução de 5% do valor anteriormente repassado aos municípios deforma igualitária – que somava 19%, e ficou com 14% –, o qualpassou a ser redistribuído aos municípios que detém áreas deconservação ambiental.

Os resultados obtidos com o novo sistema já são visíveis. Apartir de 1997, municípios obtiveram um aumento em seus repassesde ICMS.44 Um exemplo é o município de Jamari, que abriga em seuterritório um total de 55,31% de áreas ambientalmente protegidas,tendo experimentado um acréscimo de 217,65% em suas quotas deICMS. Guarajá-Mirim, com 88% da sua área dedicadas a unidades deconservação obteve um aumento médio por habitante no cálculo doICMS municipal.45

Ao lado dos benefícios trazidos aos municípios, o ICMSEcológico de Rondônia serve a derrubar o argumento de parte depolíticos e empresários da Amazônia que defendem a exploração semcritérios de preservação da floresta como única forma de obtenção derecursos na região.46

A ampliação do debate sobre a utilização de instrumentoseconômicos e tributários nas políticas públicas ambientais, oaprimoramento institucional das entidades públicas no que tange aotrato do meio ambiente e a influência no desenvolvimento estadual enacional de políticas semelhantes, são fatores que, ao lado doincremento da qualidade de vida das populações e das áreas deproteção ambiental, representam de modo especial o sucesso doICMS Ecológico.47

30 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

42 RIANI, Flávio. O novo critério de repartição do ICMS aos municípios mineiros: avaliação dos resultados e sugestões,p. 221.

43 Experiência que, infelizmente, permanece isolada na região.

44 Grieg-Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in Brazil, p. 7.

45 GARCIA, Roseli. Cidades Descobrem Nova Moeda.

46 GARCIA, Roseli. Cidades Descobrem Nova Moeda.

47 Para detalhes específicos sobre os resultados positivos do ICMS Ecológico em todos os âmbitos citados, consultarLOUREIRO, Wilson. Incentivos fiscais para conservação da biodiversidade no Brasil, p. 35 e s.s.

Seguindo as excelentes experiências demonstradas pelosEstados já adotantes do ICMS Ecológico, com resultados amplamentepositivos no que tange às políticas ambientais municipais, considera-se satisfatório o uso deste tipo de intervenção econômica por partedos poderes públicos, fazendo com que seus méritos ecoem peloBrasil afora.

Vários outros Estados brasileiros já estudam a possibilidade deimplementar projetos semelhantes aos aqui discutidos.

Diante desta enorme expansão, chega-se, até mesmo a cogitaracerca de uma proposta nacional de ICMS Ecológico.

Em junho de 1998 foi apresentado no Senado um projeto deautoria da senadora Marina Silva (PT-AC) que cria uma reserva de 2%do Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal para Estadosque abrigarem Unidades de Preservação da Natureza e terrasindígenas demarcadas,48 como parte de um conjunto de ações nosentido de fazer uma combinação entre preservação do meioambiente e desenvolvimento econômico.

Segundo a senadora, tal proposta implica pequeno impactosobre a redução global dos recursos do fundo, mas com grandesresultados em relação ao incentivo à preservação ambiental, naesteira do que ocorre com o ICMS Ecológico. O modelo já foi aprovadono Senado e agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados.49/50

6. ANÁLISE DA PROPOSTA DE IMPLANTAÇÃO DO ICMSECOLÓGICO NO PARÁ

Espelhando-se nas experiências ocorridas no resto do Brasil, oEstado do Pará iniciou em 1999 as discussões visando àimplementação do ICMS Ecológico.

O Estado é o segundo maior da região Norte, tendo um territóriode 1.253.164,5 Km2 – equivalente a mais de duas vezes o território daFrança –, sendo conhecido como a porta de entrada da Amazônia. Noentanto, hoje em dia, é um dos recordistas em desmatamentoflorestal e sofre incessantemente os problemas deixados pelasdiversas políticas de desenvolvimento malogradas.

31Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

48 Cf. Ata da Sessão do Plenário do Senado Federal referente a 72.ª Sessão Não Deliberativa de 19/06/1998.

49 A respeito, consultar PLS 00053/2000, no Senado; e PLP 00351/2002, na Câmara dos Deputados.

50 Cumpre ressaltar, contudo, que de tempos em tempos surgem propostas de alteração do sistema tributário quepodem vir a modificar a sistemática de federalismo participativo inviabilizando a manutenção da atual sistemáticade ICMS Ecológico adotada pelos Estados.

O modelo de crescimento ainda em vigor, acopla-se a umanecessidade de exploração desregrada dos recursos naturais, o queleva muitos administradores à irresistível tentação de relegar o valorestático do meio ambiente preservado, em nome da suposta riquezadinâmica da sua destruição.

No entanto, o ponto mais relevante deste desenvolvimentoinsustentável na Amazônia é a desvalorização do homem que lá vive.Muito pouco dos resultados econômicos obtidos na região retornamem benefícios à população local.

A repartição de receitas estaduais aos municípios paraenses,contudo, ainda não teve condições de considerar esta realidade,mantendo-se substancialmente vinculada a critérios materiais deprodutividade, população e território, cujo aspecto formalista não permiteter em conta sua reversão qualitativa em reais benefícios à população.

Todavia, de acordo com os mandamentos básicos de nossa CartaConstitucional, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentosda República Federativa brasileira e princípio da ordem econômica esocial, não havendo desenvolvimento sem que isso seja observado.51

Portanto, o Estado, enquanto idealizador de políticas públicas,deve atuar de modo positivo, visando realizar substancialmente talprincípio, fornecendo meios para a sua concretização. A repartição dereceitas tributárias presta-se a este objetivo, sendo o ICMS Ecológico,uma tentativa de estabelecer uma função social e ambiental àarrecadação tributária dos municípios.

Tal consciência permeou o texto da Constituição Estadual doPará, que em seu Art. 225, § 2.º assegurou o privilégio de tratamentopara os municípios que abrigam unidades de conservação em relaçãoà parcela de repasse de ICMS de que trata o Art. 158, parágrafoúnico, II da Constituição Federal. Contudo, tal dispositivo aguarda há12 anos sua regulamentação.

Buscando suprir esta lacuna, estudos realizados pelos autoresdeste, tendo por base as diferentes experiências nacionais,culminaram pela elaboração de um Anteprojeto de Lei, voltado parao estabelecimento de novos critérios de distribuição da parcelamunicipal disponível do ICMS.52

A proposta em discussão no Estado do Pará busca adequar-se àrealidade da região e inova, estipulando critérios sócio-ambientais de

32 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

51 A respeito consultar TUPIASSU, Lise V. da Costa. Tributação Ambiental: a utilização de instrumentos econômicos efiscais na implementação do Direito ao Meio Ambiente saudável, p. 48 e s.s.

52 O resultado de tal estudo, que sugeria a implementação do ICMS Ecológico no Estado do Pará, foi apresentado àAssembléia Legislativa do Estado pela então deputada Maria do Carmo Martins de Lima – PT (Projeto de Lei n.º131/2001), sendo objeto de discussão desde o 2.º semestre de 1999.

distribuição de todo o percentual de repasse deixado à competêncialegislativa estadual, tendo por fim servir de instrumento amplamenteincentivador de iniciativas políticas compatíveis com a preservação dosrecursos naturais e da qualidade de vida da população.

A forte redistribuição que se visa implementar, tem comojustificativa a ampla necessidade de redirecionar as políticas públicasmunicipais, proporcionando aos administradores a compreensão deque a manutenção do meio ambiente e da dignidade da populaçãonão são valores estáticos. Ao contrário, poderão ser percebidos mês amês, através do aumento nos repasses do município.

A definição dos critérios abarcados pelo projeto paraense, aexemplo da legislação mineira, foi feita observando os principaisfatores responsáveis pela boa qualidade do meio ambiente, seguindoas definições da Lei Federal n.º 6.938/98 e privilegiando, além doselementos biológicos, tais como saúde e saneamento, a educação,fundamental para o desenvolvimento de uma consciência cidadã econhecedora da importância da preservação ecológica.

A introdução de critérios sociais é condição essencial para amitigação das conseqüências redistributivas nefastas, possivelmenteresultantes da alteração legal. Tal abertura permite uma ampliadagama de investimentos por parte dos municípios, sendo certo que,embora em pequenas proporções, todos serão agraciados narepartição de verbas.

Assim, considerando o montante total da parcela de ICMS quea Constituição Federal e a Estadual permitem normatização estatal,o projeto em tramitação no Pará define que:

• 35% sejam rateados privilegiando os municípios que têmmaior parte de seu território coberto por áreas destinadas aUnidades de Conservação Ambiental e Espaços TerritoriaisEspecialmente Protegidos, de acordo com as definiçõeslegais;

• 25% privilegiem os municípios que tenham, relativamente,maior número de crianças matriculadas no EnsinoFundamental e menor taxa de evasão escolar;

• 20% sejam distribuídos para municípios que tenham maiornúmero de pessoas atendidas pelo sistema de saneamento, e;

• 20% rateados em observância ao percentual relativo de leitoshospitalares disponíveis à população e conforme o inverso docoeficiente de mortalidade infantil dos municípios.

33Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

Desta forma, o montante total de repasse aos municípios seguea seguinte proporção:

Nestes termos a proposta de instituição do ICMS Ecológico noPará representa extraordinária contribuição para o desenvolvimentoglobal do Estado, visto que, através da maximização da finalidadesocial de tributo já existente, estimula a aplicação dos recursos emprol da política ambiental, introduzindo novos valores – em todos ossentidos – ao desenvolvimento sustentável dos municípios, procuran-do trazer a prosperidade econômica e social já verificada em outrasregiões do país.

A conseqüência imediata desta nova repartição seria adisponibilização de pelo menos R$ 1,65 milhão apenas segundo ocritério de Unidades de Conservação.53 Assim, municípios compoucas condições de produtividade, mas detentores de grandes áreasflorestais, guardarão muito interesse em sua manutenção.54

Além disso, o grande relevo dado aos critérios sociais, servirá aotimizar os investimentos municipais. Pela lógica, o administradorque melhor investir em educação, saúde e saneamento receberámais. Com a nova repartição, ao contrário da anterior, mais vale umapequena população com qualidade de vida, que uma grandepopulação sem dignidade.

34 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

53 Cálculo baseado na repartição municipal de outubro/2000, conforme noticiado na Gazeta Mercantil Pará de22/11/2000. Ver FIJIYOSHI, Silvia. ICMS Ecológico pode ser implantado.

54 Exemplos claros são Belterra, Aveiro – localizados no meio da Floresta Nacional do Tapajós – e Santarém – ocupadopela Reserva Extrativista Arapiuns – Tapajós –, conforme comentário da deputada Maria do Carmo Martins, noticiadoem FIJIYOSHI, Silvia. ICMS Ecológico pode ser implantado.

GRÁFICO I – Proposta de Repartição da Quota-Parte Municipal do ICMS no Pará

Entretanto, a implementação do sistema também envolve muitosproblemas. Por óbvio, o impacto redistributivo descontenta os municípios“perdedores”,55 o que dificulta sensivelmente a aprovação da proposta.56

Ademais, a extensão territorial do Estado ainda não permitiuuma perfeita visualização dos impactos da alteração financeira, o queexige ainda algum trabalho de pesquisa e cadastro.

No entanto, ainda que se admita a necessidade de um longoprocesso para a efetiva concretização do sistema, importante é o seuprosseguimento e divulgação, como início de uma conscientizaçãoque, a exemplo do ocorrido em Pernambuco, pode resultar emmelhorias qualitativas antes mesmo de entrar em vigor.

Deste modo, esta proposta de instituição do ICMS Ecológicorepresenta extraordinária contribuição para o desenvolvimento globaldo Estado do Pará e da Amazônia, já que, através da maximização dafinalidade social de tributo já existente (sem criar ou majorar a cargatributária), estimula a aplicação dos recursos em prol da políticaambiental, induzindo ao desenvolvimento sustentável dos municí-pios, trazendo prosperidade econômica e social.

7. CONCLUSÕES

Através da interpretação aberta e sistemática da ConstituiçãoFederal, não se pode fechar os olhos para a realidade do uso do direitotributário para a consecução de políticas públicas necessárias ao desen-volvimento nacional, fazendo com que o Direito cumpra um novo papeldiverso daquele tradicional, de instrumento de segurança das relaçõessociais. Mais do que isso, ele deve ser usado para dirigir a sociedade noalcance de determinados fins prescritos na Carta da República.

Uma dessas finalidades é a de obter um meio ambienteequilibrado como elemento da própria dignidade da pessoa humana,direito fundamental dos cidadãos, preocupação global da sociedademoderna, o qual deve necessariamente ser levado em conta nadefinição dos objetivos das políticas econômico-fiscais, cujacompatibilidade prática se mostra irrefutável na realidade nacional,através da análise do ICMS Ecológico.

A transferência, segundo critérios ecológicos, da parcela doICMS pertencente aos municípios representa um verdadeiro

55 Expressão utilizada por MARYANNE GRIEG-GRAN, que analisa cuidadosamente a questão. A respeito consultar Grieg-Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in Brazil.

56 Aliás, as disputas políticas envolvendo a proposta resultaram no trancamento da tramitação do projeto que, apósaudiência pública, manteve-se parado e atualmente encontra-se em vias de arquivamento.

35Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

36 Fernando Facury Scaff Lise Vieira da Costa Tupiassu

redimensionamento de valores, nos dois sentidos que o termo podeadquirir. De um lado, porque tal política realmente altera o montantede verbas orçamentárias a ser recebido pelos municípios,beneficiando os que contribuem com a melhoria da qualidade de vidada população. Por outro lado, e principalmente, porque aimplementação de tal política resulta, naturalmente, numa novaforma de compreender os valores que pautam o desenvolvimentolocal. Doravante, não apenas a implementação de indústriaspoluentes traz ganhos financeiros para os municípios; a preservaçãode áreas verdes, a construção de redes de esgoto, escolas e hospitaistambém passam a ser sinônimo de aumento da receita edesenvolvimento.

Dessa forma, pensa-se contribuir para a imposição de umconteúdo verdadeiramente substancial à tributação, dela fazendo uminstrumento forte para a promoção de uma vida mais digna aosbrasileiros.

Constata-se, então, que a tributação – em seu amplo sentido –pode e deve ser utilizada como instrumento de política públicaambiental. Indo um pouco mais além, verifica-se que, diante doaparato jurídico hoje existente no Brasil, despicienda é a realizaçãode radicais reformas constitucionais e tributárias para o alcance detal propósito. A tributação ambiental já se encontra albergada pelaConstituição Federal. Cabe-nos dar a ela uma nova leitura e,principalmente, colocar em prática os princípios que compõem seusistema, sem criar necessariamente um novo tributo. Esta é a liçãomaior a nos ser dada pela prática do ICMS Ecológico.

Cultura y naturaleza: laconstrucción del imaginarioambiental bio(socio)diverso

Joaquín Herrera Flores1

A Fernando Dantas, una explosión de sueños y espirales

1. DE LOS VÉRTICES A LOS VÓRTICES: ABRIENDO ELCAMINO AL IMAGINARIO AMBIENTALBIO(SOCIO)DIVERSO

De nuestra definición de proceso cultural, surge confuerza una convicción: entre lo cultural y lo natural,

no sólo hay una estrecha relación, sino que su imbricación es tanfuerte y profunda que lo uno no puede entenderse sin lo otro yviceversa. Citemos la interpretación que el joven Hegel, en susconversaciones con Hölderlin, hizo de la leyenda de Babel. Al igual queDante, Hegel añade al texto bíblico del Génesis las tesis de Flavio Josefoacerca de la intervención de “Nemrod”, el símbolo del poder técnicosobre la naturaleza, y lo opone a “Abraham”, el símbolo del desprecio atodo lo natural y la entrega absoluta a la omnipotencia del verbo divino.

Hegel comienza su interpretación de Babel mostrando cómo losseres humanos después del Diluvio comenzaron a perder la confianzaen la naturaleza y fueron convirtiéndose poco a poco en enemigos deella. Los seres humanos se consideran, pues, a sí mismos como ladiferencia específica con respecto a los procesos naturales: ¡somoshumanos, entonces no somos naturaleza!, ya que ésta, a causa delDiluvio Universal, ha destruido todo lo que habíamos construidodesde la expulsión del paraíso.

1 Director del Programa de Doctorado en Derechos Humanos y Desarrollo (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla,España)

37Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

Dicha enemistad y desconfianza se instaló definitivamente en laconciencia de los seres humanos, instaurando con ello el eternoconflicto entre lo cultural y lo natural que ha contaminado gran partedel pensamiento filosófico y científico originado en el espacio culturaloccidental. Ahora bien, esta enemistad y desconfianza siguió dosderroteros: uno el representado por Abraham, el cual, tras negar yabjurar de la naturaleza, se entregó a un Señor todopoderoso,superior a la misma naturaleza, abstracto y eterno, capaz degarantizar al ser humano una participación en su poder por alejadode la realidad empírica que éste pudiera encontrarse. Este es elmecanismo básico de cualquier fundamentalismo trascendental.

Otro camino era el representado por Nemrod, el gigantefundador de ciudades y constructor de torres, que, más queentregarse a la divinidad abstracta, dedicó todos sus esfuerzos aldominio y sujeción técnicos de la naturaleza, contraponiéndole todala potencia humana de explotación y control de los procesosnaturales, como única posibilidad de supervivencia en un mundonatural capaz de la mayor de las destrucciones. Félix de Azúa2

resume este doble recorrido: Nemrod, según el texto hegeliano, logróreunir a los supervivientes dispersos y desconfiados que habíanconocido el Diluvio y fundó con ellos una tiranía basada en laexpansión técnica. Abraham, en cambio, se separa absolutamente dela naturaleza, la desprecia, y ni siquiera se digna trabajarla. Lahistoria del espacio cultural occidental halla mejor sus orígenes enlas múltiples interpretaciones de Babel que en las plurales filosofíasdesarrolladas en la Grecia clásica. Entre esas diferentes interpre-taciones de la construcción de la Torre, construida por los sereshumanos con el objetivo de protegerse del próximo y seguro Diluvio,se instaura la dicotomía esencial de nuestro espacio culturaloccidental: lo cultural “versus” lo natural. Como es factible ver en losdesarrollos posteriores de nuestra forma de percibir y actuar en elmundo, dicha dicotomía ha tenido enormes y, en la mayoría de loscasos, funestas consecuencias para nuestra autoconciencia ynuestra forma de construir la sociedad política: sociedad basada endualismos tales como lo “civilizado” y lo “bárbaro” (aquél consideradocomo ente de cultura y éste como inculto, como ser natural); lo“público” (lo que se construye a través del pacto social) y lo “privado”(lo que está sometido a las pasiones, a los intereses, a las luchas porla supervivencia concreta y corporal). Queriendo huir de las

2 Azúa, Félix de, “Siempre en Babel”, número monográfico sobre Formas del Exilio, publicado en la revistaArchipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, 26-27, 1996, pp. 30-31. Cfr. también Dragonetti, R.,. “Dante faceá Nemrod” en Critique, 387-388, 1979, pp. 690-706; Bourgeois, B., “Hegel á Francfort”, Vrin, Paris, 1970; Steiner,G., Después de Babel, F.C.E., Madrid, 1981; Meschonnic, H., (edit.), Les Tours de Babel, TER, 1985.

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“amenazas” y, sobre todo, de las “determinaciones” naturales a lasque como cuerpos vivientes y sintientes estamos sometidos, todonuestro espacio cultural se ha construido, de un modo u otro, sobrelas diferentes salidas imaginarias ante tal relación, aunque, comovemos, las versiones dominantes coincidan, bien con la figura deNemrod, la explotación de lo natural dirigida por el fundamentalismotécnicista; o la huida de Abraham de todo lo que signifique cuerpo onaturaleza, para entregarse al mayor de los fundamentalismostrascendentales que han dominado nuestros procesos culturales: elmonoteísmo de un dios vengador y amenazante.

Esta convicción nos sitúa – sobre todo a quienes consideramosque lo cultural tiene que ver con toda forma de reacción simbólica ysignificativa ante los entornos de relaciones que mantenemos con losotros, con nosotros mismos y con la naturaleza – en el límite, en lafrontera, entre las teorías de la cultura que, como en el caso del Babelde Hegel, niegan cualquier relación con lo natural y se entregan ajuegos metafísicos, religiosos o puramente tecnicistas, y las teoríasque, como es el caso de los biologicismos que pululan por nuestromundo, hacen depender absolutamente las producciones culturalesde algún gen cultural que albergamos en nuestros circuitosneuronales. Admitiendo, asimismo, que entre los procesos naturalesy los seres humanos media la reacción cultural, nos situamos, denuevo, en otro límite, en la frontera entre aquellas teorías quepodríamos denominar como teorías orientadas a lo verde, en las quela naturaleza aparece como todo aquello que nada tiene que ver conla tarea cultural de los seres humanos, y las teorías orientadas a lahistoria, en las que la cultura se entiende sin su ineludibleinterrelación con todo lo que es extra-cultural, es decir, con todo loque sustenta biológicamente las capacidades y posibilidades deactuar culturalmente sobre el mundo. Tanto un grupo de teoríascomo otras son reduccionismos. El primer grupo, reduce la miradacultural al paisaje o a la reserva natural, pues defienden queextasiarse contemplando u observando la naturaleza no tiene nadaque ver con admirar la catedral de León; obviando que tal posiciónsignifica ya una forma, culturalmente determinada de “ver y mirar” lanaturaleza. El reduccionismo del segundo grupo de teorías, tiene quever con la simplificación de admirar la catedral de León sin tener encuenta sus materiales o los efectos que sobre sus muros ejercen losfenómenos naturales, sean estos producidos por el poder corrosivo dela lluvia, como por el factor, ya puramente humano, de lacontaminación ambiental.

39Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

Desde que, simbólicamente, fuimos expulsados del paraíso, esdecir, desde que, repitámoslo, simbólicamente, comenzamos asentirnos seres humanos con cuerpo, o, en otros términos, desde quecomenzamos a sentirnos como seres humanos naturales, lasrelaciones entre el hacer cultural y sus ineludibles zonas de contactocon la naturaleza han constituido gran parte de las controversiasculturales mantenidas por una humanidad que niega la “justicia” dedicha expulsión. En el paraíso terrenal, éramos todo menos“terrenales”. Fuera del paraíso, adquirimos plenamente la condiciónde seres humanos naturales que viven en la tierra, que tienen quesatisfacer necesidades, que van a morir y que tienen que trabajarpara poder sobrevivir. Al haber asumido, simbólicamente, laexpulsión como un castigo con su consiguiente sentimiento deculpabilidad, la enemistad entre lo que consideramos humano y losprocesos naturales se fundó sobre bases tan sólidas como duraderas.Recordemos el viaje alucinante de Marlowe, el personaje central de Elcorazón de las tinieblas de Joseph Conrad, hacia el interior de lanaturaleza salvaje y selvática del África profunda. El “horror” con quese encuentra Marlowe al encontrar al mítico Kurtz, ese comercianteque abandona la civilización para entregarse al flujo violento de lanaturaleza inculta – y que tan magníficamente retrató Coppola en suApocalipse Now-, no es más que un nuevo grito contra la entrega dela humanidad a los designios de lo natural. La naturaleza es nuestraenemiga. La cultura es nuestro refugio. Construyamos barrerascontra la intromisión de lo natural en lo cultural. Levantemos murosde cemento y de filosofías “humanistas” que sólo nos protegerán delas inclemencias de los fenómenos naturales, pero que, al final, nosrecordarán que, más allá del asfalto y más allá del humanismo,existen las bases a partir de las cuales el edificio cultural se halevantado hasta el cielo de Babel: la naturaleza, lo extra-cultural, nolo que niega la relación cultura y naturaleza, sino lo que se sitúa enel límite de ambas categorías, recordándonos constantemente que, denuevo, estamos ante una relación, no ante un dualismo en el que unode los polos de la dicotomía acaba dominando al otro.

Para nosotros, la cultura hay que verla como el producto de unproceso continuo de reacción simbólica con respecto a las formasespecíficas de relación que mantenemos no sólo con los otros y connosotros mismos, sino, de un modo básico y fundamental, con lanaturaleza. De ese modo, en dicha definición de proceso culturalcomenzaban a darse cita tres imaginarios culturales, o, mejor dicho,la construcción de tres imaginarios culturales que sólo podrán

40 Joaquín Herrera Flores

manifestarse cuando entendamos los procesos de reacción cultural,no como algo pasivo, estático o identitario, sino como la propuestainteractiva y colectiva de nuevos procesos de significación y re-significación del mundo. Decíamos, pues, que lo cultural podíadefinirse genéricamente como el proceso humano de construcción,intercambio y transformación de signos a partir de los cuales losindividuos y los grupos orientan sus acciones en los entornos derelaciones sociales, psíquicas y naturales en los que viven. Es decir, locultural es aquel conjunto de procesos por los cuales los sereshumanos “explicamos” (el factor causal-estructural), “interpretamos”(el factor dinámico-metamórfico), e “intervenimos” (el factordinámico-interactivo) en la realidad. Realidad que no debeconfundirse con estados de hecho: explosión de un volcán o la lluviatorrencial o el paso de un tranvía. La realidad es algo más que lasimple suma de estados de hecho; más bien, la realidad se constituyea partir de las diferentes y plurales formas de relacionarnos con losotros (el imaginario social instituyente), con nosotros mismos (elimaginario radical) y con la naturaleza (el imaginario ambientalbiodiverso). Entendiendo por “imaginario” el continuo proceso deconstrucción simbólica de “signos culturales” que relacionan losobjetos con que convivimos con las acciones que los crean, losreproducen y transforman. Nuestra idea de proceso cultural tiene,pues, un carácter dinámico y potenciador de eso que hemosdesignado “la capacidad humana genérica de hacer y des-hacermundos”, es decir, de asimilar creativa y transformadoramente losentornos de relaciones en que nos ha tocado vivir.

En este proceso cultural, el factor interactivo (la intervencióncolectiva en los entornos de relaciones) tiene una importanciaesencial. De ahí, que hayamos propuesto un cambio de racionalidadque se sustente, no tanto en la imposición de una forma previa y pre-determinada y unos contenidos adecuados para tal forma, sino en laconsecución de materiales que nos permitan aumentar las fuerzas(las capacidades y las posibilidades) de dichos colectivos que actúancon las vistas puestas en la transformación de las relaciones sociales,psíquicas y naturales. Los otros, la naturaleza y nuestra propiapsique están ahí, constituyendo una esfera extra-cultural, es decir,una esfera que delimita un nosotros, un yo y una humanidad conrespecto a un ellos, a los instintos y a los procesos naturales. Perotodos estos fenómenos se remiten los unos a los otros, pues esúnicamente dejando que irrumpan los otros, las formas radicales dedecir y decirnos la verdad y los procesos naturales, es como podremos

41Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

escapar de la jaula de barrotes de hierro (sistemas de coherencia) quenos impide percibir que las puertas de las habitaciones, y, porsupuesto, de las cavernas, no sólo están para salir de ellas, sino paradejar entrar a los que –o a lo que- viene de afuera.

Por esa razón, no nos sirve la figura interactiva de los “vértices”,la cual, bajo la forma de los no-lugares, nos sirve únicamente paraidentificar un tipo de relación cultural basada en interseccionescausales y atomizadas, en visiones puntuales y unidireccionalesentre las diferentes coordenadas espaciales, y en la aceptación de unorden preestablecido y, por tanto, inmutable entre las mismas (elaeropuerto, el shopping, la consideración puramente “formal” delEstado de derecho, como punto-vértice de encuentro el día de lasvotaciones de ciudadanos hasta entonces al margen de lo político y losocial, o la naturaleza vista como meramente como paisaje para elturista o como espacio de explotación para la gran multinacional).

Para entender nuestro concepto interactivo de proceso cultural,sobre todo cuando vamos a reflexionar sobre las formas relaciones deentender culturalmente la naturaleza y las formas naturales deentender bio(socio)diversamente lo cultural, mejor sería usar la figurade “vórtices”, en la que lo importante no es el punto sino la línea, lapluralidad de vías de enfoque sobre la unidireccionalidad y, en últimolugar, el campo de fuerzas que en su interacción aumenta lacomplejidad del fenómeno a estudiar y, en la misma medida, suconflictividad, y no la ocultación de las relaciones de poder que a finde cuentas eterniza el orden preestablecido. La zona de síntesis enque confluye la consideración del espacio cultural como “vórtice”, noes una zona pacífica donde se reproduzcan neutralmente lascoordenadas espaciales que definen la concepción dominante delespacio. Son zonas de turbulencia, de conflictividad, de interacción yde choque. Esto no dice nada en contra de la interacción-vórtice. Alcontrario, lo que se quiere resaltar con traer el conflicto, laturbulencia y el choque, es que nos colocamos, no en zonas decontacto puramente formales e instituidas, sino en zonas de contactomateriales e instituyentes, donde cabe la acción políticatransformadora de las “normas” (jurídicas, morales,consuetudinarias), las “formas” (científicas, filosóficas, conocimientostradicionales) y las “hormas” (la plural y diferenciada configuracióninstitucional que se ve más adecuada para los entornos de relacionesen que vivimos).

En este espacio interactivo-vórtice es como podemos construirnuestro imaginario ambiental bio(socio)diverso. Pero vayamos por partes.

42 Joaquín Herrera Flores

2. LA NATURALEZA ES EL LUGAR DESDE EL QUE TENEMOSQUE ELEVARNOS

2.1. La co-implicación entre naturaleza y cultura: mitoscosmogónicos y modificación de los entornos

Hemos defendido, pues, que el proceso cultural coincide con elproceso de humanización, tanto de la naturaleza humana (imaginariosocial instituyente e imaginario radical) como de la naturaleza físicay social (imaginario ambiental bio-socio-diverso) en el marco de unaconsideración relacional del concepto de entorno.3 A través de laconstrucción cultural nos vamos “humanizando”, es decir, vamosadquiriendo la capacidad de explicación, de interpretación y detransformación/adaptación del conjunto de relaciones quemantenemos con los otros, con nosotros mismos y con la naturaleza.O sea, “culturalmente” vamos construyendo un entorno puramentehumano en el marco, claro está, de determinados contextosambientales y de determinados condicionamientos biológicos ycorporales.

Como veremos más adelante, este entorno humano estará máso menos influido por dichos condicionamientos ambientales ybiológicos en función del desarrollo, por ejemplo, de los instrumentostécnicos o de los avances científicos y sociológicos, pero es contandocon ellos como los seres humanos vamos construyendo nuestranaturaleza de animales culturales y no meramente de animalessociales. Esta caracterización del ser humano como “animal cultural”es la que nos permitirá simbolizar culturalmente el esfuerzo humanopor elevarse sobre estos condicionamientos, no negándolos niinvisibilizándolos, sino reconociendo su condición de elementosineludibles en el arduo proceso de construcción de órdenes sociales,comunitarios y naturales de carácter puramente artificial. Por tanto,esa “artificialidad” – o mejor sería decir, artefactualidad – de nuestra

3 Como hemos visto ya, un entorno es el espacio construido por nuestra actividad relacional con respecto a los otros,a nosotros mismos y a la naturaleza. En ese sentido, es una concepción mucho más amplia que la meramente“ecológica” o “medio-ambiental”. De ahí, que hablemos de imaginario ambiental bio(socio)diverso. Un texto muyinteresante para discernir entre ambas formas de entender las relaciones cultura-naturaleza es el de Kate SoperWhat is Nature?. Culture, Politics and the non-Human, Blackwell, Oxford, 1991. Asimismo, puede consultarse lasiguiente bibliografía sobre el concepto amplio de entorno: Uexkull, J., von, Ideas para una concepción biológicadel mundo, Espasa Calpe, Buenos Aires, 1945; Malpartida, A. R., “La noción de entorno en etología (Una discusiónetimo-epistemológica), en Ecognition, 2(1), 1991, p. 39-46; Malpartida, A. R., y Lavanderos, L. “Una aproximaciónsociedad-naturaleza. El Ecotomo” Revista Chilena de Historia Natural, 68, 1995, p. 419-427; Malpartida A. R., yLavanderos L. “Ecosystem and Ecotomo: a nature or society-nature relationship”, en Acta Biotheoretica, 48 (2),2000, p. 85-94. Asimismo, aunque su idea de entorno “enactivo”, que pone en marcha los procesos dediferenciación sistémicos, no sea el elemento teórico que guía estas páginas, es interesante la lectura de Maturana,H. “Reality: The search for objectivity or the quest for a compelling argument”, en Irish Journal of Psychology, 9(1), 1988, p. 25-82; y el ya clásico texto de 1982 de Maturana, H., y Varela, F. “Teoría de la autopoiesis” publicadoen Cuadernos del Grupo de Estudio sobre Sistemas Integrados (GESI), 4, 1982.

43Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

condición de animales culturales, no elimina de un plumazo lasíntimas relaciones que mantenemos con los procesos naturales.Éstos “sustentan” nuestras habilidades culturales y, sin ellos, nisiquiera podríamos pensar de forma racional.

Esta “relación” entre los procesos culturales y naturales es muycompleja y no puede reducirse al determinismo natural o alcondicionamiento puramente cultural. Los entornos ambientales ylas estructuras biológicas que sostienen nuestra capacidad humanade construcción cultural, influyen decisivamente sobre nuestranaturaleza de animales culturales. Ahora bien, como decíamos másarriba, dicha influencia dependerá, por lo menos, de dos factores:uno, el del grado de desarrollo alcanzado por la técnica – entendidaya, no sólo como conjunto de instrumentos, sino como medio deacción y transformación del entorno en función de las necesidadeshumanas que tenemos irremediablemente que satisfacer –; y otro,asimismo muy importante, que tiene que ver con las posibilidades degozar de una información científica y narrativa de calidad que noscapacite tanto para adelantarnos a las posibles consecuencias ocarencias de nuestra acción en el mundo, como para comunicar a losotros de los peligros que arrostra dicha praxis. Ambos factores nospermitirán construir un sistema de pensamiento y un conjunto deprácticas sociales que nos facilitarán un conocimiento detallado delas características de los procesos naturales y biológicos con los queno tenemos otro remedio que “relacionarnos” en la ingente tarea de laconstrucción del orden puramente humano.

Por otro lado, no podemos dejar de reconocer que ese marco oentorno natural – en sí mismo, indiferente a nuestra existencia en elmundo –, “sufre” continuamente los efectos de nuestra acción. Sinembargo, por lo menos desde los inicios de la modernidad occidentala partir del siglo XV hasta la actualidad, el clima, la geografía, lamisma estructura de la atmósfera o los tipos de plantas y animalesque crecen a nuestro alrededor, han sido elementos que parecían notener mucho que ver con las acciones y depredaciones humanas quea lo largo de los siglos se han llevado a la práctica con el objetivo dedominar a los otros y a la misma naturaleza para convertirlos enfactores productivos. Lo natural, por lo menos en el espacio culturaloccidental, nunca ha entrado explícitamente en el ámbito de lopolítico, es decir, en el marco de relaciones en el que interactúanseres “aparentemente” alejados de sus cuerpos, necesidades ycontextos vitales. Lo político parecía estar siempre alejado de losprocesos naturales. Mientras que lo natural siempre fue lo que había

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que superar y de lo que había que separarse para poder dominarlo yreconducirlo a los procesos de acumulación y de explotación de todolo que nos rodea. Aunque el sistema capitalista, como todo contenidoeconómico de la acción social, siempre se ha sostenido, y seguirásosteniéndose, sobre los recursos naturales necesarios para laobtención de beneficios, lo ha hecho obviando (por supuesto de unmodo “explícito”, ya que “implícitamente” todo empresario capitalistasabe que sin los recursos naturales su exigencia de acumulación nopodría ser satisfecha), que, en realidad, estamos en continuainteracción con la naturaleza, sea para respetarla, sea paradestruirla, sea, en última instancia, para construir una vida máshumana.

Dadas las inevitables interacciones entre lo cultural – véase, porejemplo, las diferentes formas de entender lo sagrado – y lo natural –el entorno al que respetamos, tememos o con el que “colaboramos”para reproducirlo y reproducirnos –, no hay más remedio quereconocer – quizá a nuestro pesar como seres humanos que seconsideran el centro del universo –, que lo que hemos hechoculturalmente, ha tenido su origen en condicionamientosambientales, y que no puede admitirse la existencia de unanaturaleza entendida al margen de lo que hacemos cultural, social,política o económicamente. El árbol, justo después de ser nombradocomo tal, deja de ser un manojo de raíces, tronco y hojas, paraconvertirse en un signo cultural: por ejemplo, el punto que marca unlindero, o el lugar de sombra donde cobijarnos del sol o, por qué no,el objeto mágico/mítico que, como es el caso en la cosmogonía delpueblo Tikuna que habita en las partes altas del Río Negro, permiteuna relación respetuosa con la tierra, con el sol y con el agua. Perono por eso el árbol deja de ser “naturaleza”. El árbol, aparte de signocultural, forma parte de aquellas estructuras y procesos que son, ensí mismas consideradas, indiferentes a nuestra presencia activa en elmundo (en el sentido de que no son un producto humano, y en lamayoría de los casos se reproducirían mejor sin nuestraintervención), pero cuyas energías y poderes causales no podemosdejar de lado, ya que constituyen las condiciones necesarias de todapráctica humana.

Esto es evidente cuando analizamos los mitos y narracionesque intentan simbolizar el origen de lo humano. Es decir, lasproducciones culturales a partir de las cuales se pretende “alegorizar”el paso de una vida inconsciente supeditada a los rigores legales delo macrocósmico, tal y como diría Spengler, a una vida basada en la

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consciencia de ser un “ser” humano que, al haber sido expulsado delparaíso, se sabe portador de un cuerpo, de una edad y de unacapacidad de hacer que le permita, microcósmicamente, vivir condignidad. Este paso de lo macrocósmico a lo microcósmico, de lainconsciencia a la consciencia, siempre fue temido por los dioses, yasí lo demuestran las narraciones de Babel y de los castigos divinosa toda infracción de las reglas y prohibiciones por ellos establecidas,sea una infracción real, como en el caso de Prometeo, sea ficticia,como le ocurrió al ingenuo y sufrido Job.

El ser humano pasa culturalmente de “tener conciencia de lavida” a disfrutar, o sufrir – depende de cómo se interprete la “caída”y la expulsión de los diferentes “paraísos” naturales que pululan porlos diferentes procesos culturales –, de su autoconciencia. Al tenerque trabajar durante una determinada cantidad de tiempo parasatisfacer las necesidades de su cuerpo, es decir, al tener queenfrentarse a un mundo que se opone y se resiste al cumplimiento desus apetitos, la autoconciencia –nos recuerda Fernando Savater4 –comienza a ser más y más capaz de valorar, de elegir, de jerarquizarsus deseos de acuerdo no ya sólo con la supervivencia sino con laafirmación autónoma de su querer.

Esta autoconciencia es algo que surge, no a pesar de lainterrelación con la naturaleza, sino, precisamente, a causa de lanecesidad de actuar junto a -y con- ella para satisfacer lasnecesidades de un cuerpo ya mortal. Lo humano reside precisamenteen el establecimiento de la relación entre las producciones culturalesy los condicionamientos naturales. Por el contrario, es el “paraíso” ellugar donde no existe tal interrelación entre lo humano y lo natural,pues el individuo no tiene necesidad de relacionarse con lanaturaleza: ambos están ahí dados de una vez para siempre, el unodiferente a la otra y viceversa. Es tras la expulsión del orden “natural”cuando surge “culturalmente” la naturaleza, y es en estrechainteracción con los condicionamientos naturales cuando surge lacultura. El (poco) tiempo de que disponemos y la exigencia de “hacer”para vivir con dignidad, son elementos de lo humano que no nosseparan de la naturaleza sino, al contrario, la conciencia que de ellostenemos es lo que nos induce a interrelacionarnos con ella, pero yade un modo consciente, valorando, eligiendo y marcando lasdiferencias/preferencias entre unas cosas y otras, prefiriendo esteorden a aquel otro, conservando esto y no aquello...es decir,estableciendo unas relaciones de marcada tendencia cultural. En el

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4 Savater, F. Las preguntas de la vida, Ariel, Barcelona, 2002, p. 198.

orden mítico/natural los seres, aún no humanos, vivían en medio delos intersticios naturales sin tener necesidad de relacionarse con ellosde un modo activo; en el orden cultural/natural, son los hechosnaturales los que se sitúan en los intersticios de la acción humana,la cual va alterando su valor y su significado en función del flujo denecesidades y exigencias que tiene que satisfacer.

Así, en las narraciones míticas del origen de lo humano, en lasque siempre se da algún tipo de violación contra prohibicionespreestablecidas, nos encontramos con la ingesta, no de algún animal(algo que está ahí), sino de algún tipo de vegetal (algo que hay queproducir y transformar para que sirva como alimento) Es lo queocurre en el mito de la expulsión del Edén cristiano a causa delbocado a la inocente manzana, y la de la pérdida del dilmun (paraísosumerio) debido, en este último caso, a la atracción que tenían paraEnki, el Señor de la Tierra, los diferentes productos vegetales con losque se encontraba a su paso y que lo impulsaban a probar susdiferentes y lujuriosos sabores. La importancia del “vegetal”, es decir,de lo que surge de la naturaleza por la propia intervención humana,es de una relevancia crucial para comprender el inicio de los procesosculturales, marcando la estrecha relación de solidaridad entre laactividad (cultural) de los seres humanos y los procesos naturalesque conforman la naturaleza. Ese “trato con el vegetal”, comoindicador de construcción de lo humano/cultural no es sólopatrimonio del acervo mítico occidental; también aparece en lastradiciones de algunos pueblos indígenas de la amazonía,mostrándose la continuidad cultural de todas las formas de vida quediferenciadamente reaccionan frente al conjunto de relaciones en elque viven. Es el caso de los Omáguas, pueblo amazónico consideradocomo colectivo especialmente adelantado con respecto a otros delentorno cultural/natural surgido en los márgenes del río Amazonas.Los nativos de dicho pueblo indígena, a pesar de las dificultades queel terreno selvático plantea para la agricultura, siempre han dedicadogran parte de sus esfuerzos al cultivo de la mandioca, el mijo y elalgodón, y tal y como nos cuenta el cronista Cristóbal de Acuña, hasido tradicionalmente considerado por sus coetáneos y coterráneoscomo un pueblo más desarrollado culturalmente. Del mismo modo,en el mito cosmogónico del pueblo de los Dessanas, habitantes delAlto Río Negro, la construcción del mundo se llevó a cabo por unamujer “nacida de sí misma” que ya no se alimentaba de los productosde la caza, sino que tomaba ipadu, un arbusto de hojas oblongaspequeñas que ostenta las mismas propiedades de la coca y es

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cultivado por los indios del Alto Amazonas, y fumaba tabaco, de cuyohumo fueron surgiendo todas las cosas que componen el mundohumano.5 El trato y producción de vegetales, por consiguiente, trajoconsigo una profunda modificación en los valores del cazadorpaleolítico, ya que sustituía al animal por el vegetal y transformaba laantigua zoolatría en el culto a la fecundidad. Ahora serán las “diosas-madres” las que, al haber acumulado el conocimiento necesario parala abundancia de vegetales (es decir, al haber sentado las bases de laagricultura y de la preparación “cultural” de los alimentos) las queintentan relegar – no con la suficiente fuerza (así lo demuestra laarraigada tendencia patriarcalista de nuestra forma de concebir yactuar en el mundo), pero sí con un gran poder simbólico- al “dios-padre” a su Olimpo de ociosidad celeste. Perséfone en Grecia, yDumuzi en Sumeria, son diosas raptadas por las profundidadesabismales que luchan para volver de nuevo a la tierra y propiciar asíla fecundidad de los terrenos y campos transformados por loshumanos para su supervivencia y su vida digna.. Perséfone yDumuzi, constituyen la representación dramatizada, no ya del poderde la semilla del varón-dios, sino de las “metamorfosis” de la semillaproducidas y reproducidas por la necesidad de alimentar cuerpossometidos a los rigores de la edad, del trabajo y de la supervivencia.“El paraíso perdido por probar una planta – dice Antonio Escohotado6

– stá en los comienzos de la primera mitología escrita. El mundo talcual es – no el jardín sin dolor y muerte donde, como dice el escribasumerio, ningún león masacra, ningún lobo se lleva al cordero, ningúnenfermo de los ojos repite que le duelen los ojos – comienza con laingestión de un vegetal...”, y el vegetal no es lo original, es decir, algodado espontánea e inicialmente, sino el producto de una“transformación”, de una “metamorfosis”, de una producción culturalde la naturaleza impuesta por la propia naturaleza del ser humanoexpulsado del concreto y específico “edén”.

Naturaleza y cultura, pues, se co-implican, aunque nuestratarea de actores culturales no consista en otra cosa que en intentarelevarnos por encima de esas “estructuras y procesos” para albergarla creencia de que no estamos determinados por nuestros cuerpos ynuestras necesidades. No por negar la dependencia absoluta de lanaturaleza, nos convertimos en seres radicalmente artificiales.Construimos artificios para no depender absolutamente de dichos

5 Umusi Parokumu –Firmiano Arantes Lana- y Toramu Kehíri –Luis Gomes Lana, Antes o mundo nao existia; mitologíados antigos Desana-Kehíripora, 2.ª ed., Sao Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN, 1995; Marcos Frederico Krüger,Amazônia. Mito e Literatura, Valer Editora, Manaus, 2003.

6 Escohotado, A. Historia de las drogas, Alianza Edit., Madrid, 1992, Vol. 1, p. 64.

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condicionamientos; pero ellos están en la base de la lucha establecidaculturalmente para construir el mundo humano.

Pensar lo contrario, nos conduce a dos consecuencias deimportantes resonancias sociales y humanas. En primer lugar, nosdirige al establecimiento del dualismo mente-cuerpo, y suconsecuente jerarquización, en la que lo mental ocupa el lugarprivilegiado y lo corporal, una posición absolutamente subordinada(e, incluso, para algunas religiones, pecaminosa y despreciable) Laprincipal función de este dualismo jerarquizado radica en negar quenuestras necesidades y sus diferenciadas formas de satisfacción,sean considerados como “derechos humanos” tan fundamentalescomo la expresión de ideas y el respeto de creencias religiosas. Alpartir de este dualismo, llegamos a pensar que lo único que nos haceser seres humanos completos son los aspectos mentales o la puraactividad simbólica, ajena a, o al menos no influida por, loscondicionamientos físicos o naturales. Estamos ante una “escisión”de tremendas consecuencias sociales pues dificulta enormemente lagarantía jurídica de aquellas expectativas humanas que se concretanen lo que jurídicamente se denominan “derechos sociales,económicos y culturales” – categoría de derechos muy cercana a lasnecesidades vitales y básicas de las personas y pueblos: vivienda,salud, educación, trabajo, patrimonio histórico y natural..., y querequieren una intervención económica y social activa para suimplementación real y concreta –, los cuales quedan en una posiciónsubordinada con respecto a los “derechos civiles y políticos”,aparentemente ejercitables sin necesidad de intervención social,política o cultural alguna.

La segunda consecuencia de no reconocer la interacción entrelo cultural y lo natural, es la de creer que las producciones culturalesse dan en una especie de vacío simbólico sin contacto con losentornos donde se producen. Los productos culturales parecenexistir en el vacío de los símbolos, o, por lo menos, sin contactoaparente con los contextos sociales y naturales desde, y para los que,surgen. A partir de aquí, se establece socialmente la creencia de quela cultura y sus producciones caminan por sí mismas, condicionanabsolutamente nuestra acción en el mundo, y no tienen nada que ver,ni con los procesos sociales, políticos o económicos, ni con lasexigencias que nuestra naturaleza de “animales” culturales nosimpone a la hora de la satisfacción concreta de las exigenciascorporales. Esta concepción “etérea” de lo cultural tiene gravesconsecuencias en el campo de los “derechos humanos”, ya que en

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multitud de reuniones internacionales en las que se trata, enprincipio, de establecer deberes de solidaridad con los paísesempobrecidos por la globalización neoliberal, como ocurrió, por ponerun solo ejemplo, en la Convención de Barcelona de mediados de losaños noventa7 y en la que se reunieron los países europeos y los delMagreb, se postulan deberes de reconocimiento y apoyo mutuo en losaspectos culturales, como si éstos no estuvieran en relación con losprocesos de liberalización y de apertura de mercados de los países delSur hacia los productos del Norte. Parece que la cultura nada tieneque ver con los aspectos de desarrollo desigual entre el Norte rico y elSur impotente, ya que trata únicamente de folclore, de espectáculo,y, a lo más, de acercamiento en cuestiones artísticas.

La cuestión residiría, pues, en determinar si esa escisión entrelos “derechos” sociales, económicos y culturales y los “derechos”civiles y políticos, es decir, esa sareparación dualista entre la mentey el cuerpo, y ese abismo producido entre lo simbólico y lo socio-económico, constituyen escisiones que surgen de la propia naturaleza(lo cual, es negado culturalmente por las diferentes interpretacionesde la caída o expulsión del paraíso), o más bien tiene que ver conintereses ideológicos y estratégicos precisos que parten de unaconsideración esencialista o metafísica de una naturaleza humanareducida a sus aspectos puramente mentales o culturales.

2.2. La exigencia de vivir sintiendo en el Rey Lear y enCiudadano Kane: O rio comanda a vida y a vidacomanda o rio

Por esas razones, hay que entender la capacidad humana paralo cultural, no como algo que se añada desde afuera a nuestranaturaleza, sino que los procesos de reacción cultural están ancladosen su propia raíz. Somos animales culturales, es decir, seresnaturalmente culturales y culturalmente naturales. Precisamente,nuestras vidas están atravesadas de tensiones debido al “hecho”deque no somos únicamente seres puramente naturales ni, porsupuesto, seres exclusivamente culturales, sino seres que viven en unentorno que sólo es posible en la mutua interrelación, sea tensa opacífica, entre los diferentes componentes que nos hacen ser “sereshumanos”. No nacemos como seres culturales, ni como seresnaturales autosuficientes. Nacemos como unas criaturas cuya

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7 Para comenzar a entender estos procesos, ver Amicucci, C., “De Rabat a Barcelona. Un largo recorrido para acercarel Mediterráneo” en Mediodía. Desde el Mundo Mediterráneo, Número de presentación, Otoño 2003,[email protected], p. 20.

naturaleza física es tan indefensa que necesitan la cultura parasobrevivir. La cultura es el ‘suplemento’ que rellena un vacío dentrode nuestra naturaleza, y nuestras necesidades materiales sonreconducidas en sus términos.8

Es el caso, acudiendo a Shakespeare, del “inmoralismo” y la“furia destructiva” de El Rey Lear. En el apogeo de su poder, Learsólo actúa en función de los valores y los símbolos culturales que leconvienen aceptar para ir aumentando su capacidad y susposibilidades de dominio. Sus necesidades, más que fenómenosnaturales, eran órdenes que obtenían cumplimiento inmediato. Esaescisión entre sus necesidades y la forma cultural de satisfacerlas,hace pensar a Lear que su “naturaleza” poco tenía que ver con loque le rodeaba: todo estaba a su servicio, o, lo que es lo mismo, alservicio de los valores que lo encumbraban y lo reproducían comola cúspide del poder. En cierto sentido, la película Ciudadano Kanede Orson Wells, retoma esa separación absoluta de todo procesonatural. El “ciudadano” Kane puede con todo y con todos, aexcepción del recuerdo de un objeto que, en su niñez, lo acercabaal juego y a la naturaleza. “Lear” y “Kane” son dos “símbolos” de esatendencia humana a considerar el entorno en el que vivimos –incluyendo en él a los otros – como algo prescindible y explotable enfunción de los intereses de poder propios. “Lear” y “Kane” sólopodrán superar el abismo entre el árbol como signo cultural y comoproducto natural, es decir, entre sus valores y criterios “culturales”y las necesidades “naturales” de ellos mismos y de los que losrodean, cuando, como sentencia Gloster en la obra de Shakespeare,ambos aprendan a vivir sintiendo, vale decir, cuando comiencen aexperimentarse a sí mismos, no como una individualidad absolutaprotegida por las relaciones de poder y los valores dominantes quepermiten y reproducen su status de dominadores, sino como seresque comparten con el resto de la humanidad la exigencia desatisfacer y recrear culturalmente sus propias necesidadesnaturales. Los valores en los que Kane y Lear sostienen sudominación sobre el resto del mundo, no surgen por sí mismos nipor el funcionamiento sistémico y ahistórico de alguna entidadcultural separada de la realidad; más bien, responden al hecho deque, por nuestra propia constitución, somos animales socialesmaterialmente capaces de percibir las necesidades de los demás yque además deben hacerlo para poder sobrevivir.

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8 Cfr., Eagleton, T., La idea de cultura. Una mirada política sobre los conflictos culturales, Paidós, Barcelona-BuenosAires, 2001, esp. p. 155 y 147-148.

Humanizarnos, no significa, pues, negar que seamos seresbiológicos y naturales, sino seres que son capaces de explicar,interpretar e intervenir en la naturaleza de la que somos parte y en laque vivimos. En primer lugar, qué duda puede caber acerca de lainfluencia de la lenta, aunque inexorable, evolución biológica de laque somos una parte infinitesimal; y, en segundo lugar, cómo negarel impacto del espacio geográfico en que vivimos, o de la cantidad ycalidad de recursos naturales de que disponemos, tanto para lapropia supervivencia como para poder dar origen a los procesosculturales. Veamos separadamente cada una de dichas influencias.

Para clarificar el influjo de lo biológico sobre lo humano y lanecesidad humana de reaccionar frente a sus propias limitacionesbiológicas, nada mejor que acudir al mito de Edipo. Frente a lasmurallas de Tebas, la Esfinge impide el paso a todo forastero y, bajoamenaza de engullírselo si no sabe la respuesta, le plantea el famosoenigma: ¿quién es ese ser que a veces tiene tres pies, otras veces dose, incluso, llega a tener cuatro y que a medida que tiene más pies másdébil es su naturaleza? Edipo no lo duda, es el ser humano en susdiferentes fases biológicas y, por supuesto, culturales. Un ser que,partiendo de sus propias debilidades – una infancia larga ydependiente, una madurez competitiva y arrogante, y una vejez denuevo dependiente y sometida a los estragos del tiempo –, le esposible transformar, creativa o destructivamente, el entorno en el quevive, construyendo, por ejemplo, una tercera pata, un bastón, que lepermita superar el condicionamiento del paso del tiempo.

Está claro que el desarrollo del dedo pulgar, la posición erecta,la visión en perspectiva, el desarrollo del sistema nervioso...sonfenómenos biológico-evolutivos que nos han permitido reaccionarfrente a las necesidades que ineludible y biológicamente tenemos quesatisfacer. Pero sobre, o al lado de, tales caracteres fenotípicos,vamos construyendo una especie de segundo mundo – el cultural –que, poco a poco, nos va “liberando” de las ataduras corporales ygenéticas, desplazando a cada momento la primigenia conexión entrelos instintos y lo innato, entre lo adquirido y transmitido. En eseproceso, hemos llegado a ser los “animales” que, gracias a laintervención cultural, más hemos influido – unas veces, para bien; lamayor parte de las ocasiones, para mal – sobre el entorno en quevivimos. Pero, querámoslo reconocer o no, somos esos seres que aveces andan a cuatro patas, en algún momento, se sostienen en dosy, con el tiempo, tienen que construir una tercera para podermantenerse en pie.

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Ahora bien, no es sólo la debilidad biológica la que nos haobligado a la construcción de lo cultural. También, la relación quemantenemos con los recursos naturales de que disponemos parapoder satisfacer nuestras necesidades, ha influido de un modo muyimportante en la construcción del mundo humano. Vivir al lado de unrío que se desborda anualmente dejando a nuestro alrededor el lodonecesario para el crecimiento equitativo y sostenido de los procesosnaturales que posibilitan nuestra alimentación; o vivir en medio delas infinitas y ondulantes dunas del mar de arena de algún desiertodonde el poder se mide por el conocimiento y, consecuente,ocultamiento a otros, de las fuentes de agua necesarias paramantener la vida, ha provocado que, cada una de las hipotéticascomunidades que habitan dichos entornos, por un lado, desarrollenproductos culturales absolutamente diferentes, pero, por otro, nosconduce a la constatación de que ambas comunidades, y,generalizando, todas las individualidades y colectivos que componenlas diferentes formas de vida que conviven en nuestro planeta,reaccionan culturalmente de un modo diferenciado tanto frente alentorno ambiental como social.

Sin contar con las características -o, por lo menos, con algunasde ellas- de nuestra propia biología, tal como nos recordaba la Esfingecon su enigma, o de los entornos en que nacemos, vivimos o nosinstalamos, difícilmente podremos explicar, ni, por supuesto,disfrutar de, las riquezas culturales y la diversidad humana de quedisponemos. En tanto que “cuerpos” biológicos, los seres humanosvamos procesando culturalmente nuestra realidad en relaciónestrecha con las necesidades que la “naturaleza” nos impone tanto alos animales sociales como a los animales culturales. Evidentementese trata de satisfacer las necesidades. Ahora bien, tales necesidadesposeen una muy clara definición biológica, determinadas por laconservación del individuo y de la especie. Se traducen, así, enestados fisiológicos de desequilibrio, que -según nos informa CarlosParis- transmitidos a los centros nerviosos presionan la actividad delsujeto, buscando en el ambiente los objetos que puedan restablecerla homeostasis. Como consecuencia de esa tendencia biológica arestablecer el equilibrio entre las necesidades y la exigencia de susatisfacción, el ser humano puede elevarse sobre ese procesobiológico y construir signos -formas de relación entre las necesidadesy sus formas de satisfacción que no se reducen ya a las meramentebiológicas- y, descubrir técnicas, entendidas, no como undeterminado conjunto de instrumentos, sino como una amplia gama

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de “medios de acción” que el animal, ya “cultural”, “utiliza” paraconseguir su objetivo de supervivencia, de organización de lacomunidad, o de goce y placer de los sentidos. Así, continúaargumentando Paris, “siendo la técnica un mecanismo de adaptaciónactiva al medio -y de transformación de él-, es inevitable que lasdistintas ecologías en que los grupos humanos se desenvuelven,desde las zonas árticas a las selvas tropicales, desde las riberasmarinas a las altiplanicies, difracten la unidad básica del fenómenotécnico, con arreglo a las necesidades que los distintos mediosdeterminan -más exactamente, la manera en que modulan lasnecesidades biológicas del ser humano- y los recursos que ponen adisposición de la acción”.9 Desde esta explicación de la técnica como“acción”, se puede ver cómo la diversidad humana, teniendo muchoque ver con la biológica exigencia de satisfacción de necesidades, se“levanta” sobre ésta, dado que satisfaremos dichas necesidadesconstruyendo medios de diferente tipo, no en función de la purareacción biológica, sino en el marco de espacios culturales distintos ydiferenciados. La naturaleza induce a lo cultural gracias a la exigenciade elaboración de técnicas de acción sobre el medio, y lo culturalreinterpreta y transforma lo natural debido a su específica forma dereacción frente a los diferentes sistemas de relaciones que se den enlas heladas planicies árticas o en las irrespirables alturas andinas.

Como defendió el gran geógrafo brasileño Milton Santos,10 elespacio no puede ser definido únicamente a partir de los objetos queen él se encuentran: ríos, montañas, comarcas..., sino en estrecharelación con las acciones humanas que por ellos transitan. Lasdinámicas impuestas por los seres humanos, junto a las desplegadaspor la fauna y la flora, constituyen “ejes de relaciones” que tienen quever con las condiciones naturales de los lugares en las que sedesarrollan y, por supuesto, esas condiciones naturales, una vezsometidas a tal eje de relaciones -tela de araña cultural/natural de laque no podemos huir-, quedarán transformadas irremediablementeal convertirse en el marco a partir de las cuales, y no a pesar de lasmismas, pretendemos construir y reproducir la vida.

O rio comanda a vida, escribió en los años cincuenta el escritoramazonense Leandro Tocantins al referirse al papel crucial que el ríoAmazonas tiene en la vida de la gente que vive en sus márgenes: e orio que un dia vai me levar à venturosa cidade...o rio-conduto de ideais

9 Cfr., Paris, C. “De la técnica zoologica a la humana” en El animal cultural. Biología y cultura en la realidad humana,Crítica, Barcelona, 2000, esp. p. 102-113.

10 En este sentido, debe consultarse A Natureza do Espaço, obra de 1997 de Milton Santos (traducción al castellanobajo el título La naturaleza del espacio. Técnica y tiempo. Razón y emoción, Ariel, Barcelona, 2000).

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generosos, de visoes coerentes com a realidade do homen, da regiao,da natureza, do correto magistério na ordem social o econômica. Peroel río, incluso el enigmático, necesario, profundo e inaccesibleAmazonas, ni siquiera tendría nombre si no fuera por la interrelaciónde sus aguas con las narraciones y desazones humanas queempujaron a los conquistadores hispanos a adentrarse en el “marinterior” amazónico en busca del País de la Canela y de las aguerridasy míticas Amazonas. Así Tocantins sigue afirmando: O homen e o riosao os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazonia. Orio enchendo a vida do homen de motivaçoes psicológicas, o (homen)imprimendo à sociedade rumos e tendencias, criando tiposcaracterísticos na vida regional. Tocantins nos lo recuerda con sumetáfora acerca del papel del río en la cultura humana: la naturalezahay que entenderla en y para la cultura, y la cultura, en y para lanaturaleza. Aunque, como le dice Katharine Hepburn a HumphreyBogart en una de las escenas del hermoso film La Reina de África, “Lanaturaleza, Mr. Allnut, es el lugar donde nos ponen y desde dondetenemos que elevarnos”.

3. CONTRA LOS DOS TIPOS DE REDUCCIONISMOS: ELBIOLOGICISMO Y EL AISLACIONISMO CULTURAL

Humanizar, por tanto, no significa despreciar los procesosnaturales. Pero, tampoco consiste en la inexorable e insuperableconstatación de nuestra animalidad y nuestros condicionamientosfísicos. Desde el inicio de estas páginas, hemos definido a los sereshumanos en su proceso continuo de reacción frente a las diferentesrealidades en las que se insertan, como animales culturales;“animales”, es decir, seres que inexorablemente están condicionadospor lo biológico; y “culturales”, en tanto que seres que continuamentenos vamos elevando de dichos condicionamientos y vamostransformando, para bien o para mal, el entorno en que “nos ponen”.

Por consiguiente, tan absurdo será el llamado “reduccionismobiologicista” que, anula la peculiar novedad de la cultura humana alreducir los fenómenos culturales a términos biológicos, y acabatraduciendo los conceptos culturales al lenguaje científico natural;como el “aislacionismo culturalista”, que hace de la cultura unarealidad hermética, carente de raíces, incomunicada con la biología ysurgida de un modo casi mágico -por la gracia del simbolismo- en elmundo humano. El aislacionismo culturalista pretende asentar locultural sobre fenómenos y conceptos absolutamente propios -como

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el simbolismo, la singularidad del lenguaje humano, incluso lacapacidad técnica-, referidos exclusivamente a nuestra especie,fenómenos inéditos, para el mundo científico natural, que condenana la irrelevancia los análisis basados en la biología. En el desarrollode la primera tendencia, la peculiaridad de la cultura y de lo humanose disuelve en un monótono paisaje. En la segunda se convierte lacultura en la irrupción de un mundo, racionalmente incomprensible,incomunicado con los estratos subyacentes de lo real y con laevolución, un reino que sólo se explicaría en términos de milagro o decreación. Reduccionismo de una parte, “aislacionismo”, insularismoo hermetismo de la otra.11 Veamos un ejemplo de cada una de lastendencias.

3.1. El reduccionismo biologicista

En primer lugar, destacar el auge mediático que han tenido lasafirmaciones de la llamada “Sociobiología”. Este método consiste, arasgos generales, en un esfuerzo teórico-especulativo desde el que sepretende entender el fenómeno de lo cultural, partiendo, por lo menosen los desarrollos teóricos más recientes, de la coevolución genético-cultural. Para Wilsom y Lunsdem, los dos “sociobiólogos” que máshan entrado en los debates culturales, dicha coevolución implicaríatres elementos interrelacionados dialécticamente: Genes-Mente-Cultura; Cultura-Mente-Genes. Ahora bien, y para ser más precisos,las relaciones jerárquicas entre esos tres elementos no son en absolutosimétricas, dado que se parte de una influencia casi dictatorial de losgenes sobre los otros dos miembros que compondrían hipotéticamentela coevolución. La gente se suicida, ama, odia, critica o transforma sumundo, “orientados” –nosotros diríamos, “determinados”- por laactividad específica de los genes, que no es otra que la de “prescribir”una serie de procesos biológicos que Wilson y Lunsdem califican como“reglas epigenéticas”, las cuales dirigen el caudal de la mente enestrecha relación con el contexto en el que el ser humano actúa. Estasreglas epigenéticas se transmiten biológicamente a través de lo queestos autores denominan el “culturgen”, algo así, como un gencultural que determina la acción y que permitiría a los científicoscomprender y explicar la conducta humana -que culturalmente estan diversa y heteromorfa- en los términos más controlados,homogéneos y cerrados de la ciencia natural.

11 Para una mayor profundización en este tema acudir al texto de Carlos Paris “De la ideología a la concepciónbiocultural del ser humano” en El animal cultural, op. cit., p. 17-31.

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Estamos, pues, ante un caso de “reduccionismo biologicista”,aunque sus defensores intenten denodadamente defenderse delmismo apelando a la tríada “genes-mente-cultura” y al concepto decoevolución. Las reacciones más feroces contra la socio-biologíafueron impulsadas por el conjunto de críticas que sobre sus tesisdirigieron científicos más comprometidos política y socialmente consus contextos (en concreto, el grupo Science for the People), al mostrardos consecuencias negativas12 de tales planteamientos: primero, laliquidación de las luchas por la libertad humana, las cuales estaríandeterminadas por la actividad invisible y cuasi-estática de los genes,y, segundo, el peligro de justificar posiciones racistas de superioridadgenética o a eternizar construcciones sociales como el patriarcalismo,como si procedieran, en este último caso, no de la dominaciónpolítica, económica y simbólica que a lo largo de los siglos el hombrey la sociedad construida según sus valores han mantenido sobre lamujer, sino producto de las reglas epigenéticas que proceden de laactividad química de los genes. ¿Cómo se reacciona culturalmentecontra esas “orientaciones” genéticas? ¿Lo cultural se reduce a lasactividades puramente físico-mentales de los individuos? ¿Cómointegrar en la tríada de la coevolución “genes-mente-cultura” elconjunto de productos culturales que conforman un espacio culturalconcreto y que constituyen un marco de orientación radicalmentedistinto del físico-orgánico? En definitiva, ¿cómo comprender yadaptar a nuestras vidas individuales y sociales ideas tales como latolerancia, el respeto, la solidaridad, entendidas, no como funcionesde órganos corporales que necesitan de la interconexión orgánica,sino como valores que construimos socialmente para poder actuar yvivir de un modo emancipador?.

3.2. El aislacionismo culturalista

Como ejemplo más sofisticado de “aislacionismo culturalista”,nos encontramos con la teoría estructural de Talcott Parsons,presentada a mediados del siglo XX como la síntesis de todas lasciencias. Parsons, estaba especialmente interesado en explicar laacción de los individuos en su relación con los objetos externos a suindividualidad. Estas relaciones forman sistemas cerrados yexcluyentes entre sí –en función del conjunto de objetos de que setrate-, y cuya función es proporcionar reglas que permitan gobernar

12 Ver http://list.uvm.edu/cgi-bin/wa?A0=science-for-the-people&D (consultada el 6 de Julio de 2004); sobre lasconsecuencias darvinistas de la teoría, consúltese la página http://eonix.8m.com.

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y dirigir las elecciones de los actores sociales que “actuan” psíquica,social o culturalmente. De ese modo, Parsons afirma metodológi-camente lo siguiente: en términos de acción, el mundo objetivo sepuede clasificar como compuesto por tres clases de objetos, cada unaformando un sistema autocentrado e independiente de los demás. Enprimer lugar, los “objetos sociales”, que forman el llamado “sistemasocial” (y que debe ser estudiado por la sociología); en segundo lugar,los “objetos físico-psíquicos”, que forman el “sistema biológico” y el“sistema donde se desarrolla la personalidad” (objeto privilegiado dela ciencia natural y de la psicología); y, en tercer lugar, los “objetosculturales”, que forman el “sistema cultural”, es decir, el conjunto deideas y valores que circulan a través de símbolos (cuyo análisisdependerá de la antropología cultural): los objetos culturales serían,pues, elementos simbólicos, sin alguna otra relación con el entornosocial, físico o psicológico. Estos símbolos forman un sistemaautónomo que se autorreproduce por sí mismo y que, por lo tanto,pueden ser estudiados al margen de otras consideraciones (objeto,como vemos, de otros sistemas y otras disciplinas) y de otroscontextos. Lo cultural se ve, entonces, como un sistema autónomo,compuesto de símbolos y significados, que definen y determinan,para los seres humanos, lo que ha de entenderse por realidad.

Como demostró Alvin Gouldner,13 la teoría parsoniana fue unproducto cultural perfectamente funcional a la utopía burguesareaccionaria de construir un mundo de equilibrios y consensos políticosy culturales sin hacer referencia alguna a los conflictos sociales yeconómicos que estaban en la base de su organización social. Cada“sistema de objetos” (p.e., las relaciones sociales y los productosculturales) constituían mundos distintos que determinan, cada uno asu manera, la naturaleza y los hechos de la vida. Edificar un sistemasocial basado en relaciones profundas de desigualdad social yeconómica, tal y como iba consiguiendo el modo de produccióncapitalista tras la victoria en la II Gran Guerra, es mucho más fácil siseparamos las distintas esferas de acción humana que si tenemos unavisión holística de los procesos sociales. De ese modo, un conflictoeconómico o, aún más claro, un conflicto producido en el marco de laexpansión imperial europea, era considerado como un conflicto entrediferentes concepciones culturales del mundo, con lo que las verdaderascausas de la confrontación –colonialismo, depredación de recursosnaturales, destrucción de tradiciones y formas colectivas de vida en

13 Gouldner, A., “From Plato to Parsons: The Infraestructure of Conservative Social Theory” en The Coming Crisis ofWestern Sociology, Basic Books, NY, 1970.

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función de los intereses de los procesos imperialistas de acumulación decapital-, permanecían veladas en el misterio de los símbolos. Así locultural flotará, desde Parsons y sus seguidores, en el vacío del conjuntode significados y símbolos que pueden ser estudiados, valorados ocriticados desde sí mismos, sin hacer referencia a los contextos socialesy, ¿por qué no? naturales en los que “realmente” vivimos.

Un sistema cultural poco tendrá que ver –en términos deClifford Geertz- con el conjunto de necesidades “naturales” quetenemos que satisfacer en contextos de desigualdad. Al etnógrafo sólole interesan las ideas, los símbolos y los rituales. No hay nada fueradel “texto” (o tejido) cultural. Todo es textual, nada estará sometido,pues, a las exigencias de la economía, de la política o de la ecología(sistemas de objetos, asimismo, susceptibles de ser estudiados almargen de todos los demás).

El “aislacionismo cultural” nos independiza absolutamente detodo lo que nos rodea, construyendo un nuevo determinismo biendistinto de los condicionantes naturales, técnicos y políticos que,como defendíamos más arriba, inducen a los seres humanos aresponder y a actuar culturalmente. En una de sus últimas obras,Negara, Clifford Geertz lleva hasta sus extremos la utopía parsonianade fragmentación del mundo. Analizando el sistema político balinés,Geertz intenta demostrar la superioridad de la explicación socialbasada en los símbolos y rituales de la corte imperial, sobre losenfoques que enfatizaban la influencia imperial holandesa o losanálisis marxistas de la estructura social de aquellas tierrassometidas al depredador proceso colonial, por lo menos, desde losviajes del Capitán Cook. En una conferencia pronunciada en Yale en1981, Geertz afirmó lo siguiente, desplegando toda la arrogancia del“científico” social que separa lo cultural de todo el resto de procesossociales, económicos y políticos: “voy a deleitarme en los desarrollosculturalmente específicos, enfrascarme en los procesos derazonamiento y zambullirme de cabeza en el sistema simbólico”. Esdecir, –parece decir el gran antropólogo- voy a explicar el mundodesde el conjunto de explicaciones y construcciones conceptuales,sin tomar en consideración los recursos naturales, la orografía, o elsistema social en su conjunto. Bajo el aislacionismo cultural dematriz parsoniana, todo un mundo de condicionantes y de determi-naciones naturales o económicas desaparece bajo el manto de losimbólico.14 Refiriéndose a Negara, Adam Kuper muestra cómo el

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14 Cfr., Geertz, C., “Anti-Anti-Relativism” en American Anthropologist, 86, 1984, pp. 263-278; y Kuper, A., Cultura: laversión de los antropólogos, Paidós Básica, Barcelona, 2001, p. 144.

análisis de Geertz invisibiliza a los políticos y empresariosoccidentales ávidos de mantener al pueblo balinés imbuido en susritos y símbolos, mientras ellos, acompañados de los soldadosindonesios, los agentes de la CIA y los empresarios chinos se ibanapoderando de las riquezas de los lugares investigados con tantodetalle, pasión y ceguera por los etnógrafos y antropólogosparsonianos.15

En estos autores -y en otros aún más radicales como DavidSchneider o Marshall Sahlins-, no sólo los contextos económicos,sino la misma naturaleza aparece como lo “pre-social” o lo “anti-social”. Es vista, pues, como “lo otro”, como la negación de lacivilización, una de cuyas bases fundamentales es la separación cadavez más acentuada de todo lo natural16 . La consecuencia inmediatade esa separación de esferas, a la que tendían los parsonianos, radicaen darle la espalda a los procesos naturales, y, con ello, como hasostenido David Chaney, no sólo se ignoran los condicionamientosambientales, sino que se desprecian absolutamente las diferenciasque nos separan de aquellos que viven más apegados a los procesosy recursos naturales.

Esto ha permitido prácticas de explotación colonial intensiva,tanto de la naturaleza como de los grupos y etnias que viven en losentornos apetecidos por los intereses de las grandes corporacionestransnacionales. Y que hoy en día, en pleno boom de la llamada“globalización neoliberal”, está conduciendo a todo un proceso de“caza y captura”, ya no sólo de los recursos naturales, sino del mismoconocimiento tradicional de dichas etnias y pueblos a la hora detrabajar la tierra o de organizar la producción. A través de losllamados Acuerdos sobre Patentes (TRIPS),17 el conocimiento deindígenas, campesinos y artesanos, se ha convertido en un nuevo“recurso” natural susceptible de ser explotado por aquellos que

15 Permítasenos una larga cita del texto de Kuper, donde se ve la estrecha relación que existió entre el métodoparsoniano y las nuevas políticas coloniales ejercidas por Estados Unidos después de quedar como el gran vencedortras la II Guerra Mundial: “El Comité para las Nuevas Naciones –establecido por Edward Shils, el líder de losparsonianos en la Universidad de Chicago- estaba adaptando el programa de Parsons al estudio de los estados quehabían alcanzado recientemente la independencia. Comentando la postura del grupo de Chicago, David Apterexplicaba que sus miembros rechazaban el determinismo de la época, tanto en la forma ortodoxa como en lamarxista....la meta de la política en los nuevos estados debería ser la de fomentar un orden social e intelectualmoderno. Era cosa de los antropólogos especificar los problemas culturales involucrados...que ayudarían a explicartanto la capacidad o la predisposición al cambio como las inhibiciones que en tal sentido podía mostrar unacomunidad”. Nada de contexto económico, nada de imperialismo, nada de condicionantes naturales, “sólo cultura”.Cfr. David A. Apter, Political Change: Collected Essays, Cass, , London, 1973, p. 160, y, sobre todo, A. Kuper Cultura.La visión de los antropólogos, op. cit., p. 104.

16 K. Tester, Animals and Society: The humanity of animal rights, Routledge, London, 1991; K. Thomas, Man and theNatural World: Changing attitudes in England, 1500-1800, Allan Lane, London, 1983.

17 El fenónemo de apropiación del conocimiento ambiental no es algo nuevo, sino que hunde sus profundas raíces enel progresivo despliegue de la institución burguesa de la propiedad privada; cfr, el libro de Murray Raff, PrivateProperty and Environmental Responsibility. A Comparative Study of German Real Property Law, Kluwer LawInternational, The Hague/London/New York, 2003.

tienen el poder de obligar a dichas gentes a entregarles lo único queles ha ido quedando desde los inicios de las políticas depredadorascolonialistas e imperialistas: el conocimiento de su entorno. Todo unentramado institucional-financiero -como es el caso del llamadoOrden Económico Global: Fondo Monetario Internacional, BancoMundial y la Organización Mundial del Comercio-, ha comenzado afuncionar para legitimar esa apropiación de la biodiversidad ecológicay humana, justificando sus prácticas depredadoras desde elpresupuesto que el conocimiento tradicional es un recurso natural,no cultural, y, por tanto, susceptible de apropiación por parte de lasgrandes corporaciones transnacionales. Todo como consecuencia delancestral desprecio que la civilización occidental ha proyectadosecularmente sobre lo que se considera la naturaleza. El abandono delo natural no es, por tanto, inocente. Tiene y oculta gravesconsecuencias naturales y humanas que hoy en día, con el avance dela conciencia ambiental, están siendo puestas en evidencia.

4. EL USO POLÍTICO DE LA NATURALEZA: LA NATURALEZACOMO PROBLEMA HISTÓRICO (EL CAPITÁN COOK,JOSEPH CONRAD Y LA CARTA DE LA TIERRA)

Concluyendo desde todo lo dicho anteriormente: no es que noexista “naturaleza” alrededor de nosotros, es que el propio concepto denaturaleza es, por un lado, un concepto “histórico”, es decir, quecambia, que se transforma a medida que cambian los entornos derelaciones sociales; y, por otro, es un concepto “cultural”, es decir, esun concepto que construimos con el objetivo genérico de relacionarnosmutuamente sea con los otros, sea con nosotros mismos o, cómo no,con la naturaleza, y que nos permite, por un lado, reproducir nuestravida humana sobre la tierra y, por otro, crear y transformar lascondiciones que hacen que dicha vida sea una vida digna de ser vivida.

En el sentido que estamos aquí defendiendo de “humanización”,nos interesa poco -aun cuando reconozcamos su importancia- unacultura ecológica que se preocupe exclusivamente por la necesidad deno coartar la interrelación entre los diferentes procesos naturales yvitales pero, que al mismo tiempo, no ponga el acento en la inevitableinserción del ser humano en los mismos. Desde nuestra hipótesis, ledamos mucha más importancia a una cultura ambiental; es decir,una actitud ante los procesos sociales y naturales preocupada, nosólo por la exigencia, de veras ineludible -aún más en nuestros días-

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de comprender y reproducir las interrelaciones naturales entreplantas, geografía y recursos, sino también, sino, fundamentalmente,en explicar, intervenir e interpretar la interrelación serhumano/mundo físico –lo que en páginas anteriores, hemosdenominado “entorno”. O, lo que es lo mismo, un proceso culturalpreocupado por entender el “entorno” como un agente influenciadorde, e influenciado por, la historia y la evolución humanas. Por esopensamos que no estamos en el entorno, sino que somos el entorno.

Por esta razón, cuando hablamos de la relación cultura-naturaleza no lo hacemos de “estados de hecho”, sino –como defiendeDavid Arnold18-, del conjunto de percepciones, en continuo cambio,del mundo natural y de las relaciones de los seres humanos con él.Arnold, en su texto La naturaleza como problema histórico. El medio,la cultura y la expansión de Europa, afirma que la problemáticaambiental y las discusiones ideológicas, políticas y económicas sobreellas vertidas, han sido, desde hace mucho tiempo, elementoscentrales de las complejas relaciones –materiales y culturales- entreEuropa –digamos, entre los países centrales y ricos- y el resto delmundo. El ambiente, o el medio, no ha sido sólo un lugar estático ypasivo, siempre disponible para todo tipo de explotación, sino que, enmuchísimas ocasiones se ha convertido en el campo de batalla dondehan contendido ideologías y culturas. La naturaleza no essimplemente algo que exista ahí afuera, absolutamente indepen-diente de nuestros puntos de vista y nuestras acciones de animalesculturales, sino también es algo que está dentro de nuestros mundosmentales y nuestro conocimiento histórico.

Ejemplos artísticos de lo que decimos hay muchísimos.Citemos, por ejemplo, el discurso ambientalista que se despliega enla película Dersu Uzala, donde la amistad de dos hombres quecomparten espacios culturales diferentes, está mediada por lapresencia imponente de la naturaleza salvaje de las estepassiberianas. O, de un modo mucho más sutil, la obsesiva presencia delos diversos entornos naturales que van surgiendo a medida que losmotociclistas de la mítica Easy Rider van recorriendo la distanciaentre Los Ángeles y Nueva Orleans. La primera impresión que nosllevamos de estas películas es que tratan temas puramente“humanos”: la amistad, la libertad..., pero si las observamosatentamente, en ambos films, los personajes no pueden “dejar demirar” los diversos entornos naturales por donde caminan, ya queson estos mismos entornos los que los miran a ellos: no están en el

18 Arnold, D., La naturaleza como problema histórico. El medio, la cultura y la expansión de Europa, F.C.E. México, 2000.

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entorno, son el entorno. No hay, pues, una naturaleza exteriorindependiente de nuestras percepciones; siendo estas, al fin y alcabo, las que nos inducen a mirar el ambiente desde nuestrasanteojeras culturales y a ser mirados por la majestuosidad o por ladestrucción de la madre naturaleza. Ésta puede ser la motivación queimpulsó a Dennis Hooper -Director de Easy Rider- a filmar el ocasoen las Montañas Rocosas: un ocaso físico-natural que tiene muchoque ver con el ocaso de toda una generación de jóvenes inquietos yrebeldes que intentaron vivir sus vidas en relación amistosa y noviolenta con el entorno en que interactuaban y en el que eran.

Muy distinta es la concepción del entorno que dimana de la obramaestra de Joseph Conrad, El Corazón de las tinieblas. En este clásicode la literatura decimonónica de “viajes”, se condensan todos losprejuicios, temores y recelos que la cultura occidental había vertidosobre los entornos geográficos y humanos de los Trópicos. En el últimotercio del siglo XIX, la sorpresa y la atracción que un siglo antes provocóel descubrimiento de las islas tropicales de los mares del Sur habíanpasado a mejor vida. Conrad escribe su libro en los momentos inicialesdel imperialismo europeo en África, y lo que era una naturalezadesbordante y repleta de encantos, tal y como la describió Alexander vonHumboldt, o un espacio geográfico donde era posible encontrar lahistoria de nuestra propia especie, en el sentido que Darwin imprimió alos viajes por aquellas lejanas tierras, pasó a ser la confirmación de loque Hipócrates y Montesquieu escribieron sobre los peligros y bajezasque los climas tórridos imponen a sus habitantes y a los viajeros que porallí se aventuran. En su texto Aires, Aguas, Lugares19, aparte de suscontribuciones al estudio comparado de las enfermedades y a surelación con los ambientes climáticos y geográficos, Hipócrates fundótoda una concepción etnográfica que aún hoy perdura en determinadoscírculos de intelectuales: los climas estables, tranquilos y los suelosfértiles producen gente floja; mientras que, las tierras desoladas y áridasproducen hombres valientes y activos. No es de extrañar, queHipócrates considerara a la Europa de su tiempo y de su contextocultural griego como la norma, como el punto de partida de lacivilización, e incluyera en sus reflexiones a Asia y África como losextremos aberrantes, dadas sus condiciones ambientales“aparentemente” estáticas y altamente peligrosas para el visitante queprocedía de las zonas templadas. Siglos más tarde, tal concepciónimpregnó la obra de Charles Secondat, Barón de Montesquieu, el cual,partiendo de un conocimiento más adecuado de la orografía y

19 Recopilado en G.E.R. Lloyd, Hippocratic Writings, Harmondsworth, 1983.

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condiciones ambientales de Asia, sin embargo, no dudó en afirmar ensu obra de 1748 El Espíritu de las Leyes que, dados esoscondicionamientos naturales, era “natural” que Asia produjera sistemasde gobierno autocráticos, siendo la región del mundo en donde eldespotismo tiene su domicilio más apropiado y la esclavitud el únicorégimen posible de relación social entre los dominantes y los dominados.

Otra era la perspectiva que indujo al hijo de proletarios yaprendiz de confitero James Cook a lanzarse hacia los mares del Surtres décadas después de la publicación del libro de Montesquieu.Cook, acompañado de excelentes científicos como Joseph Banks yDaniel Solander, recorrió en tres periplos consecutivos toda laPolinesia y, admirado por el talante de sus habitantes y por lasparadisíacas condiciones naturales de aquellas islas, se esforzó enimpedir lo inevitable: la contaminación de lo que él consideraba elParaíso por las peores costumbres y hábitos de la civilizaciónoccidental: alcoholismo, prostitución, pillaje, ansias de obtenerobjetos de dudosa utilidad para la vida en los trópicos... A pesar deque sus inquietudes a favor de los aborígenes le condujeron a unamuerte injusta y cruel, Cook nunca dudó en que en aquellos lugarespodría haber reinado la paz y el equilibrio perdidos por nuestraexpulsión del Paraíso. Pero la historia del imperialismo europeocontinuó inexorable después de la muerte del Capitán Cook, y, pocoa poco, esa naturaleza paradisíaca se fue convirtiendo en el infiernode miasmas, de traiciones, de humedales intransitables, de insectoscarnívoros, de antesalas de la locura que Joseph Conrad describióapasionadamente en El Corazón de las Tinieblas.

En su afán imperialista, la Europa que se fue construyendo apartir de la era de los “descubrimientos”, consideraba que su triunfosobre el resto del mundo conocido se sustentaba en la separación quesus pensadores habían hecho entre cultura y naturaleza, abriendolas puertas a la total posibilidad de explotación de todo lo que seconsiderara natural. Pero, paralelamente a esta consideración, nocesaba de describir y enjuiciar a las formas de vida que ibacolonizando en su propio beneficio en términos naturales. Lostahitianos, los balineses, los indonesios, los habitantes de las alturasandinas o de la India, a pesar de demostrar su riqueza histórica,artística e intelectual, eran considerados algo menos que humanos,gente absolutamente apegada a sus condicionamientos ambientales,y, por tanto, susceptibles de ser dominados y explotados por la únicapotencia que había sabido separarse de las determinacionesnaturales. Sin embargo, y como demuestra muy convincentemente

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Carson I. A. Ritchie en su impresionante texto Comida y civilización,gran parte de las innovaciones políticas, técnicas y sociales deOccidente -de hecho no podía haber sido de otro modo dada la co-implicación entre lo natural y lo cultural- se debieron a susobsesiones acerca de algo tan “natural” –y, a la vez, tan cultural-como la alimentación. Si no hubiera sido por la exigencia“psicológica” de las especias, el “descubrimiento” y posterior“conquista” de Asia y la actual América, hubiera tardado muchísimomás tiempo del que se necesitó. La ansiedad por obtener especiasinfluyó poderosamente en la configuración del orden colonialdominado por los europeos. La famosa batalla de Diu en 1509,librada en aguas indias entre la flota otomana -que controlaba el pasopor tierra de las especias procedentes de Asia- y las navesportuguesas, cuyo objetivo era el control del comercio de estosproductos naturales a lo largo de los itinerarios que recorrían Áfricay el Océano Índico, fue incluso más decisiva que la literaria batalla deLepanto en la que Miguel de Cervantes perdió su brazo luchando porla cristiandad a fines del siglo XVI. A partir de esa batalla, losportugueses consiguieron el dominio comercial y político de granparte de Asia, posteriormente “asumido” por los holandeses,20

igualmente obsesionados por los productos y recursos naturales deaquella región de nuestro mundo. Es posible preguntarse si Europa haavanzado únicamente por sus ideas o si ha estado sometida a sudependencia con respecto a la natural y cultural satisfacción del hambre.Tampoco debemos olvidar que el hecho histórico de la esclavitud fuefavorecido por la obsesión europea de dulcificar productos tales como elcafé (procedente de Etiopía), el te (de orígenes milenarios en la culturachina) y el chocolate (venido directamente de las colonias americanas).Como dice Ritchie, “la búsqueda de las especias, que había comenzadocomo una cruzada contra la dominación musulmana, se habíaconvertido en una gigantesca empresa de piratería, que iba a conseguirque la palabra ‘europeo’ apestase durante siglos. Como dijo Almeida(procónsul portugués en la India), un chatarrero chino sabía más de

20 En su afán por controlar el mercado de especias, los holandeses introdujeron medidas que favorecieron enorme-mente el despliegue del capitalismo por todo el orbe conocido: por un lado, el sistema de propiedad de la empresapor acciones (que desvinculaba la propiedad de la empresa de los actos criminales y depredatorios que se realizabanen su nombre a lo largo de las colonias); por otro, el control de las haciendas locales de los países colonizados, apartir del cual se imponían impuestos a todos los intercambios comerciales que se hacían en las lejanías de Asiay la Polinesia (y que tiene mucho que ver con los actuales procesos de exigencia del pago de la deuda externa apaíses endeudados gracias a la propia intervención de Occidente en sus economías); y, por último, la tendencia aesterilizar los productos naturales, como fue el caso de la nuez moscada, tratándola con mercurio para impedir quefuera replantada en otro lugar del controlado por las empresas holandesas (nadie –dice Ritchie- podía utilizar esasnueces para plantarlas y obtener nuevos árboles de nuez moscada. Con lo cual, las actuales prácticas deesterilización de las espigas de trigo por las corporaciones multinacionales, con el terrible objetivo de hacer pagara los campesinos pobres de todo el mundo de royalties a las corporaciones multinacionales no sea algo nuevo enel siglo XXI).

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honor y de gentileza que cualquier caballero del mundo cristiano”. Esrelevante escribir algunas palabras sobre la “tropicalización” de la Indiapor parte de los colonizadores ingleses.

Aunque, como demuestra David Arnold,21 gran parte de la India nopertenece geográficamente a los trópicos, los ingleses se dedicaron a“tropicalizar” su “joya”, con el objetivo, primero, de encajar a sushabitantes en los estereotipos que ya habían cristalizado en la menteoccidental acerca del habitante perezoso y de bajas inclinaciones moralesde los trópicos; para, en un segundo momento, facilitar y legitimar“culturalmente” la invasión, el aprovechamiento de los recursos ajenos yla sistemática destrucción de los entornos que los indios habían idoconstruyendo a lo largo de siglos de una profunda espiritualidad yrespeto por la naturaleza. “Conforme crecía el poder imperial, y con ésteel sentido británico de superioridad racial y técnica sobre la India, asítambién se invocaba más y más el entorno para explicar el profundoabismo que separaba una nación de la otra...Desde la perspectivaimperial, era claro el valor de tales modos determinista y reduccionistade razonar. La India estaba sometida a la naturaleza en un grado muchomayor que Europa: de ahí su atraso, su inferioridad y sus divisionesinternas; de ahí también la necesidad de que los británicos gobernaranla India, para introducir en ella ‘mejoras’, ‘orden’ y ‘progreso’, y paraliberar a los indios de su sometimiento a la naturaleza”.22 Sin embargo,en las crónicas oficiales no constaban los perjuicios ecológicos yambientales que produjo la invasión inglesa: los planes de irrigacióndifundieron la malaria; la inmensa red de ferrocarriles, destrozó lariqueza forestal; y la eliminación de las selvas (con la justificación de laagricultura intensiva), devastó la biodiversidad de unas tierras y de unasgentes que habían luchado -y siguen haciéndolo hoy en día encabezadospor la autora y militante eco-feminista Vandana Shiva- denodamente ydurante siglos para aprender a vivir en una relación estrecha yrespetuosa con su entorno.23

Fue la Kaliguya, la era de la aflicción, el tiempo en que la Indiaretrocedió casi 500 años; pero también, dio paso a la era de la rebeldíay de los esfuerzos por construir un entorno puramente indio. Tanto enla India como en gran parte del mundo colonizado por la Europa“cultural” fueron surgiendo movimientos e intelectuales que lucharon

21 Arnold, D., op. cit. p. 154 y ss.

22 Arnold, D., op. cit., pp. 156 y 158.

23 David Hardiman, “Power in the forests: the Dangs, 1820-1940”, en D.Arnold y D. Hardiman Subaltern Studies VIII:Essays in Honour of Ranajit Guha, Delhi, 1995, pp. 89-147; Elizabeth Whitcombe, “The environmental costs ofirrigation in British India: waterlogging, salinity, malaria”, en D. Arnold y Ramachandra Guha, Nature, Culture,Imperialism: Essays on the Environmental History of South Asia, Delhi, 1995, pp. 237-259; Madhar Gadgil yRamachandra Guha, This Fissured Land: an Ecological History of India, Delhi, 1992; además del texto de Arnold quetengo, D. Arnold, Famine: Social Crisis and Historical Change, Oxford, 1988.

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por erradicar el peor de los males que se ha infligido a la naturalezahumana a lo largo de toda su historia: el colonialismo y elimperialismo. Las luchas de Gandhi, de Stephen Bico, de ChicoMendes, de Frantz Fanon o de Vandana Shiva no han caído en el vacíodel olvido. Para todos ellos, la naturaleza no determina absolutamentelo cultural, puesto que ella misma es un concepto cultural quepertenece a la humanidad en su largo e interminable proceso dehumanización, aunque hasta el momento de las luchas se consideraracomo patrimonio exclusivo de occidente.

Permítannos terminar este epígrafe con uno de los documentosinternacionales de derechos humanos que refleja de un modo precisonuestra opinión acerca de la coimplicación no determinista nireduccionista que necesariamente se da entre la naturaleza y lacultura, y que está abriendo un debate global muy rico en contra detodo tipo de colonialismo e imperialismo.

Nos referimos a la llamada Carta de la Tierra, y sus principiosbásicos. Véamoslos y reflexionemos sobre su enorme y profundosentido humanizador:

La Tierra es nuestro hogar... Somos miembros de unacomunidad de vida interdependiente con una magnificente diversidadde formas de vida y culturas. Nos sentimos humildes ante la bellezade la Tierra y compartimos una reverencia por la vida y las fuentes denuestro ser.

Agradecemos por la herencia que hemos recibido de lasgeneraciones pasadas y abrazamos nuestras responsabilidades paracon las generaciones presentes y futuras.

La comunidad terrestre se encuentra en un momento decisivo.La biosfera está gobernada por leyes que ignoramos a nuestro propioriesgo. Los seres humanos han adquirido la habilidad de alterarradicalmente el medio ambiente y los procesos evolutivos. La falta devisión y prudencia en nuestro accionar y la mala utilización delconocimiento y del poder amenazan el tejido de la vida y losfundamentos de la seguridad local y global. Mucha violencia, pobrezay sufrimiento encontramos en nuestro mundo. Un cambiofundamental es, naturalmente, necesario.

La alternativa está frente a nosotros: cuidar de la Tierra o serpartícipes de la destrucción tanto nuestra como de la diversidad de lavida. Debemos reinventar una civilización industrial y tecnológicahallando nuevos caminos para equilibrar al individuo y a lacomunidad, al tener y al ser, a la diversidad y a la unidad, al corto yal largo plazo, al uso y al cuidado.

67Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

Inmersos en nuestra gran diversidad, somos una humanidad yuna familia terrena con un destino compartido. Los desafíos anuestra frente requieren una visión ética inclusiva.

Nuevas asociaciones deben ser forjadas y la cooperación a nivellocal, bioregional, nacional e internacional debe promoverse.Solidarios unos con los otros y respecto de comunidad de la vidanosotros, los pueblos del mundo, nos comprometemos para la acciónguiados por los siguientes principios entre si relacionados:

1 – Respetar la Tierra y la vida. La Tierra, cada forma de vida y

los seres humanos son poseedores de valor intrínseco y gozan de

respeto independientemente del valor utilitario que merezcan para la

humanidad.

2 – Cuidar de la Tierra, protegiendo y restaurando la diversidad,

integridad y belleza de los ecosistemas del planeta. Donde exista el

riesgo de serios o irreversibles daños al ambiente, deben tomarse

medidas preventivas a fin de evitar el daño.

3 – Vivir sosteniblemente, promoviendo y adoptando modos

de consumo, producción y reproducción que respeten y

salvaguarden los derechos humanos y las capacidades

regenerativas de la Tierra.

4 – Establecer la justicia, y defender sin discriminación el

derecho de todas las personas a la vida, la libertad y la seguridad, en

un ambiente adecuado para la salud humana y el bienestar

espiritual. Los seres humanos gozan del derecho a contar con agua

potable, aire puro, suelo libre de contaminaciones, y seguridad

alimentaria.

5 – Compartir equitativamente los beneficios de la utilización de

los recursos naturales y la protección ambiental entre las naciones,

entre ricos y pobres, hombres y mujeres, y generaciones presentes y

futuras, e internalizar todos los costos ambientales, sociales y

económicos.

6 – Promover el desarrollo social y los sistemas financieros

aptos para crear y mantener medios sostenibles de subsistencia,

erradicar la pobreza y fortalecer las comunidades locales.

68 Joaquín Herrera Flores

7 – Practicar la no violencia, reconociendo que la paz es laintegridad creada por relaciones armoniosas y equilibradas para conuno mismo, con el prójimo, con otras formas de vida y con la Tierra.

8 – Fortalecer los procesos que otorgan poder a las personaspara que participen efectivamente en la toma de decisiones yaseguren la transparencia y una actitud responsable en el gobierno yadministración de todos los sectores de la sociedad.

9 – Reafirmar que los pueblos indígenas y tribales tienen unpapel vital en el cuidado y protección de la Madre Tierra. Ellos gozandel derecho a salvaguardar su espiritualidad, conocimientos, tierras,territorios y recursos.

10 – Afirmar que la igualdad entre los géneros es un requisitoprevio para el desarrollo sostenible.

11 – Asegurar el derecho a la salud sexual y de reproducción,con especial referencia a las mujeres y a las niñas.

12 – Promover la participación de la juventud como agenteresponsable del cambio hacia la sostenibilidad local, bioregional yglobal.

13 – Realizar avances y colocar en práctica el conocimientotanto científico como proveniente de otras fuentes, las tecnologíasque promueven la existencia sostenible y protegen el medio ambiente.

14 – Asegurar a todas las personas el goce de oportunidadesdurante toda su existencia para adquirir los conocimientos, valores,y habilidades prácticas necesarias para edificar comunidadessostenibles.

15 – Dispensar a todas las criaturas un tratamiento compasivoy protegerlas de la crueldad y del aniquilamiento arbitrario.

16 – No infligir al medio ambiente de otros lo que no deseamosver infligido al nuestro.

17 – Proteger y restaurar lugares de destacada significaciónecológica, cultural, estética, espiritual y científica.

18 – Cultivar y conducirse con responsabilidad compartidarespecto del bienestar de la Comunidad de la Tierra. Toda persona,institución y gobierno es responsable por la concreción de losobjetivos de justicia indivisible para todos, la sostenibilidad, la pazmundial, y el respeto y cuidado por toda la comunidad de la vida.

69Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

5 – LO CULTURAL Y LO “EXTRACULTURAL”: EL PRINCIPIOCAIROLÓGICO Y LOS DERECHOS HUMANOS

Por tanto, ni biologicismo ni aislacionismo cultural. Tomar enconsideración lo natural en el proceso cultural no supone, pues,considerarnos únicamente como cuerpos, ni como conjunto desímbolos, sino como “cuerpos” que, reaccionando a partir de lasnecesidades que compartimos con toda la humanidad, vamosconstruyendo un mundo de símbolos que nos van a permitir“determinar nuestras propias determinaciones”. “Lo característico deuna criatura que produce símbolos es que su propia naturalezaconsiste en trascenderse a sí misma. El signo –el producto cultural-abre una distancia operativa entre nosotros y nuestros entornosmateriales, y, así, nos permite transfigurarlos en historia”.24 Elbiologicismo niega la capacidad humana de cambiar sus entornos,todo dependerá de las reglas que dicten los “culturgenes”; por suparte, el aislacionismo cultural niega toda posibilidad de cambio ytransformación a la naturaleza, ya que el conjunto de objetosnaturales que constituye el sistema físico -y, como consecuencia detal afirmación, todos aquellos pueblos que, como los indígenas, vivencercanos a la naturaleza- están, y hay que analizarlos de un modo,absolutamente separados de los sistemas políticos y culturales: cadauno tendrá su conjunto de reglas que determinan la acción humanaen sus diferentes e incomunicables niveles. Como afirma Eagleton,“resulta curioso que, precisamente en una época en la que lanaturaleza resulta un material tan maleable, se conciba... (como algo)intemporal, ineluctable, indeleble...Muchos fenómenos culturales sehan mostrado mucho más persistentes e inexorables que un bosquetropical. Ya sabemos que, en nuestro tiempo, la teoría dominantesobre la naturaleza es una teoría sobre cambio, lucha y variación sinfin. Son los apologistas profesionales de la cultura, no losexploradores de la naturaleza, los que caricaturizan la naturalezacomo si fuera algo inerte e inmóvil”.

Como ha defendido la Escuela de Tartú,25 el problema de locultural no puede ser resuelto sin una definición sobre su posición enel espacio extracultural. La peculiaridad del “animal cultural”necesita de su contraposición con el mundo de la naturaleza, pero nocomo enemiga o como algo sujeto a la posibilidad de explotación, sinocomo marco o espacio extracultural que define lo propiamente

24 Eagleton, T., op. cit., p. 145.

25 Lotman, I.M., La semiosfera. Semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio, 3 volúmenes, Cátedra(Frónesis), Madrid, 1998.

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cultural. “Con determinados aspectos de su ser, el ser humanopertenece a la cultura; con otros, en cambio, se liga al mundoextracultural. Del mismo modo, sería poco prudente excluircategóricamente el mundo animal de la esfera de la cultura, ya que ellímite entre ambos es incierto, y definir algunos hechos concretoscomo pertenecientes a la esfera de la cultura o a la extracultural esposible sólo en forma altamente relativa”.26

Esto ocurre porque vivimos, no en ambientes separados, seanpuramente culturales o naturales, sino en “entornos”. Un entornosólo puede existir si existe para algo y para alguien, o, lo que es lomismo, si permite la relación entre los productos culturales y losprocesos naturales: un campo se convierte en “entorno” cuando esusado para la satisfacción de necesidades de la fauna, de la flora y delos seres humanos que en él viven; y una ciudad, deja de ser uninfierno de contaminación, de cemento y asfalto, cuando se convierteen un “entorno” urbano dedicado más a la humanización de la vidaque a la satisfacción de las exigencias del consumismo y delindividualismo.27 La dependencia mutua entre lo cultural y loextracultural, que se da en los entornos en que vivimos, predica unorigen compartido en el cual no se puede concebir “vida sin entorno”,ni un “entorno para nadie”. Según Edgar Morin, el viviente se genera,se organiza y se reorganiza permanentemente en el seno de la eco-organización.28 De ahí que no debamos caer en el dualismo quedisocia el organismo de su entorno, ni en el monismo que afirma laabsoluta dependencia de uno con respecto al otro. Desde este puntode vista, resultaría inadmisible pretender explicar el desarrollo de lacultura sobre la base de “relaciones” que le son internas, sinreferencia a un entorno que no sólo es generado por la cultura, sinoque, al mismo tiempo, posibilita la organización de esa cultura.

Como vimos más arriba, la conservación, el manejo oaprovechamiento de los recursos naturales se encuentra en directarelación con una determinada configuración de produccionesculturales. La historia de las civilizaciones puede ser escritapartiendo de la mutua interrelación entre los diferentes productosculturales de las diferentes y plurales formas de vida y las, asimimodiferenciadas, condiciones ambientales accesibles a cada pueblo. La

26 Lotman, I., Cultura y explosión. Lo previsible y lo imprevisible en los procesos de cambio social, Gedisa, Barcelona,1999, p. 44.

27 Maturana, H., y Varela, F., El Árbol del Conocimiento: Las bases biológicas del conocer humano. EditorialUniversitaria, Santiago de Chile, 1984.

28 Morin, E.,”Por la ciencia” artículos aparecidos en Le Monde durante el mes de Enero de 1982 e incluidos en Cienciacon conciencia, Anthropos, Barcelona, 1984.

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utilización de los recursos naturales ha sido un elemento constitutivoy determinante de los modelos de desarrollo y de los modos deexistencia de los diversos pueblos29 Por tanto, la idea de que existanecosistemas o sistemas naturales fuera del proceso cultural es falazy responde solamente a un énfasis por mantener separados losconceptos de cultura y naturaleza.

Es esa misma constatación la que nos empuja, como animalesculturales, a elevarnos “culturalmente” de todos los determinismosque intentan imponernos sus dogmas, sean naturales o meramenteculturales. Lo que a nosotros nos interesa es que, a partir delreconocimiento del continuo naturaleza-cultura “nos vamoselevando” de los procesos corporales y naturales para ir creando otromarco, ya plenamente humano, desde el que desplegar nuestraspotencialidades. Por ello, parafraseando al ensayista brasileño, el ríomanda sobre la vida y la vida manda sobre el río. Es a partir de esenuevo marco, de esa nueva “determinación” cultural/natural comopodemos enfrentar no sólo los embates de la naturaleza física, sino,lo que es mucho más importante para nuestra argumentación, todotipo de dinámica cultural “determinista” que “naturalice” o “cosifique”los hechos que construimos, haciéndonos creer que no dependen denuestra creatividad y nuestra acción, sino de alguna instanciatrascendente, tenga el nombre de Dios, de Legislador, de Sujetoabstracto o de Naturaleza.

Por todas estas razones, aunque no tengamos otro remedio quereconocer que la reacción cultural ante los entornos de relacionessociales, psíquicas y, por supuesto, naturales tengan su arranque enlos procesos evolutivos biológicos dirigidos a la satisfaccióndiversificada de nuestras necesidades, también debe admitirse quedichas necesidades son recreadas por el proceso cultural,abriéndolas a nuevas formas de satisfacción y generando nuevasnecesidades en función del conjunto de valores que creamos ymantenemos como conjunto de preferencias colectivas que nospermiten organizar y legitimar nuestras acciones. Sin caer en nuevosdeterminismos naturalistas o mecanicistas, no podemos (ni debemos)olvidar que las necesidades expresadas culturalmente revelan unfondo infraestructural,30 o económico-biológico31 que es, a su vez,modificado por lo que podemos denominar el “principio cairológico”.

29 Freitas, Marcílio de, “Nuanças da sustentabilidades: visoes fantásticas da Amazônia”, en Marcílio de Freitas (org.),Marilene Corrêa da Silva Freitas e Louis Marmoz, A Ilusao da Sustentabilidade, Governo do Estado doAmazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas/UEA, Manaus, 2003.

30 Harris, M., Antropología cultural, Alianza, Madrid, 2002.

31 Arnold, D., op. cit.

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Este principio procede del término Kairós, es decir, delaprovechamiento de circunstancias favorables para la invención,para la creatividad y para la transformación de lo que nos viene dado,natural o culturalmente. A través del proceso cultural los animalesculturales hemos “semiotizado” nuestro entorno. No olvidemosnuestra definición de proceso cultural: La continua construcción,transformación e intercambio de “signos”, es decir, de relaciones entrelos conjuntos de objetos y acciones que, en el marco de unadeterminada situación de poder, permiten a los seres humanosreaccionar colectivamente sobre el entorno en el que viven De esteproceso de “semiotización” surgen dos consecuencias: primera, lareacción cultural frente al entorno en el que nos relacionamos suponepasar del conjunto de “señales” -dato estático y espontáneo de lanaturaleza: las nubes que pasan por el cielo o el contorno de unapisada de un animal al que intentamos dar alcance-, al conjunto de“signos” -entendido como el punto a partir del cual aprendemos aarticular mensajes y a relacionar lo que antes era una mera señalfísica con lo que ahora es un hecho cultural: los análisismetereológicos o las huellas; y, segunda, sobrepasar lasdeterminaciones meramente “adaptativas” a los entornos, las cualesbloquean nuestra capacidad de articulación cultural de la realidad,para dedicarnos al propio proceso de “transformación” de nuestrasvidas con base en el proceso de construcción y prospección dealternativas reales y posibles.

Por esa razón, en el ámbito de los procesos culturales nopodemos quedarnos únicamente en la reivindicación de la identidad,como si la cultura se redujera a la conciencia de la pertenencia a unlugar y a una sola forma de ver el mundo. Si las acciones humanastuvieran un solo camino por el que transitar y produjeran un solo yúnico significado al conjunto de relaciones en el que vivimos, todoquedaría reducido a la “tautología” de la identidad: el yo es el yo, y elotro será reconocido si es comparable o reducible a mi yo. Pero esto,afortunadamente, no es así. No existe un único camino por dondetransitar culturalmente y no existe un único sentido intrínseco,inmutable, determinado y determinante del mundo. En realidad, laactividad humana propone siempre nuevos sentidos a su reaccióncultural y a los procesos naturales que están en su base. Abrimosnuevas posibilidades, y lo hacemos “en esta vida”, dado que nopodemos dejar de reconocer que la naturaleza está ahí, que nosexpulsaron del paraíso y que no tenemos otro tiempo que el tiempode la vida que nos ha tocado vivir. “Cairológicamente” no vivimos para

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la muerte o para la eternidad, sino para alcanzar la plenitud denuestra vida planteando nuevos sentidos y prospecciones de futuroen la brevedad del tiempo que tenemos.

Lo cairológico significa, pues, en un primer momento,antagonismo frente al conjunto de relaciones que nos impidenplantear nuevos sentidos. Toda transformación de la realidad novendrá por sí misma, ni estará garantizada por alguna instanciatrascendental, sea del tipo que sea. Como defendió Norbert Elias,32

todo presupuesto trascendentalista tiende a empequeñecer lohumano frente alguna entidad todopoderosa que lo condiciona y lodetermina; y, en vez de afirmar sencillamente el poder constitutivo delos sujetos, se detiene en la conciencia de sus limitaciones, como siéstas fueran infranqueables. El principio cairológico no parte, pues,de metafísicas “debilitadoras” de la capacidad constitutiva de losseres humanos; parte más bien de la acumulación, no de capitales ode recursos, sino de luchas antagonistas contra aquellas formas derelación que obstaculizan el pleno desarrollo de la praxis humana devalorización del mundo, sean estas económicas, sociales, filosóficas opolíticas. De ahí que, en un segundo momento, lo cairológico seoponga a la reducción solipsista y homogeneizadora del mundo,reivindicando siempre la apertura a la diversidad de entornos, deformas de vida, de producciones culturales, de luchas sociales, decontextos naturales, sociales, económicos, políticos o culturales.

Ni la naturaleza ni la cultura son procesos cerrados, homogéneosy terminados. Al estar abiertos continuamente a las presiones de ladiversidad social, biológica y política, son procesos que estánpermanentemente en situación de desequilibrio, oscilantes, inestables,sometidos a tensiones compensadoras y descompensadoras: sonprocesos, pues, en movimiento y en continuo conflicto. En definitiva,son procesos sometidos a la historia. Lo cairológico, en fin, supone, enun tercer momento, sentar las bases de la mutua interrelación entrenosotros y los otros, entre lo cultural y lo natural, rota o bloqueada porlos sistemas totalitarios de relación social y natural.

Lo cairológico, pues, comparte las características de todoconocimiento nómada, tal y como lo formularon Deleuze y Guattari: 33

a) un conocimiento del “afuera”: es decir, una forma de acercamientoal mundo contando con el mundo real, tanto natural como cultural,y no un conocimiento de “gabinete”; b) un conocimiento “nosimétrico”, es decir, opuesto, al que domina en los centros culturales,

32 Elias, N., Teoría del símbolo: un ensayo de antropología cultural, Península, Barcelona, 2000.

33 Deleuze, G., y Guattari, F., “Tratado de Nomadología” en Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, Pre-Textos,Valencia, 2002, p. 359-432.

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es decir, un pensamiento descentrado, procesual, problemático ybasado en la existencia de acontecimientos que dinamizan la realidad;c) un conocimiento de las “singularidades/particularidades”. Este tipode conocimiento no se queda en la mera reivindicación de identidadescerradas e incomunicables, sino que celebra el mestizaje, lainterrelación, la mezcla de diferentes percepciones y procesosculturales; d) un conocimiento, en definitiva, que no le pertenece aningún sujeto trascendental ni a una totalidad social o política cerraday excluyente, sino un pensamiento “abierto totalmente al devenir y alproceso”, a la historia, al cambio, a la continua transformación de larealidad en función de la búsqueda de una vida digna para todos losseres humanos. Así es como lo cultural se eleva sobre lo natural sinrenunciar a sus condicionamientos y a los contextos desde, y para losque, surge.

En palabras de Antonio Negri, lo cairológico, no es más que elproceso a partir del cual las formas culturales se proyectan sobre larealidad para comprenderla, organizarla e interpretarla. “En talsentido -defiende Negri34 – lo que defino como kairós es el puntotemporal ejemplar de apertura, de invención del ser en el borde deltiempo” y -añadiriamos nosotros- del espacio natural y cultural en elque se enmarca el proceso de humanización. En ese sentido, losderechos humanos son la clave a partir de la cual concretar eseprincipio cairológico, pues más que definir hechos, lo que posibilitanes esa invención, esa apertura, de carácter normativo, a lahumanización emancipadora del ser humano. Los derechos humanosno son prima facie “derechos”. Son más bien procesos de lucha por ladignidad humana que se materializan en deberes y que, si tenemossuerte y acceso a los procedimientos políticos y legislativos, acabaránsiendo garantizados por los sistemas jurídicos. En ese sentido, losderechos humanos “humanizan” el mundo, ya que apelan a lapromoción de las capacidades humanas de transformación y desuperación constante de las situaciones que bloquean los procesosculturales y con ellos la obstaculización del despliegue proteico de lanaturaleza humana, lo cual es siempre el blanco de las políticas ypropuestas culturales autoritarias y totalitarias. Los derechoshumanos “humanizan”, es decir, proponen la humanización de losseres humanos, pero no porque sean la manifestación de algunacondición humana ancestral que se concreta en un momentoespacio/temporal concreto. Si partimos de esa perspectiva acabamosfuera del principio cairológico. Los derechos humanos “humanizan”,

34 Negri, A., Il Ritorno. Quasi un’autobiografia, Rizzoli, Milano, 2003, p. 123.

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no en sí mismos o por sí mismos, sino porque son el vehículo que losactores sociales antagonistas al orden existente han creadocairológica y convencionalmente para enfrentarse a todo tipo de cierrede los procesos culturales y a todos los obstáculos que los sistemasautoritarios oponen al libre e igual despliegue de la capacidadhumana colectiva de crear y transformar el mundo.

6. HACIA LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIOAMBIENTAL BIO(SOCIO)DIVERSO: EL IMPERATIVOAMBIENTAL

6.1. Bio(socio)diversidad y deberes básicos: procesosnaturales y aspectos procedimentales y éticos de lasluchas por la dignidad humana en relación con lanaturaleza

Si partimos de esta consideración deontológica de los derechoshumanos como productos culturales (no facultades innatas), a partirde los cuales nos auto-imponemos deberes con respecto a los otros, anosotros mismos y a la naturaleza, hablamos, en primer lugar, de“procesos” de construcción de condiciones para el respeto, lareciprocidad, el reconocimiento y la redistribución. No estamoshablando de algo que se da en el vacío de una naturaleza humanaidealizada, sino en la constatación de que no estamos solos, de quenada podemos hacer solos, de que nuestras autodefinicionesdependen de las miradas de los otros, y, por último, de quehabitamos espacios naturales y sociales en los que somosresponsables, no sólo de lo que nos ocurra a nosotros, sino a los otrosy, lo más importante en este momento, al Gran Otro u Otra, es decir,a la naturaleza.

No se trata de afirmar la existencia de derechos “humanos” dela naturaleza, ya que si así hiciéramos recaeríamos en laconsideración individualista y pasiva que rechazamos: desde estaconcepción pasiva, cualquier cosa puede tener derechos, ya que éstosestán desgajados de las luchas por la vida digna. Nosotros nosseparamos de tales premisas y negamos que la naturaleza tenga“derechos”, más bien, entre los deberes que nos imponemos comoseres humanos en el momento de relacionarnos con la naturaleza,también asumimos una serie de obligaciones con respecto a ésta, tanimportantes y necesarias como las dirigidas a los otros sereshumanos o a nosotros mismos. Es decir, en la línea que defendemos

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a la hora de entender los derechos humanos, no como facultadesinnatas del ser humano, sino como deberes que nos imponemos en elámbito del proceso cultural, destacan con especial relevancia, dado elmaltrato y la destrucción sistemática que ha padecido y lacoimplicación entre naturaleza y cultura que hemos defendido enestas páginas, las obligaciones que asumimos con respecto a lanaturaleza. Veamos por qué.

1º – El ser humano y los procesos naturales en los queinterviene están sometidos a las mismas leyes naturales quecualquier otra especie. No hay una garantía de seguridadtrascendente que proteja indefinida e irrestrictamente a los sereshumanos de los destrozos que provocan en el entorno en el queactúan. Ni la biología ni el estudio ecológico más optimista puedenfundamentar esa tendencia ilustrada a encumbrar la razón humana(occidental) a autocomprenderse como superior a los procesosnaturales que indiscriminadamente explota. Tanto es así que lossistemas naturales, nos dicen los biólogos, son completamente aptospara persistir en ausencia de la especie humana y, asimismo, siguen,y seguirán, condicionando nuestra percepción del mundo a pesar deestar, podríamos decir, enterrados por millones de años deproducción cultural. Tal y como defiende la llamada psicología delaprendizaje, los seres humanos tendemos a olvidar (o a ocultarnos)que los estímulos condicionados culturalmente con los que llenamosnuestras vidas cotidianas (formas culturales de comer, formasculturales de practicar el sexo, formas culturales de beber...)dependen de lo que ellos denominan “estímulos incondicionados”(hambre, reproducción, sed...), por lo que acabamos dando másimportancia a aquellos que a éstos, dejando cada vez más de ladonuestra propia naturaleza de seres biológicos condicionados por suentorno. En tanto que nosotros, los animales culturales, comocualquier otro ser vivo, debemos satisfacer incondicionalmentedeterminadas necesidades naturales para poder vivir, tenemos eldeber de respetar el entorno en el que pretendemos seguir viviendo yconstruyendo formas culturales diferenciadas en lo que respecta a lanutrición, a la sexualidad o a la bebida.

2º – Los recursos naturales son limitados. Las reservas derecursos naturales no son infinitas y, tarde o temprano, acabaránagotándose. El proceso cultural occidental parte de una aceptacióndogmática en su capacidad “fáustica” de innovación que le permitealbergar la creencia de que los problemas que ahora plantea seránresueltos técnicamente en el futuro. Como seres que nos imponemos

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derechos humanos, es decir, obligaciones de actuar en undeterminado sentido, asumimos el deber de interactuar conreciprocidad, es decir, de saber devolver lo que hemos recibido o loque hemos robado en nuestro afán de progreso y beneficio continuo.Tenemos, pues, el deber de solidarizarnos, primero, con los procesosnaturales –colaborando con ellos- ya que ellos son los que nos van apermitir construir los instrumentos necesarios para la supervivencia;y, asimismo, de solidarizarnos con aquellos individuos y grupos quehan sufrido procesos coloniales a partir de los cuales se les haimpedido acceder con facilidad a sus propios recursos: individuos ygrupos, como es el caso de los pueblos indígenas, que constituyen unimpresionante factor de humanización del entorno, debido, sobretodo, a su estrecha relación con los procesos naturales. El deber noconsiste, en este caso, sólo en aumentarles su riqueza y susbeneficios económicos, sino en crear las condiciones –entre las quedestaca el saber retirarnos de sus territorios y de sus mentalidades-,de tal modo que les permitan a ellos mismos proteger y promover suspropios y diferenciados conocimientos tradicionales, mucho máscercanos a la reciprocidad con la naturaleza y con los otros sereshumanos que las formas epistemológicas y productivas occidentalesque se les han impuesto a lo largo de los últimos cinco siglos.

3º – El mundo biológico no se comporta de un modo simple yunilineal, sino de un modo complejo y plurilineal. Es decir, todo estáen mutua interacción y en mutua dependencia: lo que le ocurra a unbosque o a una selva, repercutirá en lo que le ocurra a un río o a unadeterminada especie de animales.35 Por un lado, esa mutuainteracción y dependencia es, precisa y paradójicamente, lo queasegura la biodiversidad. Si sólo hubiera una especie de animales, untipo de bosque o una misma concentración de humedad, todo lonatural sería un proceso homogéneo que ni siquiera necesitaría parareproducirse la interacción entre sus componentes. Dado que para lapolinización se requiere la intervención de diferentes y plurales entesy condiciones naturales, la necesidad de interacción suponenecesariamente la biodiversidad para poder llevarse a la práctica conéxito. Pero, por otro lado, esa interacción y esa biodiversidad se danen una escala temporal amplísima, que no coincide con los tiemposde la productividad alocada e inconsciente que exigen las sociedadesde consumo indiscriminado. El calentamiento de la atmósfera y elconsiguiente derretimiento de los círculos polares no van a ser

35 Freitas, Marcílio de, Fragmentos de utopias do século XXI: projeçoes e controvérsias, en Freitas, M., (org.) et. al.,op. cit. p. 275 y ss.

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fenómenos que se den de aquí a unos meses. Tardará su tiempo,pero, dadas las resistencias de los países industrializados a aplicar laConvención de Kyoto que recomienda la reducción del 5% de lasemisiones venenosas a la atmósfera, llegará irremisiblemente. Elprogreso inmediato, rápido y continuamente creciente, no percibe eldaño que produce en la naturaleza, dada la amplia escala temporalbajo la que los procesos naturales actúan, tanto en su reproduccióncomo en su destrucción.

Debemos, como seres humanos, reconocer la diversidadnatural. Y, junto a ella, la importancia de los conocimientos tradicio-nales que los pueblos y formas de vida más cercanos a la naturalezaaplican. No por primitivismo, sino realmente por todo lo contrario. Esdecir, por un humanismo aprendido a partir de la continuainteracción con esa diversidad natural y con esas escalas temporalesamplias que exigen, como decimos, el reconocimiento de nuestrainferioridad y de nuestra peligrosidad a la hora de relacionarnos“ideológicamente” con la naturaleza. Respetar y reconocer ladiversidad natural, nos induce a respetar y reconocer la diversidadsocial y humana.36 No somos los únicos en el conocimiento del medio.Quizá seamos los que menos lo conocemos. Las formas indígenas devida nos muestran la posibilidad de otra forma de producir, de otraforma de relacionarnos con el medio y de otra forma de respetar alos demás y a nosotros mismos. Por eso, el general brasileñoRondón, decía que al encontrarse con pueblos indígenas, el soldadodebería antes dejarse matar que atentar contra la vida de aquellosque aún hoy siguen uniendo lo humano y lo natural en sus formasculturales de relacionarse con el mundo en el que viven.

Y 4º– Si dichas interacciones humanas con el entornorespetasen la bio(socio)diversidad, los mecanismos de regulaciónentre los distintos y diversos componentes de los sistemas naturalesestarían asegurados. Sin embargo, la intervención humanahomogeneizadora y preocupada únicamente por el beneficioecomómico inmediato, ha modificado sustancialmente la velocidad ylos equilibrios entre tales procesos. Un bosque, en su escala temporalamplia, se “limpia” a sí mismo de elementos rechazables para susupervivencia. Al “ser” limpiados rápida y continuamente poragricultores o comerciantes de madera, esos procesos naturales sequiebran y desaparecen. Ahora bien, ¿Qué hacer? ¿Convertir lanaturaleza universal en un inmenso “parque natural” intocable

36 Corrêa da Silva Freitas, M., Fundamentos da cultura solidária e sustentabilidade na Amazônia, en Freitas, M., (org.),et. al., op. cit. pp. 205 y ss. Cfr., asimismo, el trabajo de Marcos Frederico Krüger, Amazônia. Mito e Literatura,Valer Editora, Manaus, 2003.

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incluso para los que viven en él y de él? Si así fuera recaeríamos enlas visiones esencialistas y pasivas de los derechos humanos. Nadamás lejos de las intenciones de estas páginas. Nuestra conclusiónreside en constatar la estrecha correlación que se da entre la acciónhumana y los procesos naturales. Hoy día, un medio naturalcompletamente aislado de la sociedad humana puede considerarsetan artificial como una intervención directa. Lo cultural está tanincluido en la naturaleza, como la naturaleza lo está en lo cultural(aunque por aquel proceso de olvido de los “estímulosincondicionados” nos veamos inducidos a despreciar esta segundaparte de la cuestión) Por ello mismo, estamos obligados, como seresque defienden los derechos humanos, a redistribuir recursoseconómicos y recursos de conocimiento, tanto tradicionales comomodernos, asumiendo deberes en cuanto a la creación yreproducción de condiciones sociales, económicas, políticas yculturales que posibiliten ese respeto, esas reciprocidades y esosreconocimientos.

6.2. Dune de Frank Ebert y el Imperativo Ambiental: losdeberes de “sustentabilidad” y de “precaución”

Teniendo en cuenta las tesis del sociólogo Charles Perrow37 lasrelaciones entre los avanzados procesos tecnológicos y científicos ylos procesos naturales pueden ser entendidas desde doscaracterísticas singulares que conforman las interaccionesconflictivas que entre ciencia, política y naturaleza han predominadoen la modernidad occidental capitalista: 1) la creación y reproducciónde una complejidad interactiva, por un lado, externa: entre loscomponentes de esa interrelación; y, por otro, interna: entre loscomponentes de cada uno de los factores (humanos y naturales) queen ella están implicados. Esta “trabazón” interactiva ha provocado talcomplejidad que se nos escapan las hipotéticas, pero probabilísimas,consecuencias desastrosas para los sistemas ambientales cuandoocurre un accidente como el de Bhopal en la India, el de Chernobil enUcrania, o el rompimiento del Prestige en las costas gallegas. Y 2) porlo general, las interrelaciones entre lo humano y lo natural tienden,en el marco del proceso cultural occidental capitalista, a establecerse,o, mejor dicho, a acoplarse rígidamente a los presupuestos teóricos yaxiológicos dominantes.

37 Perrow, Ch., Normal Accidents: Living with High-Risk Technologies, Princeton University Press, Princeton, New Jersey,1999

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Por un lado, tal y como afirma Perrow, la rigidez de acoplamientoprovoca que cuando ocurra un fallo en el sistema, dicho error odisfunción no pueden separarse del resto del sistema, impidiendo ladesconexión de lo que funciona mal de la totalidad de los procesosimplicados en el mismo. Es la posibilidad del efecto cascada dereacciones que pueden desembocar en alguna catástrofe como las másarriba mencionadas; y nos coloca también en lo que Jorge Riechmanndenomina el efecto Hidra, es decir, es tal la simbiosis estrechísima quese da entre los problemas y las soluciones, que “el crecimiento de losprimeros deja atrás sistemáticamente a las segundas...la informacióny la tecnología de control no resuelven tanto los problemas decomplejidad cuanto aumentan su dominio mediante la generación denuevos problemas de complejidad”38. Y, por otro lado, ese“acoplamiento rígido”, según nuestra interpretación, nos da larespuesta a las dificultades de la ciencia y la economía capitalistaspara llevar adelante cualquier forma de sustentabilidad en el marcodel desarrollo de los países empobrecidos, ahora absolutamentecondicionados y contaminados gracias a la exportación al Sur de lasindustrias más ecológicamente peligrosas.

Curiosamente, uno de los textos más importantes para plantearuna reflexión medioambiental desde las luchas por conseguir yreproducir una vida digna, es la novela Dune. La acción de la novelaestá situada en el marco de Arrakis, un planeta que ha sufrido lasconsecuencias de esa complejidad interactiva tratada rígidamente porla ciencia y la política. En Arrakis existe una total falta de agua, pero,para su desgracia, está provisto de una inmensa cantidad de riquezanatural (la “especia”), la cual es ansiada por todo el universo. Una delas autoridades más importantes de Arrakis es Kynes, el Ecólogo.Encargado de crear y mantener el equilibrio en un entornopeligrosamente abocado a la muerte, y después de una serie deperipecias, Kynes se halla en trance de morir atrapado por las fuerzasnegativas del planeta que él mismo había tratado de “humanizar”. Enesos momentos, Kynes contacta espiritualmente con su padre yantecesor en el cargo de Ecólogo y entre ambos van formulando loscontenidos precisos para construir una cultura de derechos/debereshumanos con respecto a la naturaleza.

38 Riechmann, J., “Bromas Aparte: lo sencillo es hermoso” en Riechmann, J., y Tickner, J., (edit.), El principio deprecaución. En medio ambiente y salud pública: de las definiciones a la práctica, Icaria, Barcelona, 2002, p. 150;“el caso del insecticida DDT llama fuertemente la atención sobre el hecho de que para cada solución, a menudo,hay un problema (lo cual debería refrenar nuestro optimismo). Esto no tendría que detener la búsqueda de mejoras,pero sí que debería reforzar la humildad en lo que se refiere a certidumbres científicas, sociales y económicas” enGreen, R., y Kohler, B., “Judging the danger – Citizens and control Risk assessment and the PrecautionaryPrinciple”, manuscrito citado por Riechman y Tickner, op. cit, p. 151.

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1º – “cuantas más vidas existen en un sistema, mayor es lacantidad de posibilidades de preservarla”

2º – “la vida aumenta la capacidad de un ambiente parasustentar la vida “

3º – “a una mayor cantidad y calidad de vida, habrá una mayordiversidad ambiental y, al contrario, a una gran cantidad dediversidad ambiental, mayores son las posibilidades de crear yreproducir la vida.

4º – “dado el grado de desarrollo de las formas de vida humanasy naturales que se dieron en el planeta, ya no hay vida ni diversidad“naturales”:la vida “natural” y la diversidad ambiental no se dansolas, sino que se requiere la interacción entre ser humano ynaturaleza.

5º – “por tanto, un deber básico con respecto a la naturalezaconsiste en reconstruir la acción humana, no como una forma dedestrucción, sino de construcción y reproducción ambiental”.

6º – “la más alta función de un proceso cultural ambiental es lacomprensión y prevención de las consecuencias que surjan en elmarco de la interacción naturaleza-cultura”

7º – “las peculiaridades físicas de un mundo acaban porquedarse inscritas en su historia económica y política”

Los tres primeros elementos de estos siete mandamientos eco-ambientales tratan sobre el tema de la vida como algo que propicia lavida y la relación dialéctica establecida “naturalmente” entre vida ydiversidad. Los puntos 5 al 7, giran sobre los deberes humanos dereconocimiento, respeto, reciprocidad y redistribución, englobados entres aspectos: la acción humana ambientalizada, la prevención de lasconsecuencias y la estrecha conexión entre los mecanismos políticosy económicos y los procesos naturales (siendo el punto 4, unelemento de transición entre la vida y la cultura)

De estos siete mandamientos eco-ambientales, se puedededucir un principio que nos sirva de guía general para formulardeberes con respecto a la relación ser humano-naturaleza y, si fueraposible, positivizar dichos valores en normas a partir de las cualespodamos exigir a los poderes públicos y privados el cumplimiento detales deberes. Es lo que Hans Jonas denominó, parafraseando elimperativo categórico kantiano, el “imperativo ecológico”, al cualnosotros preferimos denominar, después de algunos cambiossustanciales, el imperativo ambiental.

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Jonas formulaba su principio ecológico de la siguiente manera:actúa de tal modo que los efectos de tu acción sean compatibles con elmantenimiento de una auténtica vida humana sobre la tierra.39 Aunquela formulación del principio es de una importancia crucial al pasardel campo de las motivaciones morales (consideradas a priori porgran parte de la filosofía occidental que sigue a Kant) al de los efectosde las acciones reales de los seres humanos en su “inevitable”interacción con la naturaleza, sin embargo, se centra demasiado enlos aspectos antropocéntricos y culturales: la acción humana debe irdirigida al mantenimiento de una auténtica vida humana, dejando almargen la necesaria interrelación entre procesos culturales ynaturales. Nosotros preferimos reformular dicho principio de lasiguiente manera: actúa de tal modo que las consecuencias de tusacciones sobre la naturaleza y la sociedad sean compatibles con laproducción y mantenimiento de la diversidad biológica, social ypolítica, fines genéricos que constituyen el eje sobre el que pivota unacultura de derechos humanos basada en las luchas particulares por ladignidad humana. Como Hans Jonas y Frank Ebert, priorizamos laexigencia de interrelacionar las acciones, no sólo con las causas delos fenómenos, sino, fundamentalmente con las consecuenciassociales y naturales de la acción. En segundo lugar, defendemos quelos objetivos de toda acción humana deben ser la creación yreproducción de las diversidades ambientales, es decir, naturales,sociales y políticas. Y, en tercer lugar, relacionamos tales fines depluralidad y diversidad con la construcción de una cultura dederechos humanos no reducidos a una sola de sus formas deimplementación: la jurídica. Dicha cultura de derechos humanostiene más que ver con la materialización en forma de deberes de lascontinuas y diferenciadas luchas por la dignidad humana, las cualestienden siempre, como decimos, a la producción y mantenimiento delas diversidades ambientales. Todo ello en aras de un tratamientoflexible, plural, diferenciado y consciente de las consecuencias de esacomplejidad interactiva bajo la que se dan las relaciones entrecultura y naturaleza.

39 Jonas, H., El principio de responsabilidad: Ensayo de una ética para la civilización tecnológica, Herder, Barcelona,1975 (para Jonas, “la ética hoy debe tener en cuenta las condiciones globales de la vida humana y de la mismasupervivencia de la especie”, con lo que su famoso principio de responsabilidad podría denominarse como“principio Anti-Nemrod”) En 1985, Hans Jonas publicó la segunda parte de El principio de responsabilidad, bajo eltítulo Técnica, medicina y ética. La práctica del principio de responsabilidad (publicado en castellano por Paidós,Barcelona, 1997) y en cuyo desarrollo aparecen tres elementos básicos de la teoría de Jonas: las virtudes de lacautela, de la moderación en la acción y el pensar en las consecuencias. A partir de estos elementos, Jonas definela “heurística del temor” como el medio por el cual podremos adquirir una mayor “conciencia del peligro y, así,tener el deber de actuar siguiendo una ética de la responsabilidad. Nuestro deber –afirma Jonas- es saber que hemosido demasiado lejos, y aprender nuevamente que existe un demasiado lejos, en Técnica, medicina y ética, op. cit.,p. 143.

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Así, para la creación y reproducción de la bio(socio)diversidad,somos capaces de auto-imponernos, en las luchas por el accesoigualitario y digno a los bienes materiales e inmateriales, dos deberesimportantísimos para llevar adelante ese “imperativo ambiental”,cada uno de los cuales impondrá, por su propia dinámica, unconjunto de (sub)deberes que irán dotando de contenido a nuestroimperativo:

1) el deber de proteger y promover la “sustentabilidad”ambiental y social en nuestras relaciones con el medio. Y 2) el deberde “precaución” ante las incertidumbres y falta de previsión de lasconsecuencias sociales y naturales de las políticas económicas yambientales del modo capitalista de producción, hoy en día a puntode convertirse en la forma globalizada de explicar, interpretar eintervenir en el mundo.

6.2.1- El deber de sustentabilidad ambiental

Nuestra concepción de los “derechos humanos” como lamaterialización cultural de los deberes que surgen de las luchas porla dignidad humana, le otorga especial importancia al conjunto deConvenciones y Cumbres mundiales, autodenominadas, de de“derechos humanos”. Para nosotros, los derechos humanos son elconjunto de prácticas y procesos sociales que concretan en unmomento determinado la lucha por la dignidad humana (tal y comola hemos expuesto con anterioridad) En ese conjunto de procesos yprácticas sociales lo primero que surge es el reconocimiento deldeber, es decir, de la auto-imposición de compromisos quematerialicen y concreten las luchas sociales. Por ello, el objetivobásico de toda Cumbre o Convención Internacional de derechoshumanos no es otro que el de formular los deberes que, en relacióncon la temática de que se trate, los gobiernos, entidades privadas yorganizaciones sociales deben implementar. Estas Convenciones,pues, no tratan de formular derechos, ya que ni siquiera tendrían lalegitimidad y la capacidad jurídica necesarias para crear normas. Enestas Convenciones, lo que se intenta es formular, de un modo másimperativo que la mera reivindicación sentimental o literario-estética,los deberes que la comunidad se autoimpone para tratar condeterminadas materias que han sido llevadas a la discusión públicaa causa de las continuas luchas por la consecución de una vidadigna. Hay países y entidades públicas y privadas que firman losresultados de tales deliberaciones y otros países y entidades que ni

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siquiera están presentes en las mismas: los que las firmas secomprometen a llevar a cabo políticas públicas en beneficio de talesconclusiones: entre dichas políticas públicas, está la tareaimportantísima de llevar esos “compromisos” a derechos. Los cualesservirán como instrumento privilegiado, no para “reconocer” derechospreexistentes, sino para poder exigir judicialmente, a un nivelnacional como internacional, los deberes asumidos previamente, deahí la importancia de las reuniones internacionales. Hay otros países,fundamentalmente los países ricos y desarrollados, que firman paradespués incumplir sistemática los deberes asumidos. Y, en fin, hayotros, básicamente los Estados Unidos de Norteamérica, que nisiquiera firman las conclusiones finales y, por tanto, se consideranfuera de la comunidad que se autoobliga a cumplir con laspropuestas de tales Convenciones y Cumbres.

En el caso del tema ambiental, destacan aquellas Convencionesque han llevado la reivindicación de la sustentabilidad, de meroejercicio académico o reivindicativo a la categoría de deber, es decirde auto-imposición de trabas e impulsos a la acción siguiendo unadeterminada línea lo más compatible posible con las luchas por ladignidad. Concretamente, nos referimos a la Cumbre Mundial de Riode Janeiro celebrada en 1992 y la Cumbre Mundial deJohannesburgo de 2002, en donde se han intentado establecer lasbases de los deberes a cumplir en relación con el medio ambiente. Delos resultados de tales Cumbres, deducimos que para hacersustentable nuestra relación con el entorno, no basta con elmantenimiento “sostenido” de políticas de desarrollo basadas en elcrecimiento continuo del producto interior bruto. Cuando hablamosde sustentabilidad en el marco de una cultura de derechos humanosimplicada en las luchas por la dignidad humana (y no meramentecomo aumento de los productos interiores brutos de empresas opaíses), lo hacemos de la asunción de los cuatro deberes básicos derespeto, reconocimiento, reciprocidad y redistribución necesaria parala reproducción de la bio(socio)diversidad, desde donde surgen unconjunto de 8 auto-imposiciones absolutamente necesarias para queel desarrollo económico pueda “sostenerse” sin atentar contra la“bio(socio)diversidad”:

1) El deber de conocer y divulgar la existencia del desarrollodesigual que se da entre los países y sociedades “enrriquecidas” y lospaíses y sociedades “empobrecidos” por su posición geoestrátegica enel orden global. Este desarrollo injusto ha conducido, en estos

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tiempos de globalización, a que todas las industrias contaminantes yde bajo rendimiento productivo económico se trasladen a estosúltimos países, ampliando, si cabe, el abismo entre ricos y pobres.

2) El deber de conocer y divulgar la exigencia de que elconocimiento no puede ni debe ser apropiado por parte de entidadesprivadas, sean individuos o grandes corporaciones. El conocimientodebe ser entendido como patrimonio de la humanidad, cumpliendocon ello la función social que le corresponde en el sentido de mejorarlas condiciones que permitan a los pueblos e individuos luchar poruna vida más diga.

3) el deber de oponerse tajantemente a las políticascolonialistas que han esquilmado sistemáticamente a las sociedadescolonizadas de sus recursos naturales en beneficio propio. Desde elcolonialismo se han exportado a los países pobres y/o periféricos lasindustrias más contaminantes; consecuentemente, se ha evitado queen estos países existan regulaciones ambientales adecuadas queimpidan la rapiña de los colonizadores y neocolonizadores; y, comocolofón, se ha generalizado toda una tendencia colonial a laintervención “humanitaria” –primero creamos el problema y despuésofrecemos la solución “humana”- en enormes áreas naturales de lospaíses subdesarrollados.40

4) el deber de afinar más en lo que respecta al concepto depobreza y a los indicadores que intentan definirla. No se trata de“cuantificar” la necesidad de dólares para la supervivencia cotidiana,sino de desentrañar los obstáculos y las condiciones que permitandos cosas íntimamente unidas al concepto de sustentabilidad: lacreación de capacidades (sistemas educativos) y la creación decondiciones de accesibilidad de los considerados “pobres” a losmecanismos públicos de decisión acerca de sus vidas. A menorposibilidad de accesibilidad a dichos mecanismos, mayor índice depobreza, por supuesto, no sólo de elementos materiales sino también,y especialmente, de posibilidades políticas de intervención sobre susentornos sociales y naturales.

5) un desarrollo sustentable debe cumplir con lo que MiltonSantos nos recordaba páginas más atrás: una acción homóloga ycomplementaria entre los diferentes componentes que conforman labio(socio)diversidad, dejando de lado los aspectos puramentejerárquicos que sitúan las decisiones en centros alejados de ydespreocupados por las consecuencias de sus decisiones. Es decir,un desarrollo sustentable tiene que partir de políticas de desarrollo

40 Freitas, M., (org.) et. al., op. cit. p. 179.

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local. Es desde el conocimiento y las políticas públicas locales comopuede plantearse un aprovechamiento “sustentable” de los recursosde un territorio, implicando en él, no sólo a los preocupados por elmedioambiente, sino a entidades y organizaciones sociales y políticasresponsables de lo que vamos a dejarles a las generaciones futuras.

6) un desarrollo sustentable tiene que partir de los deberes derespeto, reciprocidad, reconocimiento y redistribución en relación conlos pueblos y formas de vida que viven sus vidas en los territoriosobjetos de políticas de desarrollo. No se puede llegar a lasustentabilidad midiendo únicamente factores ecológicosestructurales. Hay que complementar tales estudios con los impactoshumanos en el entorno, los cuales estarán influidos, no sólo poraspectos cuantitativos o tangibles, sino, sobre todo, por aspectosculturales, míticos o religiosos de naturaleza intangible, pero de unafuerza arrolladora si es que pretendemos una sustentabilidad real yenriquecedora.

7) la necesidad de respetar, reconocer y promover derechosterritoriales a aquellas comunidades que hayan interactuadoancestralmente con el entorno objeto de políticas de desarrollo. No setrata de extender títulos de propiedad a los indígenas, con lo quegeneralizaríamos la concepción innatista y pasiva de la concepciónliberal individualista de los derechos humanos, que ve a éstos comouna extensión de la propiedad privada. Se trata de reconocerles suparticipación activa, física y espiritual, en la construcción de losterritorios en los que han vivido ancestralmente y, por tal razón,permitirles ejercer y toma decisiones con respecto a los mismos.

8) reconocer que todo lo anterior no es una concesión a lospueblos empobrecidos por las políticas coloniales de los paísesenriquecidos con la rapiña colonial, sino el resultado de proceso deluchas sociales concretas en busca de la dignidad humanacolectiva.41

El deber de sustentabilidad, nos está impulsando, pues, apensar en modos distintos de actuar y comprender el mundo en quevivimos. Todo ello por la conciencia cada vez más creciente de treselementos: 1) la insustentabilidad de nuestras sociedades y del modode vida capitalista/consumista en general, el cual en los tiempos dela globalización neoliberal está hundiendo a la mayoría de laspoblaciones del mundo en una miseria y en una violenciaestructurales de las cuales es imposible salir con los remedios

41 Luchas sociales contra los procesos de apropiación de los conocimientos tradicionales y contra la explotación delos recursos naturales autóctonos por parte de las grandes transnacionales. Cfr. Freitas, M., (org.), op. cit, p. 181.

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propuestos por los que crean la enfermedad; 2) la convicción genéricade que hay que cambiar un sistema de creencias y unas actitudescientíficas y políticas que tratan “rígidamente” (especialización,descontextualización, apego a intereses de acumulación de capital) lacomplejidad interactiva que se da entre la naturaleza y la cultura:casi nos va la vida en la asunción de esta conciencia; y 3) construirsociedades sustentables necesita por lo menos de cincosustentabilidades: la sustentabilidad “social”,42 basada genérica-mente en las ideas de inclusión y equidad social; y, de un modo másconcreto, en acciones sociales que favorezcan la emergencia ydesarrollo de nuevos actores y movimientos sociales, entendiendo queuna sociedad se enriquece y se hace más sustentable mientras mejorexprese las distintas miradas y aproximaciones frente a la realidad.La pregunta sería la siguiente: ¿existen límites naturales a ladiversidad social y cultural que puede contener una comunidadhumana?. La sustentabilidad “política”, la cual está relacionada concuestiones como la cantidad de Estado necesaria para armonizar lascomplejas relaciones entre las necesidades y expectativas sociales ylas políticas públicas, con la omnipresencia de relaciones de poder enel marco de situaciones formales de igualdad ante la ley, delegitimidad, gobernabilidad, etc. En definitiva, una “sustentabilidad”dirigida a crear las condiciones para el empoderamiento de losciudadanos; la pregunta sería la siguiente: ¿cuánto Estado seguirásiendo necesario para continuar persiguiendo el bien común, que vapoco a poco transformándose en el menos común de los bienes?. Lasustentabilidad “cultural”, que tiene que ver con la elección entre unmodelo identitario de espacio cultural, en el que se cierran lasposibilidades de acceso a formas alternativas de acercamiento a losrecursos naturales; y un modelo significativo de espacio cultural, enel que las identidades se vean como procesos de identificación(atribución de rasgos culturales en función del reconocimiento y lareciprocidad de los otros) que tienden a la constante re-significaciónde los entornos de relaciones en los que nos movemos; la preguntasería: ¿podrán coexistir procesos de identificación plurales ysignificativos en un mundo que se globaliza crecientemente y quecomienza a configurar, bajo presupuestos puramente economicistasy geo-estratégicos, una única identidad planetaria?. Lasustentabilidad “económica”, que tiene que ver con las siempre tensasrelaciones entre el mercado, el crecimiento, la producción de bienes y

42 Cfr. Antonio Elizalde Hevia, “Desde el ‘Desarrollo Sustentable’ hacia Sociedades Sustentables” en Polis. Revista de laUniversidad Bolivariana,4, 2003, (monográfico dedicado a Sustentabilidad y Sociedades Sustentables) pp. 290 y ss.

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servicios y los procesos de división social, sexual y étnica del hacerhumano, los cuales colocan a las personas en situaciones jerárquicasy desiguales a la hora de acceder a los bienes que, en cada procesocultural, se entienden como necesarios para alcanzar niveles dignosde vida. La sustentabilidad económica, no tiene, pues, únicamenteque ver con la mayor o menor cantidad de mercado en las diferentessociedades, sino, fundamentalmente, en la demanda de una mejor“redistribución” de los recursos que suponen beneficios o cargas parael bienestar general de la población; la pregunta sería: ¿puede, ydebe, el mercado regular todo tipo de actividades humanas? ¿esposible democratizarlo? ¿caben acciones de mercado con la luchacontra los procesos de división social, sexual y étnica del hacerhumano?. Y, por último –no en primer lugar, aunque no por ellomenos importante- la sustentabilidad “eco-ambiental”, que tiene quever con la intervención humana en los entornos naturales. Laspreguntas que surgen de este tipo de sutentabilidad son múltiples;resumiendo nos quedamos con las siguientes: ¿es posible generalizarla conciencia de los límites de la biosfera en un sentidocomplementario al de la satisfacción de las necesidades yexpectativas humanas? ¿Cómo reproducir continuamente la biosferateniendo siempre presente la exigencia de preservar, al mismo nivel,la diversidad social y natural?.43

6.2.2. El deber de precaución ambiental

En la noche del 2 de Diciembre de 1984, cuarenta toneladas degases letales fueron liberadas al ambiente debido a un accidente enla fábrica de pesticidas de la empresa norteamericana Union Carbideen Bhopal, India. Este accidente ha sido calificado como el peordesastre químico de la historia del mundo. Se estima que 3 díasdespués del accidente, 8000 personas ya habían muerto a causa dela exposición directa al gas, aunque la cantidad exacta de víctimas sedesconoce. En los informes de Greenpeace se afirma que la noche deldesastre significó el comienzo de una tragedia que aún hoy continúa.Unión Carbide, nos informa Greenpeace, abandonó al poco tiempo laplanta dejando sin control una gran “legado” tóxico y destructor,hasta el punto que los habitantes de Bhopal aún hoy, casi 20 años

43 Colocar en último lugar la “sustentabilidad eco-ambiental” no es algo gratuito, pues tiene que ver con lasuperación de un ecologismo de reserva natural y un paisajismo orientado hacia el turismo. Lo eco-ambientalsupone el reconocimiento de la necesidad de las otras “sustentabilidades”. Es recomendable la lectura del trabajode Enrique Leff, “Racionalidad ambiental y diálogo de saberes: significancia y sentido en la construcción de unfuturo sustentable” publicado en Polis. Revista de la Universidad Bolivariana, 7, 2004 (cuyo monográfico estádedicado al interesantísimo tema Saber(es). Ciencia(s) y Tecnología(s)

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después de la tragedia, no pueden beber el agua de sus fuentesnaturales debido a la contaminación de las mismas.Decenas de milesde personas siguen muriendo, o sufriendo enfermedades gravísimase incurables, debido a la continua exposición a gases tóxicos. UnionCarbide se fusionó con la multinacional Dow Chemicals con sedematriz en los Estados Unidos; y esta compañía se ha resistido desdeentonces a asumir las responsabilidades provocadas por la tragedia.

Amanece en Estocolmo. Es la mañana del 28 de Abril de 1986.Cien kilómetros al norte de la capital, unos trabajadores de unacentral nuclear detectan una extraña y anormal subida de los nivelesde radiación, la cual fue inmediatamente registrada y confirmada porotras estaciones nucleares de los países escandinavos. Durante losprimeros momentos, nadie pudo determinar la fuente de estasradiaciones. Sólo pudo decirse que “algo, en algún lugar, estabaexpulsando gigantescas cantidades de radioactividad a laatmósfera”.44 No fue hasta el día siguiente que Moscú ofreció uncomunicado informando de un “pequeño” accidente en la centralnuclear de Chernobyl y que ya se estaban tomando las medidasrequeridas para evitar mayores males. En realidad, el “pequeño”accidente consistió en la explosión del reactor número 4, enviandograndes cantidades de radiactividad a más de mil quinientos metrosdentro de la atmósfera. Los campesinos y consumidores de vegetalesde Europa Central, los ganaderos de los países escandinavos y degran parte de Gran Bretaña, el círculo polar ártico y ¡quién sabecuántos lugares más!, acabaron contaminados por las radiaciones yaún hoy se siguen ignorando sus consecuencias. El caso es que aprincipios del siglo XXI 20 granjas del País de Gales aún siguen encuarentena debido al descubrimiento de flecos de radiacionesprovocadas por el accidente ocurrido a miles de kilómetros de suentorno geográfico.

En 1994, civiles hutus mataron a más de 800.000 tutsis en unperíodo de tres meses, por lo general a machetazos. A inicios de losaños noventa, las alambradas y construcciones de los campos deconcentración serbios eran testigos mudos de la aplicacióngeneralizada de las formas más brutales de tortura que una mente“normal” pueda imaginar. En 1998, en Yakarta, turbas de indonesiosvociferantes incendiaron, destrozaron y saquearon cientos de tiendasy hogares chinos, con un balance de más de dos mil víctimasmortales. Durante el mes de Marzo de 1999, Colombia asistió a una

44 Cfr., Adam, B., “Radiated Identities: In Pursuit of the Temporal of Conceptual Cultural Practices” en Featherstone,M., and Lash, S., Spaces of Culture. City, Nation, World, Sage, London, 1999.

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nueva matanza, esta vez de líderes indígenas que formaban parte dela Coalición Amazónica. Entre ellos destacan Terry Freitas, IngridWashinawatok y Lehe’ena’e, los tres responsables del programa deeducación bilingüe y preservación cultural de la comunidad indígenaU’wa opuestos al cultivo de coca y favorables a la diversificaciónagrícola de la zona. Año tras año, los informes detallados delPrograma de Naciones Unidas para el desarrollo nos “asustan” alcomprobar que aumenta sin parar la diferencia de ingresos yconsumo entre los países ricos y pobres. Y año tras año, peruanos,ecuatorianos, colombianos, zaireños, thailandeses y, en general, lospaíses antaño colonizados por las potencias occidentales se hundenmás en el abatimiento que provoca la continua ineficacia de sus“estados de derecho”. ¿Qué decir de aquellos europeos que ven como,poco a poco, los discursos xenófobos y excluyentes van copando losescaños de sus parlamentos y las comisiones ministeriales de susgobiernos “arrogantemente” democráticos frente al resto delmundo?...

Vivimos, como se desprende del magnífico libro de Amy Chua -World on Fire45-, en un mundo en llamas. Llamas e incendiosmateriales y simbólicos que están cambiando la faz de la tierragracias a la exportación indiscriminada de las formas organizativasoccidentales: el libre mercado, la democracia formal, los capitalesfinancieros, las formas productivas intensivas... Llamas e incendiosinducidos por un sistema económico que, sin tener en cuenta lasconsecuencias sociales, humanas y ambientales, provoca radiacionesnucleares incontroladas, derrames de petróleo en los mares,contaminaciones químicas tóxicas, hambrunas, sequías, matanzasde pretendido origen étnico pero de marcado carácter económico ypolítico, apropiaciones de conocimientos tradicionales que dejanindefensas a las comunidades de gran parte del mundo, o porcegueras obsesas y “obesas” de los gobiernos “democráticos”occidentales ante los genocidios que se están dando en las múltiplesfronteras de cristal blindado que proliferan en los márgenes delImperio.

Tal y como nos informan en los diferentes medios decomunicación, todos estos “accidentes” tienen un origen local y“afortunadamente” ocurren alejados de los cómodos salones de laburguesía consumista occidental que mira horrorizada lo que les

45 Chua, A., World on Fire: How exporting Free Market Democracy Breeds Ethnic Hatred and Global Instability, RandomHouse, Inc., NY, 2002 (hay traducción castellana bajo el título El mundo en llamas. Los males de la globallización,Ediciones B, Barcelona, 2003 ; asimismo, Zakaria, F., The Future of Freedom Illiberal Democracy at Home and Abroad,Norton & Co., 2003; y Mandelbaum, M., The Ideas that conquered the World: Peace, Democracy, and Free Markets inthe Twenty-first Century, PublicAffairs Edit., 2004

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ocurre a los “salvajes”. Parece que los que vivimos en el marco de losprivilegios “conquistados” a causa del colonialismo capitalista desiglos anteriores, no tenemos responsabilidad de tales sucesos. Ennuestro fuero interior, albergamos la ilusión de que están demasiadolejos para que nos afecten. Sin embargo, debido a la cada vez mayorcomplejidad interactiva de los fenómenos que acaecen en nuestraaldea global, poco a poco nos vamos a ver como esos granjerosgaleses que viven cercados por las consecuencias de la desidia de sussemejantes ucranianos. ¿Habrá alguna oportunidad de enfrentarnosa tales hechos desde los acoplamientos rígidos y jerárquicos quepredominan en nuestras reflexiones científicas, económicas ypolíticas? ¿No tendremos que flexibilizar nuestras disciplinasacadémicas y nuestras opciones políticas y sociales para poderenfrentarnos a “accidentes” y acontecimientos que no respetanfronteras, que producen efectos imprevisibles y que no pueden serestudiados ni enfocados políticamente sin una concepcióninterdisciplinar e interactiva de lo que ocurre en el mundo?

Una posible vía de enfoque abierto y flexible es la que se estádesarrollando alrededor de lo que se denomina el principio deprecaución aplicable, fundamentalmente, a las posibles conse-cuencias perversas de la ignorancia y la incertidumbre que provocanlos nuevos desarrollos tecnológicos y agrogenéticos, aún nocontrolados científicamente. Nadie, a excepción de los gruposmultinaciones que se abrogan el derecho de contaminar y de dañar lasalud humana a causa de la falta de prohibición expresa de susactividades, podrá negar la importancia de un principio como el deprecaución, sobre todo, cuando asistimos impotentes a lageneralización de las nuevas formas transgénicas de producir losalimentos que ingerimos diariamente sin saber cuáles serán susefectos a medio y largo plazo. Pero, dado que nosotros vamostrabajando en la estela del imperativo ambiental (que proyecta susombra sobre los aspectos biológicos, sociales y políticos de nuestroplaneta, comprometiéndonos a mantener siempre abierta lacomunicación entre lo natural y lo cultural en el marco de las luchaspor la bio(socio)diversidad y la demodiversidad), preferimosdenominar tal principio como el deber de precaución ambiental, yaque en él no se recoge únicamente la necesidad de prevención para lasalud humana, sino que se extiende a la diversidad ambiental:natural, social y política.

El llamado “principio de precaución” surgió durante la décadade los setenta en la antigua Alemania Federal, época en la que la

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planificación de, y la intervención pública en, la economía constituíanprocesos cotidianos y públicos garantizados por una completa lista dederechos fundamentales y de instituciones judiciales expresamentededicadas al control de constitucionalidad de las acciones públicas.46

El concepto en alemán es vorsorge, que literalmente puede traducirsepor “previsión” o “custodia”, pero que también incorpora nociones demanejo prudente y “mejor práctica” en la gestión ambiental inclusoante la ausencia de un riesgo inminente. De hecho fue puesto enpráctica por el gobierno alemán, entre otras finalidades, con elobjetivo de afrontar las consecuencias ecológicas que podía traerconsigo la lluvia ácida y el calentamiento de la atmósfera. En elnúcleo de dicho principio se halla la idea intuitivamente sencilla deque frente a la posibilidad de incurrir en daños a la salud humana,producibles por la aplicación de técnicas y procedimientos aún nocontrolados totalmente por la ciencia, las decisiones políticasdeberían tomarse: a)adelantándose a las certidumbres e incertidum-bres científicas, b) ampliando críticamente los principios de laelección racional que reducen lo social, lo económico y lo político alanálisis centrado en la oposición coste-beneficio, y c) y flexibilizandoprincipios jurídicos como el de que todo está permitido si no existeuna prohibición expresa que lo limite.47

De este modo, y tomando conjuntamente los textos de laWingspread Conference on Implementing the Precautionary Principle,48

y la Lowell International Summit on Science and the PrecautionaryPrinciple,49 el “principio de precaución” (podríamos añadir ecológico,para distinguirlo de lo ambiental), se define de la siguiente manera:“cuando una actividad se plantea como una amenaza para la saludhumana o el medio ambiente, deben tomarse medidas precautoriasaun cuando algunas relaciones de causa y efecto no se hayanestablecido de manera científica en su totalidad”. Asimismo, enambas “reuniones internacionales” se establecían cuatro deberes quedotaban de contenido al principio: 1) el deber de adoptar accionespreventivas (en aleman el Vorsorgeprinzip puede ser traducido

46 A. Weale, The New Politics of Pollution, Manchester Univ. Press, London, 1992-, y A. Weale, “EcologicalModernisation and the Integrarion of European Environmental Policy”, Weale, A., Liefferink (eds.) EuropeanIntegration and Environmental Policy, Belhaven Press, London, 1993; Pearce, D., Economics Values and the NaturalWorld, Earthscan, London, 1993; Pearce D., “The precautionary principle in economic analysis” en O’Riordan, T., et.al .,(Eds.) Interpreting the precautionary principle, Earthscan, London, 1994; Wynne, B., “Uncertainty andEnvironmental Learning: Reconceiving Science in the Preventive Principle” Gloval Environmental Change, 2 (Juniode 1992), pp. 111-127.

47 Timothy O’Riordan “El principio de precaución en la política ambiental contemporánea”, publicado originalmenteen Environmental Values, Vol. 4, N.º 3, 1995; asimismo consultable en WWW.ISTAS.NET/MA/AREAS/RESIDUOS/ESCORIAL/ APORTA/APORTA10.PDF.

48 Celebrada en Racine, Wisconsin, del 23 al 25 de Enero de 1998.

49 Celebrada en Lowell, Massachusetts, del 20 al 22 de Septiembre de 2001.

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también como “principio de previsión” (versión más cercana a lo queañadiremos después nosotros), aplicable cuando exista una evidenciacreíble de que está ocurriendo o puede ocurrir un daño, aun cuandola naturaleza exacta y la magnitud de dicho daño no sea comprendidatotalmente; 2) el deber de asumir la carga de la prueba por parte dequienes proponen las actividades “dudosas”, y, del mismo modo, eldeber de identificar, evaluar y poner en práctica los caminos másseguros entre los que sean viables para satisfacer las necesidadessociales; 3) el deber de analizar el mayor espectro posible dealternativas ante la posibilidad de actividades perjudiciales, así comoel deber de estudiar los riesgos a fondo para minimizarlos, evaluandoy eligiendo las alternativas más seguras para satisfacer unanecesidad particular, bajo la tutela de organismos de revisióncontinua; y 4) el deber de incrementar la participación pública en latoma de decisiones, esto es, el deber de aplicar procesos de toma dedecisiones transparentes e inclusivos que aumenten la participaciónde todos los involucrados y sus comunidades, en especial lospotencialmente afectados por una decisión sobre políticas de alcancesanitario o medioambiental.50

El crecimiento de los movimientos ecologistas unidos a lasreivindicaciones de consumidores, de asociaciones sobre la necesidadde una salud equilibrada, o de una mayor y mejor información acercade lo que ingerimos, ha propiciado un interés creciente por lasalteraciones ambientales, por los elementos que se usan en lostratamientos industriales de los productos, por la extensión de losrecursos renovables y no renovables, por los niveles excesivos deconsumo, etc. La esencia, pues, del “principio de precaución” es quela sociedad civil, articulada ecológicamente, no puede esperar hastaque se conozcan todas las respuestas frente a los problemas quesuscitan las innovaciones tecnológicas en los temas antes citados; espreciso, pues, tomar medidas que protejan la salud humana o elmedio ambiente de los daños potenciales que pueden estarimplícitamente unidos a dichas innovaciones y hacerlo con la mayorrapidez y efectividad posibles.

Todo muy bien, especialmente para la protección de la salud yde los espacios protegidos en el Occidente desarrollado. Pero, cuandosomos conscientes de los problemas a los que se enfrenta, por

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50 En este sentido, destaca el importante estudio de la AEMA (Agencia Europea de Medio Ambiente) titulado LateLessons from Early Warnings: the Precautionary Principle 1896-2000, en European Environment Agency,Environmental Issue Report 22, Copenhague, 2001.

(http://reports.eea.eu.int/environmental_issue_report_2001_22/en -cfr. Riechmann y Tickner (coords.), Elprincipio de precaución. En medio ambiente y salud pública: de las definiciones a la práctica, op. cit., p. 20.

ejemplo, la cuenca del Amazonas, los habitantes de los barriosmarginales de Lima, o las contiendas “tribales” en África o lasactividades de patentar el conocimiento tradicional de nativos ypueblos indígenas por parte de las multinacionales, o, por poner unpunto final, la deforestación de gran parte de los espacios selváticosde la India, nos surgen una serie de preguntas:: ¿entra dentro delprincipio de precaución la obligación de no exportar la contaminacióna otras partes del mundo o esto añadiría una mayor inseguridad auna población preocupada intensamente por el grado de colesterolque se acumula en su sangre? ¿hay que extender la precaución atodo tipo de innovaciones que afecte el conjunto de certezas ycreencias de la población? Es decir ¿es posible infringir tal principiocuando se trata de innovaciones políticas, no del todo fundamentadascientíficamente por la filosofía y la ciencia políticas dominantes? ¿o elprincipio de precaución únicamente se aplica a la entrada de nuevosprocedimientos tecnológicos en el tratamiento de lo que en el futuroingeriremos como alimentos? ¿tiene algo que ver el principio deprecaución con el mantenimiento de la diversidad ambiental cuandoésta se opone al crecimiento continuo de la explotación de lanaturaleza, sea esta explotación contaminante o no? ¿cómocomplementar el principio de precaución con la exigencia cultural desociodiversidad? ¿entra dentro del principio la conservación ypromoción de los conocimientos tradicionales empleados por pueblosy etnias estrechamente interrelacionadas con la naturaleza? ¿no es elprincipio de precaución un principio de cautela científica que estáprovocando el despliegue de nuevas formas especializadas deconocimiento científico, al estilo de las “sociedades del riesgo”? ¿puedeservir el principio de precaución para poner coto a las experienciasalternativas de grupos opuestos a las formas neoliberales de laglobalización capitalista o, al contrario, las impulsa?

Impulsados por la asunción del Imperativo Ambiental (nomeramente “ecológico”) y reconociendo las ventajas que aporta elprincipio de precaución (ecológico), creemos que habría que extendersus presupuestos a los tres niveles que están incluidos en nuestroimperativo:

1) la diversidad ambiental.- aparte de las referencias concretasa la salud humana y de las más ambiguas al concepto de “medioambiente”, desde el “imperativo ambiental” habría que complementarel principio de precaución con políticas concretas de preservación dela biodiversidad y extirpar, se conozcan o no los resultados

95Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

posteriores o se necesiten o no determinados recursos naturales parael modo de vida occidental (como, por ejemplo, el gas o el petróleo quehay debajo de la floresta amazónica), todas las actividades que vayanen contra de la reproducción biodiversa de la vida. Si, por poner uncaso relevante, la región del Amazonas contiene un tercio de lasreservas mundiales florestales, un quinto del agua dulce del mundo,produce un 70% de los genéricos naturales que se usan paramedicinas anticancerígenas y antibióticos, además de ser unaentidad física relevante en las estabilidades mecánica, termodinámicay química de los procesos atmosféricos en dimensión planetaria,¿habría que permitir la continua construcción de presas en las zonastropicales que alimentan a fábricas de automóviles, que después sevenderán masivamente en los países occidentales?, ¿habría queadmitir la venta de productos químicos no necesariamenteinnovadores, como es el caso del mercurio para la actividad de losgarimpeiros o buscadores de oro amazónicos, aunque con ello serestrinja la cuenta de beneficios de empresas transnacionaleseuropeas? Cuando la Unión Europea se compromete en laConvención sobre Cambio Climático de Kyoto a reducir la cantidad,por sí misma irrisoria del 0’5% de sus emanaciones tóxicas a laatmósfera, y sólo lo cumple en el 0’1 y, como es el caso de Rusia,China o Estados Unidos, se niegan a firmar la Convención alegandouna mayor “seguridad” para sus respectivos productos interioresbrutos pero, al mismo tiempo, se reconoce el principio de precauciónque evite daños a los genes de los que comemos dia tras dia alimentostransgénicos ¿no estamos sentenciando a muerte esa diversidadambiental amazónica que tan necesaria es para la producción demedicinas y para el equilibrio ecológico de nuestro planeta?

2) la diversidad social.- El deber de precaución ambientaltambién debería dirigirse al mantenimiento y reproducción de lapluralidad de voces, de conocimientos, de formas de producir y dedivertirse...en fin, de la diversidad social que enriquece el acervopatrimonial de la humanidad. Situándonos de nuevo en los márgenesdel gran río Amazonas, hallamos una diversidad humana tansorprendente como dinámica: grupos sociales urbanos y ruralesheterogéneos desde el punto de vista de su situación económica;sociedades y comunidades indígenas que se han adaptado dedistintos y diversos modos al espacio geográfico de la floresta y quemantienen articulaciones históricas, culturales y políticas muydiferentes, tanto entre ellas mismas como entre ellas y lascomunidades urbanas y rurales antes mencionadas; grupos de

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inmigrantes y desplazados por causas económicas o políticas...grupos sociales que mantienen patrones diferentes en cuanto a larealización de su existencia y formas desiguales de apropiación yusufructo de los recursos naturales, siempre en tensión latente conlas exigencias uniformadoras del mercado. Todos estos grupos hansido afectados por los procesos de urbanización necesarios para eldespliegue de la economía de mercado y la inserción de los recursosproductivos y sociales en el mercado mundial impuesto por laglobalización. Los indicadores de las condiciones de salud,educación, empleo, relaciones formales e informales de trabajo, etc.,nos muestran un panorama desolador de desprotección, deinseguridad social y de pérdida de las tradicionales y másrespetuosas relaciones con la naturaleza. De ahí, la necesidad de“prevenir” todo tipo de políticas que propicien desplazamientos de laszonas rurales a las urbanas, todo tipo de políticas, por supuesto,basadas en estudios sociológicos de tinte modernizador, quesustituyan las formas tradicionales de producir y de tratar con elentorno por los modos más apreciados por los economistas de laelección racional en el marco del mercado.

Asimismo, habría que aplicar el deber de precaución ambientalante las innovaciones legales que las mayorías parlamentarias depaíses con fuerte componente étnico promulgan constante ycontinuadamente con el objetivo de homogeneizar la estructura socialde sus países. Pongamos un ejemplo: el proceso de promulgación dela ley llamada “Ley Indígena: Bartlet Cevallos Ortega” en México ¿o esque acaso una ley no puede suponer un caso paradigmático paracomprender la necesidad de la precaución?. Ante la “amenaza” dedicha Ley, en Junio de 2001 se reunieron representantes de lospueblos indígenas de la Sierra Juárez de Oaxaca y proclamaron losiguiente: tal ley no debería de promulgarse porque producirá efectoscontraproducentes a la diversidad social mexicana. Primero, alsubsumir el derecho colectivo de los indígenas a sus territorios en elmarco de acceso a la propiedad privada previsto en la Constituciónmexicana, se sentarían las bases para la culminación de los procesosde privatización de los ejidos (campos de producción colectiva ycomunitaria) a favor de los que puedan “pagar” por acabar con lasformas tradicionales de organización, convivencia y producción.Segundo, al relacionar los derechos indígenas con las políticas dedesarrollo nacionales con el objetivo de crear empleos, se produciránlos efectos nocivos de la migración hacia los “polos de desarrollo” noconstruidos por y para los indígenas y sus formas de vida; se

97Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

inducirán monocultivos para poder competir con los campesinos delos otros socios del Tratado de Libre Comercio de América del Norte.Y, Tercero, al no separar las cuestiones de los pueblos indígenas delos acuerdos comerciales con multinacionales foráneas, se puedeproducir, como de hecho así ha sido, un saqueo del conocimientotradicional y de los recursos biológicos que las comunidadesindígenas han sabido conservar ancestralmente.

Tales ideas fueron asumidas como “deberes” en el CongresoInternacional sobre Diversidad Cultural y Biológica51 y que seconoce como la Iniciativa de Yunnan. Dicha Iniciativa llama laatención mundial sobre las grandes incertidumbres que enfrentanlas culturas locales e indígenas en su esfuerzo por utilizar,mantener y reproducir los paisajes y territorios, en nuestrostérminos, los ejes de coexistencia, en los que viven y de los cualesdependen. “Ejes de coexistencias” que están bajo amenaza debido,tanto a políticas gubernamentales de “inclusión” en los procesos deglobalización, como de la expansión irrestricta, y protegida por losacuerdos de la OMC, de los mercados regionales, nacionales einternacionales. La Iniciativa de Yunnan apoya el fuerte vínculoexistente entre la diversidad cultural y la biodiversidad y asume losdeberes auto-impuestos por la Comunidad Internacional y que sehallan expresados en la Declaración de Belem, en el Plan de Acciónde Kunming y en el Código de Ética de la Sociedad Internacional deEtnobiología, todos ellos textos importantísimos para entender losderechos humanos como materialización de deberes que surgen delas luchas por la dignidad humana. Además, la Iniciativa deYunnan, asumiendo la diversidad social como un elementoinescindible de la biodiversidad, respalda el reconocimiento que laConvención sobre la Diversidad Biológica hace en relación a laimportancia de las comunidades locales en la conservación de labiodiversidad y la necesidad de respetar los valores culturales yespirituales que induzcan a lograr el desarrollo realmentesustentable en los lugares en los que las comunidades locales viveny trabajan.

Como afirman los defensores del importante principio deprecaución, la sociedad no puede esperar a que los legisladoreslegislen a su favor: son precisas medidas “precautorias” como, porejemplo, la potenciación de los movimientos sociales que esténimplicados en tales procesos de incertidumbre legal con el objetivogenérico de controlar las cegueras, no sólo de los científicos del

51 celebrado en la provincia de Yunnan, República Popular de China, del 20 al 30 de Junio del año 2000.

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derecho, sino de los políticos que pueblan por decenas las “sagradas”, porseparadas de sus ciudadanos y ciudadanas, sedes parlamentarias.

3) la diversidad política.- Asimismo, el deber de precauciónambiental nos induce a tomar medidas precautorias contra losexperimentos e innovaciones que los centros de poder del capitalismoglobalizado vienen realizando en el mundo entero desde mediados delos años setenta y principios de los ochenta. ¿O es que acaso noconstituyen un experimento, sin aval científico ni empírico, losllamados “planes de ajuste estructural” que obligaron a países tanricos en recursos como Argentina o Nigeria a privatizar todos susespacios públicos productivos con el objetivo de garantizar el pago dela deuda a los bancos privados del Occidente desarrollado y cavar, almismo tiempo, tumbas para sus propios habitantes?

Cuando en 1989 se celebró el tristemente famoso –tristesobre todo para los pueblos del Sur- Consenso de Washington,uno de sus más impactantes principios era el de la extensiónglobal del sistema democrático unido al sistema de mercado.Todo científico de la política sabe con certeza que un sistemademocrático, con toda su división de poderes y sus costosísimosprocesos electorales, necesita de una fuerte capitalizacióneconómica para funcionar correctamente. ¿Cómo no reconocer talevidencia? ¿Cómo extender, pues, los procesos democráticos sinaplicar políticas reales de desarrollo económico, social y culturalreales y efectivas? ¿No estaremos recayendo en riesgos humanosque pueden ser evitados aplicando la prevención y laprecaución?. La evidencia de que sin una economía sana nopuede haber democracia se ha intentado solucionar con laexportación del sistema de mercado, ocurra lo que ocurra con laspoblaciones a las que se les envían y se les imponen talesprocedimientos. Y esto conduce a varios callejones sin salida. Elprimero es que estamos ante un círculo vicioso, si la democraciarequiere mercado y el mercado requiere democracia ¿cuál de losdos aplicar primero? Como afirma el cínico ensayistanorteamericano Robert D. Kaplan en su texto La Anarquía queviene, en los países a los que exportamos las democracias y elmercado, hay que mantener -¿militarmente?- la democraciahasta que los mercados libres produzcan suficiente desarrolloeconómico y social para que las propias democracias importadaspuedan sostenerse por sí mismas. Es decir, la exportación dedemocracias a los países empobrecidos va a dividir el mundo enuna nueva polarización: las democracias fuertes con capacidad

99Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

económica para financiar los carísimos procesos democráticos ylas “democracias” débiles incapaces de sostener por sí mismastales procedimientos hasta que el mercado libre se lo permita.52 Elpropio Bill Clinton se jactaba de presidir la democracia másfuerte en un mundo compuesto de democracias más débiles. Yaún más. Dado que en los países que surgieron de la descolonizaciónde la postguerra y de la neo-descolonización de la postguerra fría noexistía las mismas condiciones sociales que se dieron para facilitar laextensión y expansión de las democracias occidentales, entre ellas, laexistencia de una clase media uniformizada y abastecida para elconsumo de bienes tanto materiales como “electorales”, esaexportación de las democracias de mercado a los países descolonizadosse llevó a cabo fortaleciendo a determinadas minorías, las cuales sehan ido enriqueciendo gracias a la protección occidental de susintereses a costa de las mayorías, bastante más difíciles de convencerde las conveniencias de esperar los efectos benéficos de la aplicacióndel mercado libre. Así, asistimos no sólo a la brecha Norte-Sur, sino enel mismo Sur, a la proliferación de “minorías dominantes del mercado”para las que las instituciones democráticas sólo son legítimas sifavorecen sus intereses de acumulación salvaje de capital. En Filipinas,el 1% de “chinos” controlan el 60% de la economía privada. Losindonesios de etnia china, con sólo el 3% de la población, controlanaproximadamente el 70% de la economía indonesia. Los blancos sonuna minoria dominante del mercado en Suráfrica, y, en un sentido máscomplejo, ocurre lo mismo en Brasil, Ecuador, Guatemala y gran partede América Latina. Los ibos son una minoría dominante del mercadoen Nigeria. Los croatas eran una minoría dominante del mercado en laantigua Yugoeslavia. Y, sin duda, tal y como afirma Amy Chua, losjudíos son una minoría dominante del mercado en la Rusia post-comunista.53 Aparte de los estallidos de violencia “étnica” que surgenesporádicamente en los países contra esas minorías dominantes delmercado (no olvidemos las masacres ruandesas a causa de la divisiónen clases propiciada por los holandeses durante el siglo XIX y granparte del XX), la antigua división geográfica y política Norte-Sur, hapasado a ser sociológica54 Las élites del Sur, que antes reclamaban

52 R.D.Kaplan The Coming Anarchy, Random House, NY, 2000, pp. 63-78 (Ed. Esp. Ediciones B, Barcelona, 2000;argumentos defendidos también en los años cincuenta y sesenta por Seymour M. Lipset “Some Social Requisites ofDemocracy: Economic Development and Political Legitimacy”, American Political Science Review, 53, 1959, pp. 69-77; y por Samuel Huntington en Political Order in Changing Societies, Yale University Press, New Haven and London,1968 (version castellana, El orden politico en las sociedades en cambio, Paidós, Barcelona, 1997); cfr., asimismo,Chua, A., El mundo en llamas. Los males de la globalización, op. cit. p. 280.

53 Chua, A., op. cit. p. 16.

54 Nair, S., El Imperio frente a la diversidad del mundo, Areté, Barcelona, 2003, p. 231.

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formas de movilización socialistas o populistas para lograr unautodesarrollo industrial y una modernización rápida, chocaron con laintolerancia con modelos alternativos de desarrollo económico y larevolución de las estructuras políticas y de decisión económicasglobales que llevó a cabo el neoliberalismo de los años ochenta ynoventa. Esos intentos de lucha contra la dependencia económicafueron inducidos a fracasar financieramente (la deuda se traga casi lamitad de muchos productos interiores brutos, estando la subida de losintereses en manos de los acreedores), tecnológicamente (se les impidiófavorecerse de los inventos tecnológicos a causa de la protección de laspatentes) y sociológicamente (pues la invasión urbana, provocada porel éxodo rural, ha creado monstruos de cemento y de miseriaabsolutamente inabarcables) Por poner un ejemplo, uno de los paísesmás comprometidos con el continente africano, ha reducido su ayudadel 0’62% del PIB al 0’32% a inicios del siglo XXI, a pesar de haberseagravado la situación económica, social y política de los pueblos del“continente abandonado”. De la división Norte-Sur, hemos pasado a ladivisión entre países y clases sociales dominantes y países y clasessociales impotentes.

El deber de precaución ambiental nos obliga a defender ladiversidad política: primero, intentando prever y, por supuesto,detener e impedir las consecuencias de esas innovaciones yrevoluciones sociales neoliberales que han llevado a las cuatroquintas partes del planeta a situaciones de miseria y violenciaestructurales. Segundo, la demostración de los males de estarevolución neoliberal no debe recaer en las sociedades y pueblos quesufren la “democracia de mercado”: la carga de la prueba debe recaeren aquellas instituciones que se encargan de mantener un mundomísero y violento, en beneficio de unas pocas centenas de grandesempresas que se enriquecen gracias a la explotación de lo que no estáexpresamente prohibido. En tercer lugar, el deber de precauciónambiental nos obliga a pensar continuamente en las alternativaspolíticas y sociales que no beneficien a minorías de mercado, sino quesean las más seguras para las mayorías populares. Y, en cuartolugar, a través de la aplicación y garantía de tal deber de precauciónambiental habría que propiciar no un tipo de democracia orientadaúnicamente a las minorías favorecidas por el mercado, sino a laconsecución de procedimientos que permitan, tanto una mayorparticipación política, como una mayor posibilidad y capacidad detoma de decisiones por parte de esas mayorías populares ahorainstaladas en la impotencia, la miseria y la autodestrucción.

101Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

Ampliando a lo “ambiental” el principio de precaución, tal ycomo lo formulan Riechmann y Tickner, cinco serían, pues, lascondiciones que habría que asumir para poder implementar el deberde precaución ambiental:

1) la responsabilidad: al iniciar una actividad nueva –seacientífica, tecnológica o política- recae sobre el iniciador la carga de laprueba de demostrar que no hay vía alternativa más segura paraconseguir beneficios y garantías lo más generalizados posibles.

2) el respeto: en condiciones de riesgo grave –tanto para la saludcomo para la capacidad humana de decidir sobre su propio destino-se impone la actuación preventiva para evitar daños, incluso si noexiste una certidumbre científica –natural o social- total de lasrelaciones causa-efecto.

3) la prevención: surge el deber de ingeniar medios –sociales,científicos y políticos- que eviten los daños potenciales –a la saludfísica, cultural y política-, más que buscar controlarlos y“gestionarlos” a posteriori.

4) la información y el saber: existe el deber de comprender,investigar, informar (sobre todo a los potencialmente expuestos alriesgo) y actuar sobre los potenciales impactos; no cabe escudarse enla ignorancia, ni en los pretendidos “fines de la historia”

5) compartir el poder: extensión de una democracia participativay “decisoria”, que comprenda tanto a los elementos científicos ytécnicos como a los procedimientos de decisión ciudadanos.

Ejemplo de esta asunción colectiva del deber de precauciónambiental ha sido laPrimera Reunión de Activistas (grassroots) sobrela Devastación Ambiental.55 En esa Reunión Internacional se presentóla Declaración de Biodevastación y Destrucción Ambiental, en elmarco del Global Organizing for Citizen Empowerment (OrganizandoGlobalmente el Fortalecimiento de los Ciudadanos) En esaDeclaración (de asunción de deberes) se formularon una serie deobligaciones que, interpretadas ampliamente, nos pueden servir decaracterización de lo que aquí hemos designado como “imaginarioambiental bio(socio)diverso::

1ª – cuando exista una amenaza para la diversidad ambiental(natural, social o política), esté o no fundamentada teórica ocientíficamente por los académicos y juristas, debe ser pospuesta hastaque se conozcan sus consecuencias (naturales, sociales o políticas).

55 celebrada durante los días 17 al 19 de Julio de 1998 en St. Louis, Missouri, EEUU.

102 Joaquín Herrera Flores

2ª – obligación de aplicar el principio de responsabilidad inversa(“Reverse Onus Principle”): cuando exista una estimación razonableque un proceso (natural, social o político) o un producto puedenpresentar una amenaza a la diversidad ambiental, la responsabilidad,tanto en lo que concierne a su demostración de inicuidad como conrespecto a sus consecuencias, es para el que propone el proceso o elproducto.

3ª – el principio de evitación de los desastres (“Prevention ofDisasters Principle”): evitar que, a causa de las políticas de “manoinvisible” y generalización de los mercados a todas las actividadeshumanas, se creen las condiciones que sean dañinas para la salud ypara la misma supervivencia de los afectados.

4ª – el deber de impedir la transferencia de substancias y deprocesos sociales, culturales o políticos a otras regiones del mundo.

5ª – el deber de impedir actividades que no estén culturalmentecontroladas por las poblaciones nativas y los pueblos indígenas.

6ª – el deber de aplicar el principio de equidad entre lasgeneraciones (“Intergenerational Equity Principle”): garantizando laasunción y garantía jurídica de deberes con respecto a lasgeneraciones futuras y a los procesos naturales en su evoluciónbiodiversa.

7ª – el principio de Nüremberg (“Nüremberg Principle”): losciudadanos y los pueblos nativos e indígenas tienen el deber deoponerse a prácticas políticas, sociales o naturales que afecten a ladiversidad ambiental.

Como se concluía al final de la ya citada Iniciativa de Yunnan,es un deber humano encontrar un punto común entre diferentesvisiones del mundo: científica, social, local, global y política,considerando cuidadosamente los importantes vínculos entre lacultura, la naturaleza y el ambiente sociopolítico externo. Ellosignifica reorientar la ciencia, y la política, hacia el reconocimiento deformas alternativas válidas de conocimiento, de acción y deorganización. No hay mejor definición de lo que en estas páginashemos querido designar por “imaginario ambiental bio(socio)diverso.

103Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso

104 Joaquín Herrera Flores

O Tripé doDesenvolvimento Includente

Ignacy Sachs1

Neste começo do século, marcado por relações cada vezmais esquizofrênicas entre os mercados financeiros e a

economia real, é no bojo desta última que se dará à prova de fogopara o governo. É lá que se geram oportunidades de trabalho decente.Quarenta anos de crescimento rápido, porém socialmente perverso,excludente e fortemente concentrador de renda, seguidos de mais deduas décadas de desaceleração, em grande parte perdidas, tornaramo Brasil um dos países mais desiguais do mundo com fortes índicesde desemprego e subemprego.

Para reverter esta situação e começar a saldar a dívida socialacumulada não basta voltar a crescer. É essencial que o Brasilingresse na trajetória virtuosa de desenvolvimento includentesustentado por um crescimento com alta densidade de empregos.

Para tanto é necessário elaborar uma estratégia voltada,simultaneamente, à busca de alta produtividade no núcleomodernizador da economia nacional, à promoção de crescimentopuxado pelo emprego nos setores produtivos onde é ainda possívelavançar por meio de métodos intensivos em mão-de-obra e,finalmente, à expansão dos instrumentos de ação direta sobre o bem-estar da população sob a forma de redes públicas de serviços de base(educação, saúde, saneamento e habitação).

105O Tripé do Desenvolvimento Includente

1 Diretor de Pesquisa Emérito da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales e co-diretor da CRBC – Centre deRecherches sur le Brésil Contemporain, Paris-França.

Por razões óbvias, o Brasil deverá concentrar a maior parte dasua capacidade de investimento na implementação de uma estratégiavoltada à consolidação e expansão do núcleo modernizador daeconomia nacional. Este é constituído por indústrias de altatecnologia e pela agricultura mecanizada de grãos, ambos capazes decompetir nos mercados mundiais, produzir a preços acessíveisartigos de consumo de massa e gerar elevado valor agregado; porémpouquíssimos empregos diretos. É verdade que elas têm um impactono mercado de trabalho, induzindo empregos indiretos, tanto naprodução de insumos como de bens e serviços consumidos pelostrabalhadores e funcionários do núcleo modernizador.

A política de empregos deve explorar ao máximo este efeitomultiplicador nos outros setores da economia. Em particular naquelesque produzem bens e serviços não submetidos à concorrência estran-geira (os assim chamados não comerciáveis) onde existem, portanto,maiores margens de liberdade na seleção das tecnologias: serviçossociais, técnicos e pessoais, construção civil e obras públicas.

Convém ainda expandir ao máximo o “crescimento puxado peloemprego” na agricultura familiar, no artesanato e nas indústriasnaturalmente intensivas em mão-de-obra, velando para que a suacompetitividade nos mercados internacionais não seja baseada,unicamente, em fatores espúrios (salários baixos, longas jornadas detrabalho, falta de acesso à previdência social, sonegação fiscal).

O Brasil é um país abençoado com a maior biodiversidade e amaior floresta tropical do mundo, amplas reservas de terrascultiváveis, boa disponibilidade de recursos hídricos na maior partedo território, climas favoráveis à produção vegetal (o sol é e serásempre nosso), gente disposta para trabalhar a terra em vez dereclamar empregos no asfalto e excelentes agrônomos e biólogos.Está, assim, em condições de partir para um novo ciclo dedesenvolvimento rural, liderando o processo mundial de criação deuma civilização moderna e sustentável baseada na utilização dosrecursos renováveis, com o complexo bioindustrial como carro-chefe.

A produção de biomassa pode gerar um grande número deempregos agrícolas e florestais, a começar pela produção de alimentos.O Brasil ainda não cumpriu a meta da segurança alimentar e nãoeliminou a fome. Outrossim, uma oferta elástica de bens de salário, acomeçar pelos alimentos, condiciona a aceleração do crescimentopuxado pelo emprego em condições não inflacionárias.

Por outro lado, a transformação das biomassas em alimentos,rações animais e um leque crescente de produtos, tais como

106 Ignacy Sachs

bioenergia, adubos, materiais de construção, fibras, plásticos,fármacos e cosméticos cria oportunidades de empregos secundáriosnas indústrias, e, terciários nos serviços técnicos e comerciais.

Acrescente-se a isto os empregos relacionados com a reduçãode desperdício no uso dos recursos naturais (conservação de energiae de água, reciclagem) e com uma manutenção mais cuidadosa dopatrimônio existente de infra-estruturas, equipamentos e parqueimobiliário, uma maneira de prorrogar a sua vida útil, e reduzir, destaforma, a demanda pelo capital de reposição. Em ambos os casos,trata-se de fatores que contribuem ao crescimento sem exigir novosinvestimentos.

Como o terceiro pé do tripé, destacam-se os já mencionadosserviços que atuam diretamente sobre o bem-estar das populações.Normalmente ministrados através de redes públicas de acessouniversal, a educação e a saúde também podem ser fontes denumerosos empregos. A sua importância deve-se ao fato de que estesserviços permitem a efetivação de direitos humanos fundamentais.Não esqueçamos que o desenvolvimento, em última instância,consiste precisamente na universalização do conjunto dos direitoshumanos das três gerações: civis, cívicos e políticos; econômicos – acomeçar pelo direito ao trabalho decente –, sociais e culturais; porfim, os direitos coletivos ao meio ambiente, à infância, à cidade, aodesenvolvimento.

107O Tripé do Desenvolvimento Includente

Amazônias: Sociedades DiversasEspacialidades Múltiplas1

José Aldemir de Oliveira2

Senhoras e senhores do Direito, o que um geógrafo,ainda por cima um geógrafo da periferia pode lhes

dizer num encontro como esse? Ficarei na minha canoa e buscareidiscutir a globalização e em seguida apontar alguns fragmentos de comoocorre a inserção da Amazônia, nesse processo, a partir dasespacialidades, conforme o título do meu texto espacialidades múltiplas.

Em primeiro lugar, qual o meu entendimento de globalização. Otempo em que vivemos é único. Compõe-se de vários tempos e só érigorosamente semelhante a si mesmo: jamais o homem teveoportunidade de desenvolver tantas técnicas. Entretanto, comoanteviu Euclides da Cunha no início do já passado século XX, temostudo e nada, porque nos falta os desdobramentos dos aconteceres. Noinício de século, milênio em que vivemos, há um ritmo que aniquila otempo e os espaços, colocando em xeque as verdades e as dúvidas.Chegamos a não ter certeza do que sabemos, mas também a duvidardo que não sabemos. Duvidar das certezas da ciência tem sido umpasso importante para grandes descobertas, pois, como nos afiançaKafka, há um destino, mas não há um caminho que nos leve até ele.Muitas vezes o que chamamos de caminho é apenas indecisão.

No nosso agora, temas como o deste encontro que discute odireito das populações locais, são asfixiados pela globalização, comoum processo que tendência a homogeneizar o modo de vida e se

109Amazônias: Sociedades Diversas Espacialidades Múltiplas

1 Palestra proferida na mesa-redonda Direito Sócio-Ambiental, Globalização e o Espaço Amazônico, no I CicloInternacional de Conferências: Pensando o Direito na Amazônia / PPGDA-UEA.

2 Professor Titular da Universidade Federal do Amazonas e Diretor-Presidente da Fapeam.

caracteriza pelas transformações de espaços nacionais em espaçoseconômicos internacionais, que acelera a circulação voltada quaseque exclusivamente para a reprodução ampliada do capital. Por outrolado, contraditoriamente, o nosso agora é assinalado pelo avançoexcepcional da ciência, da técnica e da informação – a unimídia3 –estabelecendo a informatização da paisagem e das relações humanas.Esse processo só foi possível graças ao desenvolvimento da técnicaque possibilitou a todos os lugares serem atingidos por certasdimensões da globalização, a despeito das inumeráveis dificuldadessocioculturais.

Cabe, ainda, destacar o papel da mídia na reconfiguração desseprocesso, quase sempre considerando a globalização como fábulafundada na economização da vida social e da vida pessoal. “É omundo tal como nos fazem ver e crer”. Alavancada pela midiamorfose4

incute a idéia de que a difusão instantânea da notícia nos torna maisinformados. O mercado é apresentado como acessível para todos,sendo capaz de homogeneizar tudo. O Estado é apresentado comonão tendo mais capacidade de investimentos sociais, pois está emcrise.

Como resultado, configura-se a degradação da qualidade devida e dos valores. A adesão desenfreada aos comportamentoscompetitivos, que caracterizam as ações hegemônicas presentes noprocesso de globalização aparece como perversidade que deixa de seruma manifestação isolada atribuída a distorções da personalidade,para se estabelecer como um sistema.

No entanto, é preciso também discutir a globalização enquantopossibilidades, considerando o fato de que a articulação que tende àsociedade global é dinâmica e contraditória. Esta dinamicidade édada pelos lugares que contêm especificidades e peculiaridades, asquais muitas vezes escapam às determinações mais gerais daHistória, à medida que a história do lugar não é necessariamente oespelho da história de um país ou de uma sociedade. A partir desseentendimento, que está à possibilidade de produção, daquilo que ogeógrafo Milton Santos denominou de outra globalização.

O homem não mora no mundo, ele mora num lugar. Este lugarpode escapar das tendências à homogeneização colocadas pelomundo globalizado, pois as forças que a criam podem também criaro seu contrário. O lugar tem um tempo e um espaço que são poucoglobais e estão prenhes de significados. No lugar emerge a diferençae brota a luta que aparece como possibilidade de produzir uma nova

110 José Aldemir de Oliveira

3 Campo criado pela convergência da mídia digital. Nova escrita eletrônica para a comunicação do amanhã.

4 Revolução da comunicação devido à potência dos computadores multimídia e às redes de comunicação.

história, de onde podem brotar reações que nos levam para outrapercepção da história e encorajam a superação da práxis tradicional,abrindo lugar para a utopia e a esperança. Então a “história e oslugares seriam da nossa humanidade comum e não mais apenas dosdominantes”.

Dito isto, entro na segunda parte da minha intervenção equero-lhes falar de um desses lugares enquanto possibilidades, aAmazônia.

No nível da informação predomina o entendimento da Amazôniacomo exuberante, grandiosa, folclórica, fotogênica, concebendoapenas a paisagem natural, não considerando as relações sociais. Oespaço aparece como uma instância inumana (o homem é umintruso). Sem captar o essencial separam-se as pessoas de seuespaço, como se fosse possível compreender o espaço sem as relaçõeshumanas. Neste sentido, a Amazônia é veiculada como espaçofragmentado em glebas, lotes, reservas, áreas de preservação,unidades de conservação, áreas de assentamento, quase sempresuperpondo territórios, cujos limites não necessariamente coincidemcom o espaço vivido.

Se quisermos efetivamente compreender a Amazônia teremosque revelar um filme no qual aparecem retratos de pessoasidentificadas no processo que fragmentou espaços, ao mesmo tempoem que vem à tona o passado por meio de coisas e sentimentos quemudaram ou se refizeram em outro patamar. Ou seja, é precisocompreender e considerar o homem da Amazônia como sujeito de umprocesso que, se de um lado dilacera espaços, de outro contém apossibilidade e a capacidade de embalar novos sonhos e novasilusões sem melancolias nem saudosismos, mas com “ódio sossegadoe com paciência”. Na Amazônia, índios, posseiros, peões, ribeirinhos,seringueiros e caboclos são sujeitos e construtores do espaço e dahistória, o que não significa deixar de reconhecer a sua condição deexcluídos.

Ao mesmo tempo deixo claro que não se trata de devaneio, poiscomo adverte Foot Hardmam “todos nós sabemos a barra de viversem chão, o peso de cada minuto nesses tristes trópicos, a desolaçãoque é ver a cidade virada pelo avesso; todos nós sentimos, um diaqualquer, a vertigem do vazio, num cenário em que já não cabemmais maravilhas mecânicas”.

Isto não é apenas uma visão, é o que caracteriza as relaçõesimpostas para Amazônia. O avanço das relações sociais de produção naAmazônia estabelece novas formas e conteúdos espaciais, impondo o

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novo e destruindo a natureza, as culturas e os modos de vida. Esseprocesso, se não é específico para a Amazônia, tem aqui maior dimensãoem decorrência da predominância da natureza e de culturas ainda nãoadaptadas a uma tendência de homogeneização que ocorre com o avançodo capital. Esse processo tem como base não a história ou a cultura, masa natureza. Em decorrência desse fator, mudanças significativas sãoestabelecidas na espacialidade do lugar, desterritorializando sujeitos quese reterritorializam a partir de novas dimensões.

A desterritorialização não deixa de ser uma violência e temocorrido com mais agudeza, visto que há o predomínio da naturezasobre a cultura. A violência se distingue, segundo Hannah Arendt, porseu caráter instrumental, pois a violência é utilizada com o propósitode revigorar o poder, até que no último estágio possa substituí-lo. Aquia interiorização do Estado é tênue e quando isso ocorre não se dá naperspectiva da mediação, mas na defesa dos interesses quase semprecontrários aos da sociedade local. No processo de criação de novasterritorialidades na Amazônia, o Estado fixa sua “racionalidade”,explode as relações sociais preexistentes, reorganizando-as em funçãodas novas necessidades e de novos paradigmas, que propiciam noespaço um elemento privilegiado. Na Amazônia, em diferentes épocas,o Estado produz um espaço revelador de sua natureza imanente,assinalado pelo signo da violência.

A violência se configura na determinação das fronteiras, quepodem corroborar e mesmo criar, recriar ou redimensionar aidentidade cultural, pois nem toda fronteira, no sentido daapropriação, coincide com a fronteira política concreta. RogérioHaesbaest denomina-a de “apropriação simbólico-cultural”.

Na conjuntura atual, a construção de autonomia no contexto deuma sociedade tendente à homogeneização é cada vez mais difícil,pois sendo estruturas articuladas a redes globais controlam eoprimem a vida cotidiana. A reterritorialização, neste contexto, é umprocesso ligado à funcionalidade do território – zoneamentoeconômico-ecológico, preservação, biotecnologia, bionegócio – quevisa influir em ações a partir do controle do território, determinadopor dois fatores: a revolução das técnicas que se configuram emqualidade total do território e a questão ambiental que, mais do queum princípio, significa transformar a natureza em mercadoria. Issodetermina uma revalorização da Amazônia segundo um novo modelode exploração - o desenvolvimento sustentável – no qual perpassaminteresses de organizações governamentais ou não, forças armadas,grandes empresas e grupos locais.

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Por outro lado, é necessário assinalar que o processo dedestruição contém a possibilidade da reconstrução, que ocorre apartir da resistência. Por isso, apesar de tudo, há resistência e porisso estamos aqui, para discutir alternativas. E nesse sentido, adiscussão sobre o direito das populações locais deve levar em conta aAmazônia como uma formação econômico-social e cultural produzidaa partir da dinâmica histórica, territorial e cultural.

As territorialidades são produzidas socialmente, são produtosde uma cultura datada num determinado tempo e lugar.Concomitantemente, refletem as condições específicas do lugar e dosconflitos que não podem ser considerados exclusivamente do pontode vista econômico e jurídico, pois têm dimensões que retratam ovivido de quem as constrói.

É preciso compreender a territorialidade que resulta das durascondições de vida, mas também da resistência, da força inquebran-tável para a construção de uma nova vida que não é necessariamentemelhor ou pior, mas é uma outra vida. Estas ações que se concretizamem territorialidades, quase sempre são desconsideradas, pois estãoeivadas de coisas simples, transmutadas numa sensação de extremaobviedade pela freqüência do estar sempre por aí e porque quasesempre a nossa preocupação é com as carências e com as perdas,concebendo e percebendo o espaço como inumano. Essa é a questãode fundo sem a qual a nossa intervenção continuará sendo inócua.

Essa nova visão deve compreender, além das macro-estruturas,as coisas simples à vivência do dia-a-dia nos trópicos. Portanto, paraalém do direito à biodiversidade, é preciso buscar o direito enquantoapropriação da sociodiversidade da Amazônia.

Outro aspecto que quero enfatizar, já encerrando, não se podepartir da premissa de que o homem da Amazônia é apenas vítima. Aexpansão da fronteira é a reatualização da exclusão, produzindonovos e velhos pobres da terra, mas é também onde emergem novosagentes produtores do espaço. Para essa gente, o processo deprodução do espaço tem perdas e ganhos, mais perdas é verdade. Háespecificidades que decorrem do fato de os eventos que os atingemterem dinâmicas próprias, o que dificulta, senão impossibilitaestabelecer generalizações para uma área tão diferenciada como aAmazônia. O mais correto é considerarmos as Amazônias, pois elassão várias e múltiplas.

Por fim, os amazônidas conhecem os atalhos e as trilhas, nasquais são traçadas a caminhada que é a história. Muitas vezes não sesabe de onde vêm, mas sempre sabem para onde vão. Por instantes

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se perdem nos caminhos, na floresta, nos rios, nas estradas de terrabatida, nas ruas, nos becos, nos igarapés, nas pontes, enfim, noespaço vivido do campo e das cidades que são espacialidades dasvidas. No entanto, vai-se em frente, pois o importante é se perder,porque ao perder descobre-se com mais profundidade o caminho quelevam aos destinos e, nessa busca, descobrem-se armadilhas queaniquilam porque matam, mas aprimoram porque ensinam a resistir.

REFERÊNCIAS

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BECKER, Bertha K. “Novos rumos da política regional: por um desenvolvimentosustentável da fronteira amazônica”. In: A Geografia Política do desenvolvimentosustentável. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997, p. 421-443.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.

HAESBAERT, Rogério. “Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão”.In: Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 165-206.

LEFEBVRE, Henri. De L'État: Les contraditions de l'État moderne dialectíque et de l'État.Paris: União Générale D'éditions, 1978.

MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão. 2.ª ed. Petrópolis/RJ:Vozes, 1988.

SEEGER, Anthony & CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Terras e territórios indígenas”.Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 12: p. 101-14, 1979.

SILVA, Marilene Corrêa da. Processos de Globalização na Amazônia. Manaus: UniversidadeFederal do Amazonas, 1996.

SOUZA, Marcelo José Lopes de. “O território: sobre espaço e poder, autonomia edesenvolvimento”. In: Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995,p. 77-116.

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Sociedad del Conocimento,Biotecnologia y Biodiversidad

Juan Antonio Senent de Frutos1

1. BIOTECNOLOGÍA, RECURSOS NATURALES YBIODIVERSIDAD

Desde el origen de la era moderna, se desarrollajunto a otros procesos, el proceso de colonización

de otras tierras, otros pueblos y otras culturas. Hoy existen otrasformas más complejas y más sutiles de colonización. Durante siglosse han menospreciado las formas de conocimiento y de acción sobreel medio ambiente de los pueblos colonizados por occidente. Encambio, aunque la actitud cultural de fondo no ha cambiado, hoy seconsidera un valioso recurso económico para la explotación comercialla “biodiversidad”2 que albergan los territorios tradicionales de lospueblos atrasados, las llamadas reservas naturales de la humanidad.En un mundo cada vez más uniformado, monocultural y donde losproductos disponibles para el consumo están estandarizados, resultaatractivo para las empresas transnacionales acudir a las fuentes dela diversidad para la obtención y comercialización de nuevos produc-tos para el consumo, nuevas medicinas, o incluso para la ampliacióndel mercado de procesos industriales con la exportación detecnologías y recursos para producción de bienes a esos pueblos quesecularmente han sido autónomos y que originariamente no hannecesitado la transferencia de tecnología para su sostenimiento.

1 Profesor de Filosofía del derecho de la Universidad de Sevilla-España.

2 Uno de los exponentes de ese interés es el Convenio sobre la Diversidad Biológica, hecho en Río de Janeiro en juniode 1992.

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Estos pueblos han sabido reconocer, utilizar y desarrollar losrecursos que su medio natural les ofrecía, y sobre los cuales handesarrollado el llamado “conocimiento tradicional”3 lo cual les hapermitido alcanzar un proceso acumulativo de conocimiento sobre elmedio y de técnicas de producción propias. Sin embargo, esto pareceque no es suficiente para reconocerlos como verdaderos titulares delos descubrimientos de los recursos biológicos o del desarrollo ymanipulación de especies o variedades para la producción agrícola alo largo de siglos. Sobre estos recursos y conocimientos se despliegala llamada “biopiratería”4 (Vandana Shiva) o el “saqueo del cono-cimiento”5 (Martin Khor) por medio fundamentalmente de lasempresas transnacionales dedicadas a la biotecnología, que portanto, representan una nueva fase de colonización6 sobre recursosnaturales y culturales de otros pueblos. Sin embargo, estasactividades muchas veces amparadas en instrumentos normativos yotras en la propia lógica de las prácticas empresariales, no sonconsideradas por sus autores como actos ilícitos ni ilegítimos, noson ni “robos” ni “saqueos”; antes bien, están respaldadas por labuena conciencia de quienes se dicen servidores del desarrollo de lahumanidad.

De lo que en el fondo se trata es que para construir unsistema jurídico de propiedad intelectual y de patentes en relacióncon los recursos y saberes tradicionales de los pueblos “en vías dedesarrollo”, hay que partir de algunas concepciones culturales y deracionalidades implícitas en esas prácticas y en esas disposicionesnormativas. Esto es lo que trataremos de explicitar en este trabajodesvelando los que consideramos como supuestos fundamentalespara justificar ese orden de cosas. Para ello realizaremos unexamen de la obra de John Locke. No se trata de ningúnanacronismo, sino de examinar críticamente las raíces culturales deestas prácticas que pueden ser reconocidas a través de la obra de

3 En el preámbulo del Convenio sobre la Diversidad Biológica se reconoce “la estrecha y tradicional dependencia demuchas comunidades locales y poblaciones indígenas que tienen de sistemas de vida tradicionales basados en losrecursos biológicos, y la conveniencia de compartir equitativamente los beneficios que se derivan de la utilizaciónde los conocimientos tradicionales” (par. 12º).

4 Biopiratería. El saqueo de la naturaleza y del conocimiento, Icaria, Barcelona, 2001 (traducción del original inglésBiopiracy). También sobre esta cuestión de Vandana Shiva, ¿Proteger o expoliar? Los derechos de propiedadintelectual, Intermon Oxfam, Barcelona, 2003.

5 El saqueo del conocimiento. Propiedad intelectual, biodiversidad, tecnología y desarrollo sostenible, Icaria-IntermonOxfam, Barcelona, 2003 (traducción del original inglés Intellectual property, biodiversity and sustainabledevelopment).

6 “La biotecnología, doncella del capital en la era postindustrial, hace posible la colonización de lo autónomo, lolibre, y lo autorregenerativo. Mediante la ciencia reduccionista el capital puede alcanzar espacios a los nunca habíaaccedido”, Biopiratería, op. cit., p. 67.

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alguien que expone con absoluta maestría la relación que debentener los pueblos occidentales con otros pueblos y sus recursosnaturales, y que por tanto refleja el patrón normativo para realizarla colonización del mundo por los que él llamaba la “civilización depueblos europeos”. Al igual que hoy, Locke no tenía ninguna malaconciencia, antes bien realiza una cuidada fundamentación de ladominación de otros mundos en nombre de la defensa del propio“género humano”. Cuando no existía un régimen de derechopositivo que regulara esas relaciones entre pueblos él desarrollauna visión del derecho natural que ampara lo que críticamenteentendemos como dominación.7 Hoy, cuando todavía no existe unrégimen jurídico que ampare suficientemente los conocimientostradicionales en sus países de origen, o están discutiéndose yrevisándose las reglas internacionales o multilaterales sobre losmismos, se proyecta la sombra de un patrón normativo que bebe enlas mismas fuentes culturales de ese “derecho natural” descrito porLocke, y desde el que se justificó la primera colonización en la eramoderna, y que hoy prosigue con nuevas formas en la erapostmoderna8 pero bajo presupuestos semejantes. Lo cual muestraque nuestra era, dicho en el lenguaje de la música, no es sino unavariación sobre un mismo tema.

Entendemos que cambian las formas y se renuevan loscontextos pero siguen presentes los mismos supuestos justificadoresde estas prácticas. Se ha pasado de la era industrial, cuyos alboresconoció el propio Locke a la era postindustrial, que según algunos sedefine por la llamada sociedad del conocimiento o de la información.9

Ello implica una nueva fase de desarrollo de las fuerzas de

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7 A pesar de que la literatura habitual presenta a John Locke como un defensor de la libertad y de una racionalidadhumana universalista que fundamentaría el paradigma moderno de los derechos humanos universales, no se debepasar por alto que para él, este planteamiento era perfectamente compatible con prácticas que hoy entendemos queviolan la dignidad humana. De este modo, su defensa de la libertad y de la igualdad básica entre los seres humanos,implicará igualmente la defensa y justificación de la ejecución capital (§8, 11, 18, 19, 20), los trabajos forzados ola esclavitud (§11, 22-24). Esto es algo que no es marginal en su obra, sino que ocupa un lugar central, y queatraviesa toda la obra de su Segundo Tratado sobre el gobierno Civil. En el comienzo de la misma, intitula su capítulo4: De la esclavitud. La legalidad y legitimidad de esta práctica es absoluta para Locke, quien en el capítulo 7 (De lasociedad política o civil), considera compatible la existencia de una sociedad política constituida con la esclavitud:“(...) hay otra clase de siervos a los que damos el nombre de esclavos. Estos, al haber sido capturados en una guerrajusta, están por derecho de naturaleza sometidos al dominio absoluto y arbitrario de sus amos. Como digo, estoshombres, habiendo renunciado a sus vidas y, junto con ellas, a sus libertades; y habiendo perdido sus posesiones alpasar a un estado de esclavitud que no los capacita para tener propiedad alguna, no pueden ser considerados comoparte de la sociedad civil del país, cuyo fin es la preservación de la propiedad” (§85). De este modo, un estado dederecho “civilizado” es compatible con la exclusión legalizada que despoja de los derechos fundamentales de laspersonas como la vida, la libertad o la integridad física a quienes ha situado fuera del “género humano”.

Sobre estas cuestiones, resulta muy esclarecedor el trabajo de F. Hinkelammert, “La inversión de los derechoshumanos: el caso de John Locke”, en El vuelo de Anteo. Derechos Humanos y crítica de la razón liberal, J. Herrera,ed., Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, pp. 79-113.

8 Sobre la continuidad geoestratégica entre la era moderna y la postmoderna, puede verse entre otros, E. Dussel,Hacia una filosofía política crítica, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2001, pp. 403-407; 423-433.

9 Sobre esto un clásico de nuestro tiempo es la trilogía de Manuel Castells La era de la información (Alianza editorial,Madrid, 3ª edición, 2001).

producción capitalistas10. Hoy ya parece que no cuenta tanto en losprocesos económicos y en la producción de valor los recursosmateriales, las “materias primas”, como la obtención de unconocimiento a partir del cual se pueden desarrollar los procesosindustriales. La nueva materia prima ya no es tanto los recursosfísicos que sustentan el proceso económico como el propioconocimiento acerca de los recursos, a partir del cual podrían enprincipio reproducir, por ejemplo, las diversas formas de materia vivapara su mercantilización11. Por ello, el desarrollo de la biotecnología12,es fundamental en la sociedad del conocimiento. Sin embargo,sostenemos que el planteamiento lockeano no es extraño a este tipode desarrollo sino que su lógica está implicada en este proceso. Lallamada “biopiratería” no se sustenta sobre el expolio y acumulaciónde los bienes de otros, sino en la apropiación del conocimientotradicional sobre diversas formas de materia viva identificadas oproducidas por los “pueblos atrasados”, para su reproducción yexplotación en el llamado libre mercado.13 En esta nueva fase dereordenación de las fuerzas productivas, ese conocimiento sobre labiodiversidad que era patrimonio de esos pueblos es un nuevo objetode interés y de acción depredadora so capa de servicio a lahumanidad.

Por ello, vamos a centrarnos en un tema de discusión que no esúnicamente jurídico, ni económico, sino que requiere de un análisisfilosófico sobre los fundamentos de esas prácticas. Se trata de ver elproblema del tipo de racionalidad, los presupuestos epistemológicos,tecnológicos y sociales que subyacen a la dinámica de la apropiaciónprivativa de los “recursos naturales” y los saberes tradicionales de lassociedades tradicionales, por medio especialmente del mecanismo del

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10 Castells en este sentido habla de un “capitalismo informacional”: “la globalización avanza de forma selectiva,incluyendo y excluyendo a segmentos de economías y sociedades dentro y fuera de las redes de información,riqueza y poder que caracteriza al nuevo sistema dominante (...) Pero en este proceso de reestructuración socialhay más que desigualdad y pobreza. También hay exclusión de pueblos y territorios que, desde la perspectiva delos intereses dominantes en el capitalismo informacional global, pasan a una posición de irrelevancia estructural”,La era de la información, Vol. 3, Fin de milenio, op. cit., p. 195.

11 Cf. “Biotecnología: negocio del futuro” de Rubén Urtuzuástegui: “El biólogo Crade Benson descubrió hace poco la formade codificar electrónicamente archivos genéticos. Con este avance la biología pasará de la era experimental a la digital.Por eso, en el futuro cercano el lenguaje biotecnológico representará la nueva manera de visualizar los negocios”. Eneste sentido, como señala este autor, “se puede considerar al ser vivo como un programa ejecutable, como pieza desoftware. Algunos científicos aceptan que se pueden manipular las células del maíz o de una persona como si fueranprogramas ejecutables. Por lo pronto, se trata tan sólo de un nuevo lenguaje, falta entender su gramática y sintaxispara manipular al ser vivo a nuestro antojo.” (http://www.istmoenlinea.com.mx/ articulos/25906.html)

12 Como señala Castells, con el desarrollo de las tecnologías de la vida sobre todo a partir de mediados de los añossetenta, se inició una carrera para fundar firmas comerciales, la mayoría surgidas de las principales universidadesy centros de investigación hospitalarios ante las posibilidades que inauguraba la capacidad de desarrollar laingeniería de la vida, incluida la humana. Desde las empresas biomédicas a las empresas agrícolas se lanzaron adesarrollar y aplicar esos recursos a sus campos productivos (La era de la información. Vol 1. La sociedad red, op.cit., p. 85 y ss.).

13 Al que sólo tendrán acceso los que tengan capacidad de pago (demanda solvente), y por ello, aun siendo“formalmente” todos iguales, no todos podrán operar en el mercado.

derecho de patente en el marco de los derechos de propiedadintelectual. La existencia de estos mecanismos jurídico-positivos, y deinstrumentos legales multilaterales como el Acuerdo sobre losAspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual relacionados conel Comercio (ADPIC14), y sus consecuencias económicas y socialesestán muy relacionadas con algunos supuestos que hay que tenerpresente para poder ir al fondo de estos mecanismos. ¿Por qué lossaberes tradicionales no se conceptúan como conocimiento? ¿Por quéel trabajo humano de las comunidades tradicionales no esconsiderado como tal, sino que se lo considera simplemente como“recurso natural” que se puede apropiar privativamente? ¿Cómo sejustifica esa apropiación del “patrimonio común”? Para ello, comohemos indicado, el análisis del pensamiento de John Locke nosservirá de guía dialéctica.

2. ANÁLISIS DE LOS FUNDAMENTOS CULTURALES DE LAAPROPIACIÓN DE LA BIODIVERSIDAD

2.1. De la naturaleza como propiedad común del génerohumano a su apropiación privativa

Locke desarrolla esta cuestión fundamentalmente en el capítulo5 (“De la propiedad”) de su obra Segundo Tratado sobre el GobiernoCivil15. El punto de partida formal es el derecho de propiedad comoderecho natural que será básico en el desarrollo del resto derelaciones jurídicas, sociales y políticas.

En la escolástica cristiana medieval se consideraba queexistía una propiedad natural del género humano sobre todas lascosas de la creación. En sentido análogo, en la moderna doctrinasocial de la iglesia se postula “el destino universal de los bienes”.16

Locke, situándose supuestamente de la misma cosmovisióncristiana (cf. §25), plantea, en cambio, este derecho natural demodo que le permita desentenderse de cualquier dependencia

14 También conocidos como Acuerdo TRIPS (TRIPS Agreement) por sus siglas en inglés (Trade-related Aspects ofIntellectual Property Rights.

15 Citaré esta obra por la traducción de Carlos Mellizo para la edición de Alianza editorial, Madrid, 1990, del originalinglés The Second Treatise of Civil Goverment. An Essay Concerning the Original, Extend and End of Civil Goverment(1690).

16 Cf. Ildefoso Camacho Laraña, Doctrina Social de la Iglesia. Quince claves para su comprensión, Desclée de Brouwer,Bilbao, 2000, p. 73-95.

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respecto al bien común o de cualquier “hipoteca social” del derechode propiedad individual. Desde esta opción inicial se restringe estedestino universal de los bienes a una estrategia de apropiaciónprivada.17

Inicialmente él mismo nos presenta su objetivo: “mostraré cómolos hombres pueden llegar a tener en propiedad varias parcelas de loque Dios entregó en común al género humano; y ello, sin necesidadde que haya un acuerdo expreso entre los miembros de lacomunidad” (§25). En su planteamiento arranca de un “estadonatural” que está más allá de cualquier acuerdo y de cualquiersociedad o individuo. Sobre una hipotética situación originaria Lockecomienza su argumentación:

“Dios, que ha dado en común el mundo a los hombres, tambiénles ha dado también la razón, a fin de que hagan uso de ella paraconseguir mayor beneficio de la vida, y mayores ventajas. La tierra ytodo lo que hay en ella le fue dada al hombre para soporte ycomodidad de su existencia. Y aunque todos los frutos que la tierraproduce naturalmente, así como las bestias que de ellos sealimentan, pertenecen a la humanidad comunitariamente, al serproductos espontáneos de la naturaleza; y aunque nadie tieneoriginalmente un exclusivo dominio privado sobre ninguna de estascosas tal y como son dadas en el estado natural, ocurre, sin embargo,que como dichos bienes están ahí para uso de los hombres, tiene quehaber necesariamente algún medio de apropiárselos antes de quepuedan ser utilizados de algún modo o resulten beneficiosos paraalgún hombre en particular” (§26).

Dado que hay una disposición en favor del género humano delos bienes naturales, es necesario que esos bienes rindan, y para ellodeben ser apropiados individualmente. Se puede decir que cualquiersujeto humano podría apropiarse privativamente de esos bienes, de

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17 Como muestra Ignacio Ellacuría, hay una profunda divergencia en la concepción sobre la relación debida entre biencomún y bien personal en el esquema liberal y en la tradición escolástica cristiana, por ejemplo, con Santo Tomás.De este punto de vista, señala Ellacuría que no hay “bien particular sin referencia al bien común y sin la existenciareal de un bien común no puede hablarse de un bien particular, sino tan sólo de una ventaja interesada e injusta.Por lo pronto es imposible que ningún individuo alcance su bien, si no es aprovechándose de lo que ofrece el biencomún; tal como se da en una sociedad política; se requiere, en efecto, algo que el particular no produce para quepueda llegar a ser lo que tiene que ser y pueda hacer lo que necesita hacer. Pero ese algo es, en sí mismo,supraindividual y, por su propia naturaleza, niega aquella apropiación privada que fuerce al bien común a dejar deser común; el pecado fundamental consistiría aquí en la apropiación privada de lo que es común, la negación delo común en beneficio de lo que es particular, la anulación del todo estructural en beneficio de algunas partesdisgregadoras de ese todo. La apropiación privada de lo que es por su naturaleza social y, por consiguiente, común,es una injusticia fundamental, que hace injustos todos sus efectos. No hay, por lo tanto, posibilidad ética deapropiación privada de un bien común con menoscabo de la comunidad de ese bien. Cuando predomina lo privadoy los intereses privados o de grupo en la distribución del bien común y, antes, en la producción explotada de loque es el bien común, cuando unos pocos se apropian de aquello que no puede ser suyo más que haciendo queno sea de los otros e impidiendo que los otros puedan servirse de lo que tienen derecho, estamos ante la negaciónmisma del bien común y ante la ruptura del orden social justo” (“Historización del bien común y de los derechoshumanos” [1978] en Escritos filosóficos, III, Uca editores, San Salvador, 2001).

quienes en principio se predica una igualdad formal18. Cualquierapodría extraer los “productos espontáneos” de la naturaleza. Portanto de la propiedad común de la humanidad (“se ha dado en comúna toda la humanidad para que esta participe en común de ella” §25),se deriva la existencia de una res communis, que en realidad seinterpreta como res nullius, como cosa de nadie y que por tanto estáesperando para ser apropiada por cualquiera, cuya apropiaciónprivativa se interpreta como no lesiva para la humanidad. Algo“común”, por tanto, significa en la situación originaria para Locke“apropiable por cualquiera”.

¿Cuál es el ámbito de este “patrimonio común”? Aquel donde lahuella de la propiedad privada exclusiva y del sistema legal no hayasacado a la res communis de su estado natural, y por tanto dondetodo continúa en estado comunal originario. Este derecho naturalprevio y fundante de los sistemas de derecho positivo explica paranuestro autor el tránsito del estado natural a la sociedadconstituida,19 pero siempre subsiste en los ámbitos que exceden a laregulación de los sistemas legales: “entre aquellos que se cuentanentre la parte civilizada de la humanidad y que han hecho ymultiplicado una serie de leyes positivas para determinar lapropiedad, esta ley originaria de la naturaleza que se aplicaba antesa los bienes comunes para establecer los orígenes de la apropiación,sigue siendo vigente” (§30).20 Por tanto, al interior de la partecivilizada de la humanidad, apenas quedarían bienes en condicióncomunal originaria que puedan ser objetos de acción predatoria porcualquiera,21 pero hacia fuera de los límites geográficos de lasmismas, el resto de la tierra22 se presenta como un gran bien comunalsobre el que desplegar su acción:

“Todavía se encuentran hoy grandes porciones de tierra que, alno haberse unido sus habitantes con el resto de la humanidad en el

18 Para explicitar esta igualdad formal, aunque como después veremos no haya una igualdad en la racionalidad,señala: “El fruto o la carne del venado que alimentan al indio salvaje, el cual no ha oído hablar de cotos de cazay es todavía un usuario de la tierra en común con los demás, tienen que ser suyos; y tan suyos, es decir, tan partede sí mismo, que ningún otro tendrá derecho a ellos antes que su propietario haya derivado algún beneficio quedé sustento a su vida” (§26).

19 La cual surge, como no deja de recalcar a lo largo de su Segundo Tratado, para preservar la propiedad como derechonatural central.

20 Lo cual también se proyecta frente a los recursos biológicos de los mares, dado que este espacio constituye “ungran bien comunal” (cf. §30). Sobre las leyes consuetudinarias y los orígenes de la apropiabilidad, puede verse deJosé Manuel Pureza El patrimonio común de la humanidad ¿Hacia un Derecho internacional de la solidaridad?(traducción de J. Alcaide Fernández), Trotta, Madrid, 2002, p. 169 y ss.

21 Sólo queda algún reducto ya meramente anecdótico: “entre nosotros, la liebre que alguien está cazando, seconsidera propiedad de aquél que la persigue durante la caza” (§30).

22 Como destaca Vandana Shiva, para este proyecto colonizador europeo la tierra se presentaba como terra nullius, apesar de que estuviera habitada por pueblos indígenas, en ¿Proteger o expoliar? Los derechos de propiedadintelectual, op. cit., .18-19.

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acuerdo de utilizar dinero común, permanece sin cultivar; y comoestas tierras proporcionalmente son mucho mayores que el númerode personas que viven en ellas, continúan en estado comunal. Masesto difícilmente podría darse entre esa parte de la humanidad queha consentido en la utilización del dinero” (§45).

Si no se ha adoptado el sistema de relaciones mercantilespropio de las sociedades capitalistas no hay ninguna accióneconómica ni ninguna acción social y culturalmente integrada; porello, los individuos “aislados” solo toman los frutos espontáneos deahí que no constituya ningún robo a la parte civilizada de lahumanidad, ni a los otros habitantes de esas tierras. Esos habitantesson los “indios salvajes” (§26), que como va ejemplificando a lo largode sus obras viene a corresponder a los otros pueblos que no sean loseuropeos (vid. infra) y por tanto los territorios objeto de expansióncolonial en la era moderna.

Donde no haya por tanto un sistema de leyes positivas o depactos23 al modo europeo, cualquiera se puede apropiar de todocuanto sea para su utilidad, y ello sin depender delconsentimiento de nadie. La acción de sustracción de algo de sucondición comunal frente al resto del mundo no lo consideraningún robo, ni depende del consentimiento de quienes habitenlas tierras, ni estos poseen ninguna forma de propiedad comúnsobre los bienes naturales, ni tienen ningún pacto explícito oimplícito sobre la forma de aprovechamiento de los recursosnaturales que emplean para el sustento de sus vidas. Si Lockereconociera alguna institucionalización social o jurídica sobre eluso de estos bienes por parte de esos habitantes toda sujustificación de la acción colonial en la era moderna sobre losrecursos de otros pueblos perdería su justificación, y tendría quereconocer su ilicitud:

“Ciertamente, quien se ha alimentado (...) de las manzanas queha cosechado de los árboles del bosque, puede decirse que se haapropiado de ellas. Nadie podrá negar que ese alimento es suyo (...)¿Podrá decir alguno que este hombre no tenía derecho a lasmanzanas que él se apropió de este modo, alegando que no teníaconsentimiento de todo el género humano para tomarlas enpertenencia? ¿Fue un robo el apropiarse de lo que pertenecíacomunitariamente a todos? Si el consentimiento de todo el género

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23 “Es cierto que en las tierras comunales de Inglaterra o de cualquier otro país en el que mucha gente con dinero ycon comercio vive bajo un gobierno, nadie puede cercar o apropiarse parcela alguna sin el consentimiento de todoslos co-propietarios. Pues esas tierras llegaron a ser comunales mediante pacto, es decir, por la ley de la tierra, lacual no debe ser violada. Y aunque estos terrenos sean comunales con respecto a algunos hombres, no lo sonrespecto de la humanidad; sólo son propiedad común dentro de un país determinado, o de una parroquia” (§35).

humano hubiera sido necesario, este hombre se habría muerto dehambre” (§28).

Con una razón humanitaria se desentiende a partir de ahí decualquier exigencia en favor del bien común de la humanidad, y porsupuesto de cualquier respeto a los territorios de los pueblos en los quese despliega su acción. En Inglaterra, el régimen de los comuneros debeser respetado (cf. §35), de ninguna manera en otros pueblos nocivilizados, pues si en el primer caso hay una costumbre jurídica no asíen el segundo caso ya que sobre estas posesiones comunalesúnicamente rige la ley natural,24 y por tanto está liberado delconsentimiento de los comuneros, encontrándose ante una res nulliusy no ante bienes protegidos por ningún sistema de derecho positivo. Loque en Inglaterra es robo (y en las otras sociedades civilizadas), no loes fuera de sus fronteras legales porque no hay restricciones más alládel régimen de derecho natural. Los bienes que emplean para susustento otros pueblos sí están sometidos a un régimen abierto deapropiación para “toda la humanidad”, no así los bienes de losprimeros, ni siquiera los que permanecen en condición comunal.

Esta misma lógica jurídica es la que se aplica hoy para laregulación de la biodiversidad, como ha señalado José ManuelPureza, si anteriormente se basaba su regulación en el principioconsuetudinario de libre acceso gratuito,25 hoy se ha propuesto laconsideración de los recursos genéticos como patrimonio común de lahumanidad. Sin embargo, ello no ha supuesto ningún aumento en eldisfrute social de los mismos ni una mejor protección y conservación.Ya en el “Compromiso internacional sobre los recursos fito-genéticos”adoptado en la Conferencia General de la FAO, en 1983, se utilizó eseconcepto jurídico de patrimonio común, bajo la óptica “liberal”,afirmando el derecho de libre acceso a los recursos y olvidando laregulación protectora de los mismos; los beneficiarios de la utilizaciónde estos recursos, no tienen el deber de preservarlos.26

Con la revolución biotecnológica ese proceso se ha agudizado.El principio de libre acceso es un presupuesto para la actuación delos procesos biotecnológicos en las zonas ricas en biodiversidad. Losintereses económicos de las compañías farmacéuticas o agro-químicas se garantizan articulando el libre acceso al germoplasmacon la apropiación privada de los productos genéticamente

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24 Por tanto se realiza una reducción etnocéntrica de los mecanismos de regulación jurídica, que justifica todo suplanteamiento de regulación a partir de la “Ley natural”.

25 Lo cual ha propiciado en los últimos siglos una importación “erosión ecológica”, El patrimonio común de lahumanidad, op. cit., p. 361.

26 Cf. El patrimonio común de la humanidad, op. cit., p. 361.

modificados protegida por el derecho de patente. Por ello, la estrategiajurídica de los países desarrollados se basa en atribuir a labiodiversidad el estatuto de res communis, siendo librementesusceptibles de apropiación, como res nullius, los recursos extraídospor el primer utilizador27 reconocido.28 Como señala Vandana Shiva,así como ocurrió con la transformación de la terra mater en terranullius,29 se da un proceso análogo mediante las nuevasbiotecnologías que convierten la riqueza ecológica, como el caso de lassemillas de los agricultores tradicionales, en nuevo objeto deapropiación privada.

En otros instrumentos internacionales, como el Convenio deRío sobre Diversidad Biológica, en clave supuestamente dereivindicación de un interés general no reducible únicamente alinterés iusprivatista, también se afirma esta idea de patrimoniocomún de la humanidad. Así, en su preámbulo se postula que “laconservación de la diversidad biológica es interés común de toda lahumanidad” (par. 3º). Ese “interés común de la humanidad”implicado en la diversidad biológica, se concreta no sólo en laconservación, sino principalmente en la necesidad de su utilizaciónequitativa en beneficio de todos de esa riqueza: “Reconociendo laestrecha y tradicional dependencia de muchas comunidad locales ypoblaciones indígenas que tienen sistemas de vida tradicionalesbasados en los recursos biológicos, y la conveniencia de compartirequitativamente los beneficios que se derivan de la utilización de losconocimientos tradicionales, las innovaciones y las prácticaspertinentes para conservación de la diversidad biológica y lautilización sostenible de sus componentes” (par. 12º). Por tanto, esosrecursos biológicos, aunque estén relacionados con las comunidadeslocales y poblaciones indígenas, deben ser “compartidosequitativamente” en aras de un sujeto social universal, como seenuncia en párrafo 3º.

Ahora bien, ese supuesto reconocimiento de un “patrimoniocomún de la humanidad” ha de ser interpretado a la luz del juego deotros principios que dotan de concreción esas exigencias de laequidad. Por un lado, se afirma el principio de apropiación nacionalde los recursos biológicos, lo cual mantiene el régimen dentro de laóptica liberal. Como se declara en el preámbulo: “Reafirmando que losestados tienen derechos soberanos sobre sus propios recursos

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27 Ib., p. 363.

28 Como después veremos, aunque esos recursos genéticos se han empleado y desarrollado antes por comunidadestradicionales en sus propios procesos de producción, ello no dejará “ninguna huella de propiedad”.

29 Biopiratería, op. cit., pp. 68 y ss.

biológicos” (par. 4º), lo que después se concreta en el art. 15.1.30 Deeste modo, formalmente se está sacando esos bienes del régimenoriginario, como res nullius. Con lo cual para su apropiación, hay queestar al régimen de titularidad nacional, lo que supone que dependedel “consentimiento” de los comuneros, que en este caso sería elpropio estado mediante su regulación y actos de voluntad. Si eso esasí, se ha nacionalizado lo que era propio de las “comunidadestradicionales y pueblos indígenas” (cf. par. 12º), que muchas veces sehallan en conflicto con el estado en el que se encuentran por el noreconocimiento de derechos territoriales y culturales específicos.31

Ahora bien, tanto la propia regulación del Convenio, y más en juegocon el sistema del Acuerdo ADPIC, dejará prácticamente de nuevo losrecursos biológicos de los países en desarrollo en régimen comunaloriginario. Así, el art. 15. 2 del Convenio establece tras elreconocimiento de los derechos soberanos de los estados, que cadaParte Contratante “procurará crear las condiciones para facilitar aotras Partes Contratantes el acceso a los recursos genéticos parautilizaciones ambientalmente adecuadas, y no imponer restriccionescontrarias a los objetivos del presente Convenio”. Por tanto, la“soberanía” no debe impedir el acceso a las otras partes de esosrecursos en las condiciones que se convengan.32 Por ello, el libre juegodel principio del consentimiento, hay que situarlo sistemáticamentejunto al respeto del principio de utilización universal de la diversidadbiológica. Y a su vez, esta “utilización” que permite mecanismos deapropiación privativa y por tanto con exclusión de terceros, ya quedebe de respetar “la protección adecuada y eficaz de los derechos depropiedad intelectual” (art. 16.2).

Si el camino no estaba ya suficientemente allanado para lasempresas biotecnológicas33 tras el Convenio de Río, con el AcuerdoADPIC, los estados miembros de la OMC,34 tienen que aceptar

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30 “En reconocimiento de los derechos soberanos de los Estados sobre sus recursos naturales, la facultad de regular elacceso a los recursos genéticos incumbe a los gobiernos nacionales y está sometida a la legislación nacional”.

31 Se da así una nacionalización, siendo los estados los únicos con personalidad jurídica reconocida para dar elconsentimiento, que con ello tiene una dimensión nacional-estatal pero no local, pudiendo por ello perfectamenteprescindir de las comunidad locales en el “consentimiento de los comuneros” locales o de “la parroquia”, comoseñalaba Locke.

32 Art. 15. 4. Cuando se conceda acceso, éste será en condiciones mutuamente convenidas y estará sometido a lodispuesto en el presente artículo.

15.5. El acceso a los recursos genéticos estará sometido al consentimiento fundamentado previo de la Parte Contratanteque proporciona los recursos, a menos que esa Parte decida otra cosa.

33 Después de haber reconocido la legitimidad y las condiciones de legalidad para acceder a los recursos genéticos delos países atrasados por el juego del mecanismo expresado, se indica en el artículo 16. 4. que frente al “sectorprivado” (art. 16.4.) podrán tomarse medidas públicas para que se facilite la transferencia de tecnología previstaen el art. 15.1., pero no se les puede obligar a compartir “la tecnología sujeta a patentes y otros derechos depropiedad intelectual” (cf. art. 15.2).

34 Organización Mundial del Comercio.

obligatoriamente esta regla de libre acceso,35 con lo que vuelve alrégimen jurídico de la condición comunal originaria, esta vez, opelegis positiva, y no ope legis naturae, de donde lo apropiado por lamano del hombre desarrollado, debe ser ahora protegido por unsistema legal de patentes vía Acuerdo ADPIC, incluso allí donde lasleyes nacionales no lo prevean (art. 27).

El apartado 27.3, con una formulación que puede ser confusay aparentemente vergonzante,36 parte de una permisión de exclusión(“Los Miembros podrán excluir asimismo la patentabilidad:”), paradespués imponer en su caso la exclusión de la exclusión primera,con lo que finalmente se impone lo que al principio parecíaexcluible: 27.3.b) “las plantas y los animales excepto losmicroorganismos, y los procedimientos esencialmente biológicospara la producción de plantas o animales, que no seanprocedimientos no biológicos o microbiológicos. Sin embargo, losMiembros otorgarán protección a todas las obtenciones vegetalesmediante patentes, mediante un sistema eficaz sui generis omediante una combinación de aquéllas y éste”. Tras ello, laregulación de patentes sobre formas de vida y procesos productivosde formas de vida quedaría del siguiente modo: primero, se debepermitir la patentabilidad de microorganismos; segundo, se debepermitir la patentabilidad de plantas y animales producidosmediante procesos no biológicos o microbiológicos, es decir, deplantas y animales modificados genéticamente; tercero, estápermitido, salvo exclusión de un Miembro, patentar procesosbiológicos o microbiológicos para la producción de plantas oanimales.

Ahora bien, frente a estas posiciones, y tratando de recuperarla dimensión común y colectiva del uso humano de los recursosnaturales, hay que señalar que del hecho de que se adopte unaperspectiva que defienda la relevancia de la óptica del patrimoniocomún de la humanidad; no significa que el punto de partida de latradición liberal no sirva desde el punto de vista crítico oemancipador, sino que el problema está en sacar una consecuenciailegítima de ese supuesto. La consecuencia ilegítima es la pretensiónreduccionista de que solamente hay un aprovechamiento, una

35 Antes de la Ronda Uruguay, el GATT no cubría los derechos de propiedad intelectual que cada país regulaba segúnsus condiciones culturales y económicas.

36 Pues llegará a permitir patentar formas de vida que tradicionalmente siempre se han excluido de los sistemas depatentes conocidos. Este camino se inició la década anterior, a comienzos de los 80 en Estados Unidos cuando seautorizó por primera vez la patente de un microorganismo. Después se ha ido ampliando el campo de lapatentabilidad a otras formas de vida. En buena medida, el modelo normativo que se pretende implantar con elAcuerdo ADPIC, tiene su antecedente en el sistema de patentes norteamericano.

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funcionalidad real de lo que es el patrimonio común de la humanidadcuando se lo apropia privativamente, cuando se le pone el sello depropiedad exclusiva frente a terceros.37

En esta línea, es necesaria una reconceptualización del“patrimonio común” de los bienes naturales, más allá de unaregulación en clave iusprivatista, lo que exige un estatuto noapropiativo de estos bienes, desarrollando instituciones de rescommunis y de public trust, en el marco de una relación social departicipación intra-generacional y transmisión inter-generacional.38

2.2. De la universalidad del “género humano” a los“pueblos civilizados”

La obra de Locke nos muestra cómo en la tradición liberal, en laque él se sitúa y en buena medida ayuda a fundamentar, tras eldiscurso universalista, que arranca formalmente de un punto de partidageneral,39 y por tanto compartible por cualquiera; sin embargo, desdeahí, consigue derivar y llegar a lo críticamente podríamos denominarcomo una reducción social y cultural de lo humano. Con esta reduccióno asimilación de un único patrón cultural como exponente de laauténtica racionalidad humana consigue desentenderse de buena partede la humanidad, y por ello, la eventual explotación de los recursosnaturales de los que no practiquen su lógica cultural de utilización deestos recursos no será imposición ni exclusión de parte de lahumanidad, sino servicio a la verdadera humanidad.

Dice Locke: “Dios ha dado a los hombres el mundo en común;pero como se lo dio para su beneficio y para que sacaran de él lo quemás les conviniera para su vida, no podemos suponer que fueseintención de Dios dejar que el mundo permaneciese en terreno comunaly sin cultivar. Ha dado el mundo para que el hombre trabajador yracional lo use; y es el trabajo lo que da derecho a la propiedad, y no losdelirios y la avaricia de los revoltosos y los pendencieros” (§34).

¿Quién es el hombre trabajador y racional y quiénes son esosindividuos avariciosos y pendencieros? Los primeros, lospertenecientes a las sociedades burguesas (cf. §35) o la “parte civilizada

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37 Se argumenta en la tradición liberal la “inutilidad” de la naturaleza mientras esta permanezca siendo patrimoniocomún, e igualmente las formas comunales de propiedad que eran propias de las formas “premodernas” depropiedad y persistentes todavía en otras culturas jurídicas. Se niega la utilidad para la vida individual, cuandoprecisamente estas formas de aprovechamiento han permitido una utilidad para las sociedades y sus miembros, loque no sólo ha producido el “sustento de la vida” de otros pueblos, sino un enriquecimiento del patrimoniogenético de los recursos disponibles para la humanidad.

38 El patrimonio común de la humanidad, op. cit., p. 352-354.

39 Ello basándose en referencias tales como humanidad, género humano, naturaleza humana, o racionalidad humana.

de la humanidad” (§30); y por la otra parte, está hablando de los indiosde Norteamérica (cf. §30), y en general de las sociedades tradicionales;40

por tanto, ese destino universal de los bienes no es para el génerohumano en sentido realmente universal, es para aquellos hombrestrabajadores y racionales que se encuentran entre los primeros y nopara los segundos, que son avariciosos, peleadores y disputadores.Locke en su Ensayo sobre el entendimiento humano41 nos dice queconocimiento y abundancia están en pugna. En el “vasto continente deAmérica”, donde abunda toda clase de riquezas naturales, están ensituación de “ignorancia los antiguos salvajes americanos”.42 Y ello, nopor falta de “talento natural” de éstos,43 sino por falta de aplicación delconocimiento verdadero o “las investigaciones de los hombresracionales en pos de los verdaderos avances de la ciencia”,44 que se daen las naciones florecientes o parte civilizada de la humanidad.

Esta capacidad de trabajo racional, que emplea la crecientetecnología, es para Locke una conquista progresiva de la humanidad,que en realidad sólo se halla cultivada por la civilización a la que élpertenece. Tanto las “selvas de América como las escuelas de Atenasproducen hombres de capacidades diversas dentro de la mismaespecie”.45 Y ello por la diversa capacitación que permiten los diversoscontextos. Las diferencias “entre los entendimientos no proceden tantode sus facultades naturales como de los hábitos adquiridos”.46 En estesentido, señala que “no todos los americanos [aborígenes] han nacidocon entendimiento peores que los europeos, aunque vemos queninguno de ellos hace tales investigaciones en las humanidades y enlas ciencias”.47 Por ello, la naturaleza sólo nos da semillas, “hemosnacido para ser, si queremos, seres racionales, pero sólo el hábito y el

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40 Las cuales “viven alejados de las nociones, discursos y avances del resto de la humanidad; (...) esos pueden muy biencompararse a los habitantes de las Islas Marianas, quienes (al estar separados por una gran extensión de mar de todocontacto con las partes habitadas de la Tierra), se creyeron las únicas personas del mundo. Y, aunque las escasascomodidades de vida entre ellos no llegaban al uso del fuego hasta que los españoles, no muchos años después, en susviajes de Acapulco a Manila, se lo mostraron; todavía, en la necesidad y en la ignorancia de la mayoría de las cosas, semiraban a sí mismos, aun después de que los españoles les trajeran información de una variedad de naciones ricas enciencias, artes y comodidades de vida, de las que ellos no sabían nada; se miraban a sí mismos, decía, como las personasmás felices y más sabias del universo. Pero, a pesar de todo, creo que nadie se los imaginará como profundos físicos ysólidos metafísicos. Nadie estimará que el más avispado de ellos tenga opiniones muy amplias en ética o política; nipuede nadie conceder que el más brillante de ellos progrese tanto en su entendimiento como para tener ningún otroconocimiento más que unas cuantas pequeñas cosas sobre su isla (...) pero siempre bastante lejos de ese ampliodesarrollo de la mente que embellece a un alma dedicada a la verdad, ayudada por la cultura y por las distintas opinionesde los pensadores de todas clases”, Sobre la conducta del entendimiento y otros ensayos póstumos (Of the Conduct of theUnderstanding, en Posthumos Works, 1706), ed. bilingüe de A. M. Lorenzo, Anthropos, Barcelona, 1992, p. 16-17.

41 An Essay concerning Humane Understanding (1690). Citaré por la edición y traducción de S. Rabade y E. García,Editora Nacional, Madrid, 1980.

42 Ensayo sobre el conocimiento humano, op. cit., p. 961.

43 Pues “en nada se quedan cortos sobre las naciones más florecientes y políticas”, op. cit., p. 962.

44 Op. cit., p. 963.

45 Sobre la conducta del entendimiento, op. cit., p. 9.

46 Sobre la conducta del entendimiento, op. cit., p. 25.

47 Op. cit., p. 43.

ejercicio nos hacen serlo (y de hecho, somos así nada más que porquela industria y la aplicación nos ha llevado a serlo)”.48 Dado que ciertosseres humanos no cultivan la ciencia y la técnica al modo europeo, notienen posibilidad de desarrollar comportamientos racionales y untrabajo que permita optimizar la abundancia de la naturaleza, lo quehoy llamaríamos, la riqueza de la biodiversidad. Al no representar ycultivar la verdadera racionalidad humana, el uso y apropiación de losrecursos naturales debe privilegiar a los sujetos que culturalmenteestán capacitados para obtener utilidades de ellos, y así beneficiar al“género humano”. Quiénes son entonces los que deben disfrutar de lasprerrogativas del género humano: la parte civilizada de humanidad.

2.3. La reducción cultural del trabajo humano específico

Lo anterior, es decir, la reducción interesada de lo que debecorresponder a la humanidad a una parte de la misma, trae causa, deotra reducción, como ya se ha podido entrever. Se trata de una reduccióncultural de la capacidad tecnológica del trabajo humano,49 que desde unaperspectiva no etnocéntrica, al contrario de Locke, sí sería común a todala especie humana. El trabajo humano como actividad humanaespecífica es una actividad que supone la transformación y el control delmedio en función de las necesidades de producción y reproducción de lavida humana de cualquier sujeto humano, ya sea que esté inserto ensociedades tradicionales o en sociedades tecnológicamente avanzadas, ysin el cual ninguna sociedad sobrevive. Este trabajo humano opera através de la técnica, que podemos conceptuar como “manejo derealidades”;50 pues bien, ese trabajo humano como transformación y

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48 Op. cit., p. 39.

49 Sobre una visión sobre el trabajo humano, como la que adoptamos aquí, radicalmente diversa a la lockeana oliberal, véase Ellacuría, Ignacio (1990), Filosofía de la realidad histórica, Trotta, Madrid, 1991, pp.78 y ss.

50 Como destaca Ellacuría, siguiendo el análisis de la praxis humana de X. Zubiri, que entiendo supera el reduccionismoetnocéntrico de asimilar toda posibilidad de técnica humana como “técnica avanzada”; cualquier comportamientohumano tiene habérselas con el medio para que siga siendo biológicamente viable, en esa relación el ser humano “vaarbitrando modos de sobrevivir, haciendo lo que en cada momento su grado de inteligencia le permite hacer.Inteligencia de la realidad e instrumentalización desde la realidad y para la realidad se dan así la mano. Desde esaprimaria necesidad el hombre se lanza a modificar las cosas; las modifica para seguir viviendo, para poseerse a símismo en la modificación misma de las cosas” (“El trabajo humano como técnica”, texto del libro inédito Persona yComunidad [1975], edición de J. A. Senent y J. J. Castellón, publicado en revista Isidorianum, nº 19, 2001, p. 75).El hacer técnico, nace para que la propia vida siga siendo viable. En este sentido, la técnica es el modo específicodel trabajo humano: el trabajo es formalmente técnico. Por ello, “trabajo y humanidad son, en principio, dosrealidades correlativas; no en vano el descubrimiento arqueológico de instrumentos de trabajo es prueba inequívocade la presencia del hombre. El trabajo es verdaderamente trabajo cuando es ación transformadora por parte del animalde realidades, que lleva a la dominación del medio y con ello a la liberación de la vida humana” (Ib., p. 78).

Ahora bien, la “dominación” o control del medio para asegurar la sobrevivencia biológica, como motor del trabajotécnico de cualquier sociedad humana, se puede operar de diversas formas en cada contexto cultural. Hay dos polosextremos para ello, como señalamos en este trabajo, el control “autocentrado”, que tendecialmente propone al serhumano no sólo como “ser superior”, sino como un ser que está más allá de las condiciones de sobrevivencia que lepermite el medio, y que por ello, puede desplegar su actividad incluso destruyendo el medio natural en el opera; oel control “descentrado” que, más allá de la conceptuación que se tenga de sí mismo, entiende que no puede hacercompatible la subsistencia humana con el irrespeto del medio natural, en última instancia, con su aniquilación.

control del medio en función de las necesidades de sobrevivencia, através de la técnica humana como manejo de las realidades con las quenos enfrentamos en el medio, es circunscrito o reducido, dentro de lasociedad burguesa, a la acción tecnológica propia de su formacióncultural, como nos indican los anteriores pasajes.

A partir de ahí, podemos entender porqué, por ejemplo, un tipoparticular de arroz que se cultiva en una región de la India, que hasido generado mediante la selección y control de semillas a lo largo desiglos, en un proceso histórico-social muy complejo y largo, no esconsiderado como “producto humano”, sino solo como “recursonatural”, por cuanto se argumenta que no ha sido sacado de sucondición natural, por ende, pertenece a todos hasta que no seadescifrado genéticamente y patentada su secuencia. Cuando sedescifra y manipula genéticamente desarrollando con ello una accióntecnológicamente avanzada sobre ese producto; entonces, ello daderecho a su explotación comercial privativa, en manos de lostitulares legales que tendrían la licencia de uso y explotacióncomercial de ese producto, con el derecho de excluir de ese uso aquien no pague el canon correspondiente, incluidas aquellascomunidades que secularmente ha utilizado y producido eseproducto. Pero esto no es considerado legalmente ningún robo. ¿Porqué no es un robo? Porque es un “recurso natural” y las empresasbiotecnológicas no hacen sino -en sentido lockeano- servirse de lo quela naturaleza da gratuitamente. Por tanto, hay una invisibilización dela acción tecnológica propia de las sociedades tradicionales y deltrabajo humano de esas sociedades.

En este sentido, lo que importa no es el trabajo socialmenteaplicado a un producto ni la técnica tradicional empleada para suobtención, pues ésta no se considera una actividad humanaespecífica porque no deja ninguna huella de propiedad sobre ella. Encambio, ¿cómo se apropia el hombre de estos bienes en el esquemaliberal clásico, en el esquema lockeano? Mediante el trabajo es laactividad por la cual lo saca del estado común de naturaleza, pero novale cualquier trabajo para poner la huella de propiedad sobre latierra y sacar las utilidades exigibles. Es interesante lo que diceLocke, hablando de la sociedad inglesa y de los pueblos europeos: -”un acre de tierra que aquí produce veinte bushels de trigo, y otroque, en América, con la misma labranza, produjese lo mismo, son sinduda alguna de un intrínseco valor natural idéntico. Y, sin embargo,el beneficio que recibe la humanidad del primero tiene un valor de 5libras anuales, mientras que el segundo ni siquiera valdría un

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penique si todo el beneficio que un indio recibiese de él fuese valoradoy vendido aquí; podría decirse con verdad que no valdría ni unamilésima parte” (§ 43). Y ello, porque es el trabajo lo que pone en latierra gran parte de su valor. Pero es la tecnología aplicada lo que davalor y no el simple trabajo, que no se considera una transformaciónmaterial sino como creación técnica aplicada, y los portadores de latécnica son únicamente los europeos. Por ello, señala que haymuchos trabajos, pero sobretodo hay que considerar el de quienesfabricaron el arado, el de quienes construyeron cualquiera de losnumerosísimos utensilios aplicados a la producción (cf. §43); portanto, no importa el valor natural de las cosas, ni ciertasintervenciones humanas sobre las mismas, sino la tecnología,aplicada o implementada en ellas.

Ahora bien, todo se debe al “avance individual”, no hay ningúnproceso de enriquecimiento social a partir del cual se generan yposibilitan ciertas innovaciones, que en realidad se plantean comoabsolutas novedades y no se entienden a partir de un cierto estadodel conocimiento sino como una suerte de genialidad aislada, que nose explica cultural ni socialmente por eso, no hay “innovación social”sino “inventores”: “Aquel que inventó el primero la imprenta, el quedescubrió el uso del compás, o hizo público las virtudes y el usoadecuado de la quinina, han contribuido más a la propagación delconocimiento, a la provisión y aumento de útiles, y a la salvación delos hombres que quienes construyeron colegios, casas de labor yhospitales”.51 A partir de ese reconocimiento, la humanidad debetanto a los “inventores”, aunque éstos no le deban nada a lahumanidad, que ese trabajo supremo debe ser recompensado, comopor ejemplo, asegura el derecho de propiedad sobre las invenciones,es decir, las patentes.52

Este prejuicio etnocéntrico late también Convenio de Río,reconociendo que la “tecnología incluye la biotecnología” (según lasdefiniciones legales que establece el art. 2 del Convenio): Pero enrealidad, entiende toda “tecnología” sub especie de biotecnología.53

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51 Ensayo sobre el entendimiento humano, op. cit., p. 962.

52 Así por ejemplo, como analiza Germán Velásquez, la propia lógica jurídica del sistema ADPIC, fuerza que laspatentes con una duración mínima de 20 años se aplique sobre los productos de las industrias farmacéuticasprivadas para que sigan investigando. Se argumenta el coste de la investigación, que será financiada por laspatentes, que al garantizar a las empresas un monopolio, les permite mantener precios elevados. Ahora bien “estosprecios impiden que la mayoría de las personas que necesitan estos nuevos productos puedan procurárselos. Si bienhay que preservar la investigación y el desarrollo de nuevos medicamentos, también es esencial que éstos puedansalvar vidas a partir del momento de su descubrimiento y no veinte años después... excepto que se perpetúe laabsurda situación actual, en la cual millones de personas mueren por falta de medicamentos, que sin embargoexisten y que la sociedad podría poner al alcance de todos” (“El medicamento como bien público mundial”, Lemonde diplomatique, ed. española, n.º 93, julio de 2003, p. 25).

53 La definición legal que da de la misma es “toda aplicación tecnológica que utilice sistemas biológicos y organismosvivos o sus derivados para la creación o modificación de productos o procesos para usos específicos” (art. 2).

Que, aunque esta en realidad es una actividad técnica que tiene milesde años de historia humana detrás54, sólo una parte de la humanidad,la parte desarrollada (“biotecnología moderna”), según la divisiónsocial de la humanidad, es la que practica auténtica tecnología55.

Por ello, incluso en el propio Convenio de Río se mantiene esedesequilibrio cultural de partida. Aunque se enuncia esa exigencia deequidad en términos de aparente reciprocidad de todas las partessociales implicadas, tanto los que poseen los “conocimientostradicionales” (que según la división social de la humanidad propia delos instrumentos internacionales de las últimas décadas, se hallaríanen los países atrasados), como los que producen las “innovaciones”sobre los recursos biológicos (que provendrían de los paísesdesarrollados), sin embargo, no hay ninguna equidad aplicable a lasdos partes. Dada la superioridad de la segunda, de la innovaciónsobre lo tradicional, no se puede aplicar el mismo régimen jurídico.Sobre los recursos de genéticos que son reconocidos y empleados porel conocimiento tradicional, se aplica el principio de la libreapropiación, mientras que sobre las innovaciones, debe regir unrégimen de protección de la propiedad como es el sistema depatentes. Si lo tradicional versa sobre lo natural, la innovación es unartificio sobre lo natural56 y por tanto es un “producto humano”, dedonde nace su carácter distintivo. Por eso se hablará después en elconvenio de la transferencia de tecnología de los segundos sobre losprimeros; lo cual es altamente cínico, o en el mejor de los casos,

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54 Hay muchas definiciones para describir la biotecnología. Como se señala en artículo sobre “biotecnologíamoderna” (http//:www.infoagro.com/semillas_vivero/semillas/biotecnología.asp, 2003). En términos generalesbiotecnología es el uso de organismos vivos o de compuestos obtenidos de organismos vivos para obtenerproductos de valor para el hombre. Como tal, la biotecnología ha sido utilizada por desde los comienzos de lahistoria en actividades tales como la preparación del pan y de bebidas alcohólicas o el mejoramiento de cultivosy de animales domésticos. Históricamente, biotecnología implicaba el uso de organismos para realizar una tarea ofunción. Si se acepta esta definición, la biotecnología ha estado presente por mucho tiempo. Procesos como laproducción de cerveza, vino, queso y yogurt implican el uso de bacterias o levaduras con el fin de convertir unproducto natural como leche o jugo de uvas, en un producto de fermentación más apetecible como el yogurt o elvino. Tradicionalmente la biotecnología tiene muchas aplicaciones. Un ejemplo sencillo es el compostaje, el cualaumenta la fertilidad del suelo permitiendo que microorganismos del suelo descompongan residuos orgánicos.

La biotecnología moderna está compuesta por una variedad de técnicas derivadas de la investigación en biologíacelular y molecular, las cuales pueden ser utilizadas en cualquier industria que utilice microorganismos o célulasvegetales y animales. Una definición más exacta y específica de la biotecnología “moderna” es “la aplicacióncomercial de organismos vivos o sus productos, la cual involucra la manipulación deliberada de sus moléculas deDNA. Esta definición implica una serie de desarrollos en técnicas de laboratorio que, durante las últimas décadas,han sido responsables del tremendo interés científico y comercial en biotecnología, la creación de nuevas empresasy la reorientación de investigaciones y de inversiones en compañías ya establecidas y en Universidades (cf. ib.)

55 Cf. V. Shiva, Biopitarería, p. 74-75.

56 David Hume también se hace cuestión de la distinción entre lo natural y lo artificial, lo cual se diferencia paraHume en que aunque la especie humana es de suyo es inventiva, aún relativos a productos o hallazgos humanos,no siempre esa actividad está diferencia del mero hallazgo de lo obvio, que por ello sigue siendo “natural”: “utilizola palabra natural en cuanto exclusivamente opuesta a artificial. Pero en otro sentido de la palabra, así como nohay principio de la mente humana que sea más natural que el sentimiento de la virtud, del mismo modo no hayvirtud más natural que la justicia. La humanidad es una especie inventiva; y cuando una invención es obvia yabsolutamente necesaria puede decirse con propiedad que es natural, igual que lo es cualquier cosa procedentedirectamente de principios originarios, sin intervención de pensamiento o reflexión” (Tratado de la naturalezahumana, Editora Nacional, Madrid, 1977, p. 708).

ideológico. Los primeros no tienen “tecnología”, después de que se leestá expropiando sus recursos biológicos con la excusa de las“innovaciones” sobre los mismos; los segundos deben ser solidarioscon los primeros y ayudarles con la trasferencia de tecnología. Perocomo es propiamente un deber de solidaridad más de naturaleza éticaque jurídica, este no obsta a que lo que realmente se estétransfiriendo sobre los primeros es la carga jurídica del sistema depatentes sobre esos recursos (cf. art. 16.2)57, que les devuelve“patentados” los recursos que ellos venían libremente utilizando ensus sistemas de economía tradicional.

Sin intervención del pensamiento y la reflexión no hay artificio, ydonde no lo hay, todo es simplemente “natural”. Podría aplicarse estadistinción al problema de la técnica y la división de la humanidad. Loshallazgos o “invenciones” de las sociedades tradicionales, desde un puntode vista etnocéntrico, por obvias e irreflexivas, no dejan de recaer sobreproductos naturales que no “sacados de su condición natural”, y no ellono ponen en ellos “ninguna huella de propiedad”. En cambio, los“numerosísimos utensilios” que el desarrollo tecnológico de la partecivilizada de la humanidad aplica sobre los recursos naturales deja enellos la huella de la propiedad.

2.4. La reducción mercantilista de la funcionalidadeconómica de los bienes naturales

La satisfacción de necesidades mediante la utilización de losbienes naturales, vinculada con el llamado valor de uso de los bienes,es algo que Locke al comienzo de su planteamiento reconoce, sinembargo, de ese reconocimiento consigue llegar a un punto en quetoda la funcionalidad económica para la vida humana en sociedad delos bienes naturales queda subsumida únicamente en el precio comovalor de cambio. Reducida la función social de un bien a su precio, ycon ello a la carestía que alcance, se olvida la lógica del sustento dela vida que estaba en el origen de la apropiación originaria.

En este sentido, hablamos de una reducción mercantilista. Enel esquema lockeano, para que los bienes naturales sean socialmenteútiles, no expuestos o dejados para la avaricia de las sociedadestradicionales, tienen que ser apropiados privativamente y

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57 El art. 16 intitulado Acceso a la tecnología y transferencia de tecnología, establece en su párrafo 2: El acceso delos países en desarrollo a la tecnología y la transferencia de tecnología a esos países, a que se refiere el párrafo1, se asegurará y/o facilitará en condiciones justas y en los términos más favorables, incluidas las condicionespreferenciales y concesionarias que se establezcan de común acuerdo (...). En el caso de tecnología sujeta apatentes y otros derechos de propiedad intelectual, el acceso a esa tecnología y su transferencia se asegurarán encondiciones que tengan en cuenta la protección adecuada y eficaz de los derechos de propiedad intelectual y seancompatibles con ella (...).

rentabilizados, o “puestos en valor”, mediante el uso del dinero; asíse logra, según él, disponerlos para el beneficio común. Porque el usodel dinero en la gestión de estos “recursos naturales” y en laapropiación privativa es lo que permite la “utilidad” para el génerohumano. Dice Locke: -”Al principio la mayoría de los hombres secontentaban con lo que la desnuda naturaleza les ofrecía parasatisfacer sus necesidades, sin embargo, en algunas partes delmundo, donde mediante el uso del dinero habían hecho que la tierraescaseara y que por lo tanto, tuviese algún valor, regularon laspropiedades de los individuos de su sociedad” (§45). Entonces, hastaque no se regulan las propiedades de los individuos en la sociedad, yhasta que no se mercantilizan esas propiedades y se vuelvenintercambiables por dinero, no hay una utilidad para el génerohumano. Por eso se habla de una reducción mercantilista.

Esta reducción opera mediante una invisibilización y pérdidadel sentido de la función natural de la tierra, y por ende, de losrecursos. En el fondo, se trata de que la tierra y los recursosnaturales son casi prescindibles en función del trabajo abstracto. Eltrabajo abstracto, es decir, el trabajo tecnológicamente avanzado,pretende reemplazar las fuentes naturales, por eso llega a decirLocke, ya en el siglo XVII, que “la tierra que proporciona las materiasprimas es de escaso valor, si es que tiene alguno” (§42). Enconsecuencia, hay una desconexión y una pérdida del sentido delvalor de uso y de satisfacción de necesidades a través de esos“recursos naturales”, que resultan ser los menos valiosos, y a su vez,de la función que tiene toda la naturaleza en el sustento de la vida.Cuando se reduce toda la relación con la naturaleza a un purocálculo de utilidad, se invisibiliza cualquier otra funcionalidad de lamisma, y se entiende que si no se instrumentaliza mediante lamercantilización; por ello, nos dirá que si ese no es el modo de actuar,“el beneficio que de ella se deriva es prácticamente nulo” (cf §42).

2.5. Pérdida de la interdependencia o de la racionalidadreproductiva

Hay otro supuesto, en todo este esquema, que es la pérdida dela racionalidad reproductiva.58 La racionalidad reproductiva esaquella por la cual se mantiene unida, en relación deinterdependencia, la acción humana con el medio natural. Es algo

58 Sobre la racionalidad reproductiva, véase F. Hinkelammert, Crítica de la razón utópica, Desclée de Brouwer, Bilbao,2ª ed. ampliada y revisada, 2002; F. Hinkelammert y H. Mora, Coordinación social de trabajo, mercado y reproducciónde la vida humana, DEI, San José, 2002.

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que las sociedades tradicionales saben bien y que expresan en supropia sabiduría popular. Hay un discurso famoso del jefe Seatle, elindio norteamericano que decía: “Nosotros sabemos esto: la tierra nopertenece al hombre, el hombre pertenece a la tierra, nosotrossabemos esto: todas las cosas están relacionadas, como la sangre queune a la familia, todo lo que suceda a la tierra sucede a los hijos deésta, lo que él hace a este tejido se lo hace a sí mismo”. Pero unaposición de este tipo está fuera de la visión de esta apropiacióntecnológica de los “recursos naturales”, conforme a la cual sepretende que podemos destruir la naturaleza puesto que ya hemosconseguido descifrar la información genética que contenía. Con estainformación, teóricamente, podremos reproducir el mundotecnológicamente y la vida natural. Asimismo, se puede agredir a lanaturaleza porque el ser humano está más allá de la naturaleza, ycree que si destruye este tejido no se destruye a sí mismo, lo que espropio de una racionalidad que prescinde de las condiciones desobrevivencia. Esto ayuda a explicar porque cuesta tanto trabajo alas sociedades tradicionales asumir o adoptar la mercantilización desus recursos biológicos y la lógica de la inscripción registral de estos,porque en el fondo es una lógica que desvincula las cosas de su valorde uso y abusando de ellas solo las considera en tanto que mercancíaintercambiable. El derecho de propiedad, lo sabemos desde elderecho romano, es el derecho de disfrute, uso y abuso de las cosasposeídas (ius fruendi, utendi et abutendi); entonces, si se destruyenlas cosas poseídas, supuestamente no destruimos al poseedor. Encambio, las sociedades tradicionales, en virtud de su visión de unaracionalidad que nos prescinde de la interdependencia, saben que si norespetamos las cosas poseídas no respetamos tampoco al poseedor.

Son todas estas reducciones y escisiones examinadas las quejustifican los mecanismos legales de patentes dentro de lassociedades tecnológicamente avanzadas, las cuales tienen una matrizcultural que justifica y “dota de sentido” a las acciones; aunque desdeun contexto de racionalidad más complejo, que pretende enterder laracionalidad humana desde un punto intercultural y no únicamenteetnocéntrico, esos supuestos elevados a único criterio de actuación yregulación resultan disfuncionales e insostenibles para el conjunto dela humanidad.

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3. EL PROBLEMA DE LA UTOPÍA EN LA SOCIEDAD DELCONOCIMIENTO: EL CASO DE LA BIOTECNOLOGÍAFRENTE A LA BIODIVERSIDAD

La dimensión utópica de la acción tecnológica moderna suelepasar desapercibida tanto para sus actores como la sociedad engeneral. El desarrollo del creciente poder de la técnica moderna sobreel mundo parece no reconocer límites. Esto se presenta como unhecho y no como una proyección ideal. La esencia de la misma podríadecirse que radica en su continua aspiración a superar los obstáculosfísico-naturales. El control del cuerpo, del espacio y recursosnaturales, de los propios desastres sociales59 y ambientales quegenera el propio desarrollo moderno se confía al progresivo avancetecnocientífico que permita corregir las propias disfunciones que vagenerando y superar los límites que se van encontrando. En estesentido, la técnica moderna parece, por fin, que es la escalera que nospermitirá llegar al cielo de los anhelos de perfección humana. Sinembargo, a partir de la imagen de cuasiomnipotencia que sedesprende hoy de la tecnología, y particularmente de la biotecnología,pueden generarse prácticas que no parecen conducirnos a ningúncielo sino que pueden poner en peligro tanto la biodiversidad en elplaneta como la diversidad cultural de la humanidad.

3.1. El nihilismo de la información frente a la naturaleza

Hemos señalado antes el interés de las empresas de biotecnologíaen emplear los conocimientos tradicionales y recursos biológicos deotros pueblos tanto para la producción agroindustrial como para laproducción farmacéutica. Quizá sea este el último asalto delcolonialismo occidental sobre estos pueblos, pues tras la obtención de

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59 Es la provocadora propuesta de Peter Sloterdijk, frente al para él, stablishmen conservador y bienpensante de laacademia anclada en posiciones humanistas superables (de ahí su polémica con J. Habermas). Dada la incapacidadde la educación, del “pastoreo”, para la evitación de fenómenos socialmente indeseables, se plantea el retoprogresista de acudir al potencial tecnológico para reconfigurar la naturaleza humana, indomable por mediostradicionales. “También en la cultura actual está teniendo lugar la lucha de titanes entre los impulsosdomesticadores y los embrutecedores y entre sus medios respectivos. Y ya serían sorprendentes unos éxitosdomesticadores grandes, a la vista de este proceso civilizador en el que está avanzando, de forma según pareceimparable, una ola de desenfreno sin igual (Remito en este punto a la ola de violencia que irrumpe estos momentosen las escuelas de todo el mundo occidental, y especialmente en EE. UU, donde los profesores empiezan a instalarsistemas de protección contra los alumnos)”. Frente a ese escenario, “el desarrollo a largo plazo también conduciráa una reforma genética de las propiedades del género; si se abre paso a una futura antropotécnica orientada a laplanificación explícita de las características; o si se podrá realizar y extender por todo el género humano el pasodel fatalismo natal al nacimiento opcional y a la selección prenatal” (Normas para el parque humano. Una respuestaa la Carta sobre el humanismo de Heidegger, trad. de T. Rocha, Siruela, Madrid, 2000, p. 72-73). La posición correctaante las opciones tecnológicas, ya está prefigurada por el autor, o elegimos entre “fatalismo” o “planificaciónexplícita”: Lo “verdaderamente” humano sería superar ese supuesto “fatalismo”.

sus conocimientos ya no parece quedar ninguna razón pragmática pararespetarlos. Ni siquiera parece haber buenas razones para conservar lanaturaleza, una vez que se hayan descodificado sus secretos por labiotecnología. Es el nuevo utopismo de la sociedad del conocimientoque promete la superación de los límites físicos y naturales de lacondición humana. El conocimiento puede llegar a sustituir a lanaturaleza como parecen indicarnos los avances de la biotecnología, yel siguiente paso podría ser la sustitución de las propias poblacionesuna vez identificadas sus diferencias biológicas por la propiadisponibilidad de su información genética.

Entiendo que la cuestión de fondo a enfrentar es una ilusiónutópica60, que se puede derivar de la creciente capacidad de la técnicafrente a la naturaleza, y consiste en que se puede reemplazartécnicamente la naturaleza por su conocimiento.

Descifradas genéticamente las diversas especies de flora yfauna, éstas pueden ser destruidas o eliminadas de su medio natural,de suerte que, por ejemplo, como en el caso del lobo de Tasmania(lobo marsupial, que desapareció a principios del siglo XX y que se haintentado reproducir), desaparece la razón por la que las especies ylos hábitats deber ser conservados. Habiendo obtenido algunasmuestras biológicas, con esa base podría conservarse la informaciónbiológica suficiente, y con ello, llegar incluso a reproducirlas. Portanto, no es necesario conservar ni el lobo de Tasmania, ni lasplantas ni ninguna especie natural, puesto que si podemos descifrarsu información genética, podremos después hipotéticamente, llegar areproducirlas. Es decir, se puede pretender que para producir vida,en sentido biológico, no se necesita partir de una vida previa, comohasta ahora.

Ese progresivo poder tecnológico, puede generar una ilusiónutópica suicida, en el sentido de creer que las fuentes naturales sobrelas cuales se sostiene la vida en la tierra pueden ser sustituidas porla técnica avanzada. En este sentido, desde la ilusión de que lanaturaleza puede ser desplazada por el conocimiento, y consiguientepérdida del sentido de interdependencia natural; también se puedegenerar la misma ilusión respecto de lo específicamente humano.

Dentro de esta lógica, hay un hecho que tiene a mi juicio supropio valor simbólico. Las empresas biotecnológicas cuando patentanla información biológica obtenida (por diversos medios) no lo hacen

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60 Entiendo por esta ilusión, una pretensión no justificada que distorsiona la capacidad del ser humano de actuar sobreel medio, incluso sobre sí mismo, y que pone en peligro la supervivencia del actor, o en su caso extremo, de lahumanidad; y que surge de la confianza ciega en ciertas estrategias para alcanzar ideales de perfección postuladospor la mente humana.

como “descubrimientos” sino como “invenciones” y más allá de la merautilidad jurídica de esa diversa denominación está el hecho de que susautores no se sienten “descubridores”, como quienes señalan algonunca visto por el ojo humano. Aquí estos descubridores se encuentrano se topan con algo preexistente de lo que dan cuenta a la sociedadhumana, y por tanto no crean aquello que encuentran. Por el contrario,la “invención” remite míticamente a la idea de la creación ex nihilo, dealgo nuevo para el ser humano, y que como tal no preexistía, y existeen el momento en que sus inventores le dan vida.61 El inventor es Señorde su criatura, y por tanto está más allá de su existencia y de loscondicionantes de su existencia, no así el descubridor.

El despliegue de la acción biotecnológica frente a la biodiversidadimplica lo que podríamos denominar un utopismo de la utilidad, quemaximizado puede llegar a la disolución de la propia realidad62. Por ello,tras la reducción de la realidad biológica y humana por medio de sutransposición a códigos de información disponibles por el progresivodesarrollo de la biotecnología, se esconde lo que podríamos llamar unnihilismo de la información (que Nietzsche no identificó, aunque es unaforma suprema de “voluntad de poder”) tras el cual la realidad materialy concreta de cada uno de los miembros de cualquier especie sería purapobreza una vez disponible el conocimiento sobre las fuentes de la vida.A partir de la progresiva capacidad tecnológica, en sí mismas, esasformas vivas no serían sino simples ejemplos de seres que, “enprincipio”,63 podrían reproducirse indefinidamente, y por tanto noimprescindibles científicamente.64 Retomando la cita del físicoRutherford, lo cualitativo no sería sino algo reducible65 a lo cuantitativo(Qualitative is nothing but poor quantitative),66 lo cual expresa la guía deacción de las ciencias empíricas, que también se proyecta en la acción

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61 Aunque sea realmente esa “invención” fruto de los generado por la naturaleza o de lo generado por la intervenciónhumana sobre la misma a los largo de siglos; y ello, mediante formas “transgénicas” que lo que hacen es modificaro recombinar los materiales existentes, para poner la huella de su “innovación”. Como señala V. Shiva, se hainventado una nueva terminología, la “invenciones biotecnológicas”, para redefinir la biodiversidad y que laspatentes sobre la vida no resulten controvertidas, en realidad, los científicos pueden recombinar desordenadamente“genes de diferentes especies en los laboratorios de la universidades y de lsa compañías, no “crean” el organismoque a continuación patentan” (Biopiratería, op. cit., p. 40) Sin embargo, como indica Ron James, como modo deproceder de esta tecnología “Dejamos en el gen algunos trozos de este ADN al azar, más o menos como Dios lohabía dispuesto, con lo que conseguimos un buen rendimiento”. A la hora de reclamar derechos de patentes, sinembargo, el científico se convierte en Dios, el creador del organismo patentado (cf. V. Shiva, Ibid., p. 41).

62 Cf. Hinkelammert, F., Determinismo, caos, sujeto. El mapa del emperador, DEI, San José, 1996, pp. 77-79.

63 Ese es el lenguaje que se suele emplear en la actividad tecnocientífica, y que en realidad no expresa ningún juiciode hecho, sino una proyección utópica (ver CRU).

64 Biopiracy p. 45-47.

65 Como ha señalado P. Davies “el motor principal del pensamiento científico del mundo occidental en los últimos 350años ha sido el reduccionismo. La misma palabra “análisis” ilustra adecuadamente el hábito científico dedescomponer un problema para resolverlo. Sin embargo, existen algunos problemas que sólo pueden ser resueltosjuntando sus distintas piezas (son de naturaleza holística o sintética)” (Dios y la nueva física, Salvat, Barcelona,1998, pp. 72-73).

66 Otro gran científico empírico, Max Planck señalaba: “Wirklich ist, was messbar ist” (lo real es lo que se puedemedir) (citas tomadas de Hinkelammert, F., Determinismo, caos, sujeto. Op. cit., p. 37).

biotecnológica que podemos definir como el conocimiento de lasestructuras cuantitativas por medio de las cuales podrían reproducirseo utilizarse las diversas formas “cualitativas” de vida. Por ello el afán,por ejemplo, de las empresas biotecnológicas por identificar ysecuenciar nuevas especies de plantas exóticas antes de la destrucciónfinal de los bosques tropicales, que según avanzan las fechas seesperaría para las próximas décadas del siglo XXI. La accióndepredadora sobre estas fuentes de la vida en el planeta, se acompañadel intento “desesperado” de descubrir y retener la informaciónsuficiente sobre esas especies antes de su desaparición. Esta acciónbiotecnológica es perfectamente funcional a la destrucción de lasfuentes naturales de la vida, y además “salvaría” ese patrimonio de lahumanidad con lo que hace irrelevante la conservación de esosrecursos. Para este utopismo científico, esta conservación parece frutode nostálgicos del pasado y de formas culturales atrasadas quedependen de la conservación del medio ambiente para susostenimiento. Frente a ellos se alzaría por fin la omnipotencia de latécnica humana más elevada que escapa a los condicionantes físico-naturales que ha sujetado a la humanidad en toda su historia, y quefinalmente colocaría al género humano como Señor del medio.

Tras esta ilusión utópica señalada que está detrás de muchasprácticas actuales, se esconde una lógica que podemos denominar como“despotismo67 tecnocientífico”. Si la ley del déspota es tal que noreconoce límites a su propio poder, sino su propia voluntad como únicareferencia, no puede reconocer ninguna frontera “insuperable”, ningúnlímite que trascienda su propia acción. Mientras más se proyecta elfantasma de la omnisciencia68 y de la omnipotencia humana sobre elmedio y sobre la propia condición humana, con más valor y decisión sepueden aniquilar las fuentes de la vida natural y humana sobre nuestroplaneta dada su radical irrelevancia frente al propio poder sobre ellas.

Esta actividad, descrita en términos de aproximación al idealutópico señalado, es fácilmente criticable en su debilidad. Una de las

67 En la formulación lockeana el despota es el poder absoluto que gobierna “sin leyes establecidas” (cf. SegundoTratado del Gobierno Civil, op. cit, §137 ).

68 Sydney Brenner, premio nobel de medicina de 1992, expresa esta ilusión de omnisciencia a propósito del ProyectoGenoma Humano: “Todo el mundo creyó que una vez que conociéramos la secuencia completa del genomaentenderíamos todo, pero no entendemos básicamente nada. El problema principal sigue ahí” (entrevista en el diarioEl País, 18 de Septiembre, p. 30). Esa ilusión por tener un conocimiento perfecto, y por consiguiente un dominioperfecto está implícita en el propio proyecto científico. Ahora bien, el científico, en este caso, no es ingenuo respectoa esta utopía del conocimiento perfecto y control perfecto del cuerpo humano. A la pregunta siguiente a esta respuestacontesta (P: ¿Usted sabía que esto iba a pasar?): “Claro que sí, claro que sí. Cada movimiento tiene que tener suspublicistas para venderlo(...) Lo que pasa es que ahora hay una conciencia mayor en los países desarrollados sobre lasalud y la posibilidad de vivir más años. Hay una gran preocupación por la calidad de vida y la gente es más conscientede las repercusiones de las ciencias de la vida en su salud individual” (Ib.). Sin embargo, no es sólo cuestión de“marketing”, de presentación social o de la forma de vender el proyecto, sino que es algo implícito en su propiodesarrollo el alcanzar ese conocimiento perfecto, y que por ello, permite tal presentación. Cuando habla de que “todoel mundo creyó”, también están implicados los propios científicos, y no sólo el público ansioso de nuevas promesas.

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críticas más comunes es que, ante la pérdida masiva de biodiversidad,apenas da tiempo a que unas pocas especies sean analizadas,identificadas, y en su caso, secuenciadas. Muchas otras caen, o hancaído en los últimos años en un proceso de irreversible pérdida. Nisiquiera se puede cuantificar lo perdido. Ahora bien, esta crítica, apesar de su aparente realismo, también se inscribe en la misma ilusiónutópica. ¿Acaso si fueran secuenciadas todas las especies antes de sudestrucción, estarían con ello “salvadas”? ¿la variabilidad y laindividualidad genética es reconducible a un patrón único de genomapor especie?, ¿podríamos permitirnos destruir sus hábitats en el quepueden vivir y reproducirse?, ¿son separables las especies de sushábitats, y los hábitats de sus especies?, en última instancia, ¿elconocimiento de las estructuras del mundo, puede sustituir al mundo?

3.2. La paradoja de la utilidad y la racionalidad científica

Desde la ilusión de la dominación del mundo por elconocimiento, nos encontramos con la paradoja de la utilidad. Elconocimiento socialmente aplicado puede tratar de controlar el medioen función de la utilidad para la vida humana en sociedad. Si semaximiza este criterio de utilidad frente al medio y frente a la propiacondición humana; estos aparecen como res extensa frente al que sealza el sujeto de los procesos tecnocientíficos como algo contradistintode lo material, la res cogitans que ve al mundo, y a su propiacorporeidad, y lo cuantifica y manipula en función de sus cálculos deutilidad como si estuviera más allá de su subjetividad.69 Si desaparecierael mundo, “no pasaría nada”. El biólogo Santiago Castroviejo, nos69 Esta lógica dualista, reduccionista y manipuladora, atraviesa tanto la filosofía como la ciencia moderna. Tras ella

está el desencatamiento del mundo, la pérdida del sentido de valor intrínseco de lo natural y material en funciónde la utilidad relativa para el sujeto, y que permite tratar toda la naturaleza como un gran laboratorio sobre el queexperimentar, incluso viviseccionar, para obtener algún conocimiento, y en su caso, alguna utilidad. Frente almundo, se alza un sujeto, que en el fondo no puede saber si realmente pertenece al mundo. Puede dudar de todo,incluso de la existencia del mundo que observa sus sentidos. Separada la subjetividad interior (el alma), de laobjetividad exterior (los cuerpos, su cuerpo), ya no podrá ser parte del mundo. El maestro de la duda metódica,Descartes, quien expone magistralmente la lógica cultural de la ciencia empírica moderna, explica en qué consisteeste sujeto: “¿qué soy entonces? Una cosa que piensa. Y ¿qué es una que piensa? Es una cosa que duda, queentiende, que afirma, que niega, que quiere, que no quiere, que imagina, y que también siente” (Meditaciones).Este sujeto de las operaciones, carece de suyo de materialidad: “el alma, en virtud de la cual yo soy lo que soy, esenteramente distinta del cuerpo” (Discurso del método); “puesto que por una parte tengo una idea clara y distintade mí mismo, según la cual soy algo que piensa y no extenso y por otra parte, tengo una idea distinta del cuerpo,según la cual éste es una cosa extensa, que no piensa, resulta cierto que yo, es decir, mi alma, por la cual soy loque soy, es entera y verdaderamente distinta de mi cuerpo, pudiendo ser y existir sin el cuerpo” (Meditaciones, VI).El cuerpo humano, como el de los animales y el resto de cuerpos físicos, es una suerte de máquina cuyofuncionamiento mecánico podrá ser descrito por la ciencia. Pero el sujeto de la ciencia que es el ser humano,“puede ser y existir sin el cuerpo”. Por ello, puede tratar de conocerlo y manipularlo, incluso hasta su destrucciónporque está más allá del mundo. Con ello, se producirá una fuga mundi, que trae causa de la misma antropologíahelenizante que iluminaba a San Agustín cuando identifica la verdadera naturaleza humana con el cuerpo espiritualque se opone esencialmente al cuerpo carnal, reinterpretando con ello, todo el lugar central que el cuerpo y laatención a sus necesidades tenía para la vida humana en la tradición cristiana originaria. La pérdida de sentido delo corporal material, de sus necesidades y exigencias; de su centralidad y relevancia para la vida, genera la ilusiónde un sujeto que puede existir sin el cuerpo; y por tanto que, radicalmente, no conoce límites naturales. Es unalma pura por encima y más allá de sus determinaciones materiales.

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recuerda recientemente esta misma lógica científica inscrita en supropia actividad como taxonomista o clasificador de especies: “Muchoshábitats se están deteriorando rápidamente (...). Los índices debiodiversidad han bajado. Pero hay algo que me gustaría decir sobreesto de la conservación. Todo el mundo está muy preocupado por laextinción de las especies, pero en la historia de la Tierra han ocurridocatástrofes mucho mayores de las que pueda provocar el hombre, y nopasó nada. (...) Al mundo no le pasará nada. Si ahora hubiera unacatástrofe nuclear y desapareciéramos, se iniciaría posiblemente unnuevo ciclo evolutivo a partir de la vida bacteriana. La vida es evoluciónpermanente. Sin embargo ahora se nos ofrece una foto fija de lanaturaleza, que debe permanecer estática... Como si la naturaleza fueraalgo sagrado e inmutable. No lo es”.70

Como la naturaleza no se considera como algo “sagrado”, algoque posee análogamente una “dignidad” (por decirlo con Kant) sinoque es sólo medio de nuestras acciones, no se ven las razones de suconservación. Se invisibiliza el criterio para discernir racionalmentela acción. Como “no lo es”, entonces el nihilismo destructor de laactividad humana avanzada (la que permite tanto la construcción debombas atómicas como el desarrollo de la biotecnología moderna) esperfectamente racional y contempla impasible la aniquilación delmundo ante la promesa de una nueva creación sobre sus cenizas. Enel fondo, se nos está diciendo, sin quererlo, el máximo exponente delecologismo lo representarían quienes destruyeran atómicamentenuestro planeta pues, gracias a ellos, podría comenzar una nueva laevolución de la biodiversidad a partir de las bacterias. Como señalaCastroviejo “cuando se extinguieron los dinosaurios no pasó nada,solo que ellos y otras muchas especies desaparecieron, pero en sulugar se desarrollaron los mamíferos y llegamos nosotros. ¿Fue maloque llegáramos nosotros?”.71

Desde ahí puede entenderse que no pase nada, pues se abre unfuturo cósmico, sin seres humanos, que quizá dé lugar a formas devida aún superiores a la nuestra. Aquí podemos ver la sobrecogedoracapacidad de destructividad y de indiferencia de este sujeto delconocimiento que contempla al universo, su destrucción y recreación,el paso de las especies, inclusive del propio sujeto que contempla sudesaparición física y de la propia especie humana a la que se dicepertenecer, completamente impasible. Este sujeto no es más que unente fantasmagórico que pretende recorrer fuera del tiempo y del

70 Entrevista en diario El País, 24 de Septiembre de 2003, p. 36.

71 Op. cit.

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espacio, el dinamismo vivo del universo más allá de cualquierlimitación de índole físico-natural; y que desde ahí pretendeestablecer un juicio de irracionalidad de quienes sostienen los límitesde la condición humana.

Desde esta ilusión utópica, el mundo está lleno de dinosaurios,en sentido biológico, de especies que están esperando desaparecer,72

y cuya destrucción abre el camino de la creación para dar paso anuevas formas de vida; en sentido cultural, de pueblos queentorpecen el camino brillante de la ciencia; y en sentido ético-político, de quienes pretender discernir la racionalidad y los límitescientíficos y humanos de las prácticas biotecnológicas y se atreven asospechar de uno de los ídolos de nuestro tiempo.

Ahora bien, este camino de “destrucción creadora” al que laaproximación al ideal utópico de la tecnología moderna parececonducirnos, revela una crisis de utilidad si se maximiza este criterio deutilidad frente al medio y frente a la propia condición humana. Lo queparecía ser un acercamiento razonable a la realidad, cuando se erige enúnico criterio de actuación se revela perfectamente nihilista, y con ello,surge la paradoja de que lo útil, conduce a la inutilidad cuando no hayotros criterios de juicio sobre la realidad.73 Llegados al punto en el que laentrega a la imaginación utópica nos ha conducido, y en el que laconservación de la biodiversidad es perfectamente irrelevante para elfuturo de la vida en el universo, y en última instancia para la propiaconservación de la naturaleza como fuente de vida humana y no humana(vid. supra), surge la conciencia del límite que reorienta la acción.

3.3. Descubriendo los límites

A la pregunta de si la biodiversidad sirve para algo desde unpunto de vista egoísta, Castroviejo parece despertar del sueñofantasmagórico al que en última instancia el dualismo excluyentesujeto-objeto inscrito en la ciencia empírica moderna nos conduce: “Ahívoy. ¿Por qué no debemos perder biodiversidad? Porque es unindicador de que vamos en el mal camino para nuestro propio futuro.

72 Ante cuya extinción, como el probable fin del lince ibérico, el alma del sujeto del conocimiento (res cogitans) solopuede exclamar: “me entristeceré” (cf. ib.).

73 Como señala lúcidamente Franz Hinkelammert, “Que algo sea útil, no implica que un cálculo de utilidad mostrar suutilidad. Por eso hay una utilidad que se opone al cálculo de utilidad. Es útil limitar el cálculo de utilidad. Tambiénes útil que determinados valores sean respetados, sin ser derivables de un cálculo de utilidad. Una ética que nosea útil, sería inútil. Ese es el terreno de la ética. En consecuencia, no se pueden tratar la ética y la utilidad comocontrarios. La ética no es inútil. La contradicción se da entre el cálculo de utilidad y la ética. Luego, hay una éticaque nace de argumentos de utilidad sin ser “utilitarismo”. Por ser útil puede ser objeto de las ciencias empíricas.Respetar la naturaleza, fomentar la paz, luchar en contra de la explotación es útil para todos, pero se halla siempreen conflicto con una acción que se orienta por el cálculo de utilidad.”; Determinismo, caos, sujeto. El mapa delemperador, op. cit.,p. 119.

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La naturaleza nos es necesaria”.74 Desde el planteamiento anterior, elsujeto podía prescindir de la suerte del objeto, pues consistía en unobservador externo que contemplaba el mundo desde fuera. Aquí, si elser humano quiere seguir siendo Señor del medio, tiene que renunciara su trono, a su despotismo (estar más allá de cualquier límite) paraconservar su poder.75 Entregado a la voluntad de poder, disuelve laposibilidad de “seguir siendo”. Tiene que comprender los límites antesde entrar en un punto de no retorno. El ser humano existe si lanaturaleza existe. No puede reemplazar a la naturaleza por elconocimiento de la naturaleza. Tampoco puede ir más allá de sucondición humana como estructura psico-orgánica por el conocimientode las estructuras de la condición humana. Al reconocer la naturaleza(y el cuerpo) como “necesario” trascendemos la lógica cultural de laciencia moderna avanzada y nos situamos en la lógica cultural de lospueblos tecnológicamente atrasados que se saben inscritos en elcircuito de la vida, y que por tanto deben respetarla si se quierenrespetar a ellos mismos. Como sabiamente nos recuerda el jefe indioSeatle: “nosotros sabemos esto: la tierra no pertenece al hombre. Elhombre pertenece a la tierra. Nosotros sabemos esto: todas las cosasestán interrelacionadas, como la sangre que une a la familia. Todas lascosas están relacionadas entre sí. Todo lo que le sucede a la tierra,sucede a los hijos de la tierra, sucede a los hijos de ella. El hombre notrama el tejido de la vida. Él es, sencillamente, una pausa en ella. Loque él hace a ese tejido se lo hace a sí mismo”. Si la naturaleza pierdebiodiversidad, estamos en el mal camino para nuestro propio futuro.

La reflexión sobre los límites de una acción biotecnológica queno quiere reconocer límites (“en ciencia, todo lo que se puede hacerse hace”)76 es algo que supera el marco de la praxis científicamoderna. Si la ciencia es el reino de lo cuantitativo, necesitamoscriterios cualitativos frente a la reducción cuantitativa del mundo.Los propios científicos atisban esos criterios como los podemosatisbar desde cualquier sociedad que quiera despertar de suingenuidad cientifista,77 por ello, “los científicos sí deben entrar en el

74 Ib.

75 Es el problema radical del antropocentrismo vid. CRU. Sin embargo este problema pasa completamentedesapercibido por Pureza, aun cuando muestra los límites de tal posición.

76 Ib.

77 Entre los diversos ejemplos que se pueden ofrecer de esta ingenuidad, se presenta hoy la inmortalidad como unobjetivo alcanzable. Como indica Hille Haker, la American Academy of Anti-Aging Medicine, lanza en supropaganda la idea de “una `nueva´ sociedad, a saber, una sociedad sin senectud, con una duración de vida dehasta 150 años y con el clon reproductivo como un sillar para conseguir la inmortalidad”, en “El cuerpo perfecto:utopías de la biomedicina”, Concilium, n.º 295, 2002, p. 167. En este mismo sentido, Rubén Urtuzuástegui señalaque las promesas de la biotecnología se enfocan hacia el “perfeccionamiento del ser humano, garantizando su saludy prolongando su juventud, incluso se habla ya de inmortalidad” (“Biotecnología: negocio del futuro”, op.cit.).

143Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad

debate de si se debe o no hacer algo”.78 Ello supone trascender elpunto de vista científico e integrarlo en una diversa forma derelacionarse con el mundo. Con ello, no se trata de “abolirlo” si no desituarlo en un contexto mayor de racionalidad humana que nopermita desconocer la radical dependencia natural del ser humanocon el medio biótico, y de su propia corporalidad. Supone introducir“juicios de valor” como forma de controlar los “juicios de hecho”, queen última instancia conducen a que “todo lo que se puede hacer, sehace”. Es la voluntad de poder que está tras el fantasma deomnisciencia de la ciencia empírica moderna. La actividadtecnocientífica más allá de los juicios de valor deviene irracional einútil para la vida humana en sociedad. Por ello, una crítica de estaactividad implica no solamente establecer juicios y límites “externos”de carácter social, cultural o legal, sino la necesidad reconocer en laspropias condiciones de racionalidad de la actividad científica estoslímites como límites “internos” de la propia actividad.

144 Juan Antonio Senent de Frutos

78 Castroviejo, op. cit.

Projetismo e DesenvolvimentoSustentável: O Caso dos

Pequenos Projetos1

Ana Carolina Cambeses Pareschi 2

1. INTRODUÇÃO

Este seminário tem como base a tese de doutorado por mimdefendida neste mesmo departamento em maio de 2002,

intitulada Desenvolvimento Sustentável e Pequenos Projetos: entre oProjetismo, a Ideologia e as Dinâmicas Sociais. Na tese, procureiobservar e analisar os processos sociais que ocorriam antes e durantea implementação de um dos componentes do Programa Piloto para aProteção das Florestas Tropicais do Brasil (PP-G7), o SubprogramaProjetos Demonstrativos A (PD/A), desde o nível internacional até onível local, com relação especialmente às disputas e negociações entreagentes sociais diversos do campo do ambientalismo quanto aossignificados do conceito de “sustentabilidade” do desenvolvimento e daspráticas “adequadas” à sua implementação.

Agregadas a estas disputas e negociações que ocorriam maisvisivelmente nos níveis internacional, nacional e regional, estavamoutras relacionadas à diversidade dos contextos locais e de seus atores,dentre os quais sociedades indígenas e camponesas. Foram escolhidosalguns dos pequenos projetos de desenvolvimento sustentávelfinanciados pelo PD/A, chamados Frutos do Cerrado. O Frutos doCerrado era na verdade um conjunto de doze pequenos projetos espa-

1 Seminário apresentado em 5 de novembro de 2003 no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.2 Departamento de Antropologia-UnB. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília.

145Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

lhados pelo norte do Tocantins e sul do Maranhão, agregando numarede associações e cooperativas de pequenos produtores rurais, umaassociação de povos indígenas Timbira com cinco povos representadose duas ONG’s assessoras, o Centro de Educação e Cultura do Traba-lhador Rural – Centru e o Centro de Trabalho Indigenista – CTI, totali-zando quatorze entidades. Os objetivos destes pequenos projetos eramconservar o cerrado, garantir uma alternativa econômica sustentávelaos povos indígenas e camponeses e ao mesmo tempo proteger asTerras Indígenas através de uma aliança entre “vizinhos de pequenoporte” – camponeses e índios. Isso se daria por meio do plantio, coleta,beneficiamento e comercialização dos frutos do cerrado atravésprincipalmente do seu processamento em forma de polpas congeladas.

É possível perceber nesta breve apresentação que o número e otipo de atores com os quais tivemos contato foi bastante diverso eextenso, sendo necessário um recorte. Assim, nesta exposição, nosdeteremos nos conceitos primordiais elaborados e utilizados na tesecom relação às situações etnográficas mais gerais observadas nointerior da Rede Frutos do Cerrado e na relação desta com o PD/A.

A apresentação está dividida em três partes. Na primeiraapresento o PP-G7 e o PD/A e sua importância no quadro do ambien-talismo para ressaltar especialmente a ideologia e a linguagempresente nestes programas, dentre as quais a do projetismo e a dodesenvolvimento sustentável. Desenvolvo o arcabouço conceitualantropológico que utilizei para analisar os conflitos de interpretação,de poder e de metodologia na implementação do PP-G7, do PD/A eque se estende, em certa medida, para os pequenos projetos dedesenvolvimento sustentável em geral. Na segunda, exponho deforma mais detida os termos do projetismo do PD/A e as tensões comos princípios do desenvolvimento sustentável no interior da RedeFrutos do Cerrado. Na terceira, exploro estes mesmos aspectos,porém a partir da relação da Rede Frutos do Cerrado com o PD/A.Finalizo com uma breve conclusão.

2. PP-G7 E PD/A COMO ESPAÇOS DE DISPUTAS

O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil(PP-G7) foi anunciado em 1992 durante a conhecida Conferência Mundialde Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO-92. Foi resultado de umlongo processo de pressões que os movimentos ambientalistas e de defesa

146 Ana Carolina Cambeses Pareschi

dos direitos indígenas, nacional e internacional, vinham sustentandocontra os impactos negativos das políticas desenvolvimentistas levadas acabo no Brasil e nos demais países do Terceiro Mundo.

Os objetivos específicos do PP-G7 são:i) demonstrar que o desenvolvimento econômico

sustentável e a conservação do meio ambiente podem serperseguidos ao mesmo tempo nas florestas tropicais; ii)preservar a biodiversidade das florestas tropicais; iii) reduzir acontribuição das florestas tropicais na emissão mundial de gasesprovocadores do efeito estufa; iv) prover um exemplo decooperação entre os países industrializados e os emdesenvolvimento quanto aos problemas ambientais globais(MMA/SCA/PPG-7, s/d.: 1, itálico meu).

Vê-se claramente, por estes objetivos, que a “sustentabilidade”se refere mais ao “desenvolvimento econômico” do que à conservaçãoambiental. As “florestas tropicais” são tomadas como ícones dabiodiversidade e as queimadas como uma das contribuiçõesimportantes na emissão dos gases produtores do efeito estufa, umaverdade parcial, já que a atividade industrial e a queima decombustíveis fósseis por automóveis contribuem muito mais.

A Resolução de criação do Rain Forest Trust Fund,3 de 3 demarço de 1992, no âmbito do Banco Mundial, diz que o PP-G7 temum caráter “experimental” que procura “testar a aplicação de umaabordagem ampla para a proteção da maior floresta tropical domundo” (BIRD, 1992: 8). Leia-se, Amazônia. Somente no processo denegociação do Programa, a Mata Atlântica encontrou um diminutoespaço em sua pomposa estrutura, para apenas na segunda fase doPP-G7 a ser iniciada em 2004, constituir-se como uma região quemerecesse um subprograma específico.

O PP-G7 constituiu-se num programa sui generis de doações doGrupo dos Sete países mais ricos do mundo – o G7 – para um único paísno sentido de financiar ações diversas de conservação ambiental e deimplementação de um desenvolvimento dito “sustentável”.4 O PP-G7recebeu inicialmente cerca de US$ 350 milhões, destacando-se aAlemanha como o maior doador, com 42,8% dos recursos (ver Tabela 1).

147Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

3 Este Fundo foi criado pelo Banco Mundial para abrigar os recursos doados pelos países integrantes do Grupo dos Sete(G7) – Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Japão, Itália e Reino Unido – destinados ao PP-G7. O BancoMundial foi eleito pelo G7 como fiel depositário destes recursos e, portanto, era ele que os administrava.

4 Um Fundo parecido ao PP-G7 se constituiu em 1990 chamado Fundo para o Meio Ambiente Mundial, ou GlobalEnvironmental Facility (GEF). Porém, diferentemente do PP-G7, o GEF conta com o financiamento de mais de 25países, não só do Primeiro Mundo, e destina-se ao financiamento projetos de conservação e desenvolvimentosustentável em quatro áreas principais (biodiversidade, aquecimento global, águas internacionais e camada deozônio) em todos os continentes.

Tabela 1 – Orçamento do PP-G7, por fonte, junho de 2000Em US$ milhões

Fonte: Adaptado de MMA/SCA/PP-G7/BIRD, Pilot Program Annual Report 1999-2000, 2000: 26.

Obs. 1: A tabela não inclui a renda de investimento não desembolsada pelo RFT que está disponível

ao Programa e somava US$ 18,06 milhões em 30 de junho de 2000.

Obs. 2: Os recursos para projetos incluem o valor estimado das cooperações técnicas dos doadores

informadas por estes.

Entre junho de 1992 e novembro de 1993, desenrolou-seum complicado processo de negociação entre o governo brasileiro,o Banco Mundial – eleito pelo G7 como seu representante noPrograma, a Comissão das Comunidades Européias e umconjunto de ONG’s sócio-ambientais que passou a serdenominado Grupo de Trabalho Amazônico – GTA. O GTA,embora questionado inicialmente por outros coletivos de ONG’spreexistentes, transformou-se gradativamente em uma das redesde ONG’s expressivas na “representação da sociedade civil” noPP-G7. Em função mesmo desta participação é que oSubprograma Projetos Demonstrativos tipo A, o PD/A, foi um dosprimeiros subprogramas aprovados no PP-G7, em novembro de1993, e o único até aquele momento que previa a participação de

148 Ana Carolina Cambeses Pareschi

ONG’s, justamente naquilo que seria uma de suas especialidades:a elaboração, execução e acompanhamento de pequenos projetos.

Segundo um dos documentos do PD/A, este subprograma foiconstruído para abrigar as “diversas categorias de projetos deONG’s, grupos comunitários e governos locais (...) visando àredução dos impactos sociais e econômicos decorrentes dadegradação ambiental” (MMA/SCA/PPG-7, 1998: 12 e 16).Conforme este último documento,

a maioria dessas iniciativas são de interesse e, realmente,contribuem para a resolução dos problemas locais. Contudo,sofrem restrições orçamentárias e seus canais de financiamentosão limitados. Somente as ONG’s mais proeminentes têmconseguido acesso a ajuda financeira externa (idem: 16).

Assim, a cooperação internacional, associada ao governo brasileiro,dava início a um processo de abertura para os pequenos projetoshistoricamente desenvolvidos e financiados pelas ONG’s e suas redes.

Os objetivos específicos do PD/A são:

a) gerar conhecimentos sobre a conservação, a preservaçãoe o manejo sustentável dos recursos naturais, por meio deatividades demonstrativas e com o envolvimento e a participaçãodas populações locais;

b) transferir o conhecimento resultante das experiênciaspara outras comunidades, outras ONG’s, tomadores de decisãoe técnicos de governo;

c) fortalecer a capacidade de organização e articulação daspopulações locais, bem como a sua capacidade de elaborar eimplementar subprojetos (PD/A, Manual de Operações, 1998: 6).

Interessante ver que um dos objetivos do PD/A é capacitar asentidades a elaborar e implementar projetos. Parece estar implícitoque elaborar e implementar projetos seria a solução para a“independência financeira” destas entidades e para a resolução deseus problemas tidos como locais. Sutil e inconscientemente, o PD/Aacaba atribuindo aos grupos marginalizados a responsabilidade porsua situação, pois se fossem organizados e articulados estariamrealizando seus pequenos projetos. Ou ainda, os pequenos projetos

149Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

são considerados, de certo modo, uma forma de solucionar osproblemas da pobreza e da degradação ambiental.

Enfim, a idéia central do PD/A é

reforçar a capacidade da sociedade para que ela própria,em associação com o governo, desenvolva soluções factíveis paraa conservação e o desenvolvimento da região amazônica eregiões de domínio da Mata Atlântica, testando, aplicando,desenvolvendo e disseminando métodos alternativos degerenciamento e conservação dos recursos naturais, que sejameconômica, social e ecologicamente sustentáveis (MMA/SCA/PPG-7, 1998: 14-15). Isto é, testar e ampliar modelos dedesenvolvimento sustentável que possuam um alto potencialmultiplicativo, estruturados com base na experiência existente nonível da população (idem: 15).

Os “pequenos projetos de desenvolvimento sustentável” que oPD/A financiou na sua primeira fase5 distribuíram-se em quatroáreas temáticas: sistemas de preservação ambiental; sistemas demanejo florestal; sistemas de manejo de recursos aquáticos esistemas agroflorestais e recuperação de áreas degradadas.

Entre o final de 1993 e 1995 foram sendo concluídas as versõesfinais e os contratos de doação de cinco projetos que se iniciaram em1995: o PD/A; o Subprograma de Recursos Naturais (SPRN); o ProjetoIntegrado de Proteção a Terras e Populações Indígenas da AmazôniaLegal (PPTAL); o Subprograma de Ciência e Tecnologia; e o Projeto deReservas Extrativistas. Outros programas foram sendo negociados,elaborados ou mesmo descartados ao longo de sua duração,totalizando em 2001, doze Subprogramas ou Projetos, dentre os quaistrês ainda estavam sendo negociados. Assim, o PP-G7 constitui-senuma extensa estrutura tecnoburocrática que, apesar de váriosesforços, não logrou articular-se nem internamente e nem às políticaspúblicas não contempladas no PP-G7, cuja articulação erafundamental importância na modificação do quadro geral dodesenvolvimento e da conservação ambiental local e regional (verFiguras 1, abaixo, e 2, em Anexo)

150 Ana Carolina Cambeses Pareschi

5 De 1995 a 2001. Entre 2002 e 2003 houve renegociação para a Segunda Fase que terá início em 2004.

Figura 01Organização Temática do PP-G7

151Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

Este processo revelou a complexificação do campo ambienta-lista na medida em que “novos”, ou melhor, “velhos” atores neleadentraram, tais como as agências e os bancos bi e multilaterais dedesenvolvimento. Os tradicionais agentes do “desenvolvimento” agoraestariam também no financiamento não só da conservação ambientalcomo também no suporte às ONG’s e movimentos sociais, seustradicionais opositores. Digo “campo” no sentido dado por Bourdieu(1983). Isto é, um espaço estruturado de posições (ou de postos) cujaspropriedades dependem das posições nestes espaços. O campo seconstitui de lutas entre o novo que está entrando e tenta forçar seudireito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio eexcluir a concorrência. Neste caso, poderíamos dizer que tanto osagentes do desenvolvimento procuram adentrar ao campo doambientalismo como o inverso, utilizando-se de seus respectivoscapitais simbólicos seja para modificar a relação de forças no interiordo campo seja para modificar os seus próprios campos de origem.

Para que um campo se defina e funcione “é preciso que hajaobjetos de disputa e pessoas prontas a disputar o jogo, dotadas dehabitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leisimanentes do jogo, dos objetos de disputa etc.” (BOURDIEU, 1983: 89).Disputa-se não só o significado das noções de desenvolvimento e desustentabilidade, ou seja, regimes de verdade diversos (FOUCAULT,1988), mas também formas e metodologias de implementação deprojetos consideradas adequadas para se alcançar os objetivosgenéricos do “desenvolvimento sustentável”. É neste sentido que nosutilizamos do conceito de projetismo como um modus operandipredominante neste contexto e que será tratado mais adiante.

Para Foucault, um regime de verdade seria um conjunto deregras e enunciados que distingue o verdadeiro do falso, seatribuindo ao verdadeiro efeitos de poder que são também efeitos deverdade (1988: 13). Se, para o autor, a cada sociedade correspondeum “regime de verdade”, podemos também dizer, seguindo a suaanálise, que a cada grupo político-ideológico corresponderia umregime de verdade que procura se tornar hegemônico pelo debatepolítico e pelo confronto social informado por ideologias distintas. Nassociedades ocidentais uma das características da economia políticada “verdade” é que esta é centrada na forma do discurso científico enas instituições que o produzem. Outra característica é que ela éproduzida e transmitida sob controle, não exclusivo, mas dominante,de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidades,Exército, meios de comunicação, escritura) (idem: 13). O ambienta-

152 Ana Carolina Cambeses Pareschi

lismo disseminou-se globalmente a partir da década de 1970 comouma ideologia-utopia de caráter totalizante, como mostramos emoutro trabalho (PARESCHI, 1997), cujo caráter inicial procuravaromper de forma radical e contestatória com o regime de verdadeestabelecido, plasmado, especialmente no discurso e nas instituiçõestachadas de “desenvolvimentistas”.6 Neste confronto, ambos os ladosabriram brechas para negociações.

Fazemos aqui uma pequena digressão no sentido de aprofundaras idéias de desenvolvimento sustentável e de pequenos projetos paradepois voltar ao PD/A e ao PP-G7 como espaços de disputas e seusmodus operandi.

Inicialmente fatalista, apocalíptica e radical – balizada internamenteentre as tendências conservacionistas e preservacionistas e externamentena luta política contra os governos e as empresas a partir de denúncias eprotestos – a ideologia-utopia ambientalista e os seus movimentos sociaisforam ganhando contornos menos radicais para poder dialogar com osagentes do desenvolvimento e com a sociedade em geral, propondosoluções que fossem factíveis e negociadas no campo político. Foi nesteprocesso que o ambientalismo brasileiro, por exemplo, foi ganhando novosaliados representados por tendências mais ligadas aos movimentospopulares e sociais de um modo geral. No plano internacional, esta “ame-nização” do ambientalismo manifestou-se pela produção de conceitos querefletiram a diversidade de interesses em torno da incorporação dasconsiderações ambientais no processo de desenvolvimento. Dentre eles omais eficaz foi o de “desenvolvimento sustentável”, que embora tenhasurgido já na década de 1970, ganhou notoriedade internacional apenasna de 90, especialmente em função da ECO-92.

As agências de desenvolvimento, e os economistas, por sua vez,foram obrigados a reformular seus discursos para adaptá-lo a umnovo regime de verdade que procurava se impor. Esta reformulaçãodeu-se rapidamente já que freqüentemente ouve-se falar em

153Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

6 Utilizamos a noção de ideologia-utopia com base em duas concepções teóricas distintas mas não excludentes entresi. Quanto à idéia de utopia e mesmo de ideologia, Mannheim (1968) foi nossa inspiração. Para ele, tanto ideologiaquanto utopia são idéias transcendentes em relação à ordem existente. Porém, as idéias utópicas tenderiam aabalar, mesmo que parcialmente, a realidade, se se transformarem em conduta. Já as ideologias jamaisconseguiriam de fato a realização de seus conteúdos pretendidos porque quando incorporados à prática seussignificados são, na maior parte dos casos, deformados. Mannheim classificou três tipos históricos de mentalidadeutópica: a quiliástica (ou milenarista), a liberal-humanitária e a socialista-comunista. Assim, em geral aquilo quechamamos de ideologia é para Mannheim, utopia, tendo assim um significado oposto àquele que comumente seutiliza: o de não realização de ideais na prática. Dumont (1982 e 1993) nos forneceu um outro significado para otermo ideologia: um conjunto de idéias e valores próprios de uma sociedade (ou conjunto de sociedades), ou ainda,um conjunto social de representações, que têm caráter englobante. Isto é, o ambientalismo, e posteriormente aidéia de desenvolvimento sustentável, são variantes de uma ideologia ocidental englobante – a do Individualismomoderno – que incorpora vários aspectos das mentalidades utópicas históricas colocadas por Mannheim, podendoser classificada como mais um tipo de mentalidade utópica. Devido a esta inter-relação dos dois conceitos etambém à diversidade no interior do ambientalismo, é mais coerente utilizar os dois termos – ideologia e utopia– para se referir a este movimento social e ideário (Sobre o uso deste termo ‘ideologia-utopia’ para se referir aoconceito de desenvolvimento sustentável conferir também Ribeiro, 1991).

“desenvolvimento sustentável” sem que a “sustentabilidade” estejareferida à conservação ambiental proposta pelo ambientalismo. Já aspráticas têm sido muito pouco diversas daquelas de outrora.

Mas o que vem a ser, afinal, “desenvolvimento sustentável”?Para responder a esta pergunta, é necessário responder a outras,como por exemplo, “sustentar o quê?”, “para quem?” e “em quecontexto?” O conceito de desenvolvimento vem sendo adjetivadosucessivas vezes ao longo destes últimos 50 anos devido à sua“dinâmica adaptativa” (ESCOBAR, 1995: 42) permitindo assim,conforme a disposição dos processos econômicos, socioculturais epolíticos e seus elementos, a incorporação de novos objetos, modos deoperação e a modificação de numerosas variáveis. Contudo, na visãode Escobar com a qual concordamos, não tem havido modificação naforma como estes elementos se inter-relacionam, ou seja, no princípioorganizador desta estrutura que se reproduz sistematicamente apartir de instituições, ações e discursos consertados. O excelenteestudo de Gilbert Rist (1997) sobre a história do desenvolvimentocorrobora tal visão e, para ambos, o desenvolvimento sustentávellevado a cabo pelos agentes do desenvolvimento não é outro senãomais uma versão da dinâmica adaptativa do conceito dedesenvolvimento, onde a “sustentabilidade” em nada tem a ver comas preocupações ecológicas ou sociais.

Se, por um lado, concordamos com as interpretações deEscobar e de Rist, por outro, acreditamos que estas não apresentam“toda a verdade”, ou melhor, a complexidade semântica e políticadeste conceito que, por isso mesmo, serve tanto aos agentestradicionais do desenvolvimento não sustentável, no sentidoecológico, quanto aos agentes interessados na mudança do modelogeral, problematiza o campo de relações em que é acionado bem comoos seus agentes. Seguindo uma visão mais à la Sahlins (1990, 1997a;1997b), a postura antropológica deve levar em consideração que acultura não é um “objeto” em vias de extinção e que por isso, mesmoa noção de desenvolvimento, associada que está à expansão docapitalismo sobre os mais diversos povos do mundo, não implicounuma homogeneidade de interpretações e processos sociais. Comoaponta Sahlins em Ilhas de História (1990), a história é ordenadaculturalmente de diversas formas nas diferentes sociedades assimcomo a cultura é resignificada pela história no curso dosacontecimentos. A síntese disto desdobraria-se em ações criativasdos sujeitos históricos. Assim, para os nativos da neomelanésia, porexemplo, o termo “desenvolvimento”

154 Ana Carolina Cambeses Pareschi

refere-se a um processo (...) no qual os impulsos comerciaissuscitados por um capitalismo evasivo são revertidos para ofortalecimento das noções indígenas da boa vida. Assim, benseuropeus não tornam simplesmente as pessoas maissemelhantes a nós, e sim mais semelhantes a elas próprias(SAHLINS, 1997a: 60).

Da mesma forma, a idéia de um desenvolvimento sustentávelnão pode ser resumida exclusivamente à visão e à posição que algunsagentes deste “campo polinucleado” (BARROS, 1996) têm. Nestesentido, abre-se para a Antropologia a interpretação dos diferentessignificados do termo referidos a contextos etnográficos e atoresespecíficos. O PP-G7, o PD/A e o Frutos do Cerrado apresentaram-seassim como um locus privilegiado para tal interpretação.

A noção de sustentabilidade veio sendo construída desde os anos20 do século XX pelas noções alternativas de agricultura (biodinâmica,orgânica, biológica, natural) que a partir dos anos 1960 ganharam maiorpublicidade com a divulgação de estudos e livros que mostravam osimpactos da “agricultura moderna”, apontando assim para o caráter “não-sustentável” deste modelo (EHLERS, 1996). Contribuiu para esta visãocrítica a publicação do livro de E. F. Schumacher, Small is Beatiful, de1973, onde o autor discorre sobre a “insustentabilidade” do modeloprodutivo da sociedade industrial baseado que está em pressupostosdestrutivos de sua própria base de “recursos” (não só materiais, mashumanos – intelectuais, morais, éticos, criativos, belos etc.) e sugere umasérie de reflexões e sugestões que possibilitem a transformação destemodelo de sociedade.7 Entre estas reflexões, a escala de intervenção dassociedades ocidentais sobre o meio ambiente natural é questionada porpautar-se por um “gigantismo”. Schumacher propõe, então, que ummodelo de sustentabilidade deve ser aquele da “pequena escala”. Estavaentão colocado um dos pressupostos fundamentais dos pequenos projetosde desenvolvimento, ou “projetos de desenvolvimento comunitário”, queposteriormente se transformarão nos “pequenos projetos de desenvol-vimento sustentável” (PPDS’s).

O paradigma de desenvolvimento sustentável procurouabranger todas as outras noções de “desenvolvimento alternativo”que se elaboravam entre o final das décadas de 1960 e a década de70. Formulou-se um conhecido slogan pelo qual a sustentabilidadedas ações seriam aquelas marcadas pelo equilíbrio ecológico e pelajustiça social. Este desenvolvimento deveria levar em conta não

155Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

7 É interessante lembrar o subtítulo do livro: “Um estudo de economia que leva em conta as pessoas”.

somente aspectos econômicos, mas as múltiplas dimensões da vidasocial, incluindo-se a qualidade ambiental. Apesar da variedade dedefinições de desenvolvimento sustentável a maior parte delas serefere à manutenção dos estoques de recursos (renováveis) e daqualidade ambiental para a satisfação das necessidades das geraçõespresentes e futuras. Obviamente, o conceito de “necessidade” não temo mesmo significado para todos. Esta ideologia-utopia inaugura,assim, uma solidariedade diacrônica com as gerações futuraspautada no uso “racional” de recursos. Resumidamente, sãovalorizados os princípios da diversidade, da conservação ambiental,da pequena escala, da tecnologia racional e eficiente, da democraciae da educação, todos interligados entre si.

Para os nossos propósitos, cabe ressaltar os princípios dadiversidade, da democracia e da educação, visto que são primordiaispara flagrar a complexidade das relações e processos que seestabelecem no planejamento e implementação dos PPDS’s.

O princípio da diversidade inclui a valorização da sociodiversidade,isto é, das especificidades culturais, sociais e históricas; da biodiversi-dade; e dos múltiplos caminhos possíveis para o desenvolvimento. Esteprincípio está contido na noção de “desenvolvimento endógeno” e, portan-to, contrapõe-se ao princípio de uniformidade.

O princípio da democracia fundamenta a defesa de direitos(humanos e civis), a esfera da cidadania que valoriza a participaçãoigualitária e a autodeterminação dos povos e setores sociaisexcluídos, isto é, procura criar, fortalecer e/ou consolidar a suacapacidade de agência. Neste caso, as ONG’s teriam um papel deassessoria, apoio, coordenação e/ou estímulo aos grupos de reflexãoe às ações para a participação destas populações, valorizando o saberpopular e/ou étnico. Para tanto educação torna-se um fator central.

O princípio da educação sempre foi importante nas ideologiasprogressistas como forma de conscientizar e libertar as pessoas desituações sociais onde elas ocupariam o lugar de “oprimidas”,“dominadas” ou “subalternas” (de classe, de gênero, de raça ouétnica). A emancipação ocorreria fundamentalmente a partir dapossibilidade das pessoas, grupos ou sociedades terem acesso àinformação, à capacitação, ao aprendizado, enfim, a uma“consciência” que neste momento não é mais “de classe” (ouexclusivamente de classe), mas é também “ambiental”. Este acessoabriria as possibilidades para se ensinar novos valores ou reafirmaros tradicionais, para uma reflexão crítica, criativa e libertária queconsubstanciaria uma ação política no sentido da transformação

156 Ana Carolina Cambeses Pareschi

social. Assim, o foco da ideologia dos pequenos projetos é a“comunidade”, o “povo”, as “bases”, tomados como sujeitos da suaprópria história e não mais como vítimas do desenvolvimentoeconômico concentrador de renda, procurando assim inverterprioridades e o sentido das tomadas de decisão.

Finalmente, estamos chamando de “pequenos projetos dedesenvolvimento sustentável” os projetos que seguem os princípiosda diversidade, da conservação ambiental, da pequena escala, datecnologia racional e eficiente, da democracia e da educação,objetivando atividades produtivas que gerem renda com um mínimode degradação ambiental, o fortalecimento e/ou consolidação dacapacidade de agência de grupos e/ou populações subordinados.8

Estão geralmente voltados para populações de baixa renda ou paragrupos étnicos e são pequenos tanto pelos recursos envolvidos,quanto pela circunscrição de seus objetivos e pela limitação de seualcance. O seu “valor” fundamental seria a “experimentação” denovas abordagens metodológicas, organizacionais e produtivas, comsentido de aprendizagem e acumulação de conhecimento para atransformação social.

Chamamos atenção, porém, para o fato de que esta “definição”é antes de tudo uma caracterização idealizada, que faz parte dodiscurso dos atores sociais do campo do ambientalismo e que nãosignifica necessariamente a realização destes ideais e princípios naspráticas correspondentes. Tais atores situam-se predominantementeno setor não-governamental, mas também nos campos científicos eem um reduzido contingente da tecnoburocracia governamental. Sãoestes os portadores fundamentais deste novo regime de verdade queprocura se estabelecer.

Quanto a análise da interpretação destas verdades ao nívellocal desenvolveremos no item subseqüente. Voltemos aos atores eaos procedimentos necessários colocados pelo embate destes regimesde verdade.

Enquanto no cenário geral das iniciativas desenvolvimentistasos atores sociais principais são as agências bilaterais e multilateraisde desenvolvimento e os governos, no cenário do ambientalismo e dospequenos projetos as organizações não-governamentais – e oscientistas sociais, educadores, religiosos, agrônomos, assistentessociais, entre outros – se destacam como atores sociais privilegiados.A ideologia e as práticas dos atuais pequenos projetos dedesenvolvimento sustentável estão vinculadas às relações esta-

157Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

8 Inspiro-me aqui na definição de “microprojetos de desenvolvimento social” de Martinez Nogueira (1991a: 6).

belecidas entre estes grupos de atores no cenário político nacional einternacional, também se conformando num campo.

A eficácia das estratégias elaboradas pelos diferentesparticipantes deste “jogo” depende, entre outras coisas, do capitalsimbólico e da capacidade de articulação política de seus integrantesde modo que estes sejam adequados aos níveis em que tais disputasse dão. Assim, apenas algumas organizações e pessoas se destacamnão só na participação do processo de negociação e implementaçãodo PP-G7, do PD/A e do Projeto Frutos do Cerrado, como também ojogo, precisa, para funcionar, de atores que circulem não só nos seusníveis específicos mas em outros, situados em níveis diferentes. Aestes denominei “intermediários”, ou brokers, tal como Wolf (1974) eAdams (1974). São pessoas ou instituições que fazem a mediaçãoentre níveis (desde o local até o global ou inversamente, mas nãonecessariamente em todos os níveis), articulando interesses e regimesde verdade de um nível em outro. Podem ser líderes sindicais,representantes do Banco Mundial, cientistas, agricultores, índios,funcionários públicos, técnicos, integrantes de ONG’s ou as própriasinstituições ou coletivos que representam. Este conjunto de noçõesarticuladas formariam o que estou chamando de um “espaço dedisputas”. O ambientalismo é, antes de tudo um campo político e porisso, ao estudá-lo, torna-se imprescindível situar este campo, bemcomo seus atores e estratégias em questão.

O PD/A foi discutido não só pelo GTA, mas também pelo FórumBrasileiro de ONG’s e Movimentos Sociais, surgido dois anos antes daECO-92. Estabeleceu-se um processo tenso de estranhamento eaproximação mútuos entre ONG’s oriundas de temáticas eabordagens diversas bem como destas com o Estado brasileiro. Esteprocesso engendrou duas tendências em sentidos opostos: umafragmentadora e outra integradora. Por um lado, ao mesmo tempo emque ocorria a cristalização de identidades sociais relacionadasàquelas ONG’s que historicamente definiam-se como de “assessoria eapoio aos movimentos sociais” ou simplesmente “sociais”, ocorria àaglutinação entre aquelas que se definiam como “ecológicas”,resultando, assim num campo polarizado entre “sociais” e “eco-lógicas”. As diferenças mútuas percebidas foram formuladasinclusive em termos de exclusividade ou legitimidade de utilização dotermo “ONG” por parte das entidades de cunho “social”, categoriaesta que também se construía, além do questionamento, por partedestas, da idéia de “desenvolvimento sustentável”. Assim, marcavam-se posições e fronteiras em um novo campo que se configurava: o

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sócio-ambiental. Por outro lado, a necessidade de estabelecimento dediálogo entre estes pólos se colocava na medida em que se discutiamodelos alternativos de desenvolvimento nos quais a conservaçãoambiental fosse parte integrante dos objetivos sociais, postulando-seidéias como “qualidade de vida”. Assim, estes pólos passaramlentamente a se mesclar mutuamente, criando uma nova leva deONG’s definidas ou redefinidas como “sócio-ambientais”. Aintegração, não necessariamente harmônica, do campo das ONG’s edos movimentos sociais se colocava como estratégica devido aosembates e negociações com o Estado e as agências dedesenvolvimento na elaboração de um amplo programa dedesenvolvimento sustentável, como era o caso do PP-G7, e maisespecificamente do PD/A.

Estas divisões e articulações entre as ONG’s estiverampresentes também na implementação do PD/A. O Subprogramaestava dividido em três componentes: 1) um fundo de financiamentode pequenos projetos para duas grandes regiões (Amazônia Legal eMata Atlântica); 2) o fortalecimento institucional das duas redes deONG’s representantes da sociedade civil no PD/A, uma de cadagrande região (o Grupo de Trabalho Amazônico – GTA e a Rede daMata Atlântica – RMA); e 3) a disseminação das experiências. Aoprimeiro componente foram destinados cerca de 90% dos US$ 30milhões do PD/A, já que o principal. As relações das ONG’s entre sie com a tecnoburocracia do PP-G7 e do PD/A mostraram-se noscomponentes “um” e “dois”.

A seleção de projetos a serem financiados passava, após análisestécnicas, pela aprovação ou rejeição de uma Comissão Executivacomposta por onze pessoas, das quais três eram representantes dasONG’s da Amazônia Legal e dois da Mata Atlântica. O restante dosmembros eram das diversas instâncias do governo relacionadas ao PP-G7, sendo um deles representante do Banco do Brasil, o agentefinanceiro do PD/A nos locais dos projetos. Na medida em que odesenvolvimento do movimento ambientalista deu-se principalmente nasregiões mais urbanizadas e densas do país, especialmente nas regiõessudeste e sul, as ONG’s da região da Mata Atlântica tendem a ser maisantigas, mais articuladas e predominantemente ligadas aoconservacionismo. Portanto, as ONG’s da Mata Atlântica na ComissãoExecutiva apresentaram uma abordagem do desenvolvimento e critériosde seleção que passavam especialmente por considerações ecológicas,técnicas e científicas. Já as ONG’s da Amazônia Legal eramprincipalmente associações de base, movimentos sociais ou ONG’s ainda

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muito novas, com pouca articulação regional ou nacional, sendo ligadasprimordialmente ao campo “social” ou ainda “produtivo”, cuja discussãodo desenvolvimento dava-se a partir da ótica da desigualdade e daexclusão social. Tendiam assim a privilegiar mais o conhecimento quetinham das instituições que pleiteavam e os seus respectivos contextosdo que os aspectos estritamente técnicos dos projetos. Isso não significadizer que as ONG’s da Mata Atlântica seriam isentas em seus respectivosjulgamentos, já que também a ciência e a técnica são em certa medidaposturas ideológicas, e nem que as organizações da Amazônia Legalfossem “personalistas”, incapazes de julgamentos por critérios ditos“técnicos”.

A capacidade de articulação, o domínio de um regime de verdadee o capital simbólico acumulado pelas organizações que submetiamsuas propostas ao PD/A permitiram que determinados projetos fossemaprovados em detrimento de outros. A aprovação dos doze projetosFrutos do Cerrado significou uma combinação bem-sucedida destesaspectos mais do que dos critérios “técnicos”, como os de “viabilidade”e “replicabilidade” econômica, social, política e ambiental. Entretanto,durante o período de execução, as relações internas à Rede Frutos doCerrado bem como com a Secretaria Técnica do PD/A foram semodificando não apenas em função de interpretações conflitantes da“viabilidade” do projeto e das ações necessárias para um resultadofavorável aos proponentes do mesmo, mas também pelo relativofracasso no âmbito da “sustentabilidade econômica”.

As ações do desenvolvimento traduzem-se em termos de“projetos”. Um projeto, em termos gerais, refere-se a um planejamentode ações articuladas em função de algum objetivo. Em termos maisrestritos, seria a materialização via escrita ou gráfica desteplanejamento. Tanto as ações de governos, quanto de empresas,agências de desenvolvimento ou organizações não-governamentaismaterializam-se via elaboração e execução de projetos. Os projetos dedesenvolvimento sustentável visam especialmente a modificação deuma situação desfavorável em termos sociais, econômicos, políticos eambientais em direção ao equacionamento destes problemas.Começam aqui os desencontros entre, por um lado, a racionalidade ea limitação dos pequenos projetos e, por outro, do cumprimento dosprincípios do desenvolvimento sustentável, necessariamente inter-relacionados, complexos e de longo prazo. As tensões entre“resultados” e “processos”.

O termo projetismo já foi utilizado por Fayerweather (1959 apudPITT, 1976: 11) para designar uma situação em que o plano é a única

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sagrada e inviolável realidade. Os projetos são construídos sob umaideologia de sucesso inevitável, mesmo antes de qualquerimplementação. As agências de desenvolvimento forneceriam oexemplo deste projetismo devido a sua tradicional inflexibilidadeburocrática. Nosso uso do termo procura mostrar o que estariaimplícito neste “planejamento rígido” e quais as suas conseqüênciassobre propostas de desenvolvimento sustentável. Isto é, como asexigências em termos de ordenação do tempo e das atividades, dogerenciamento dos recursos, das prestações de contas, dos relatóriosde atividades, da logística, das avaliações e monitoramentos típicosdos projetos se relacionou com o fluxo da vida cotidiana decamponeses, índios e ONG’s, e como tais procedimentos foramcompreendidos.9

Verificamos na pesquisa que a participação do Banco Mundiale de outras agências de cooperação internacional no PP-G7 e noPD/A, assim como a existência de um certo consenso entre os seusgestores a respeito da necessidade de planejamento que envolve arealização de projetos em geral, contribuíram para que os subprojetosfinanciados pelo PD/A sofressem uma pressão com relação àformulação e execução de projetos como um condicionantefundamental do “sucesso” ou do “fracasso” destas ações (expressosno potencial “multiplicador” e “demonstrativo”). O foco de avaliaçãopermaneceu nos projetos em si e não em seu contexto mais amplo,seja o modo de vida dos grupos sociais ou entidades que oapresentaram, seja o das estruturas que condicionam e moldam dealguma forma a situação em que estes grupos e entidades seencontram. A ênfase na “mudança” implícita na noção de “projeto” –especialmente aqueles projetos que visam a transformação dasociedade a longo prazo – contrasta com as limitações operacionais eestruturais (inclusive das relações de poder) destes mesmos projetos,trazendo à luz sua natureza paradoxal. Em suma, as organizaçõesnão-governamentais, que vivem de projetos geralmente financiadospor outras ONG’s, também são obrigadas a incorrer no projetismo quedita uma temporalidade e uma organização de atividades particular,delimitando o campo de resultados possíveis das ações.

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9 Queremos aqui esclarecer que o projetismo – as regras para a elaboração dos projetos financiados e de suasprestações de contas – não foi necessariamente encarado como algo negativo por parte dos proponentes dospequenos projetos. Ao contrário, muitos declararam que embora as exigências do PD/A fossem em um primeiromomento consideradas “rígidas” porque a maioria dos camponeses e dos índios não tinha grau de instrução elevadoe experiência neste tipo de “crédito”, elas eram necessárias porque moralmente certas. As regras foram sendo“aprendidas” e compreendidas ao longo da execução dos projetos, não sem conflitos internos e externos. Da mesmaforma, o PD/A foi considerado pelas ONG’s, especialmente as mais experientes e articuladas, um modelo de fundomuito mais acessível do que o Fundo Nacional de Meio Ambiente, cujas regras invariavelmente dificultavam comque projetos de ONG’s fossem aprovados. Assim, o projetismo do PD/A teria sido mais flexível do que aquelecomumente encontrado nos projetos financiados pelas agências de desenvolvimento bi e multilaterais.

3. TENSÕES NOS PEQUENOS PROJETOS: ENTRE OPROJETISMO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Discorreremos aqui sobre alguns pontos relevantes daimplementação dos pequenos projetos Frutos do Cerrado paradiscutir as tensões inerentes aos mesmos: a gestão do projeto e aorganização do trabalho; organização social-política-institucional dascomunidades e suas entidades; a assessoria técnica e as dificuldadesde um projeto com objetivos econômicos. Dissemos na Introduçãoque o Projeto Frutos do Cerrado era um conjunto de doze PPDS’s queconformaram uma Rede – a Rede Frutos do Cerrado – quatorzeentidades diferentes. Pois bem. Neste item os exemplos etnográficosse referem a três destes doze projetos: o da AssociaçãoAgroextrativista dos Pequenos Produtores de Carolina (AAPPC), noMaranhão, o das duas associações de pequenos agricultores de SantaMaria do Tocantins (São José e Soninho), no Tocantins e o projeto deMonitoramento e Acompanhamento proposto pelas duas ONG’sassessoras – Centru e CTI.10 O projeto da AAPPC foi, em certa medida,considerado mal-sucedido pelo PD/A, pelos próprios proponentes epelas ONG’s assessoras. O de Santa Maria do Tocantins, ao contrário,foi considerado como um dos mais bem-sucedidos dos projetos daRede Frutos do Cerrado. O projeto das ONG’s assessoras era defundamental importância para a articulação da Rede como um todoe expressou as dificuldades freqüentes que a ONG’s enfrentam nocampo dos PPDS’s. Estes foram três casos exemplares de situaçõesque têm um grau bastante amplo de generalização, seja para osProjetos Frutos do Cerrado, seja para os projetos parecidosfinanciados pelo PD/A, ou ainda, para os PPDS’s propostos eexecutados por ONG’s e entidades de base.

4. A GESTÃO DO PROJETO E A ORGANIZAÇÃO DOTRABALHO

Os pequenos projetos de desenvolvimento sustentável são, viade regra, a tradução de objetivos qualitativos, geralmente de longoprazo, em uma quantia de recursos, atividades e tempo semprelimitados. No caso do PD/A, as entidades formulavam suas propostasem um formulário ao qual um Manual de Operações acompanhava

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10 Os outros municípios envolvidos eram Imperatriz, Montes Altos, Estreito, Loreto, São Raimundo das Mangabeiras,Amarante do Maranhão e João Lisboa, todos no Maranhão. No município de Carolina havia também o projeto dosíndios Timbira, executado pela Associação Vyty-Cati das Comunidades Indígenas Timbira do Maranhão e Tocantins.

explicando como deveria ser preenchido. Eram financiados projetosde um a três anos de duração, de valores que podiam ir de US$ 20mil a US$ 210 mil, com contrapartidas mínimas variáveis dasentidades proponentes de 10% a 30% do valor pedido ao PD/A.

Os projetos da Rede Frutos do Cerrado foram apresentadostodos juntos, exceção ao projeto dos índios Timbira que foiencaminhado um ano depois dos outros.11 Havia um projeto paracada entidade, exceto o de Santa Maria do Tocantins que agregavaduas associações de pequenos produtores e o projeto deAcompanhamento e Monitoramento das ONG’s assessoras – CTI eCentru. Totalizaram cerca de US$ 1,2 milhão, com valores individuaismédios de US$ 80 mil pedidos ao PD/A e contrapartidas médias decerca de US$ 20 mil (ver Tabela 2 no Anexo).

A noção de “contrapartida” do PD/A, oriunda do modelo deprojeto de desenvolvimento do Banco Mundial que exigecontrapartidas governamentais em seus empréstimos como meio deresponsabilização do tomador, tem implícita a necessidade de umatroca: recursos vultosos oriundos dos países mais ricos do mundo,por um lado, trabalho e recursos (ou bens) em uma porcentagemmenor, por outro. O Projeto Frutos do Cerrado estabeleceu na maiorparte dos casos uma contrapartida traduzida na mão-de-obra doscamponeses e índios nos “tratos culturais” dos plantios de frutíferase outros que seriam feitos pelo projeto.12 Entretanto, esta“contraprestação” foi bastante questionada pelos integrantes doFrutos do Cerrado, especialmente os camponeses.

Os termos desta troca são vistos como desiguais na medida quea doação de trabalho, a única contrapartida aparentemente viável àspopulações camponesas e às indígenas, representa na verdade umasobrecarga extenuante de atividade. Os agentes sociais que estariam“trocando” estão situados em lugares bastante díspares em termos depoder e distantes estruturalmente das relações sociais às quais estãofamiliarizados. Isto cria para os camponeses uma certa incom-preensão sobre o porquê deles, que se consideram “fracos” (semcapital econômico, simbólico – incluindo aqui o educacional – oupolítico), terem que dar algo que não seja um voto, que não custanada, para agentes poderosos. O trabalho, para eles, é um recursoaltamente precioso. Ao que parece, os projetos não são encaradoscomo passíveis de relações de reciprocidade, tais como as relaçõespolíticas, de parentesco, de vizinhança e compadrio são. Para os

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11 Foram aprovados em 1995 e começaram de fato em 1996.12 Os chamados “tratos culturais” são os cuidados necessários ao bom desenvolvimento das plantas, tais como podas,

adubação, cuidado com pragas, entre outros.

códigos sociais vigentes, são os “projetos” que devem dar algumacoisa para eles e não o contrário. A única forma de retribuição seriaa prestação de contas aos financiadores e a execução do projeto,mesmo que não integralmente em todas suas formalidades.

Os projetos devem apresentar coerência entre os seus objetivos,atividades e meios arrolados para atingir os resultados esperados. Assim,procura-se planejar e, portanto, prever, a organização lógica deatividades e seus respectivos gastos. No PD/A, exigia-se a apresentaçãode um cronograma de desembolsos semestral de todo o período doprojeto, organizados entre recursos do PD/A e recursos de contrapartida.Os desembolsos eram efetuados quando constatada a regularidade e acorreção nas prestações de contas e dos relatórios de atividades enviadospelos executores. Inicialmente, as prestações de contas eram mensais eos relatórios de atividades semestrais. Entretanto, o numeroso efreqüente atraso de entidades executoras na prestação de contas mensalobrigou ao PD/A estender este prazo para trimestral.

Praticamente todas as entidades do Projeto Frutos do Cerradosofreram bloqueio de recursos pelo PD/A em função de atrasos eirregularidades nas prestações de conta. O caso da AAPPC ilustrabem este drama. Todos os projetos Frutos do Cerrado contavam comum Fundo Fixo, isto é, um recurso utilizado como capital de giro paracompra das frutas coletadas, geralmente em área de terceiros, eenviadas a uma unidade de processamento em Carolina (MA). A idéiaera que este capital fosse sendo reposto na medida em que a “fábrica”lograsse na venda das polpas de fruta congeladas. Isso nãoaconteceu, pois a fábrica e a comercialização de polpas enfrentaramsucessivos problemas. Porém, os sócios da AAPPC, entusiasmadoscom um capital nunca antes obtido, aplicaram-no em itens nãoprevistos no projeto: na compra de farinha seca de sócios parafuturamente revender. Quando obtivessem o dinheiro da venda,reporiam ao fundo. Além disso, tal como todos os outros ProjetoFrutos do Cerrado, atrasaram a entrega dos relatórios mensais deprestações de contas. Isto estava relacionado à falta de condições dosassociados de elaborar relatórios sem a ajuda da assessoria no tempoprevisto pelo PD/A. Estes relatórios exigiam muito tempo doscoordenadores da AAPPC que, com pouco estudo e sem experiênciade projetos anteriores, tinham dificuldades de compreensão econfecção dos mesmos. Os bloqueios iniciais se estenderam por cincomeses (de abril a agosto de 1997), depois houve uma normalização dofluxo de recursos por três meses para novamente serem bloqueadosentre dezembro de 1997 e abril de 1998. Estes bloqueios

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desorganizaram completamente as atividades do projeto e fizeramcom que um dos viveiristas deixasse a ocupação devido ao atrasoexcessivo em seu salário, pago pelo projeto. Além disso, oscoordenadores também contavam com o salário para poder pagaralguém para trabalhar em suas roças ou comprar os gênerosalimentícios necessários enquanto estavam ocupados com o projeto.

Estes relatórios apontam para diversos tópicos importantesnas nossas discussões, desde o rigor tecnoburocrático dasprestações de contas ao PD/A (mensais e semestrais) e asdificuldades dos agricultores em cumprir e compreender os prazosexigidos, até os problemas internos de organização da associação,as dificuldades de obtenção de sucesso do empreendimento dafábrica e a falta de assessoria constante.13 Todas estas questõesremetem às formas de conceber e de organizar o trabalhovinculadas a expectativas, visões de mundo e temporalidadesdiferenciadas entre o planejamento tecnoburocrático do desen-volvimento sustentável, os agricultores e o ritmo próprio dafábrica, administrada pela assessoria indigenista.14 Enquanto asregras do PD/A supõem uma racionalização e um planejamentoótimo de atividades, em que tudo deve dar certo ou, casocontrário, ser justificado, os agricultores estão inseridos em umcontexto em que o projeto é apenas um componente de suas vidas,cujas atividades serão alocadas conforme suas conveniências,ânimos e relações entre si. O tempo dos camponeses é muito maisligado aos ciclos naturais, ao trabalho de roça e à ida à cidade emcasos de necessidade (religiosa, escolar, de mercado, partidáriaetc.) do que ao tempo marcado pelo relógio, pelo horário deexpediente de uma repartição pública, pelo dia do mês ou dasemana. Também por isso descuidaram várias vezes dos prazosestipulados pelo PD/A para entrega de relatórios.

Estão implícitos nestes projetos, portanto, não somente opressuposto de que os proponentes são alfabetizados, ou utilizam-se dealguma assessoria que seja, mas também, para vê-los aprovados porentidades financiadoras, demonstrem um domínio dos “códigos deacesso”, isto é, saber como pedir, o quê pedir e quanto pedir. Dentre os

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13 Quanto ao problema da falta de assessoria constante entraremos em mais detalhes a seguir. 14 Utilizamos o conceito de tecnoburocracia fundamentada em Gouldner (1976) e Herzfeld (1992) para os quais a

burocracia pensada por Weber (1991) como um tipo ideal pressupõe uma “racionalidade plena” que não se verificana prática social. Ao contrário, diz Herzfeld, a burocracia como uma convenção social, está sujeita àsinterpretações e manipulações dos burocratas. Mais ainda, quando os “burocratas” são substituídos ousubordinados aos “tecnoburocratas” associa-se os ideais da racionalidade (com respeito a fins, a valores ou aosdois, nos termos de Weber, 1991), da hierarquia, da impessoalidade e da meritocracia (profissional com o saberadequado para a função exercida), com os valores e saber técnicos e científicos necessários para qualificar estasuposta “impessoalidade racionalizada”. Isto é, o saber técnico só se legitima em função de valores, idéias,objetivos e interesses daqueles de quem se pretende obter legitimidade (GOULDNER, 1976: 270).

itens que mais custam caro nos orçamentos dos projetos estão amanutenção da instituição proponente e, dentro dela, seu quadro depessoal, e a aquisição de bens duráveis. O PD/A seguiu, sob certosaspectos, uma tendência dos financiamentos não-governamentais doNorte às entidades do Sul: a de não enxergar com bons olhos gastosexcessivos com pessoal e infra-estrutura em detrimento dos objetivosdo projeto. Assim, neste contexto, é comum que o orçamento do projetoseja pressionado para baixo nestes itens. Com isso, não só o quadro depessoal das entidades ganha pouco como também é bastante limitadoem termos numéricos, obrigando os poucos “técnicos” ou coorde-nadores a se desdobrarem em uma multiplicidade de atividades. Emúltima instância, a sobreposição de tarefas implica em prejuízos geraisnão só ao cumprimento de atividades programas, mas principalmenteà qualidade e a eficácia das mesmas.

Embora os orçamentos do Projeto Frutos do Cerradoaparentemente parecessem altos, cerca de 72,8% deles foi compro-metido com a compra de um veículo Toyota, para o transporte defrutas, mudas e pessoas, além do material permanente para ostrabalhos de coleta, armazenamento, plantio etc. Sobrando assimpoucos recursos para outros itens, entre os quais, o pagamento dotrabalho dos coordenadores locais e dos viveiristas de cada projeto,resumindo-se a um salário mínimo. Foi comum nos Projeto Frutos doCerrado a divisão deste salário por duas pessoas na medida em quese considerou haver muito trabalho para uma só pessoa. A relaçãoque os camponeses estabeleceram com as pessoas que recebiam estesalário demonstrou como o projeto era encarado no contexto local.Tanto em Carolina quanto em Santa Maria houve problemas comrelação à gestão dos recursos do projeto, especialmente o veículo,cristalizando conflitos internos.

Alguns custos operacionais da utilização do veículo não foramtotalmente orçados nos projetos, como por exemplo, o emplacamentodos mesmos. O óleo diesel programado era limitado, obrigando aoscamponeses e índios estabelecer critérios para a sua utilização. Éimportante levar em conta as distâncias que alguns sócios estão dacidade de Carolina ou de Santa Maria e as dificuldades de acesso àsmesmas, somadas ao dispêndio de tempo e também recursos para tallocomoção. A chegada de bens “preciosos”, tais como umacaminhonete, bem ao qual nunca têm acesso e do qual necessitammuito, e o pagamento (mesmo que pequeno) de um salário para oscoordenadores, aparente segurança financeira que é rara entre oscamponeses, causaram tensões e acusações. Conforme seu Marcelo,

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ex-integrante da direção executiva da AAPPC, “estes que mais ficamfora do projeto, que menos participam, que estão menos junto com ogrupo, são os mais criticadores do trabalho, que mais desacreditam,que mais ficam jogando pesado com os companheiros”. Para ele,muitos sócios queriam usar o carro em seu próprio benefício semcontribuir com o óleo diesel. Queriam que esse dinheiro saísse dobolso dos coordenadores já que recebiam um salário mínimo pelafunção exercida.

A introdução de recursos e de bens controlados por determinadaspessoas, mesmo que eleitas pelos seus pares, aliada à falta de sucessodas atividades organizadas e à “quebra de solidariedade” representadapela negação do uso do carro (coletivo) para fins pessoais, no caso deCarolina, abalaram as relações pessoais entre os integrantes daentidade. Isso aponta, em parte, para a diferença entre a racionalidadecamponesa e a racionalidade do planejamento de atividades e usos debens, característica dos projetos de desenvolvimento e de organizações“burocráticas”, como deveria ser uma associação de pequenosprodutores uma vez inserida em um campo onde as relações nãoseriam caracterizadas pelo personalismo. Enquanto as relações entreos pequenos produtores estão fortemente ligadas a redes familiares, devizinhança e compadrio, as relações estabelecidas pelas regras deprojetos como o PD/A e por organizações burocráticas exigemimpessoalidade e cumprimento efetivo e eficaz das atividades previstas,não podendo haver “desvirtuamento” dos objetivos iniciais para osquais foi elaborado o projeto.

Em Santa Maria contratou-se um motorista e decidiu-se, numprimeiro momento, cobrir os custos de emplacamento, manutenção ede óleo diesel (além do previsto no orçamento) com a prestação deserviços pagos de frete para terceiros (inclusive a Prefeitura) e sóciosdas duas associações. Entretanto, a prestação de contas apresentadapelo coordenador do uso do veículo era deficitária e acarretou numadeterioração das condições do veículo. Agravou-se o problema quandose descobriu que o motorista contratado havia batido o caminhão emfunção de embriaguez. Do meio para o final do projeto contratou-seoutro motorista que, desta vez, revelou-se bastante positivo nãosomente quanto ao zelo necessário com o veículo, mas também comrelação às atividades logísticas e de produção do projeto.

É preciso dizer que em Santa Maria conflitos internos foramgerados em função do desempenho do primeiro coordenador edesentendimentos pessoais entre este e outro sócio, resultando na suasubstituição por duas mulheres, professoras primárias e esposas de

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sócios. Inicialmente vistas com reservas pela maioria masculina,ganharam a aprovação de todos pelo mérito de suas gestões.Transformaram o projeto de Santa Maria num dos mais bem-sucedidos da Rede. O fato das coordenadoras receberem um salário(mínimo, dividido por dois) para desempenhar suas funções commaior disponibilidade fazia com que quase todo o trabalho logístico eprodutivo do projeto fosse considerado pela grande maioria dos sócioscomo de sua responsabilidade exclusiva. Assim, as duas mulheres,ajudadas pelo novo motorista e eventualmente por algum dosmaridos, vizinhos ou sócios, buscavam as frutas nas fazendas echácaras,15 levavam para a sede do projeto, selecionavam, carregavamo caminhão, viajavam para Carolina – onde ficava a fábrica queprocessava as frutas –, traziam de volta as polpas pasteurizadas eembalas e guardavam nos freezers do galpão do Projeto. Não bastandoisso, elas também passaram a processar localmente a cajá, frutaabundante da região, ao invés de levar para Carolina. Novamenteeram quase sempre os três que faziam tudo. Os sócios das duasentidades participantes do projeto colocavam-se à disposição dotrabalho – que seria supostamente de todos – somente mediantepagamento de diária. Por outro lado, todos se mobilizaram em mutirãoquando, no início do Projeto, foi necessária a construção do galpão doProjeto Frutos do Cerrado, do poço do viveiro e do envasamento desacos de mudas para o viveiro. Depreende-se disto que para aquelasatividades extraordinárias e duráveis a solidariedade grupal é ativadana medida em que todos poderão tirar proveito de seu trabalhoposteriormente. Já aquelas atividades cotidianas do projeto, seriamvistas como obrigação exclusiva das coordenadoras e motorista, nãomobilizando a solidariedade coletiva já que cada um tem seus afazerese tempo de trabalho é precioso, as coordenadoras eram pagas e osganhos não são imediatos (a não ser com pagamento de diária).

O cálculo camponês é direcionado pelas vantagens edesvantagens a curto e médio prazo de se dedicar energia, tempo detrabalho familiar e terra para uma atividade ou outra. No caso deSanta Maria, como de resto em todas as outras entidadesparticipantes do Projeto Frutos do Cerrado, inclusive a indígena, otempo dedicado às atividades de roça continuou sendo muito maior doque aquele relacionado aos plantios e outras atividades do projeto,mesmo com a obrigatoriedade formal de uma contrapartida em mão-de-obra gratuita da parte deles no que se referia aos “tratos culturais”.

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15 Em Santa Maria do Tocantins o termo fazenda aplica-se a terra de qualquer tamanho que fique distante da sedemunicipal. O termo chácara, em oposição, refere-se a terras localizadas nas proximidades da cidade.

5. A ORGANIZAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E INSTITUCIONALDAS COMUNIDADES E ENTIDADES

A maior parte das comunidades envolvidas na Rede Frutos doCerrado já tinha um longo caminho de participação em atividadescoletivas institucionalizadas, políticas ou de cunho religioso –Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), sindicatos rurais (STR’s),associações e/ou cooperativas, conselhos municipais, partidospolíticos de esquerda, entre outros. Este não era exatamente o casoda AAPPC e das associações de Santa Maria do Tocantins, embora aprimeira já tivesse longa tradição com CEB’s, STR e partido político,mas não com associação de produtores. A AAPPC foi criada em 1995pelo incentivo que o próprio CTI deu aos integrantes do STR deCarolina, visando a implementação de um pequeno projeto deprodução de doces e cajuína financiado pelo GEF/ PPP.16 Este projetonão parece ter sido bem-sucedido, pois foi deixado de lado em funçãode alguns desentendimentos internos.17 As associações São José eSoninho tinham perfis um pouco diferenciados, sendo a primeiramais politizada e envolvida com o STR e um partido político. Ambas,porém, foram criadas em 1993 com o auxílio da então prefeita domunicípio, no sentido delas receberem recursos de um projetofinanciado pela extinta Superintendência de Desenvolvimento daAmazônia (Sudam). Uma parte dos sócios da São José já tinham tidosucesso com a atividade apicultora, introduzida por uma parceriaentre o sindicato e a Comissão Pastoral da Terra.18

Mas nenhuma das associações tinham tido experiência com umprojeto como o Frutos do Cerrado, com uma proposta produtiva eambiental alternativa aos plantios e criações conhecidas por eles. Aoque parece, houve intensa participação dos envolvidos, tanto emCarolina quanto em Santa Maria, na confecção dos pequenos

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16 Trata-se do Programa de Pequenos Projetos do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environmental Facility),fundo multilateral de doações de diversos países criado em novembro de 1990, administrado pelos Programas deDesenvolvimento e de Meio Ambiente das Nações Unidas, respectivamente, PNUD e PNUMA, e pelo Banco Mundial.O Programa de Pequenos Projetos é administrado por ONG’s nacionais (Cf. ROS FILHO, 1994).

17 Segundo relatos colhidos, três foram os problemas do pequeno projeto. Primeiro, não houve consulta às mulheres– que fariam os doces e a cajuína – quanto às especificações técnicas dos tachos necessários à confecção dosdoces, resultando em tachos muito grandes e difíceis de serem operados. Em segundo lugar, as mulheres não seentendiam quanto à melhor receita de doce a ser feita, cada uma tendo as sua e havendo muita diferença naqualidade da produção. Por fim, um dos principais produtos – o doce de caju e a cajuína – eram facilmente feitosde forma artesanal em Carolina por quaisquer pessoas, dada a abundância desta fruta e a tradição de sua utilização.Assim, o mercado teria que ser regional, o que ainda não era possível de se alcançar.

18 Inicialmente a CPT cedia todo o material necessário para a criação de abelhas e a assessoria técnica permanente,totalizando um custo de R$ 94,00 que podia ser pago em litros de mel em três anos. Todos que se aventurarampela apicultura conseguiram pagar todo o material e ter lucro com a venda dos litros de mel. Em função destaatividade bem-sucedida, o Projeto Frutos do Cerrado era complementar, pois ao propor a manutenção de áreas demata e o consorciamento de culturas agrícolas com espécies frutíferas nativas do cerrado além de outrasornamentais ou simplesmente adubadeiras, possibilitava também a manutenção das floradas necessárias àprodução de mel.

projetos, junto com o CTI e o CENTRU. A proposta do projeto erasedutora na medida que incentivava objetivos “comunitários” eporque não dizer “utópicos”, no sentido de mudar o futuro daquelescamponeses e indígenas para uma maior autonomia e segurança(alimentar, de vida, fundiária), proporcionando com isso melhor auto-estima e algum poder. Lembramos que a religiosidade cristã, no casodos camponeses, é bastante importante a ser levada em conta devidoaos seus aspectos integrativos e, conseqüentemente, organizacionaise valorativos. A ideologia/utopia ambientalista incorpora algo dodiscurso milenarista e social (marxista) presente na cosmologiacristã, articulada especialmente pelas CEB’s. Além disso, o projetoinovava também na parceria entre índios e camponeses, ampliando oconhecimento que ambos grupos tinham de si e do outro,possibilitando igualmente a interação entre camponeses e entre cincosociedades indígenas Timbira, aparentados lingüisticamente eculturalmente entre si.

Tudo isso possibilitava que a comunicação entre as ONG’sassessoras e as entidades de camponeses, especialmente, fosse fluidae relativamente constante, havendo uma mudança no comporta-mento da maioria dos agricultores destas duas entidades quanto aoscuidados ambientais em suas respectivas propriedades. E mesmocom os “erros de gestão” dos projetos e alguns problemas de relacio-namentos, houve um aprendizado quanto às necessidades organiza-cionais, inclusive as produtivas. Mais ainda, uma abertura dehorizontes possíveis para o modo de vida camponês.

Por outro lado, a gestão do projeto e das respectivas entidadesfazia emergir conflitos, problemas e soluções que revelavam maior oumenor habilidade em lidar com questões produtivas, relativas a umsistema de produção capitalista, juntamente com lealdades políticas,parentais, de vizinhança ou outras afinidades. As clivagens sociais,tais como instrução/não instrução; posse de terra/propriedade deterra; homens/mulheres, poder simbólico e/ou político/ausência depoder, iam aflorando conforme as situações sociais assim o exigiam,delimitando os encaminhamentos e resultados possíveis.

A comparação dos projetos de Santa Maria do Tocantins e deCarolina permite observar o quanto as características locais dasorganizações e, por conseguinte, de seus participantes, são importantes,mas não exclusivas, na qualidade destes pequenos projetos.

Em Carolina, apesar de uma longa experiência dos sócios daAAPPC com o STR local e com as CEB’s, houve uma certa reticêncianas tomadas de iniciativas dos líderes em função de uma espera de

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auxílio dos assessores do CTI, localizados na mesma cidade, emfunção mesmo de não terem experiência de como agir enquantoassociação e enquanto executores do projeto PD/A. O CTI tambémprecisou do auxílio, sempre pronto, dos associados e de seu viveiropara estabelecer as parcerias com as aldeias indígenas e mesmo parao funcionamento da “fábrica” de polpas. Talvez mesmo em função daproximidade das duas entidades, as relações econômicas e sociaismais formais tenham dado lugar às expectativas de reciprocidade departe a parte nem sempre correspondidas. O fornecimento de frutaspara a fábrica e o pagamento por estas foi um ponto deestrangulamento da relação entre a AAPPC e o CTI (que na práticaacabava representando a fábrica e os índios). Embora esta questãoseja tratada no item subseqüente, queremos ressaltar aqui que taisproblemas não foram resolvidos a contento antes do fim do projetopela AAPPC e pelo CTI, criando não só um certo mal-estar na relaçãoentre ambas entidades, mas também um certo descrédito por partedos agricultores na capacidade de sua associação de darprosseguimento ao projeto após o término do financiamento peloPD/A. A AAPPC estava aguardando o pagamento, por parte da“fábrica”, de uma série de pendências, inclusive a devolução de bensmateriais emprestados, mas também de pagamentos por serviçosprestados à Associação Atlética Banco do Brasil de Carolina já hámuito tempo postergados. Não contava com nenhum centavo emcaixa ao final do projeto. Por conseguinte, o projeto de Carolinaterminou com uma crise interna na organização dos agricultores epoucas chances de continuidade das atividades relativas à propostado Frutos do Cerrado.

O caso de Santa Maria do Tocantins foi oposto. Foi o únicoprojeto que terminou com dinheiro em caixa, refletindo uma boaadministração “das mulheres”, como diziam os camponeses.Diferentemente da entidade de Carolina que esperou a fábrica venderos produtos para depois receber o que lhe era devido, a coordenaçãode Santa Maria levava suas frutas para a fábrica e as trazia de voltaprocessadas, prontas para vender, fazendo também a própriadivulgação municipal e regional. As associações de Santa Mariaconseguiram estabelecer relações de comercialização estáveis comduas escolas de municípios vizinhos. A cada ano, as entidades daRede Frutos do Cerrado tentaram novas estratégias de produção ecomercialização já que a fábrica não tinha condições de receber aquantidade de frutas que chegavam. No primeiro ano de projeto(1996/97), as entidades de Santa Maria, assim como as outras da

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Rede, levaram tudo que colheram de cajá e caju para a fábrica.Perderam muito caju, mas cajá nem tanto. No segundo ano (1997/98),levaram caju para a fábrica, que já contava com um container paraarmazená-lo e uma despolpadeira nova, mas não levaram o bacuriprocessando-o localmente. No terceiro ano (1998/99) repetiram aestratégia do segundo ano. Em 2000, quando já estava oficialmentefinalizado o projeto, não colheram caju porque estavam esperando oresultado do pedido de refinanciamento ao PD/A, mas colheram cajá eprocessaram-na localmente com uma pequena máquina emprestadada fábrica. Com estas estratégias, venderam seus produtos e foramcobrindo lentamente os prejuízos iniciais com o uso do fundo fixo. Noviveiro, houve a produção de mais de vinte mil mudas durante os trêsanos de projeto tendo sido distribuídas para os sócios gratuitamente etambém vendidas para pessoas do município. Assim, demonstraramcapacidade empresarial e conseguiram ganhar a aprovação tantointernamente quanto da Rede e do PD/A.

As entidades de Santa Maria foram então procurando seadaptar aos padrões exigidos pelo PD/A para não perder ofinanciamento e a chance de fazer algo diferente que eles sentiam serimportante para dar “algum futuro”. Mas isso não quer dizer que seusintegrantes tivessem uma visão homogênea do projeto ou das pessoasque o geriam, ou mesmo que um suposto “senso comunitário” ou desolidariedade prevalecesse sem que houvesse por trás dele conflitosde interesse. Já dissemos antes da racionalidade camponesa quantoà divisão do trabalho em relação ao projeto e em relação às suasatividades tradicionais. Soma-se a isso os desempenhos diferenciadosdas duas associações de agricultores de Santa Maria. Enquanto aassociação denominada Soninho, das duas coordenadoras, terminouo projeto angariando novos sócios e credibilidade, a São José,terminou enfraquecida, perdendo sócios e não atraindo a atenção defuturos interessados.

O fortalecimento da Soninho e o enfraquecimento da São Josétem várias razões. No caso da primeira, a avaliação positiva tanto dossócios quanto da Rede e do PD/A em relação à coordenação doprojeto foi o ponto principal. Boa em termos de gestão dos recursos,organização do trabalho, distribuição de informações e comer-cialização dos produtos. Em segundo lugar, porque o viveiro foiapontado como um dos melhores da Rede Frutos do Cerrado pelaavaliação final do projeto feita pelos consultores Leroy e Toledo (2000:61) sendo a viveirista mais envolvida também da Soninho. Emterceiro, a fruta principal existente nas áreas dos sócios da Soninho

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(a cajá) pôde ser processada pela fábrica desde o começo do projeto,embora houvesse muita perda no transporte. Já a Associação SãoJosé, foi progressivamente perdendo sócios em função de seusconflitos internos e da relação negativa que alguns de seusintegrantes estabeleceram com o técnico agrícola do CTI e em partecom a coordenação “das mulheres”.19 Além disso, a fruta principal deocorrência da área deles era o buriti, processado pela fábrica somentemais ao final do projeto. Houve também mais dificuldade de seusintegrantes assumirem as atividade de coordenação e participarem decursos (grau de instrução muito baixo e prioridades políticas).Embora o seu então presidente alegasse que as desistências estavamrelacionadas ao pagamento de mensalidades, esta parece não ter sidoa única razão. Por um lado, a Associação São José se assemelhou àAssociação de Carolina, mas por outro, como estava ligada àAssociação Soninho, pôde contar com ela como agente intermediáriona relação com o PD/A e com a Rede Frutos do Cerrado como umtodo. Mesmo assim havia uma certa tensão entre os líderes da SãoJosé e os da Soninho em função das desconfianças levantadas pelosprimeiros quanto à gestão dos recursos do projeto.20 Por um lado,alguns integrantes da Associação São José se sentiam emdesvantagem em relação à Soninho por não assumir a coordenaçãodo projeto mesmo quando a pessoa que eles condenavam saiu e oposto ficou vago. Por outro lado, parecem ter compensado estesentimento com as críticas que faziam, como uma tática, talvezinconsciente, de recuperar um poder que de certa forma seacumulava na outra entidade em função do capital simbólicoadquirido. Segundo Bourdieu (1996), a distribuição dos diferentestipos de capital determina a posição dos agentes na estrutura doespaço social. A acumulação deste capital pela outra entidade teriaentão desequilibrado as relações entre elas. Esta tensão também foipercebida pelos avaliadores finais do projeto (LEROY e TOLEDO,2000: 60) que recomendaram a entrada de outras entidades depequenos produtores de Santa Maria no projeto para neutralizar “asdificuldades em se entender” das suas associações.

Vale lembrar também que a associação Soninho era formadabasicamente por uma família extensa e vizinhos, com propriedade daterra de tamanho médio de 80 hectares, sendo a maior parte natural

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19 Com o técnico agrícola do CTI houve desentendimentos quanto à concepção ecológica do projeto. Algunsintegrantes da São José achavam necessário a utilização de adubo (químico) nos plantios das frutíferas feitos nocerrado, além da utilização de tratores para “gradiar” as terras. O técnico agrícola foi contra, pois isso contrariavaa proposta de agricultura alternativa presente no Frutos do Cerrado.

20 Houve acusações e desconfianças dos integrantes da São José quanto à transparência de uso dos recursos coletivosdo projeto pelas coordenadoras. Estas, por sua vez, respondiam dizendo que as contas eram transparentes e que eramos seus acusadores destituídos de instrução para avaliar as contas do projeto, disponíveis nos arquivos do galpão.

da região de Santa Maria e de Pedro Afonso. A associação São José, porsua vez, era formada por vizinhos, majoritariamente vindos de outrosEstados, especialmente Piauí e Maranhão, nas décadas de 1950 e 60,comprando direitos de posse. Estas estavam sendo tituladasgradualmente, com extensão média do lote igual a dos agricultores daSoninho. Entretanto, a qualidade das terras dos integrantes das duasassociações era diferente. As da Soninho eram mais férteis,predominando solo argiloso e úmido, enquanto que as da São Josépredominavam solos secos e arenosos. Esta característica influiutambém nas diferentes participações das entidades no projeto,especialmente quanto ao tipo de fruta nativa que ocorria e aodesenvolvimento dos plantios. A solidariedade familiar também pareceter feito diferença no desempenho da Soninho, em oposição à São José.Embora “as mulheres” tenham sofrido com algumas tensões familiarespelo fato de ao assumir as atividades do projeto deixarem em segundoplano as atividades “domésticas”, a divisão do trabalho do projeto edoméstica foi sendo ajeitada, sendo os seus maridos os sócios daSoninho e responsáveis pelas atividades tradicionais dos agricultores:roça, criação e comercialização da produção. Como elas eramprofessoras, já estava definido um lugar social “fora” do ambientedoméstico que as permitiu flexibilizar papéis de gênero camponês,sendo elas que estabeleciam os contatos das entidades de Santa Mariacom o CTI, o PD/A, a Rede Frutos do Cerrado, entre outros. No caso daSão José, não havia ninguém que pudesse assumir integralmente acoordenação das atividades do projeto sem deixar de levar à diante ospróprios afazeres.

Para finalizar, apontamos para a questão do acúmulo ou não decapital simbólico e poder político dos executores dos projetos.Tomando de empréstimo as categorias locais – e camponesas – deforte/fraco para atribuir mais ou menos capital simbólico e poderpolítico aos atores sociais participantes do Frutos do Cerrado,sugerimos que os camponeses associados ao projeto de Santa Mariasaíram fortes do projeto, muito embora os da associação São Josétenham saído relativamente fracos. Em Carolina, os camponesessaíram fracos, com poucas perspectivas de continuidade, pelo menosem 2000. Mas estas “qualidades” não foram necessariamente assimao longo de todo o projeto.

Um dos pontos que chama atenção é que o projeto de SantaMaria foi o único da Rede Frutos do Cerrado foi proposto pelaPrefeitura local, em função da exigência legal do PD/A de que asentidades proponentes teriam que ter pelo menos um ano de

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existência para pleitear recursos. Assim, a Prefeitura era responsávelformalmente pela assinatura de papéis e alguns encaminhamentos,embora na prática eram os executores (no caso as associações São Josée Soninho) que faziam tudo.21 Este fato deu margem à Prefeitura de seutilizar indevidamente não só de recursos do projeto como de alguns deseus bens duráveis (o caminhão) causando tanto atrasos nasatividades previstas, quanto a depreciação do caminhão e problemasfinanceiros ao projeto. Na mais longa tradição clientelista local, houvedificuldade das entidades, durante o primeiro ano de projeto, de exigira resolução da questão inclusive porque a prefeita era umapersonalidade carismática, fundadora do município e apoiadora dasassociações desde o início. Foi necessário que o CTI e o Centruintervissem, em outubro de 1996, através da formalização de repassedos bens para o Projeto e do comprometimento de devolução dosrecursos indevidamente utilizados pela aprovação de um Projeto de Leimunicipal, sancionado pela prefeita. Entretanto, os reparosnecessários no caminhão e a devolução dos recursos ao projeto aindaestavam pendentes em fevereiro de 1997, quando o CTI renovava seupedido ao novo prefeito, recém-empossado. Para que esseprocedimento fosse concluído ainda foram necessárias outrasinsistências até que, por fim, a prefeitura sanou seus compromissos.Em função desta dificuldade inicial, alguns sócios se afastaram doprojeto. Isso demonstra o quanto pequenos projetos em localidadesdiminutas estão sujeitos aos sabores das alianças políticasestabelecidas entre atores sociais locais e da correlação de forças entreos mesmos.22 Em muitos projetos financiados pelo PD/A, os recursos aele destinados eram bastante significativos se comparados aoorçamento municipal, sendo então objeto de grande interesse tanto porparte dos políticos locais, quanto dos coordenadores e entidadesproponentes dos projetos. Tendemos a sugerir que sem a intervençãoinsistente da assessoria das ONG’s e mesmo do PD/A – agentesexternos ao local – esta situação poderia ter se prolongado, levando oprojeto de Santa Maria a tomar um rumo diverso daquele que tomou.De qualquer forma, a resolução deste impasse, entre tantos outros,possibilitou às associações de pequenos agricultores de Santa Mariauma virada nos destinos do projeto e um fortalecimento das mesmasao final, frente ao PD/A e à Rede Frutos do Cerrado como um todo.

21 A existência das categorias “proponente” e “executor” foi uma estratégia do PD/A para possibilitar que as entidadesque realmente fossem executar o projeto, mas que não tivessem no mínimo um ano de existência, pudessemtambém apresentar projetos através da figura de um “proponente”, outra entidade, que cumpria tais exigências eque repassaria todos os recursos e bens para a “executora”.

22 Ressaltamos aqui que Santa Maria do Tocantins foi emancipada como município em 1992 e segundo o Censo de2000 do IBGE, continha uma população de 2.226 habitantes, sendo 1.034 na “zona urbana” e 1.192 na “zona rural”.

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6. ASSESSORIA TÉCNICA E AS DIFICULDADES DEPROJETOS COM FINS ECONÔMICOS: TERMOS DAPARCERIA

Os baixos orçamentos para pagamento de pessoal e para osdemais custos de manutenção institucional afetam sobremaneira otrabalho das ONG’s. Um projeto como o Frutos do Cerrado previamuitas e complexas atividades: a manutenção de uma fábrica depolpas e a comercialização das mesmas que exigiam um articuladotrabalho de logística, marketing, qualidade, quantidade eregularidade de produção; a assessoria aos plantios e entidades nocampo; as prestações de contas do projeto como um todo e do projetode Acompanhamento e Monitoramento; as reuniões da Rede toda; ainstalação de viveiros; o plantio das mudas nas propriedades dossócios e nas aldeias; a procura de outras fontes de financiamento quecobrissem atividades e itens não contemplados no PD/A; efinalmente, a articulação política e ideológica da Rede como um todo.Para além do Projeto Frutos do Cerrado, as ONG’s, associações ecooperativas estavam envolvidas com outros assuntos, sendo oProjeto Frutos do Cerrado uma parte da ocupação de seus respectivostempos de trabalho. O número de pessoas que se encarregam decoordenar atividades é sempre diminuto frente ao conjunto detarefas. O Centru, por exemplo, contou na maior parte do tempo comapenas três ou quatro pessoas, sendo um educador, uma advogada eassistente social e um ou dois engenheiros agrônomos. O CTI contoucom dois antropólogos, um técnico agrícola e um engenheiroagrônomo que não ficou todo o período do projeto embora tenhaparticipado desde o início do Projeto Frutos do Cerrado, antes mesmode ser aprovado pelo PD/A. Portanto, oito pessoas no total para lidarcom 11 associações e cooperativas situadas geograficamentedistantes, sendo uma das associações, a indígena, congregava dezaldeias diferentes dos povos Krahó, Krikati, Apinayé, Gavião-Pykobyêe Kanela-Apãniekra.

Como é possível de prever havia muito trabalho para poucagente. O resultado foi o atropelamento de atividades, especialmentequando umas atrasavam ou inviabilizavam outras. Um exemplo era odos plantios feitos pelos agricultores e índios, nem sempreacompanhados pelos técnicos, acabavam por perecer em grandesquantidades. A Rede Frutos do Cerrado experimentou uma série dearranjos organizacionais para dar conta do volume de trabalho,dentre os quais a separação de atribuições em duas Secretarias

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Executivas, uma em Carolina, onde se situava o CTI, e outra emImperatriz, onde estava o Centru. Cada Secretaria, em função de sualocalização geográfica e de suas relações históricas com os gruposenvolvidos, tinha a responsabilidade de acompanhamento dosprojetos de cerca de metade das associações e cooperativas da Rede(ver Figura 3 e Croqui 1 no Anexo).23 Tais Secretarias executavam asdecisões tomadas num órgão superior do qual todas as entidades daRede participavam: o chamado “Conselhão”.

Este “Conselhão” se constituiu num fórum importante para osintegrantes da Rede se relacionarem, se conhecerem e discutiremposições e abordagem. Entretanto, as dinâmicas das reuniões, afreqüente desarticulação entre aquilo que se decidia e aquilo que sefazia e especialmente os termos da parceria entre os índios Timbira eos pequenos produtores, traduzida na relação entre Centru e CTI,foram de certa forma minando a coesão da Rede durante do Projeto.

O projeto começou, com este nome, efetivamente no CTI em1993, portanto, antes de agregar o Centru e as cooperativas depequenos produtores a ele associadas e antes de ser apresentado aoPD/A. Era um projeto de diagnóstico da oferta de fruta nativa docerrado dos municípios circunvizinhos das áreas indígenas Timbirapara um posterior beneficiamento. Neste processo, o antropólogo e oengenheiro agrônomo do CTI tomaram conhecimento do Centru e dascooperativas que acabavam de ser criadas, além de incentivarem acriação da Associação de Carolina. Para o Centru, o trabalho comfrutas e sistemas agroflorestais já vinha ocorrendo, embora nãotivessem pensado em frutos variados do cerrado mas sim em caju,apenas. A proposta de parceria com o CTI e os índios foi muito bem-aceita, vista como uma possibilidade de ampliação de perspectivas,como a proteção do cerrado, e o fortalecimento de alternativaseconômicas e sociais aos camponeses do sul do Maranhão.

Todavia, os termos desta parceria foram mal colocados einterpretados de parte a parte. Inicialmente, os índios entravam coma máquina de processamento de frutas, já instalada em Carolina, eos camponeses entravam com as frutas, obtendo parte do eventuallucro da “fábrica” com a venda das polpas. A expectativa doscamponeses e do Centru é que eles seriam também sócios da fábrica,compartilhando da marca criada, Fruta Sã. Dado um ano de projeto,os Timbira reclamaram que sua participação no projeto era

23 A Secretaria Executiva de Carolina ficou encarregada de assessorar a Associação Vyty-Cati das ComunidadesIndígenas do Maranhão e Tocantins e suas dez aldeias associadas, além das associações de Carolina (MA), SantaMaria do Tocantins (TO) e das cooperativas de Loreto, Riachão e São Raimundo das Mangabeiras (todas no MA). OCentru, por sua vez, assessorava as cooperativas de Imperatriz, Amarante, Montes Altos, João Lisboa e Estreito,todas no Maranhão.

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praticamente inexistente, alegando que “só os kupen (brancos, não-índios) tinham ganhado carro, e eles nada”. O CTI se mobilizou paraelaborar um projeto para a Associação Vyty-Cati, aprovado pelo PD/Apara dois anos de duração.

As reuniões do “Conselhão” tinham estilo sindical, fruto daexperiência da maioria dos seus participantes, o que dificultava amanifestação dos representantes indígenas. Isso resultou numafreqüente representação dos índios exercida pelo CTI e um certoafastamento das lideranças indígenas das reuniões. Houve difi-culdade de programar atividades, fora do âmbito do “Conselhão”, quepermitissem uma maior convivência entre índios e não-índios,fazendo com que o grosso os camponeses e dos índios não seconhecessem mutuamente. Apenas aqueles que exerceram papéis deviveiristas e coordenadores, os “intermediários”, tiveram a oportuni-dade de conhecer pessoalmente e conversar com os outros integran-tes da Rede. Assim, as poucas tentativas de relacionamento localentre índios e camponeses resultaram mal-sucedidas na medidamesmo em que o contato inter-étnico tem sido pautado por umasituação histórica destas relações, “definidas pelos modelos eesquemas de distribuição de poder entre os diversos atores sociais”envolvidos (OLIVEIRA FILHO, 1988: 57). Nesta situação histórica, osíndios ocupam não só o local de “selvagens” como também defacilmente enganados e explorados.

Um caso que ilustra bem tais fatos foi o dos Krikati e acooperativa de Montes Altos. A Terra Indígena Krikati é a única dosTimbira até o momento não demarcada, embora já reconhecida comoárea indígena pelo governo desde 1992, depois de um longo processode invasão do território. Os Krikati estão situados na área deinfluência da Companhia Vale do Rio Doce e também da Eletronorteque mantém linhas de transmissão de energia da Hidroelétrica deTucuruí (PA) para outras regiões dentro do seu território, tambémcortado ao meio por uma estrada estadual. As diversas tentativas dedemarcação da área se arrastam desde 1992 sempre sendointerrompidas pela pressão de políticos e de liminares da justiçaarticuladas aos interesses de posseiros, fazendeiros e deputadosestaduais maranhenses. Numa das várias tentativas de demarcaçãoda área, durante o início do Projeto Frutos do Cerrado, a cooperativade Montes Altos se predispôs a criar uma “cantina” dentro da áreapara facilitar o acesso dos índios aos bens industrializados que elescostumavam comprar na cidade, evitando que estes corressem o riscode sair da área e serem alvo de violência física. No entanto, a

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cooperativa não só usou parte do dinheiro do PD/A para investirnisto, como também vendia os produtos a preços abusivos. Os índios,por sua vez, começaram a se valer das relações de parentesco parapegar alguns produtos em nome deste ou daquele e pediam fiado. Nofim, a cantina ficou sem receber um bom dinheiro e a cooperativa deMontes Altos culpou os índios publicamente por várias vezes emeventos com a Secretaria Técnica do PD/A pela sua situaçãofinanceira abalada. Em função disso, a cooperativa se desestruturou.O não pagamento pelos Krikati, neste caso, foi uma forma de fazervaler seus interesses próprios e mesmo a sua visão do papel que oskupen ocupam em sua mitologia.24

A expectativa do Centru e dos pequenos produtores de setornarem sócios da “fábrica” da Fruta Sã frustrou-se definitivamentequando ao final do período do projeto os índios decidiram que afábrica e a utilização da marca era de sua exclusividade. Estafrustração foi de certa forma percebida pelos camponeses como“traição”. Tinham investido tudo na fábrica esperando um retornoexpresso pela constituição de uma “sociedade”. A resposta a esta“traição” veio quando, em março de 2000, foi criada a Central deCooperativas Agroextrativistas do Maranhão – CCAMA, pelo Centru eas cooperativas de Amarante, Imperatriz, João Lisboa, Montes Altos,São Raimundo das Mangabeiras, Estreito e mais uma de Balsas, quenão tinha participado do Projeto Frutos do Cerrado. O estatuto destaCentral excluía a possibilidade de “associações” integrarem-na.Assim, tanto as associações de Santa Maria do Tocantins, de Carolinacomo a Vyty-Cati, não tinham como dela fazer parte. Cristalizava-seaquilo que os representantes das ONG’s afirmavam sobre a “parceria”da Rede Frutos do Cerrado: separados economicamente eadministrativamente, mas ainda aliados politicamente.

A Rede Frutos do Cerrado procurou assim criar um“denominador comum” (middle ground) (CONCKLIN e GRAHAM,1995) entre os interesses de cada ator social envolvido na aliança.Conforme White (1991 apud CONCKLIN e GRAHAM, 1995: 695), o

24 Entre os Timbira há um mito que justifica a posição dos brancos (kupen) como eternos devedores dos índios(mehin), tendo que lhes presentear periodicamente com seus bens. É o mito do Aukê, uma espécie de demiurgo dasrelações interétnicas. Há várias versões deste mito, mas todas elas enfatizam que Aukê seria uma figura intermediária– meio homem e meio animal ou meio indígena e meio não-indígena. De qualquer forma, este ser tinha propriedadesmágicas, dentre as quais, a de se transformar. Aukê teria dado a possibilidade dos mehin e dos “cristãos” (kupen)escolherem entre o arco ou a espingarda. Como os mehin escolheram o arco, permaneceram mehin com toda a culturamaterial e simbólica dos mehin. Já os “cristãos”, escolheram a espingarda e, portanto, ficaram com toda a culturamaterial do kupen. Como isso foi considerado injusto pelos mehin, os kupen são obrigados a compensá-los com algunsde seus próprios bens. Nas relações sociais reais entre os Timbira e a sociedade envolvente, tal ideologia transparece,inclusive através da ocorrência de mais de um movimento messiânico, entre os Krahó (por volta de 1951) e entre osKanela-Ramkókamekra (por volta de 1963), para corrigir tal “injustiça”. Os profetas de tais movimentos messiânicosanunciavam que os mehin iam se transformar em kupen e, assim, ter acesso a todo tipo de bens da sociedade industrialque passaram a desejar com o contato (Cf. MELATTI, 1972; CROCKER, 1976; CUNHA, 1973).

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middle ground é “a construção de mundos mutuamentecompreensíveis caracterizados por novos sistemas de significado etrocas”. Concklin e Graham usaram o termo para interpretar asalianças que o ambientalismo internacional e o “movimento étnico”brasileiro fizeram especialmente nos anos 80 e 90 do século XX.25

Segundo as autoras, o middle ground seria forjado com base empressuposições a respeito do Outro e naquilo que este Outro poderiacontribuir para objetivos específicos (1995: 696). A idéia decomunalidade entre os índios e os ambientalistas do Primeiro Mundoapelaria às audiências transnacionais em parte porque ressoaria pormeio de múltiplas tendências culturais ocidentais, entre elas a dafigura do “nobre selvagem ecológico” (idem). Entre os pontos detensão e precariedade desta “aliança”, as autoras colocam o fato delaestar baseada em representações simbólicas de uma autênticaindianidade que não corresponde à realidade. Isto é, atitudes como avenda de mogno, a permissão de mineração no interior das áreas eoutras ações tomadas por índios de carne e osso, chocam-se com esteideário e podem fazer com que críticas generalizantes recaíam sobreas sociedades indígenas fundamentadas por um imaginário que nãocorresponde à realidade (idem: 702). Se a aliança foi “costurada porcima”, com base em ideais de solidariedade e parceria, na prática, acomplexidade de interesses, códigos e demandas minou esta tentativade união. Após este processo de aprendizagem, para muitaslideranças da Rede Frutos do Cerrado, as alianças poderiam serconstruídas com base nos interesses econômicos – nos negócios – oupolíticos, relativos à defesa ou ao apoio genérico de uns pelos outrosem casos específicos.

A aliança entre pequenos produtores e índios, até onde se saibaé inédita do ponto de vista de um projeto comum, e a proposta da RedeFrutos do Cerrado era bastante ambiciosa e complexa, encaixando-seperfeitamente nos ideais do desenvolvimento sustentável: enfatizava aautodeterminação indígena a partir de uma “autonomia econômica”,atendia aos pequenos produtores marginalizados historicamente portodas as políticas públicas, conservava o meio ambiente pelo“aproveitamento racional dos recursos naturais”, da implantação desistemas agroflorestais e manejo de capoeiras. Era enfim, umaproposta legítima e de certa forma original de entidades “de base”,organizadas, experientes, que merecia a atenção e o apoio do PD/A. Tal

25 As autoras se referem especificamente a casos de personalidades indígenas que ganharam espaço na mídia nacionale internacional em função sua atuação em defesa da Amazônia ou dos direitos indígenas, tais como o Xavante MárioJuruna no final dos anos 70 e vários Kayapó nos anos 80 e 90 do século XX: Paulo Payakan, Raoni e Cube-i.

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imagem foi fundamental para a aprovação, pelo PD/A, dos váriosprojetos Frutos do Cerrado. Mas ao longo da execução dos projetos a“realidade” foi fazendo o PD/A insistir nos parâmetros do projetismo(aspectos técnicos de planejamento e organização de atividades) e daeficiência econômica e logística.

7. A REDE FRUTOS DO CERRADO E O PD/A: DO NAMOROAO PROJETISMO

Os problemas não somente técnicos ou econômicos do ProjetoFrutos do Cerrado procuraram ser equacionados de diversas formaspela própria Rede, com um auxílio do PD/A na contratação deconsultorias diversas e no monitoramento atento.

Em função da importância ideológica do Projeto Frutos doCerrado, do volume de recursos doados pelo PD/A e do fato do Projetoter sido um dos primeiros aprovados pelo Subprograma, a SecretariaTécnica dispensou muita atenção à Rede inicialmente. Como aspróprias regras de funcionamento e os contratos de doação do PD/Aainda não estavam muito claros e definidos, permitiram a existência de“capital de giro” para o Frutos do Cerrado sob o nome de “fundo fixo”,o que não parece ter ocorrido em outros projetos financiados peloPD/A. Além disso, ao longo de sua duração receberam uma gamaextensa de monitorias e visitas dos técnicos do PD/A, de consultores,de representantes do Banco Mundial, do Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID), do Grupo Consultivo Internacional (IAG), daSecretaria de Coordenação da Amazônia (SCA), do Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico e Social, além de várias outras ONG’s.Este “sucesso de público” diz alguma coisa sobre o status da propostatanto para os agentes econômicos do PP-G7 quanto para os agentesgovernamentais e sócio-ambientais. O “excesso de visitas”, comocolocaram vários integrantes da Rede, tornou-se algo bem desagradávelporque pressionava o projeto a apresentar resultados e formas deorganização voltados prioritariamente para a configuração de umaempresa, seu ponto mais frágil.

A questão da avaliação das diferentes sustentabilidades dosprojetos PD/A revelou as diferentes expectativas tanto dosprofissionais da Secretaria Técnica do Subprograma e do PP-G7,quanto daqueles que receberam o financiamento. Se, teoricamente, anoção de desenvolvimento sustentável pretende se mostrar como algointegral, ou seja, que procura equilibrar demandas sociais,

181Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

ambientais e econômicas, a ênfase dada às avaliações dossubprojetos foi freqüentemente econômica, residualmente ambientale quase nada social, já que os fatores econômicos e ambientaisseriam mais facilmente observáveis e quantificáveis no espaço curtode tempo disponível para tanto. O Projeto Frutos do Cerrado foi umdos poucos do PD/A que recebeu uma quantidade considerável deconsultorias de avaliação e redesenho (oito ao todo), sendo quatrodelas focalizadas eminentemente nos aspectos econômicos ecomerciais, duas mesclando os aspectos econômicos e sociais e aúltima mais preocupada com os aspectos sociais (organizacionais eeducativos) e ambientais, embora também considerasse oseconômicos.26

Como o projeto envolvia uma iniciativa “empresarial” mas nãose restringia a ela, as avaliações acabaram focalizando naquilo queconsideravam os entraves para o sucesso, comercial do empreen-dimento, sugerindo um plano de negócios, estratégia de marketing,descentralização das unidades processadoras, infra-estruturaadequada, enfim, uma gerência eficiente segundo os critérios daracionalidade capitalista (mesmo que em pequena escala), colocandoem segundo plano relações de afinidade entre pessoas e entidadesconectadas por redes sociais múltiplas e as próprias condiçõesconcretas e históricas daqueles grupos envolvidos. Restava saber, noentanto, se camponeses e índios (e mesmo as ONG’s) estavamdispostos, queriam ou tinham condições de se transformarem empequenos empresários em termos capitalistas e, se isso fossepossível, em quanto tempo e de que forma ocorreria.

Enquanto as avaliações fazem parte da lógica do planejamentoe execução de projetos sendo justificadas para melhorar a eficiênciaalocativa de recursos e esforços, os camponeses e mesmo as ONG’sdo Projeto Frutos do Cerrado reclamaram que a quantidade dedinheiro empregada nas mesmas poderia ter sido muito bem utilizadapara suprir as carências orçamentárias dos diferentes projetos(pagamento de tratos culturais, das despesas com o veículo, de maispessoas envolvidas etc.) e desta forma melhorar o desempenhoeconômico, esperado pelo PD/A. No entanto, uma vez aprovado oprojeto com determinado orçamento, ele não poderia ser modificadocom o aumento dos recursos pedidos, já que isso não faz parte desta

26 Não tive acesso a dois relatórios de consultoria, mas soube de sua existência pela citação deles em outrosrelatórios. Pelo título é possível classificar uma delas como econômica (GIORDANO, Samuel R. Estudo de ViabilidadeEconômica, janeiro de 1997) mas a outra não é possível dizer (CARVALHO, Valter. Análise da Situação Atual eProposta de Medidas de Aperfeiçoamento, junho de 1997). Por isso, esta última não pode ser “classificada” por mimem nenhuma das categorias que me interessavam.

182 Ana Carolina Cambeses Pareschi

lógica projetista. Era possível, no entanto, haver remanejamentos,justificados, entre rubricas diferentes. A dificuldade de modificaçãode um projeto durante a sua execução está relacionada também àpossibilidade de modificação de alianças e poderes (de diversasnaturezas) já estabelecidos. Isso ficou bem demonstrado pelaimpossibilidade de redesenho da Rede Frutos do Cerrado,discutidas desde o início do projeto até o final sem grandesresultados práticos, porque, entre outras coisas, do ponto de vistada eficiência produtiva e comercial de uma atividade “empresarial”,seria preciso a transformação de relações políticas e redes sociaisfortemente estabelecidas entre determinados agentes (especial-mente as cooperativas vinculadas ao Centru) em relações eco-nômicas, devendo haver uma desestruturação das mesmas emfavor de determinadas entidades que teriam vantagens comparativasem relação a outras.

Ao longo dos mais de três anos de projeto, houve um período decerca de um ano em que as relações entre o Projeto Frutos do Cerradoe a Secretaria Técnica do PD/A estavam profundamente abaladas,havendo descrédito por parte do PD/A dos resultados do ProjetoFrutos do Cerrado. A entrada de novos quadros da ST-PD/Apossibilitou uma nova tentativa de aproximação e, conseqüen-temente, da formulação de atividades conjuntas que revigoraram asrelações, tal como a capacitação de membros da Rede Frutos doCerrado em Diagnóstico Rápido Participativo (DRP). Resultoutambém na contratação de uma consultoria de avaliação final doprojeto afinada com o mesmo, concluindo seus trabalhos com umavisão positiva.

O relatório de Leroy e Toledo (2000) foi bem-aceito pela RedeFrutos do Cerrado de maneira geral porque não se fixou apenas nosaspectos econômicos do projeto, mas especialmente no caráter inovadore positivo que o Frutos do Cerrado possibilitou em termos de criaçãopara as bases de uma futura sustentabilidade. Segundo os autores

um modelo de desenvolvimento é fruto do jogo de forçastécnicas, sociais e culturais e não o produto de umaracionalidade econômica supostamente científica. Nessa linha,entendemos a sustentabilidade como o processo pelo qual associedades administram as condições materiais de suareprodução, redefinindo os princípios éticos e sociopolíticos queorientam a distribuição de seus recursos ambientais (LEROY eTOLEDO, 2000: 51).

183Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos

Um projeto como o Projeto Frutos do Cerrado, seguem eles,

não chegou lá e não podia, pois o sucesso real depende deum conjunto de fatores: educação, assistência técnica e créditoadequados, sistema e vias de comunicação e transportecapilares, políticas ambientais efetivas, etc., que por sua vezdependem de uma reorientação das políticas nacionais (idem).

Ressaltam ainda que “se os desdobramentos do Projeto Frutosdo Cerrado fracassarem, a ‘solução’, imediatista, mas a única quesobra para uma família [camponesa] à beira do colapso, será voltar àexploração predatória, (...) sobreviver em piores condições ou tomar ocaminho das periferias urbanas” (idem: 26). Esta observaçãoconstitui-se em um estímulo para a apresentação, por parte da Rede,dos projetos de refinanciamento de Santa Maria do Tocantins, daAssociação Vyty-Cati, de São Raimundo das Mangabeiras e o deAcompanhamento e Monitoramento. Entretanto, somente os doisprimeiros lograram.

Este Relatório foi a base necessária para a equipe do PD/Arefletir sobre seus procedimentos e objetivos, embora representantesdos bancos envolvidos não estivessem muito satisfeitos com osresultados.

O PD/A, como já falamos, teve muitos esforços bem-intencionados e entusiásticos das comunidades. Falta em 99%dos casos o sentido de ‘negócios’, business, saber como, know-how, preparar um bom business plan, treinar o teu pessoal emtecnologias para mercados exigentes, pesquisar os mercados,tecer as parcerias com o setor privado, procurar financiamento,porque o PD/A é de doação agora, mas isso não pode continuar.É de doação porque estamos experimentando, caso falhe algumprojeto do PD/A, pelo menos a comunidade não perdeu dinheiroemprestado. No futuro, as coisas, ao nosso ver, devem serfinanciadas com créditos (representante do Banco Mundial).

Num outro trecho da mesma entrevista esta pessoa declara, aoavaliar o Projeto Frutos do Cerrado:

Poucos projetos [financiados pelo PD/A] estavampreparados para se inserir numa economia de mercado, com

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exigências de qualidade, quantidade e pontualidade (...). Aí euposso admitir que no início do Programa deveria ter insistidomais na avaliação do caráter econômico. Isso não foi feito. Mas ofato de que alguma comunidade se organizou já foi festejadocomo um grande sucesso e em certo sentido é um sucesso. Masorganização para quê? Se depois a coisa falha, é pior (...). Eles[do Projeto Frutos do Cerrado] precisam de uma consultoria muitomaior para serem uma empresa. Se não querem ser empresa,então esquece. Podem comer os seus próprios frutos (idem).

Um dos representantes do PD/A tinha uma opinião um poucodiversa, enfatizando mais o caráter experimental do PD/A:

[Qual você acha que era o objetivo maior do PD/A?]Arriscar. Arriscar. A grande diferença do PD/A dos demaisprogramas é que a gente (...) tinha por missão assumir um riscomuito grande. Você acreditar num projeto como o Frutos doCerrado, que bota os Krahó, os Gavião, o Centru para trabalhare achar que isso vai dar certo é um risco muito grande. (...) Euacho que a missão do PD/A era acreditar realmente nascomunidades, inovar nisto aí e tentar tirar alguma lição. Nuncative ilusão de que o PD/A fosse resolver a questão ambiental.Que pelo menos apontasse caminhos e eu acho que isso o PD/Aconseguiu fazer (...), testar alguns modelos ainda que numaescala micro, micro mesmo. Você dizer que um projeto PD/A deucerto é muito difícil. Porque a gente trabalha com uma coisa dematuração longa (representante da Secretaria Técnica do PD/A).

Este mesmo representante foi o que afirmou que o ProjetoFrutos do Cerrado tinha que se despolitizar e virar empreendimentoporque senão não iria a nenhum lugar. Outro representante daSecretaria Técnica ressaltou que quanto aos aspectos ambientais e desegurança alimentar, o Projeto Frutos do Cerrado tinha sido muitoimportante:

(...) Só que eu não me lembro de nenhum outro projeto naAmazônia que tenha sido tão bem-sucedido na questãoambiental como o Frutos do Cerrado. Eu acho que eles realmenteconseguiram fazer educação ambiental. (...) Eu acho que este émaior ganho da Rede, (...) além do aspecto de segurançaalimentar, que eu acho que é super-importante também. (...) O

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Projeto Frutos do Cerrado é muito mais do que só polpa de fruta,tem outras atividades extrativistas, tem a castanha de caju, temuma série de outras linhas que eles podem seguir (representanteda ST-PD/A).

Mas em outros trechos da mesma entrevista, este representantelembra da necessidade de planejamento e critérios técnicos parautilização do dinheiro, além de mostrar uma certa hesitação quantoao objetivo final dos financiamentos do PD/A e das consultoriasdadas ao Projeto Frutos do Cerrado:

a consultoria que a AACC fez para o Projeto Frutos doCerrado tinha um Termo de Referência muito amplo e poucofactível, gerando grandes expectativas nas pessoas da Rede queforam frustradas de alguma forma. Como se a partir da entrega dorelatório da consultoria se resolveriam todos os problemas e aí elessairiam já tendo lucro. E não é assim, em tão pouco tempo. Essascoisas são processuais. Você não pega um agricultor e transformaele num empresário de uma hora para outra. Ou talvez nem tenhaque transformá-lo. Às vezes a saída para eles é estar na ponta. Éeliminar alguns níveis de atravessadores, chegar mais perto lá naponta (idem, grifos meus).

Um dos representantes da cooperação técnica apresenta umavisão bem ampla das avaliações dos projetos pelo PD/A, apontandopara a tensão entre “processos” e “resultados”, entre a lógicaeconômica e as sociais e ambientais.

As avaliações do ‘sucesso’ ou do ‘fracasso’ dos projetossão muito relativas. Depende do que o projeto se propõe a fazere de qual ênfase é dada pela avaliação. Para avaliar processossociais é preciso descrever bem a sua complexidade. Essesprojetos são complexos. Deve haver relatos de experiências e nãoresumos que dão notas para os projetos. Esta é a dificuldade dasavaliações. Os bancos tipo KfW querem resultados palpáveis.Claro, eles são banco! Eles investem um dinheiro e queremretorno. Mas o que tem que ser sustentável não é o projeto. É oprodutor. É saber se ele aprendeu a utilizar melhor a propriedadedele. É difícil medir este tipo de impacto. É preciso olhar o projetodentro da unidade produtiva familiar. De repente os sistemasagroflorestais foram um fracasso mas eles vão melhorar seu

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sistema de quintal. Há impactos que não se percebe. A genteainda não tem instrumentos para medir estes impactos maiscomplexos. Tem até uma certa crença de que o que a gente estáfazendo é um acompanhamento de processos, que está nacooperação técnica, frisar processos. Mas também já tem certacobrança de que quando a coisa não funciona se vem com essepapo de processos. Então tem uma certa tensão entre estas duascoisas: mostrar resultados e realmente frisar esta visão deprocessos. É uma tensão interessante porque você está sempresendo questionado, tem que responder. Mas tem o perigo de servítima de cobranças indevidas. Num projeto de três anos deSAF’s como é que você vai pedir um impacto econômico se asplantas dão fruto daqui a cinco anos? É difícil (representante dacooperação técnica alemã).

Como vemos, entre os representantes da Secretaria Técnica emesmo da cooperação técnica (alguns ligados em algum momento àsONG’s sócio-ambientais) prevaleceu uma avaliação de “processos”,cujos impactos sociais e ambientais seriam ainda desconhecidos e oseconômicos inviáveis em tão pouco tempo. Mas percebe-se tambémuma oscilação em algumas destas declarações entre os objetivossócio-ambientais e os econômicos, sendo a transformação dosprodutores (e índios, embora não citados) em microempresários umobjetivo a ser alcançado a longo prazo. Há uma tensão entre os ideaisdo desenvolvimento sustentável e as práticas cotidianas engendradaspelo projetismo e pela pressão dos financiadores. Na afirmação dorepresentante do Banco Mundial percebe-se um forte viés econômicoe uma expectativa que as “entusiásticas” experiências saíssem doplano utópico para o plano “sustentável” dos negócios, que exigemresultados a curto prazo. Se os integrantes do projeto quisessem serempresa, deveriam seguir as recomendações dos especialistas emmercado e em desenvolvimento econômico.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como as alternativas à racionalidade dominante, isto é, a dasustentabilidade frente à desenvolvimentista, ainda não se esta-beleceram em termos de políticas públicas ou práticas disseminadas,sendo o PD/A um reflexo parcial destas demandas, é muito mais fácilintroduzir os elementos da racionalidade capitalista hegemônica em

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modos de vida ou de produção não-capitalistas do que transformar osistema nos termos da diversidade ecológica, sociocultural, política eeconômica. Para Foucault (1988) é muito difícil mudar um regimediscursivo que está ancorado em uma produção simultânea deverdades e poderes, pois o poder funciona e se exerce em rede (idem:183), sendo os indivíduos seus centros de transmissão. Assim, tantoos técnicos quanto os consultores do PD/A e do Frutos de Cerradosituavam-se em posições de poder, ora reforçando as debilidades doprojeto ora ressaltando as suas conquistas e aprendizado.

É preciso deixar claro que quem estabelece as regras do jogo,em última instância, são aqueles que financiam a “mudança”, nestecaso, as agências governamentais e multilaterais de cooperaçãointernacional dos países do Primeiro Mundo, materializadas nasexigências tecno-burocráticas do Subprograma e de seu tempolimitado, por mais democrático que pareça ser o PD/A e o PP-G7.Mesmo que o discurso do desenvolvimento sustentável afirme serpossível e necessário conciliar interesses desenvolvimentistas esustentabilistas, a direção que as ações práticas tomaram, no caso doProjeto Frutos do Cerrado, tenderam mais para uma lógica dosagentes hegemônicos internamente ao campo recoberto por aquelediscurso.

Mesmo assim, as iniciativas de ONG’s e entidades de base natentativa de trilhar novos caminhos e estratégias para atransformação social não deixam de ser importantes. Este é umcampo de embates políticos, composto por várias frentes, não sópequenos projetos. Nele vários atores procuram estabelecer canais decomunicação, por intermediários, entre o local e o global,universalizando demandas e entabulando diálogos com o Estado eoutras agências. Este não é um processo rápido, nem unilinear. Nocampo das lutas políticas e da sobrevivência institucional, asestratégias de articulação entre diferentes agentes nem sempre sãobem-sucedidas devido à diversidade de interesses e de condiçõesdestes mesmos atores. O projetismo contribui para dinamizarorganizações, mas também disciplinar as dinâmicas sociais epolíticas que procuram transcender a ordem planejada.

Fica para a Antropologia o desafio de acompanhar as tensõesconstitutivas destes espaços de disputa e suas eventuaistransformações. Fica para o antropólogo o desafio de se situar noprocesso, inevitavelmente contraditório e tenso, como ator político,cidadão e cientista.

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REFERÊNCIAS

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A N E X O S

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Figura 2 – Organograma do PP-G7

– PARTE 02 –

NORMAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL . . . .201

1. O Direito Ambiental Internacional como questão de alta relevância internacional . . .2012. Os instrumentos em matéria de Direito Ambiental Internacional . . . . . . . . . . . . . .2043. A Agenda 21 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2074. A questão das normas ambientais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2075. Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .210REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .211

A “CIDADANIA ATIVA” COMO NOVO CONCEITO PARA REGER AS RELAÇÕESDIALÓGICAS ENTRE AS SOCIEDADES INDÍGENAS E O ESTADO MULTICULTURALBRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .215

REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .228

MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E A GARANTIA DO CONTEÚDO ESSENCIAL DOSDIREITOS FUNDAMENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .231

1. Considerações iniciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2312. Direito ao meio ambiente e os direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2323. A relativização dos direitos fundamentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2374. Conteúdo Essencial. Conceito e características . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2405. O Conteúdo Essencial no Direito Comparado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2436. Considerações de ordem prática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2447. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .245REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .246

Normas e Políticas Públicas noDireito Ambiental Internacional

Edson Ricardo Saleme1

1. O DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL COMOQUESTÃO DE ALTA RELEVÂNCIA INTERNACIONAL

Omeio ambiente sempre foi assunto amplamente debatidono universo jurídico que fazemos parte. Os recursos são

escassos e a preocupação dos mais conscientes recrudesce a cada diadiante de atos e fatos que se verificam como sendo originários, muitasvezes, do próprio governo. Muita teoria há a esse respeito e ahumanidade rumaria, talvez, na direção correta se, de fato , os “direitoshumanos” fossem não apenas uma teoria, mas também um objeto demeditação, mormente diante de tantas transgressões aos preciososrecursos que a natureza colocou à disposição da humanidade.

A presença do Estado como ente que dá a proteção ao indivíduofoi tema de amplo debate entre filósofos e juristas envolvidos noprocesso de democratização dos autoritários estados do passado. Noentanto, quando a civilização iniciou seu processo de descaso ao meioambiente, pouco se falou da ingerência do Estado para proteger essesrecursos escassos e finitos. A atuação e presença do Estado, noestágio da civilização que nos encontramos, ainda é necessário, assimcomo foi no passado.

Os economistas e juristas marcam três fases estatais, que serãoabaixo verificadas. Atravessa-se, neste momento, a controvertida fase

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e daUniversidade Católica de Santos.

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neoliberal. Percebe-se que a atuação do Estado ruma para algum lado,sem saber decerto qual é. Entretanto, parece que existe, por parte desetores significativos da sociedade, um substancial número de pessoaspreocupadas com o destino dos recursos naturais esgotáveis do nossoplaneta. Esta fase ainda não apresentou traços definidos que possamser considerados indeléveis em matéria ambiental. Nota-se que aordem do dia do neoliberalismo é “normatização”, como sendo o elixirperfeito para a cura de todos os males.

O Liberalismo, cujo período mais marcante foi entre 1815 e1914, confiante nas idéias de Adam Smith, consagrava o adágio deque “governa melhor o governo que governa menos”. A abstenção deações governamentais marcou essa fase estatal, também conhecidacomo État gendarme, cuja preocupação nuclear era a proteção àpropriedade privada e do próprio Estado. O Liberalismo emoldurou oEstado racional normativo ocidental, o constitucionalismo e asgarantias dos direitos individuais; teve doutrinadores como Locke,Montesquieu, Stuart Mill, Jefferson, entre outros.

Na opinião Adriano Moreira, o núcleo dos valorescaracterísticos do liberalismo é, porém, claramente identificável; e,entre eles, destacam-se o valor da pessoa, os direitos naturais doHomem, o valor supremo da liberdade, uma visão antropocêntrica davida, a perspectiva universalista dos direitos e dos deveres, atolerância moral e religiosa.2

Nesse período de inação estatal surgiram as primeiras declaraçõesde direito e constituições francesas do final do século XVIII. São osfamosos direitos de primeira geração que já urgia serem defendidosdiante de violações de ordem predominantemente patrimonial. NoBrasil, a Constituição imperial deixou consignada a mesma tendênciaque se alastrava na Europa continental, consagrando, no âmbitointerno, o que se expunha nas declarações e conferiam como garantiasconstitucionais, em matéria de direitos humanos.

Ao contrário do que supunham os defensores do liberalismo, nosentido de que o afastamento do Estado traria um comércio mais“saudável”, logo no final do século XIX e início do século XX, oLiberalismo não logrou esconder suas fraquezas, resultando na suainevitável decadência. O surgimento da doutrina socialista e outra,com tendência à intervenção estatal fortemente sugerida comosolução aos problemas, cujo principal expoente foi Keynnes,inaugurou uma nova fase. A Encíclica de Leão XIII também criticou ainércia estatal e a culpava pela excessiva concentração de rendas e a

2 MOREIRA, Adriano. Teoria das relações internacionais. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 339-394.

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ausência de ingerência estatal em setores de primeira necessidade.Passaram a existir novos modelos de planejamento econômico epolítico, passando o Estado a assumir posturas mais ativas erepressivas, tendentes a propiciar uma vida com melhor qualidade,sobretudo por meio de sua ação interventiva, normativa e repressiva.Denominou-se Estado-providência ou Welfare State, a assunção, peloEstado, de seu papel protetivo e intervencionista.

Diante desse quadro singular, as Constituições modernaspassaram a garantir os chamados direitos de segunda geração, cujoobjetivo foi reafirmar os de primeira geração e estendê-los aos menosfavorecidos. Dispositivos de ordem econômica e trabalhista passarama integrar o texto constitucional. Aponta-se a Constituição deWeimar, de 1919, como o primeiro texto constitucional a consignardireitos de tais magnitudes reafirmando sua importância em matériade reconhecimento e garantia desses novos direitos.3

Essa necessidade imposta pelo Estado em que se atingiu odesenvolvimento humano e a observância do que o futuro reservavaexigiu uma postura mais cuidadosa dos poderes públicos e da própriasociedade diante da possibilidade de escassez dos recursos naturais.Esse foi o gérmen de uma série de medidas propostas pelos maisdiversos organismos internacionais que formam as bases do que sedenominou, mais tarde, Direito Ambiental Internacional. O DireitoInternacional, ao contrário, é um ramo consideravelmente mais antigoque aquele com princípios, institutos e objeto próprios. Suaimportância, em nosso país, foi sublinhada a partir da Convenção deEstocolmo, em 1972. Pode-se afirmar, outrossim, que o direito aquianalisado é recente e surgiu, como veremos a seguir, a partir da pressãode inúmeros grupos que observaram que os valores econômicosestavam predominando diante dos recursos naturais esgotáveis.

A degradação do meio ambiente passou a ser tema que não saíadas pautas de diversas reuniões internacionais; várias entidadesforam cometidas de novas responsabilidades no âmbito ambiental,como a elaboração de legislação própria, entre outras açõesnecessárias à contenção de atos de violação do equilíbrio ambiental.Nesse contexto, surgiram os chamados direitos de terceira geração,concebidos a partir do que se presenciava diante de determinadassituações e segmentos da atividade humana, fosse ela econômica, dasaúde e, principalmente, do meio ambiente. A iniciativa de se

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3 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto, in apresentação à obra Direitos Humanos e o Direito ConstitucionalInternacional, de PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: MaxLimonad, 1996, p. 20.

introduzir direitos capazes de assegurar um ambiente saudável, sobtodos os pontos de vista, surgiu do temor do futuro reservado àsgerações vindouras.

Cançado Trindade, ao referir-se a essa cadência de direitoshumanos, afirmou que os diversos direitos não se sucedem; aocontrário, são cumulados e fortalecidos. Ainda infere que “Contra astentações dos poderosos de fragmentar os direitos humanos emcategorias, postergando sob pretextos diversos a realização de algumdestes (e.g., os direitos econômicos e sociais) para um amanhãindefinido, se insurge o Direito dos Direitos Humanos, afirmando aunidade fundamental de concepção, a indivisibilidade e ajusticiabilidade de todos os direitos humanos”.

Os direitos humanos que se sucedem e se reafirmam marcam odesenvolvimento da humanidade rumo ao reconhecimento deinstitutos que passam a integrar ramos específicos do Direito. Ainserção desses novos valores na órbita jurídica lhes outorga proteçãoaté então inexistente ou frágil. Fato ainda mais importante é aobservância desses fatores por órgãos de âmbito internacional, queeleva a questão a patamares superiores, por tratar-se da preservaçãoda existência humana, fato que por vezes parece subjugado pelaavidez capitalista.

A seguir será examinado como se conceberam os diversosdispositivos que existem em matéria de direito internacionalambiental e a adequação do Brasil aos novos ditames, de maneira ainseri-lo no contexto nacional protegendo também os recursos aquiexistentes.

2. OS INSTRUMENTOS EM MATÉRIA DE DIREITOAMBIENTAL INTERNACIONAL

A razão de ter-se afirmado que o Direito Internacional Ambientalé ramo recente do eixo central Direito, considerando o fato de que arepartição de um ramo ocorre por motivos simplesmente didáticos ousistemáticos, nunca extraindo seus elementos jurídicos de unicidadee harmonia da ordem, é que a Corte Internacional de Justiça, órgãomáximo das Nações Unidas foi solicitada a pronunciar-se somente em1973, quando os governos da Austrália e da Nova Zelândiacontestaram a legalidade dos testes nucleares atmosféricos realizadospelo governo francês. O direito internacional público baseia-se,sobretudo, nos diferentes casos internacionais julgados pela referidaCorte. O caso mencionado, denominado, Nuclear Tests Case foi um

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dos primeiros, senão o primeiro, a ser aventado um caso de dano aomeio ambiente por um Estado a outros. Apesar do Órgão internacionalnão ter votado por apego a aspectos processuais, o caso tornou-serelevante, passando a ser considerado um dos casos que inauguraramou deram chance ao nascimento do Direito Ambiental Internacional,mencionado nos diversos compêndios que tratam do tema.4

Mesmo havendo sérios problemas na implementação dassanções, a Corte Internacional de Justiça é instada várias vezes apronunciar-se acerca de questões envolvendo dois ou mais Estadosestrangeiros que não lograram, per si, chegar a uma conclusão final.Porém, as decisões da Corte não foram o primeiro passo para aexistência efetiva do Direito Ambiental Internacional. O primeiro emais importante passo para a formação de um ato internacional emtorno do tema foi a Confederação de Estocolmo de 1972, reunindocerca de 113 Estados, a partir de uma recomendação da Ecosoc –Conselho Econômico e Social da ONU. A proposta, aceita pelaResolução n.º 2.398, de 3 de dezembro de 1968, estabeleceu que oano de 1972 seria o da realização do evento. Dois anos depois, aSuécia aceitou sediar a Conferência.

A Convenção foi efetivada e foram estabelecidas metas a seremcumpridas pelos países integrantes, que obtiveram total apoio dosórgãos internacionais envolvidos. A Recomendação n.º 96, daConferência reconheceu que a educação ambiental, com a introduçãode educação elementar para o cidadão comum seria de fundamentalimportância para a garantia de um futuro saudável e harmonia dohomem com o meio ambiente onde vive.

Apesar da relevância da mencionada Recomendação, quedeterminava a obrigação dos Estados em manter sistema educacional einformativo sobre a ação do homo no meio ambiente, as Resoluções quederam maior relevância ao Direito Internacional Ambiental, naConferência de Estocolmo, foram as que tomaram os números 21 e 22,institucionalizadoras da responsabilidade dos Estados em face dos atosde sua autoria prejudiciais ao meio ambiente e que tenham repercussãofora de sua área territorial, melhor dizendo, em outros territórios.

Ainda que reconhecidamente um passo importante na proteçãoao meio ambiente, o Direito Internacional Ambiental tem, ao que seobserva pela leitura mais acurada das Resoluções citadas, um sérioobstáculo a transpor: a questão da coexistência pacífica dassoberanias. Na Conferência foi amplamente reforçada a necessidade de

4 PECK, Connie; LEE Roy .in Increasing the effectiveness of The International Court of Justice., Nederlands: Martin NijhoffPublishers/Unitar, 1997, p. 404.

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uma flexibilização na legislação dos diversos Estados presentes, diantede eventuais problemas que possam surgir em matéria de defesa dosrecursos ambientais. Talvez essa seja uma das complexas tarefas acargo do novo ramo que tomou maior impulso após a Conferência. Aidéia de uma possível “flexibilização da soberania” não foi algo bem-aceito por países em fase de desenvolvimento, como o nosso e tantosoutros na América Latina, em meados dos anos 70 do século XX.

Ainda que pareça algo recente, observe-se que o conceito desoberania esculpido nos ensinamentos de Hegel, Hobbes e Rousseaufoi descartado desde o século XVI, quando se traçaram as primeiraslinhas do Direito Internacional Público, mesmo sem as característicasque hoje possui. A soberania, com os traços rígidos que se depreendiade sua significação, auxiliou alguns Estados a se firmaremeconomicamente, mormente pela unificação do poder, redução dasguerras intestinas de ordem civil ou religiosa e centralização do podergeralmente nas mãos de um soberano. Para os estudiosostradicionais, a nação soberana seria aquela governada por umgoverno, representantes do povo ou de alguma classe que mantinhaalgum vínculo jurídico com outros Estados.

Pelo que concebia Jellinek, houve uma evolução histórica dasoberania estatal. A soberania seria antes um traço inconfundível deum Estado que não reconhecia nenhum outro poder soberanosuperior a si. Assim, seria independente, supremo com todas ascaracterísticas de potestade.5

A questão da soberania foi amplamente debatida em forosinternacionais e, atualmente, fala-se em uma soberania limitada aoschamados Estados-nação, reconhecendo-se que existem interessesmaiores e de maior significação do que a própria afirmação do Estadocomo ente soberano: a humanidade e os recursos limitados queexistem em nosso planeta.

Muito se avançou com a realização da Conferência de Estocolmopara o surgimento de um novo jus, preocupado com a manutenção davida no planeta e outros aspectos de relevante importância relegados, atéentão, em segundo plano, sob o ponto de vista governamental. Suaprincipal função seria criar mecanismos, por meio do direito positivo ounão, que possam auxiliar os Estados na defesa do meio ambiente, bemcomo outros que auxiliem nações prejudicadas por atos de infraçãoambiental cometidas por seus vizinhos. A dificuldade de se firmar o DireitoAmbiental Internacional é a mesma do Direito Internacional, qual seja, ade conter dispositivos denominados soft law, ou seja, sem poder

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5 JELLINEK, Georg. Teoría general del estado. Buenos Aires: Albatroz, 1954, 356.

vinculante (non-binding). Trata-se mais especificamente de umaorientação que propriamente uma imposição, revestida de forma jurídicaque se afasta do tradicional binômio infração-sanção e da necessidade deconvertê-lo em conjunto de normas a serem revestidas de penassancionadores pelo Estados. Aqui cito Derani, que bem expressou essanova forma de “impor” das normas jurídicas: “O Direito – também o direitointernacional – é fundamentalmente uma orientação do comportamentocoletivo, aonde vão nutrir-se as relações contratuais privadas. Seucaráter, organizador – despido aqui da conotação da polícia e coerção,porém investido de um poder muito mais sutil e não pontual – traz apossibilidade de implementar atos e valores que, embora presentesdifusamente nos interesses da sociedade em que se insere, não atingiramsua completa manifestação... O Direito é um todo e, quando se trata darelação entre o Direito Internacional e o Direito Interno, a lógicakelseniana deve ser deixada, porque não é capaz de respondersatisfatoriamente a suas imbricações... Numa lógica mais sutil, admitindoa existência de hierarquias... é possível admitir a precedência do DireitoInternacional”.6

A dinâmica do novo jus consiste em mecanismos sutis,reconhecidos como soft law, que não devem ser relegados a instânciasinferiores, mas sim reforçados pela legislação positiva. Supõe-se que umavanço na consciência da humanidade implicaria na retirada, gradativa,de normas cogentes, com conteúdo sancionatório. Isso quer dizer que opróprio ser, perceberia a gravidade de seu ato e por ele teria maiorresponsabilidade, sem transgredir preceitos. O Direito Ambiental temessa tendência avançada. Contudo, ainda faz-se necessária a existênciade normas cogentes e obrigatórias a coibir ações e prever sanções.Destarte, há de se conviver com todos os meios que o direitodisponibiliza em termos normativos e dispositivos. Isso reafirma que nãose prescinde da positivação, nos dias atuais, do maior número de regraspossíveis para a defesa do meio ambiente.

3. A AGENDA 21

Como foi sublinhado acima, o Direito Internacional Ambientaltem também uma forma diversa de imposição e, mesmo se tratandode um ato com natureza jurídica ímpar, que toma a forma de umasimples convenção ou resolução, passa e existir de forma concreta

6 DERANI, Cristiane. “Aspectos jurídicos da Agenda 21”. In Direito Ambiental Internacional. Santos: Leopoldianum,2001, p. 71 e 72.

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para os Estados signatários. A formação e assinatura de tais atosnada mais são do que o reconhecimento, pelos Estados signatários,de que existe algo crucial, cuja importância é de interessetransnacional. O ato deve contar com a aquiescência dos Estadosenvolvidos, seja com a presença das costumeiras normassancionatórias ou mesmo com o soft law que caracteriza os atosinternacionais.

A Agenda 21, uma das mais importantes reuniões de meioambiente ocorridas após a de Estocolmo, foi reconhecida comosendo um programa a ser implementado neste milênio; foi oresultado da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente edesenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992.Esse documento, conforme indica o próprio Ministério do MeioAmbiente “é um processo de planejamento estratégico participativo.Este processo está sendo conduzido pela Comissão de Políticas deDesenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional – CPDS. Ametodologia de elaboração da Agenda privilegia uma abordagemmultissetorial da realidade brasileira, procurando focalizar ainterdependência das dimensões ambiental, econômica, social einstitucional, teria outra característica que a tornaria tambémúnica diante da precedente donde se originou a Declaração sobre oAmbiente Humano: a idéia de uma parceria entre governo, setorprodutivo e sociedade civil”.7

Esse evento, conhecido também como “Rio–92”, contou com aparticipação de 170 países. A etapa mais importante para aimplementação das medidas indicadas foi a imediata internalizaçãodas proposições que a Agenda indicou, mormente no que se refere àspolíticas públicas brasileiras, o que repercute nos planos plurianuais,que as diversas pessoas jurídicas de Direito Público Interno sãoobrigadas a apresentar a cada início de gestão, no qual se indicamonde serão aplicados os recursos públicos obtidos por meios dereceitas. Nessas políticas e alocações de recursos governamentaisdevem estar expressos todos os mecanismos que o ente federativoacionará em caso de desequilíbrio no meio ambiente e, sobretudo,medidas preventivas para evitar práticas depredatórias ao mesmo.

Não serão mencionados os mecanismos de ordem interna paraa prevenção e repressão de infrações ao meio ambiente. Porém, deve-se deixar registrado que os diversos níveis de legislação internaabsorveram as inúmeras normas de orientação ambiental de âmbitointernacional. Vários códigos e leis ambientais foram criados e novas

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7 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. http//www.mma.gov.br.

normas e dispositivos foram implementados pelo Legislativo com ofito de não transgredi-las. Não há uma passividade em termos delegiferacão constitucional ou infra-constitucional. Tanto nossa CartaMaior disciplina alguns dispositivos de ordem ambiental, comotambém nossa legislação civil, penal e administrativa. Todas, seregularmente cumpridas, podem proteger o meio ambiente.

Interessante mencionar os mecanismos de proteção ambientalcriados a partir da elaboração da Agenda 21. Foram eleitos cincoelementos como capazes de abranger a heterogeneidade das regiõesbrasileiras inseridas em um contexto de sustentabilidade ampliada.A plêiade de eixos temáticos desenvolvidos durante a jornada foram:1) Cidades Sustentáveis; 2) Agricultura sustentável; 3) Infra-estrutura e Integração Regional; 4) Gestão dos Recursos Naturais; 5)Redução das Desigualdades Sociais; e 6) Ciência e Tecnologia para oDesenvolvimento Sustentável.

Um dos fatores que também foram importantes na eleição detais eixos temáticos foi o fato de que tiveram como princípio para suadefinição, além da análise das potencialidades, a observância dasfragilidades historicamente reconhecidas em nosso processo dedesenvolvimento. Entre as principais ocorrências que depredam omeio ambiente em nosso território foi a urgente necessidade dediminuição das desigualdades sociais. Constatou-se que a pobreza éum dos principais agravantes da depredação da natureza e isso jáestá afetando gravemente os recursos naturais.

A Agenda 21 é, em suma, um instrumento dinâmico capaz deabarcar as áreas em que os recursos naturais existentes poderiamser preservados. Se as políticas públicas e tudo o que está nelaconsignado forem, de fato, levados a cabo, será suficiente para inibirou mesmo coibir práticas que possam prejudicar os recursosnaturais. Não pairam dúvidas de que seu conteúdo é sério e que areunião contou com membros de significante relevo da áreaambiental. Na verdade, quem irá definir ou mesmo reafirmar o que foiconsignado nesses instrumentos será a política ambiental adotadapelo Estado, que deve contar com estrutura capaz de proteger o meioambiente. Isso, certamente, leva em consideração a forma econômicaadotada pelo Estado e as metas estabelecidas por seu governo. O quese observa, inobstante, é a transformação do capitalismo puro porum capitalismo cego e despido de preocupações futuras: ocapitalismo financeiro. Neste, por vezes, as normas nada mais são doque instrumentos que dão legitimidade a atos espúrios ecorporativos, contrários ao interesse coletivo.

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4. A QUESTÃO DAS NORMAS AMBIENTAIS

Foram louváveis os esforços estabelecidos até aqui pelasdiversas conferências e seus resultados podem ser notados naslegislações dos mais diversos países do globo. Com os atuaisinstrumentos que atualmente existem não deveria passardespercebido qualquer ato atentatório ao meio ambiente. Isso foiobtido por meio dos incessantes esforços das organizaçõesintergovernamentais e das organizações não-governamentais quepassaram a ter papel de relevo na defesa do meio ambiente.

Antes de mencionar aspectos peculiares de nossa legislaçãonacional diante de tantas resoluções e atos internacionais quealteraram profundamente a legislação ambiental, faz-se importantesublinhar que depois da Conferência de Estocolmo e antes do queocorreu na “Rio–92”, outros dois eventos de primeira grandezaocorreram em matéria de meio ambiente: a Terceira Conferênciasobre Direito do Mar, resultou na Convenção de Montego Bay,Jamaica, em 10 de dezembro de 1982 e os três anos de estudoslevados a cabo para a confecção da Comissão Brutland, cujo principalobjetivo foi a criação do conceito síntese sobre desenvolvimentosustentável. A Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1987recebeu o completo relatório que contou com a participação deinúmeros segmentos interessados em seu resultado. Uma de suasmais primorosas conclusões, que a Convenção de Estocolmo já haviatocado no ponto, foi o de que o desenvolvimento sustentável estáintimamente ligado às políticas públicas e decisões governamentais.Certamente uma política bem direcionada conduziria a umaeducação adequada e consciente, uma distribuição razoável de rendae infra-estrutura capaz de manter o meio ambiente satisfatoriamenteprotegido e estável.

Todos esses instrumentos possuem estudos aprofundados echegaram a conclusões extremamente exatas, que podemoscomprovar por meio de nossa experiência como cidadãos de um paísem vias de desenvolvimento. Louváveis foram suas conclusões eesforços no sentido de se chegar a um momento em que ahumanidade reconheça que os recursos que hoje lhe servem não sãoperenes, mas sim frágeis e merecedores de alta consideração porparte de todos, mormente daqueles que detém o poder governamentale econômico do país. O pouco caso dado às questões ambientais pelasautoridades governamentais são questões que vemos diante de

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nossos próprios olhos e, ao contrário do que os relatórios geralmenteapontam, não somente a pobreza afeta severamente ambiente. Asações e omissões governamentais afetam severamente o ambientequando “não percebem” que sua aprovação está lesando a natureza:quanto a isso pode-se citar o exemplo da aprovação de um loteamentode alto padrão em área de mananciais ou de reserva ambiental. Deigual forma deve repudiar invasões a áreas de reserva e não dotá-lasde infra-estrutura para que os indivíduos continuem lá habitando.

Diante de tudo o que foi exposto pode-se concluir que nãofaltam normas ou mesmo qualquer outro elemento formal para quese possa pôr em prática os mecanismos de defesa ambiental. O quedeveria realmente ocorrer seria uma punição mais rápida e efetiva,por parte do Ministério Público, dos agentes públicos responsáveispela guarda do meio ambiente e que venham a sugerir medidasadequadas para determinadas situações, cujo dano ao meio ambienteé inevitável. Há suficiente número de normas. Há, incontes-tavelmente, por parte de agentes e órgãos públicos transgressão depreceitos legais e maior agilidade na tramitação de processos queversem sobre crimes ambientais.

5. CONCLUSÕES

Os direitos humanos são longamente defendidos e reverenciados.Contudo, na prática, vê-se, cada vez mais o econômico surgindo comofator de primeira grandeza em detrimento dos já depauperados recursosque a natureza brindou o ser humano. Um mecanismo protetivo dessesrecursos deve originar-se como obrigação transnacional e que venha aamparar a humanidade e as gerações futuras.

O Estado surge como defensor dos interesses maiores dasociedade que habita seu território, em face da irracional exploraçãohumana dos recursos naturais. A formação do Estado moderno,como hoje conhecemos, surgiu a partir da Revolução Francesa. Asprimeiras constituições modernas e as declarações sempreenalteceram aspectos relevantes para a sobrevivência humana;contudo, elevaram também o valor da propriedade e soberania, o quese contrapõe, de alguma forma, com uma política de proteção ao meioambiente daqueles que desrespeitam normas ambientais.

O Estado Liberal, surgido logo após a Revolução Francesasempre apegou-se ao laissez faire et laisser passer et le monde va parlui même. Essa consagrada afirmação de Du Pont, foi um dos cruciais

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elementos que comprovam a inação estatal, mesmo diante das maisdiversas atrocidades que o econômico pôde chegar em relação ao serhumano. Diante dos inúmeros movimentos sociais e das crisesoriginadas pela passividade do Estado, surgiu a necessidade de suaintervenção ativa, seja por meio de normas ou atos, ou mesmomedidas que possam ser necessárias à defesa dos interessescoletivos. Daí surgiu o Estado Intervencionista, o Welfare State,consagrado por Franklin Roosvelt.

Como sucessão das ações estatais, surgiram os entesinternacionais, o Direito Internacional Público, como defensor dosinteresses maiores da humanidade, defesa da paz e do equilíbrioentre os Estados. Esse ramo jurídico, conhecido igualmente comodireito das gentes, tem como objeto as mais diversas áreas quepossam afetar o equilíbrio da humanidade. Uma delas áreas foi aambiental, o que consagrou a existência de um novo ramo jurídico oDireito Ambiental Internacional. Reafirmado seu valor na Conferênciade Estocolmo de 1972, surgiu, especificamente pela aprovação dasResoluções 21 e 22, como um direito supra-estatal, cujo núcleocentral nada mais seria do que as necessidades vitais para amanutenção da vida sobre os Estados do planeta versus acoexistência pacífica das soberanias.

A Conferência de Estocolmo de 1972 foi o marco inicial quepropiciou a ocorrência de outras Conferências como a de MontegoBay, de 1982 e o relatório da investigação internacional levada a cabopela Comissão Brutland, até 31 de dezembro de 1987, quandoentregou seu relatório à Assembléia Geral das Nações Unidas. Esserelatório confirmou que os Estados em geral devem manter estruturademocrática e as decisões políticas governamentais devem, comocondição sine qua non para a validade de seus atos, considerar osaspectos frágeis do meio ambiente não só de seu território como deseus vizinhos.

Ainda que se possa alegar que as diversas normas contidas nasResoluções e convenções seja o que se denomina soft law, a legislaçãonacional, encabeçada pela Constituição Federal de 1988 e suasrespectivas emendas, já possui grande número de elementosnecessários à manutenção dos ambientes naturais e renováveis. Opapel do Estado aqui é fundamental e neste ponto a opinião daComissão Brutland traduz o anseio da humanidade sadia sobre o globoe deve existir conscientização de que são imprescindíveis políticaspúblicas democráticas e condignas capazes de oferecer aos governadoscondições adequadas para realizar suas aspirações de uma vida

212 Edson Ricardo Saleme

melhor, assim evitando a pobreza e conseqüências nefastas paralelas.O Estado passou por fases distintas que marcam uma maior ou

menor intervenção estatal. Normas ambientais são criadas, cada vez,em maior número. O que deve existir, de maneira patente é umapolítica que venha a abranger União, Estados, Distrito Federal eMunicípios com transparência, moral e simplesmente de respeito àsnormas. Para efetivação desses atos deve-se munir o MinistérioPúblico e o Judiciário de elementos capazes de dar maior agilidade àrealização desse controle, sem o que, mais uma vez, o meio ambientesairá definitivamente prejudicado para esta e futuras gerações.

REFERÊNCIAS

DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (organizadores). “Aspectos jurídicosda Agenda 21”. In: Direito Ambiental Internacional. Santos: Leopoldianum, 2001.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. http//www.mma.gov.br.

MOREIRA, Adriano. Teoria das relações internacionais. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. XVIII.

PECK, Connie; LEE Roy. In: Increasing the effectiveness of The International Court ofJustice. Nederlands: Martin Nijhoff Publishers/Unitar, 1997, p. 404.

ROUSSEAU, Ch. Droit international public. Pris: Sirey, 1953.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracy against capitalism. Cambridge: Cambidge UniversityPress, 1999.

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A “cidadania ativa” como novo conceito para reger

as relações dialógicas entre associedades indígenas e o Estado

Multicultural Brasileiro

Fernando Antonio de Carvalho Dantas1

Acidadania, tradicionalmente concebida como sinô-nimo de nacionalidade, decorrente do título legal

concedido pelos Estados aos indivíduos que integram seu corposocial com igualdade, homogeneidade, identidade e aspiraçõescomuns, reduzida ao espaço nacional, requer transformações noatual contexto mundial.2

Esse contexto é caracterizado externamente pela construçãopolítica de espaços transnacionais com evidente predomínio dointeresse econômico e, no âmbito interno dos Estados, peladiversidade sociocultural e étnica historicamente invisibilizada peloviolento processo de homogeneização social e cultural. Pugnar poruma nova cidadania significa romper limites. Os clássicos limitesconceituais à própria cidadania, ao Estado e ao direito.

Os limites do Estado monocultural, assim como do direitomonístico, provocou a exclusão das diferenças étnicas e culturais, demodo velado pela suposta universalidade do princípio da igualdade epelo difundido conceito de cidadania legal, igualitária eindiferenciada, baseada na dialética interno/externo e, em termos

1 Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado doAmazonas – UEA. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor convidado do Programa deDoutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha. Membro doConselho Diretor da Fundação Ibero-Americana de Direitos Humanos.

2 Não é propósito do presente trabalho, discorrer detalhadamente sobre a evolução histórica do instituto dacidadania, o que implicaria apresentar, de modo contextual e consistente, as diferentes teorias formuladas desdeos seus primórdios atenienses, passando pelo civis romanus e citoyen francês e finalmente chegando à idéiamoderna ocidental consagrada a partir de diferentes formas de Estado e de sistemas políticos. Portanto, optou-sepela discussão a partir da contemporaneidade com algumas incursões históricas e teóricas, quando pertinentes aotema específico dos povos indígenas.

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identitários, nós e os outros. Assim, no intento de romper com aexclusão que marcou a história dos povos indígenas brasileiros,propõe-se para estes uma cidadania nova e resignificada baseada noalargamento da idéia de vínculos sociais, culturais, jurídicos epolíticos de pertença concomitante às suas sociedades e culturasparticulares e ao Estado.

Esta questão tem estimulado intensos debates provocados peloprocesso de globalização econômica, cultural e política e pelasreivindicações de reconhecimento das diferenças. FARIÑAS DULCE,baseada no novo contexto mundial de descentralização jurídica, dapluralidade cultural e normativa e, principalmente, das exigências dereconhecimento jurídico e político das diferenças e das heterogêneasidentidades étnico-culturais, bem como na insuficiência conceitual danoção clássica de cidadania, propõe um repensar desta a partir de doisespaços reguladores e interdependentes. O espaço particular, internoaos Estados nacionais que deve gerar a noção de “cidadaniafragmentada ou diferenciada” e o espaço externo, transnacional, global,não vinculado à regulação do Estado nacional e a sua territorialidade,gerador da noção de “cidadania cosmopolita ou global”.

3

A cidadania diferenciada, segundo a autora, deve ser fundadano reconhecimento do direito à diferença como valor jurídico epolítico que propicie – calcada em princípios democráticos – apreservação e manifestação da identidade, assim como a participaçãopública nos âmbitos político, social, cultural e econômico, desde ecom suas diferenças. Isto equivale dizer que é a participação dosujeito diferenciado, duplamente contextualizado e relacionado noseu universo particular e comunitário bem como no âmbito doEstado. Já a cidadania cosmopolita ou global seria aquela quetranscende as fronteiras e a soberania do Estado-nação, setransnacionaliza, uma categoria de cidadania globalizada.4

Para os contornos da cidadania indígena que se pretendeoferecer no presente trabalho, a conjugação das duas formas decidadania acima descritas pode oferecer uma ampla possibilidadeemancipatória dos povos indígenas, tanto no contexto local como noglobal. Em primeiro lugar, porque historicamente foi negado aosíndios o direito de expressar suas identidades e diferenças tendo emvista a violência dos processos de morte lenta, física e cultural, ouseja, da “idéia de inevitabilidade de seu desaparecimento comoexperiência coletiva viva, capaz de repor suas instituições a cada ato,

3 FARIÑAS DULCE, Maria José. Globalización, ciudananía y derechos humanos. Madrid: Dinkinson/Instituto deDerechos Humanos Bartolomé de las Casas/Universidad Carlos III de Madrid, 2000, p. 35-36.

4 FARIÑAS DULCE, M. J., op. cit., p. 36-44.

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capaz de manter, no tempo, uma cultura própria”.5 Em segundo,porque, na atualidade, a inefetividade das normas constitucionais dereconhecimento impedem seu exercício pleno, portanto, é tímida aparticipação política dos índios nos âmbitos do Estado,6 assim, seconstitui em um vir a ser realidade e, por último, os movimentossociais indígenas reivindicam direitos e constroem espaços de lutaque extrapolam o contexto do Estado nacional.

A tarefa não é simples. Basta o dado depopulacionalcomparativo entre o que foram, em números, os povos indígenas noinício do processo de colonização e a população indígena atual. Deaproximadamente 3 milhões foram reduzidos a 350 mil,7 paraconstatar que as relações históricas dos povos indígenas com asociedade nacional resultaram em situações violentas de extermíniofísico, o que as caracteriza como processos genocidas, e, porconseguinte, extermínio cultural que configura “epistemicídios”, naexpressão de SOUSA SANTOS.8

Por outro lado, pode-se dizer, também, que a políticaassimilacionista levada a cabo pelo Estado, por meio dos programasinstitucionais de integração dos povos indígenas à comunhãonacional, visando a emancipação individual e integração no sistemaprodutivo capitalista9 e conseqüente descaracterização ou desapare-cimento das respectivas sociedades, em nome da civilização, daliberdade e da igualdade, consistiu em “epistemicídio”.

Assim, em contextos histórico e político tão adversos aos povosindígenas, a igualdade de direitos na perspectiva assimilacionista

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5 PAOLI, Maria Célia Pinheiro Machado. O sentido histórico da noção de cidadania no Brasil: onde ficam os índios? In:COMISSÃO PRÓ-INDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 21.

6 Atualmente, apenas três representantes indígenas ocupam assento em órgãos consultivos federais da administraçãopública: Francisca Novantino-Paresi no Conselho Nacional de Educação, Escrawen Sompré-Xerente no ConselhoNacional do Meio Ambiente e Azelene Kring Inácio-Kaingang no Conselho Nacional de Segurança Alimentar eNutricional e no Conselho Nacional de Combate à Discriminação. A Comissão intersetorial da saúde indígena doConselho Nacional de Saúde tem, entre seus membros, os seguintes indígenas: Euclides Pereira, Clovis Ambrózio,Francisco Avelino Batista e Wilson Jesus de Souza. Participa, como convidado para assistência das reuniões doConselho de Gestão do Patrimônio Genético, Edilson Martins Melgueiro-Baniwa.

7 RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global Editora, 1987.

8 Para o autor, “O privilégio epistemológico que a ciência moderna se concede a si própria é, pois, o resultado dadestruição de todos os conhecimentos alternativos que poderiam vir a pôr em causa esse privilégio. Por outraspalavras, o privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicídio. A destruição deconhecimento não é um artefato epistemológico sem conseqüências, antes implica a destruição de práticas sociaise a desqualificação de agentes sociais que operam de acordo com o conhecimento em causa”. SOUSA SANTOS, B.,op. cit., p. 242.

9 Através de projetos institucionais no âmbito do “Programa de Desenvolvimento de Comunidades Indígenas”,administrativamente conhecidos como “Programas de Desenvolvimento Comunitário”. Na prática, esses programasdesenvolveram uma desastrosa sistemática de substituição dos sistemas de produção de subsistência baseados napolicultura tradicional dos povos indígenas, pelo sistema de agricultura capitalista intensiva e monocultora,principalmente, no sul do país. Segundo o discurso oficial “Estes programas de desenvolvimento comunitário sãoelaborados de acordo com as aspirações das comunidades indígenas, e têm como objetivo a estruturação dossetores da economia de subsistência e de comercialização, desenhando ações concretas para o engajamento dascomunidades indígenas com grau de aculturação mais elevado, no processo de desenvolvimento econômico esocial”. Funai – Fundação Nacional do Índio. Legislação, Jurisprudência Indígenas. [s.l.]: 1983, p. 3.

significa morte, porque representa um diluir-se no conjunto socialhomogêneo da sociedade nacional. Morte, quando não física, cultural.A cidadania clássica, portanto, como instituto fundado na igualdadee na liberdade, segue no significado, o mesmo destino.

O conteúdo do conceito de cidadania, para MARSHAL envolvetrês categorias de direitos: direitos civis, direitos políticos e direitossociais.10 Os direitos civis e políticos constituem uma gama de direitosfundamentais relacionados ao indivíduo como sujeito de direitos eobrigações e, de um modo geral, tratam da liberdade, da igualdadeformal e da dignidade da pessoa; já os direitos sociais, de naturezacoletiva, referem-se às condições de manutenção e reprodução davida em sociedade.

Como libertar tem o sentido de igualar no âmbito conceitual dacidadania clássica, os índios com liberdade e igualdade seriam osíndios emancipados que deixariam de ser índios, abandonariam adiferença cultural e organizativa. Seriam os índios cidadãos, iguais,em direitos, aos cidadãos nacionais. Essa perspectiva que orientouideologicamente a legislação brasileira referente a estes povosconstituiu, como já foi visto, a noção de pessoa em transição dabarbárie à civilização. A mesma dialética campo/cidade einterno/externo que orienta a definição do instituto da cidadania.

Deste modo, as desastrosas evidências empíricas dos processosinstitucionalizados de transformação do índio em não-índio –depopulação, descaracterização cultural, exclusão, marginalização,entre outros – para atingir o estatuto de cidadão, provocam umanecessidade de questionamento sobre os “custos” dessa transfor-mação como assinala SOUZA, para quem:

A possibilidade de se antepor à inevitabilidade das leis dodesenvolvimento capitalista nos remete à questão fundamental:como impedir a destruição dos povos indígenas? Como garantir asua liberdade de existência? É no interior desse quadro que cumpreverificar se a extensão da cidadania às populações indígenassignificará a sua sobrevivência e sua liberdade. Ou se, ao contrário,longe de implicar a condição de sua preservação, seria um golpe demorte na sua liberdade de viver e sobreviver e a implantaçãoviolenta de uma igualdade. Igualdade essa que, ao tudo ‘igualar’,termina com as diferenças e, portanto, com a liberdade.11

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10 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1963, p. 67.

11 SOUZA, Maria Tereza Sadek R. de. Os índios e os “custos” da cidadania. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e acidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 41-42.

Do ponto de vista estritamente jurídico, salienta SOUZA FILHO,o conceito de cidadania se vincula ao conceito de Estado implicandoem direitos e obrigações com uma ordem política e jurídica em cujaelaboração e sentido os povos indígenas não contribuíram nemcomungam, porque são sociedades sem Estado e, também, porpossuírem valores, sistemas simbólicos e organização socialdiferenciados dos da modernidade ocidental. Portanto a inexistênciade vínculos sociais, culturais e políticos, poderia levar a conclusão deque os índios não são cidadãos brasileiros. Entretanto, conclui oautor, em razão do critério de determinação da cidadania adotadopelo direito brasileiro, baseado no jus solis, por nascerem no territórionacional, os índios, individualmente, adquirem a cidadaniabrasileira. São, paradoxalmente, cidadãos brasileiros e possuemidentidades culturais conflitantes com a identidade homogênea na-cional, portanto a cidadania indígena é uma ficção.12

Uma ficção jurídica tensionada, atualmente, pela necessidadede conjugar, harmonizar, os valores individuais da igualdade com oscoletivos das diferenças.13

Portanto, a cidadania diferenciada indígena deve expressar umrepensar das noções clássicas de sociedade, de Estado e do direito, econseqüentemente, do próprio conceito de cidadania,

14buscando,

dialogicamente, a inserção pela participação democrática dapluralidade de sujeitos diferenciados indígenas desde seus contextose identidades particulares, no contexto maior do Estado.

Para que ocorra sem descaracterização cultural, esta inserçãodeve ser acompanhada das garantias da sobrevivência física ecultural dos povos indígenas nos seus espaços territoriais e comigualdade complexa baseada na diferença reconhecida constitucio-nalmente e no respeito à diversidade humana, social e cultural querepresentam.

Um ponto de partida para a construção conceitual de uma novacidadania diferenciada, que atenda a composição pluriétnica dosEstados contemporâneos, tanto intrínseca na realidade ibero-

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12 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A cidadania e os índios. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e a cidadania.São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 44-51. Muito embora a publicação do artigo tenha ocorrido em momento anteriorao do atual regime constitucional, tanto do ponto de vista do critério legal de aquisição da cidadania, como emrelação ao problema da cidadania indígena, o pensamento do autor continua atual. No mesmo sentido, DALLARI,Dalmo de Abreu. Índios, cidadania e direitos. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo:Brasiliense, 1983, p. 52-58.

13 FARIÑAS DULCE, M. J., op. cit., p. 39.

14 A “reformulação” da idéia de cidadania. Esse o entendimento de Antonio Enrique Pérez Luño, ao analisar o atualcontexto político de integração dos Estados nacionais da Europa à União Européia. Propõe, para tanto, a noção de“cidadania multilateral”. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Diez tesis sobre la titularidad de los derechos humanos. In:ROIG, Francisco Javier Ansuátegui (org.). Una discusión sobre derechos colectivos. Madrid: Instituto de DerechosHumanos Bartolomé de las Casas/Universidad Carlos III, 2002, p. 267.

americana, como provocada pela imigração nos países do primeiromundo, é oferecido por HERRERA FLORES e RODRÍGUEZ PRIETO.Para estes autores, a cidadania não constitui um status, portanto,um sujeito não é cidadão, ele “tem” cidadania; sendo assim, aconcebem como uma técnica para o exercício da democracia pelospressupostos de que:

Em primeiro lugar, a cidadania tem haver com algo maisalém da pertença a um Estado-nação e sua correspondentelegalidade. No mundo contemporâneo existem múltiplos espaçose legalidades que fazem da cidadania algo mais complexo do quea simples nacionalidade. Em segundo lugar, a cidadania nãooutorga algum estado ontológico. Não se é cidadão. Se tem ounão se tem cidadania. [...] Em terceiro lugar, que a cidadania nãoé um status, é uma técnica, um instrumento que usadocorretamente pode nos permitir exercer a busca e a consolidaçãode outros instrumentos ou meios que nos aproximem doobjetivo/projeto de auto-governo.15

A cidadania indígena, em atenção ao conjunto de direitosdiferenciados reconhecidos constitucionalmente, exige o exercíciodesses direitos pela participação democrática dos índios nosprocessos institucionais estatais referentes a assuntos e âmbitos quelhes digam respeito e, também, à criação dos meios institucionais oua heterogeneização das instituições estatais,16 o que permitirá odesenvolvimento e a construção simétrica de relações sociaisindígenas entre eles mesmos, ou seja, entre os diversos povos quecompõem a diversidade étnico-cultural, relações com a sociedadeenvolvente e com o Estado.

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15 HERRERA FLORES, Joaquín e RODRÍGUEZ PRIETO, Rafael. Hacía la nueva ciudadanía: consecuencias del uso de unametodología relacional en la reflexión sobre la democracia. Crítica Jurídica: Revista Latinoamericana de Política,filosofia e direito, n.º 17, agosto/ 2000, p. 302-303. Texto original: En primer lugar la ciudadanía tiene que ver conalgo más que la pertenencia a un Estado Nación y su legalidad correspondiente, En el mundo contemporáneo existenmúltiples espacios y legalidades que hacen de la ciudadanía algo más complejo que la simple nacionalidad. Ensegundo lugar, la ciudadanía no otorga algún tipo de status ontológico. No se es ciudadano. Se tiene ciudadanía.Nadie puede, al estilo de Kane de Orson Welles, arrogar-se el título de Ciudadano frente a los que no los poseen. Porello y en tercer lugar, afirmamos que la ciudadanía no es un status. Es una técnica, un instrumento que usadocorrectamente puede permitirnos ejercer la búsqueda y la consolidación de otros instrumentos o medios que acerquenal objetivo/proyecto del autogobierno (tradução livre).

16 A autora propõe como princípio, que o âmbito público democrático deveria prover de mecanismos para o efetivoreconhecimento e representação das vozes e perspectivas particulares daqueles grupos constitutivos do ambientepúblico que estão oprimidos e em desvantagem. Tal representação de grupo implica a existência de mecanismosinstitucionais e recursos públicos que apóiem: a) a auto-organização dos membros do grupo de modo que estesalcancem uma autoridade coletiva e um entendimento reflexivo de suas experiências e interesses coletivos nocontexto social; b) a análise de grupo e as iniciativas grupais para a proposta de políticas em contextosinstitucionalizados, nos quais os que tomam decisões estão obrigados a mostrar que suas deliberações levaram emconta as perspectivas de grupo; e c) o poder de veto para os grupos a políticas específicas que afetem diretamentea um grupo, tais como, política sobre direitos reprodutivos para as mulheres e política sobre o uso da terra para ospovos indígenas. YOUNG, Iris Marion. La justicia y la política de la diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000, p. 310.

Impõe-se a este espaço democrático de relações sociais, a nãosubordinação dos povos indígenas em razão das suas identidadesdiferenciadas,17 nem o conflito dialético contínuo. Impõe-se, sim, amediação pelo diálogo intercultural. Nos dizeres de PANIKKAR,transformar o conflito dialético em “tensão dialógica” e buscar,através do diálogo, situações de equilíbrio baseadas na aberturamútua e recíproca para o reconhecimento, respeito e exercício dosdireitos das identidades e dos valores diferenciados.18

O diálogo intercultural, portanto, se configura como um“espaço e um instrumento” da nova cidadania indígena, diferenciada,multicultural, dinâmica, criativa e participativa no sentido deconstruir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência,criar, também, contextos plurais e heterogêneos onde a convivênciademocrática possibilite o desenvolver das ações da vida semopressão, sem exclusão.

As condições da possibilidade de diálogo entre as sociedadesindígenas e o Estado brasileiro é um tema que ocupa na atualidadegrandes espaços de discussão e reflexão. Para OLIVEIRA, ancoradona ética da libertação de Enrique Dussel, essa possibilidade somenteé factível a partir da institucionalização de uma nova normatividadediscursiva “capaz de substituir o discurso hegemônico exercitado pelopólo dominante do sistema interétnico”.19

O discurso dominante, um discurso universalista e competenteque excluiu as sociedades indígenas ao longo da história, ideologizoue naturalizou as diferenças culturais ora como bárbaras e selvagens,ora românticas e folclóricas, mas, sempre, e principalmente, comoóbices à integração, unificação e desenvolvimento do Estado. Ospovos indígenas compõem o mosaico social e cultural brasileiro, comosociedades culturalmente diferenciadas da nacional hegemônica. Adiversidade sociocultural que esses povos configuram, ocultada nolongo processo de colonização e de construção do Estado Nacional, teve

17 Sobre os múltiplos níveis das relações de subordinação, ver: MOUFFE, Chantal. The return of the political. Londres:Verso, 1993.

18 PANIKKAR, Raimundo. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban, 1990, p. 50-53. Sobre omodo dialógico de tratar as posições conflitivas o autor faz as seguintes considerações: uma sociedade pluralistasomente pode subsistir se reconhece, em um momento dado, um centro que transcende a compreensão dela mesmapor qualquer membro ou pela sua totalidade; o reconhecimento desse centro é algo dado que implica um certo graude consciência que difere segundo o espaço e o tempo; o modo de manejar um conflito pluralista não é uma daspartes tentando discursivamente convencer a outra, nem pelo procedimento dialético, senão pelo diálogodialógico; discussão, oração, palavras, silêncio, decisões, acomodações, autoridade, obediência, exegese de regrase constituições, liberdade de iniciativa, rupturas, são atitudes próprias de tratar o conflito pluralista; há umcontínuo entre multiformidade e pluralismo e a linha divisória situa-se em função do tempo, lugar, cultura,sociedade, resistência espiritual e flexibilidade; o problema do pluralismo não pode ser resolvido pela manutençãode uma postura unitária; o trânsito da pluralidade para a multiformidade e, desta ao pluralismo pertence às dorescrescentes da criação e ao verdadeiro dinamismo do universo.

19 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o diálogo intolerante. In: GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Povos indígenas etolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001, p. 252.

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no direito positivado, um dos mais poderosos mecanismos de exclusãoque, sendo fundamento da política indigenista levada a cabo, primeiropela Coroa portuguesa e, em seguida, pelo Estado brasileiro,promoveram genocídios e etnocídios responsáveis pela depopulação epelo desaparecimento de numerosas culturas e povos indígenas.

A apreensão parcial que o direito positivado faz da realidadesocial, por meio de mecanismos de poder que valoram e privilegiamuma determinada forma de vida e práticas sociais como boas, com aconseqüente juridicidade amparada pelo Estado, institucionalizou, aolongo da história do direito no Brasil, a exclusão do espaço jurídico-político nacional, das pessoas indígenas e suas sociedades, suasvidas, seus valores e suas formas diferenciadas de construção socialda realidade.

Nesse sentido, os colonizadores portugueses desconsiderarama existência de povos autóctones, com organizações sociais edomínio territorial altamente diversificados e complexos, negandoaos seus membros a qualidade de pessoas humanas ou de umahumanidade viável,20 motivo pelo qual justificavam a invasão etomada violenta do território, a escravização, as guerras, os mas-sacres e o ocultamento jurídico.

O direito colonial, e posteriormente o nacional seguiram omesmo caminho. A formulação jurídica moderna do conceito depessoa enquanto sujeito de direito, fundado nos princípios liberais daigualdade e liberdade que configuram o individualismo, modeloadotado pela juridicidade estatal brasileira e estampado no CódigoCivil de 1916, gerou o sujeito abstrato, descontextualizado, individuale formalmente igual, e classificou as pessoas indígenas, não comosujeitos diferenciados, mas, diminutivamente, entre as pessoas derelativa incapacidade, ou pessoas em transição da barbárie àcivilização. Esta depreciação justificava a tutela especial exercida peloEstado, os processos e ações públicas voltados para a integração dosíndios à comunhão nacional, o que equivale dizer, transformar osíndios em não índios.

Com a promulgação da Constituição de 1988 reconhecendoexpressamente as diferenças étnico-culturais que as pessoasindígenas e suas sociedades configuram, pelo reconhecimento dosíndios, suas organizações sociais, usos, costumes, tradições, direitoao território e capacidade postulatória, um novo tempo de direitos seabre aos povos indígenas. Um novo tempo, não mais marcado pela

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20 Conforme SOUZA, comentando o imaginário europeu sobre o Brasil, a partir dos relatos de Fernão Cardim. SOUZA,Laura de Mello e. O diabo e a terra de Sta. Cruz. Feitiçaria e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Companhiadas Letras, 1986, p. 30/33.

exclusão jurídica e sim pela inclusão constitucional das pessoas epovos indígenas em suas diferenças, valores, realidades e práticassociais, com permanentes e plurais possibilidades instituintes.

Evidentemente, o reconhecimento constitucional dos índios, esuas organizações sociais de modo relacionado, configuram, noâmbito do direito, um novo sujeito indígena, diferenciado,contextualizado, concreto, coletivo, ou seja, sujeito em relação comsuas múltiplas realidades socioculturais, o que permite expressar aigualdade a partir da diferença.

O marco legal desse reconhecimento, em razão da dificuldade deespelhar exaustivamente a grandiosa complexidade e diversidade queas sociedades indígenas representam, está aberto para a confluênciadas diferentes e permanentemente atualizadas maneiras indígenas deconceber a vida com seus costumes, línguas, crenças e tradições,aliadas sempre ao domínio coletivo de um espaço territorial.

O novo paradigma constitucional do sujeito diferenciadoindígena e suas sociedades inserem-se conflituosamente, tanto noâmbito interno dos Estados nacionais quanto em nível mais amplo,no contexto atual dos Estados e mundo globalizados, confrontando-se com a ideologia homogeneizante da globalização, que nãoreconhece realidades e valores diferenciados, pois preconizapensamento e sentido únicos para o destino da humanidade, voltadospara o mercado.21

Entretanto, as lutas de resistência contra esse processoapontam para novos caminhos de regulação e emancipação,

22

exigindo conformações plurais e multiculturais para os Estados, e,especificamente, mudanças nas Constituições, situadas atualmenteem perspectiva com o direito internacional dos direitos humanos.23

Assim sendo, os direitos constitucionais indígenas devem serinterpretados em reunião com os princípios fundamentais do Estadobrasileiro, que valorizam e buscam promover a vida humana semnenhuma distinção, aliados aos direitos fundamentais e com oconjunto integrado e indivisível dos direitos humanos, civis, políticos,sociais, econômicos e culturais, bem assim às convenções edocumentos internacionais.

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21 HERRERA FLORES, Joaquín. Las lagunas de la ideología liberal. In: HERRERA FLORES, Joaquín (org.). El vuelo deAnteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 158.

22 Conforme problematização sobre as tensões dialéticas da modernidade ocidental, identificadas por Boaventura deSousa Santos: tensão entre a regulação social e a emancipação social e a tensão entre Estado e sociedade civil.SOUSA SANTOS, Boaventura de. “Una concepción multicultural de los Derechos Humanos”. Revista Memória, Bogota,n.º 101, julio de 1997, p. 42.

23 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5.ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002,p. 253-273.

Para que isto ocorra, torna-se imperativo efetivar os direitosconstitucionais indígenas, o que significa dar vida às normasconstitucionais pelo caminho jurídico-hermenêutico da prevalência eexpansão destas normas sobre todo o ordenamento jurídico;politicamente, pela participação democrática dos índios e de suasorganizações, tanto nas esferas de poder federal, federado emunicipal, quanto nas ações públicas institucionalizadas que lhesinteressem. Este se constitui um dos caminhos para a construção deuma sociedade plural, em que o espaço para todos seja garantido e,conseqüentemente, o dissenso possibilite o exercício cotidiano dademocracia participativa e do seu poder instituinte sempre renovado.

Como se percebe, para a existência do diálogo, é preciso, emprimeiro lugar, a superação de erros históricos e a tomada das rédeasna construção do presente em patamares plurais de valores. Oreconhecimento e o efetivo exercício dos direitos reconhecidos requerum lugar, um contexto plural, heterogêneo e igualitário complexo, deonde se possa falar e, acima de tudo, que o sujeito da fala exerça poder.

Portanto, é necessária, também, a superação do universalismo,como valores particulares da cultura européia ocidental, elevados àcategoria de universal, e dos respectivos conceitos transcendentaisque o acompanham: homogeneização cultural, nação única, línguaúnica, direito único, sujeito abstrato. É preciso abrir novos espaçosque possibilitam uma nova construção e configuração participativa,“interativa”,24 do universal. Como afirma Ernesto LACLAU, o universalé um horizonte incompleto, um lugar “vazio” que precisa serpreenchido.25

Nesse mesmo sentido, SÁNCHEZ RUBIO ao propor a superaçãodo pensamento universalista ocidental excludente, o faz a partir daidéia de que – justificado por razões históricas –, somente é possívelum pensamento universalista, se este se configurar como um“universalismo de confluência”. A lógica da exclusão do discursohegemônico ocidental, cujas causas são apontadas pelo autor, comantecedência através dos seguintes paradoxos: “poder e duplointeresse” em que identifica o discurso ambíguo do ocidente sobre aimigração em diferentes momentos históricos, baseados eminteresses econômicos capitalistas, que desprezam a justiça e adignidade humana; “globalização e universalidade” onde apresenta oglobalismo cultural e econômico como um meio eficaz de expandir

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24 BENHABIB, Seyla. Situating the self: gender, community and postmodernism in contemporary Ethics. London/NewYork: Routledge, 1992.

25 Para o autor, o universal somente pode emergir a partir do particular uma vez que somente a negação de umconteúdo particular, permite a transformação desse conteúdo no símbolo que o transcende. LACLAU, Ernesto.Emacipación y diferencia. Barcelona: Ariel, 1996, p. 9; 30-34.

idéias locais generalizantes, no caso, idéias ocidentais elevadas àcategoria de universais, através da polarização e fragmentação sociaise pela imposição de modelos de desenvolvimento; por último, a“inversão ideológica e negação de direitos” consistente na negação doreconhecimento de práticas sociais que questionam os limites dosistema dominante, bem assim a negação da capacidade dereivindicar novos ou universais direitos. Assim, como não háreconhecimento de práticas sociais, coletividades e direitosdiferenciados, as pessoas e comunidades culturais que compartemessas práticas, que perseguem condições mais dignas de vida, nãomerecem importância, podem ser sacrificadas.26

Contrariamente, o universalismo de confluência deve partir doconhecimento e da valoração de outras formas de vida, desde o nossopróprio pensamento, considerando a presença de múltiplas culturase seus respectivos grupos humanos em um mesmo contexto e,também, as diferentes visões e pretensões de unidade a que aspiram,que podem ser distintas e eqüidistantes umas das outras.

27

Assim, o espaço do diálogo e da participação política no âmbitoda sociedade maior, do Estado, deve ser construído e precedido pelasgarantias de sobrevivência, de manutenção da vida e da dignidadehumana. Para os povos indígenas, cuja compreensão dos direitos e dequalquer atividade política se vincula ao contexto, ao espaço da vidae aos modos de viver, conforme exposto anteriormente, a dignidadevincula-se ao espaço territorial da sobrevivência.

A terra é para os povos indígenas espaço de vida e liberdade.28

O espaço entendido enquanto lugar de realização da cultura. ParaTOMASINO, “cada sociedade elabora a sua concepção de tempo e deespaço conforme sua visão de mundo, a qual também orienta as suaspráticas e relações sociais e simbólicas com a natureza e entre si”.29

Isto significa que a construção dos modos de vida, da cultura, daspessoas e sociedades relaciona-se em um complexo de significadosproduzido social e coletivamente.

A Constituição Federal brasileira define a categoria jurídica dasterras indígenas, como aquelas tradicionalmente ocupadas pelosíndios, habitadas em caráter permanente, utilizadas para suasatividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos

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26 SÁNCHEZ RUBIO, David. Universalismo de confluencia, derechos humanos y inversión. In: HERRERA FLORES, Joaquín.(org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 216-219.

27 Id. Ibid., p. 235.

28 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, p. 130.

29 TOMASINO, Kimiye. Os Kaingang da Bacia do Tibagi e suas relações com as terras baixas. Relatório parcial de pesquisasem maiores dados. Londrina: [s. n.] 1998, p. 6.

ambientais necessários a seu bem-estar, necessárias à reproduçãofísica e cultural, segundo seus usos costumes e tradições.30

Assim, a dignidade humana dos povos indígenas estácondicionada ao respeito aos seus territórios, aos seus modos de vidae às suas instituições, como garantia prévia e imprescindível àsatisfação das necessidades básicas. Portanto, o espaço31 e as formasde vida enquanto direitos consuetudinários,32 devem ser protegidos,sendo esse o comando constitucional.

O amparo dos direitos das minorias étnicas e culturais pelosEstados nacionais, segundo HERRERA FLORES, constituiu umaespécie de estratégia de homogeneização. Para o autor – baseado naconstatação de W. Kymlicka de que não existem nações monoétnicas emonoculturais – “durante muitas décadas as reivindicações culturaisdas minorias estiveram absorvidas por estruturas mais gerais que, àmedida que as protegiam, também, as homogeneizavam”.33

No mesmo sentido e, do ponto de vista da teoria constitucional,afirma HÄBERLE que a proteção das minorias étnicas representauma das formas próprias de diferenciação interna dos Estadosconstitucionais, “para relativizar e ‘docificar ou aplacar’ o ímpeto donacional”. Entretanto, apesar de reconhecer a imposição homoge-neizadora do modelo constitucional europeu, o jurista alemão, cir-cunscrito ao seu contexto espacial e teórico, preconiza que ditaproteção deve cingir-se à implementação de práticas educacionaistolerantes e respeitosas para com a dignidade do “outro”, a criação deouvidores das minorias e a inclusão de cláusulas formais de proteçãodas minorias nas corporações.

34

Este não é o sentido das reivindicações por mudanças e,conseqüentemente, garantias dos direitos diferenciados que levam a cabo

30 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto integral: “Art. 231 [...] § 1.º São terrastradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suasatividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e asnecessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

31 A Constituição de 1988 reconhece a ocupação tradicional, ou seja, as formas de uso que cada cultura indígenaemprega ao definir o território como construção social, base física para a realização da cultura, da maneira como,para citar um exemplo, o povo Guarani-M’byá, habitante de vasta região do Brasil meridional o concebe: espaço,lugar, possibilitador da vida social, com características ecológicas, históricas e míticas, relacionadas ao modo deser guarani. DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Relatório de Identificação da terra indígena Guarani-Mbyá daIlha da Cotinga. Curitiba: Funai, 1989.

32 Pode-se dizer, a partir da exegese dos pressupostos constitucionais, que terras indígenas são aquelas habitadas pelospovos indígenas, enquanto espaço de vida, adequado às suas peculiaridades culturais e imprescindíveis para suareprodução física e cultural. Simbolizadas pela cultura, essas terras constituem verdadeiros territórios indígenas,porque orientados pelo evidente princípio que encerra a disposição constitucional, qual seja: a ocupação indígena édefinida a partir dos usos costumes e tradições de cada povo. Nesse sentido, afirma SOUZA FILHO que usos, costumese tradições “quer dizer direito, e, mais, direito consuetudinário indígena”. SOUZA FILHO, C. F. M., op. cit., p. 134.

33 HERRERA FLORES, J., op. cit., p. 158. Texto original: “[...] durante décadas las reivindicaciones culturales de lasminorías estuvieron absorbidas por estructuras más generales que a medida que las protegían las homogeneizaban”(Tradução livre).

34 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Tecnos,2002, p. 123.

226 Fernando Antonio de Carvalho Dantas

os povos indígenas em suas lutas por emancipação. As modificaçõesestruturais pelas quais lutam e anseiam não se limitam a posturas“politicamente corretas”, portanto, tolerantes, balcões oficiais de lamentoou políticas de discriminação positiva a serem praticadas pelo Estado.

As transformações emancipatórias dizem respeito aoreconhecimento e efetividade de direitos, o que significa uma novaracionalidade

35não excludente, criadora de pensamentos e espaços

de garantia do pluralismo social, cultural e jurídico.Por isso mesmo, o reconhecimento sem a efetividade das normas

e as transformações políticas e jurídicas que isto implica, não acabarácom a opressão dos povos indígenas. A construção do espaçoinstitucional plural, não pode quedar-se no plano puramente formal;portanto, da regulação aos processos de emancipação, para que hajasimetria na institucionalização, esses procedimentos devem orientar-sepela participação democrática dos povos indígenas, por meio do diálogo.

O diálogo intercultural como proposta cognitiva, metodológica,hermenêutica, política e jurídica funda-se no pressuposto dopluralismo e da complexidade. Para se ter diálogo a condição básica éo reconhecimento das diferenças culturais dos sujeitos dialogantes,36

portanto, exige-se a superação das posturas universalistas.A transição resulta conflituosa, assim como conflituosa é a

sociedade multicultural, a sociedade complexa. Partindo doquestionamento sobre a possibilidade de manter uma identidadeplural sem romper a coesão social, DE LUCAS aponta duas saídaspara evitar os equívocos que caracterizam a proposta multicultural: aprimeira relacionada com o preconceito “quase” maniqueísta que ouso ideológico do termo provoca, ao imputar-lhe o caráter dedesestabilizador da democracia; por outro lado, a ingenuidade de queo multiculturalismo é um fato presente que não ocasiona conflitos e,por isso mesmo, se constitui em modelo ideal para as sociedadescontemporâneas, não deixa de ser uma postura simplista.37

Deste modo, a proposição do multiculturalismo comoparadigma para reger uma nova configuração do Estado e da

227A "cidadania ativa" como novo conceito para reger

as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro

35 No sentido de transformação e renovação da filosofia que propõe Raúl Fornet-Betancourt, por meio da mudança deperspectiva, provocada pela necessidade de substituir os métodos de análise monoculturais, característicos dafilosofia ocidental que geram problemas de relacionamento com outras formas culturais de pensar, no caso, asculturas das sociedades indígenas. O autor chama a atenção para a necessidade de a filosofia refletir o “desafio doimaginário indígena” como ponto básico de discussão sobre uma mudança de racionalidade, fundada nainterculturalidade. FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la filosofía. Bilbao: Desclée deBrouwer, 2001, p. 235-236.

36 No sentido gadameriano de compreensão da alteridade, reconhecimento e aceitação do “outro”. GADAMER, HansGeorge. Verdad y Método. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977, p. 476.

37 DE LUCAS, Javier. La sociedad multicultural: problemas jurídicos y políticos. In: AÑON, María José et al. Derecho ysociedad. Valencia: Tirant de Blanch, 1998, p. 19-20. Veja-se, na nota 37 deste mesmo capítulo, a posição deHERRERA FLORES, para quem as reivindicações das minorias étnicas e culturais, durante muito tempo, estiveramrepresadas em função da absorção homogeneizadora dos Estados nacionais.

sociedade brasileiros e a trama de relações sociais complexasdecorrentes da presença dos povos indígenas como sujeitos ativos eparticipativos – ainda que muitas vozes se levantem contra aincompatibilidade normativa de pluralização em decorrência da faltade unidade cultural38 – a entendemos como fator imprescindível parauma mudança nos atuais modelos normativos de Estado, nação edireito únicos. Estes, enquanto conceitos absolutos fundados naracionalidade moderna ocidental excludente das diferenças, podem edevem ser relativizados. É o desafio do futuro.

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228 Fernando Antonio de Carvalho Dantas

38 Como, por exemplo, Giovanni Sartori. Para este autor, há uma incompatibilidade entre pluralismo democrático emulticulturalismo porque entende que as diferenças culturais configuram comunidades fechadas e homogêneas.SARTORI, Giovanni. La sociedad multiétnica. Pluralismo, multiculturalismo e extranjeros. Madrid: Taurus, 2001.

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229A "cidadania ativa" como novo conceito para reger

as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro

Meio ambiente equilibradoe a garantia do conteúdoessencial dos Direitos

Fundamentais

Sandro Nahmias Melo1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como observa Brandão Cavalcanti, “a idéia de que oser humano, como tal tem direitos elementares à

vida e àquilo que é indispensável, no campo material, físico eespiritual, constitui, assim, uma conquista da civilização e que aospoucos se foi firmando na filosofia política no século XVIII”.2

Fruto da chamada multiplicação dos direitos, como mencionaNorberto Bobbio,3 surgem, após a Segunda Guerra Mundial, duastendências marcantes que, cada vez mais, ganham espaço no mundoatual:4 a preocupação com o meio ambiente e a busca de uma melhorqualidade de vida.

Bobbio, ao analisar a evolução histórica dos direitosfundamentais, especificamente os de terceira geração,5 é peremptório ao

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Mestre eDoutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Juiz do Trabalho.

2 Themistocles Brandão Cavalcanti, Manual da Constituição, p. 193.

3 A era dos direitos, p. 67 ss. O autor ressalta, em sua instigante obra – p. 5 – que os direitos, notadamente os“direitos do homem” (fundamentais), são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. Assevera, ainda, que esses direitosnasceram de modo gradual, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.

4 Um mundo marcado pela globalização, cuja tendência é a “universalização dos direitos fundamentais”, comoressalta Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional, p. 524.

5 Segundo Norberto Bobbio. Op. cit., p. 11-12 – a figura dos direitos de terceira geração foi introduzida na literaturacada vez mais ampla sobre os “novos direitos”, destacando ainda que, no artigo “Sobre la evolución conteporáneade la teoría de los derechos del hombre”, Jean Rivera inclui entre esses direitos os direitos de solidariedade, odireito ao desenvolvimento, à paz internacional, a um ambiente protegido e à comunicação. Sobre o mesmo tema,Celso Lafer. A reconstrução dos direitos humanos, p. 131 – fala dos direitos de terceira geração, considerando-os,sobretudo, como direitos cujos sujeitos não são indivíduos, mas grupos humanos, como família, o povo, a naçãoe a própria humanidade. O processo de evolução do reconhecimento dos direitos fundamentais, entre eles os deterceira geração, é analisado, de forma detida, no Capítulo II da presente dissertação.

231Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

declarar que: “o mais importante deles é o reivindicado pelosmovimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído”.6

No Brasil, o art. 225, caput, da Constituição da República de1988 captou esse movimento e estabeleceu: “Todos têm direito aomeio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum dopovo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao PoderPúblico e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para aspresentes e futuras gerações” (grifo nosso).

O legislador constituinte, no caput do Art. 225, ao usar aexpressão sadia qualidade de vida, optou por estabelecer doissujeitos de tutela ambiental: “um imediato, que é a qualidade do meioambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurançada população, que se vêm sintetizando na expressão da qualidade devida”7 (grifamos).

Neste sentido, toma corpo a idéia de que o ambiente é a expressãodas alterações das relações dos seres vivos, incluído o homem, entre elese o seu meio, sem surpreender que o direito do ambiente seja, assim,um direito de interações, que tende a penetrar em todos os setores dodireito, para aí introduzir a idéia de ambiente.8

Assim sendo, se o meio ambiente que a Constituição Federalquer ver preservado é aquele ecologicamente equilibrado, bem como deuso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225,caput), então o homem, a natureza que o cerca, a localidade em quevive, o local onde trabalha, não podem ser considerados comocompartimentos fechados, senão como “átomos de vida”, integradosna grande molécula que se pode denominar de “existência digna”.Neste sentido, fica evidente o anacronismo da idéia que encara o meioambiente, em especial o seu aspecto natural, como bem intocável,não passível de relativização mesmo se considerados os interesses domaior destinatário do direito ao seu equilíbrio: o homem.

2. DIREITO AO MEIO AMBIENTE E OS DIREITOS HUMANOS

A preocupação com a questão ambiental é relativamenterecente. Seu surgimento não poderia ter ocorrido de outra maneira: ocontexto de vida do homem a partir da segunda metade do século XX– industrialização desenfreada, os processos migratórios geradores de

6 Norberto Bobbio, op. cit., p. 6.

7 , p. 54.

8 Prier, Michel. Droit de l’environnement. Dalloz, 1991, p. 13 e ss., apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo e MarceloAbelha Rodrigues. Manual de Direito Ambiental e legislação aplicável, p. 26.

232 Sandro Nahmias Melo

uma urbanização desestruturada e desmatamento, aumento donúmero de veículos automotores e outros fatores que contribuírampara o aumento da poluição do ar, da destruição da camada deozônio, escassez de recursos naturais não renováveis – fezmanifestar-se à consciência da necessidade de uma tutela jurídica domeio ambiente.

Verificou o homem a necessidade premente de harmonizar odesenvolvimento econômico-industrial com a preservação e proteçãodo meio ambiente (o hoje denominado desenvolvimento sustentadoou sustentável). Na questão vertente, Cristiane Derani ressalta que:“o Direito econômico e ambiental não só se interceptam, comocomportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam:buscar a melhoria do bem-estar das pessoas e a estabilidade doprocesso produtivo. O que os distingue é uma diferença deperspectiva adotada pela abordagem dos diferentes textosnormativos”.9

Segundo Paulo Bessa Antunes, “o primeiro e mais importanteprincípio do Direito Ambiental é que: O Direito ao Ambiente é umDireito Humano Fundamental”.10

Não é sem-razão, portanto, o reconhecimento da estreita ligaçãoentre os direitos humanos e o meio ambiente, na medida em que,indubitavelmente, existe uma relação indissociável entre DireitosHumanos e Meio Ambiente. Em síntese, o respeito ao direito do meioambiente equilibrado implica, necessariamente, na defesa do direito

233Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

9 Cristiane Derani. Direito Ambiental Econômico, p. 76.

10 Direito Ambiental, p. 25. Ainda neste sentido, o professor de Direito Constitucional da PUC-RJ, Carlos Roberto deSiqueira Castro, publicou excelente artigo a respeito do novo humanismo ecológico no qual discrimina, comargúcia, as etapas evolutivas dos Direitos Humanos. Transcrevemos parte do citado estudo:

“Provou-se, assim, que a obsessão pela prosperidade, que serviu de catapulta para a geração dos confortos e demaisconquistas da modernidade, volta-se agora contra o homem pós-moderno, impondo-se o abandono irreversível dacultura utilitarista e materialista, típica do over night existencialista, que impulsionou a histeria do consumo edepravou o meio ambiente deste século, cuja irresponsabilidade maior é ignorar que o relógio do tempo tem cursocontínuo e que alcança todas as gerações do porvir, quiçá a própria existência dos perdulários do presente. Ésentimento geral, por tudo isso, que só o desenvolvimento sustentável poderá tornar realidade os direitosfundamentais do homem, como proclamados nos sucessivos Bills of Rights de dimensão universalista, que atravésdos tempos documentaram os avanços espirituais da humanidade. A não ser assim, os primários direitos à vida, àexistência digna, à saúde, à educação e à cultura, que as Constituições democráticas contemplam e exortam,estarão reduzidos a enunciados puramente retóricos e inalcançáveis, pois não há como falar-se em direitoshumanos ou em liberdades básicas onde a água não é potável, o solo incultivável e o ar, irrespirável.

Em verdade, estamos diante da novíssima terceira geração dos direitos humanos, sabido que esses, desde a suaarticulação legalista com a eclosão das revoluções americana e francesa do século XVIII, têm experimentado umadinâmica transformação. Reconhece-se que a primeira fase dos direitos do homem corresponde à enunciação dosdireitos civis e políticos, equivalentes às liberdades públicas incorporadas à generalidade das constituiçõesdemocráticas, também chamados de blue rights. A segunda fase corporifica os direitos sociais, econômicos eculturais, designados red rights, cujas raízes fincam-se no humanismo socialista e que, sob o influxo das revoluçõesantiburguesas deste século em ocaso, e muito especialmente, da Declaração Universal dos Direitos do Homemaprovada pela ONU em 1948 (art. 23 a 28), por igual inscreveram-se na agenda das democracias constitucionais. Porfim, a terceira geração dos direitos humanos, que mais de perto ora nos interessa, aflorou nos últimos 20 anos comcrescente repercussão no pensamento humanístico. Esses direitos, conhecidos como green rights, sãometaindividuais e só podem ser desfrutados coletivamente, como é o caso do meio ambiente equilibrado, aodesenvolvimento sustentado, ao patrimônio cultural da humanidade e o direito à paz social” (O direito ambiental eo novo humanismo ecológico. Revista Forense, v. 317, 1992, p. 69, apud Sebastião de Oliveira, op. cit., p. 78-79).

à vida, que é o mais básico dos direitos fundamentais, nele seinserindo por visar diretamente à qualidade de vida (Art. 225, caput,CF/88) como meio de atingir a finalidade de preservação e proteção àexistência, em qualquer forma que esta se manifeste, bem comocondições dignas de existência à presente e às futuras gerações.11

Neste sentido preleciona, com fineza de pensamento, JoséAfonso da Silva:

A proteção ambiental, abrangendo a preservação danatureza em todos os seus elementos essenciais à vida humanae à manutenção do equilíbrio ecológico, visa tutelar a qualidadedo meio ambiente em função da qualidade de vida, como umaforma de direito fundamental da pessoa humana. (...) Esse novodireito fundamental foi reconhecido pela Declaração do MeioAmbiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, emEstocolmo, em junho de 1972, cujos vinte e seis princípiosconstituem prolongamento da Declaração Universal dos Direitosdo Homem.12

De fato, o reconhecimento internacional do direito ao meioambiente pode ser verificado nos princípios 1 e 2 da Declaração deEstocolmo, de 1972.13 Tais princípios, proclamados em Estocolmo,foram, inclusive, reafirmados, no Brasil, pela Declaração do Rio,proferida na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente eDesenvolvimento, Rio-92, cujo princípio 1 afirma:

Princípio 1 – Os seres humanos constituem o centro daspreocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável.Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia como meio ambiente.

A festejada Conferência de Estocolmo deixa claro ainda, em suaResolução Final, a relação entre o homem e meio ambiente e anecessidade de vida harmônica entre os mesmos:

234 Sandro Nahmias Melo

11 Karina Houat Harb, Direitos Humanos e Meio Ambiente, p. 78.

12 José Afonso da Silva, Direito Ambiental Constitucional, p. 36.

13 Princípio 1 – “O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vidaadequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar, e éportador solene de obrigação de melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras (...). Princípio 2– Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelasrepresentativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservadas em benefício das gerações atuais e futuras (...)”.

O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meioambiente que lhe dá sustento físico e lhe oferece oportunidade dedesenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Alonga e difícil evolução da raça humana no planeta levou-a a umestágio em que, com o rápido progresso da ciência e datecnologia conquistou o poder de transformar em inúmerasmaneiras e em escalas sem precedentes o meio ambiente naturalou criado pelo homem, é o meio ambiente essencial para o bem-estar e gozo dos direitos humanos (grifamos).

No Brasil, o Seminário Interamericano sobre Direitos Humanose Meio Ambiente, realizado em Brasília (4 a 7 de março de 1992),buscou refletir esta relação existente entre Direitos Humanos e MeioAmbiente, fornecendo ainda subsídios para a formulação de umprograma de educação a respeito do tema. Apresentou, por fim, entreoutras, as seguintes conclusões:

I – There is a close relationship betweem development andenvironment, development and human rigths, and environmentand human rights. Possible linkages can be found, e. g., in therights to life and to health in their wide dimension, wich requirenegative as well as positive measures on the part of States. Infact, this close relationship is demonstrated by most economic,social and cultural rights and by the most basic civil and politicalrights. After all, there is a parallel betweem the evolutions ofhuman rights protection and environmental protection, havingboth undergone a process of internationalization andglobalization.

II – The link betweem environment and human rights isfurther clearly demonstrated by the fact that environmentaldegradation can aggravate human rights violations, and, in turn,human rights violations, can like wise lead to environmentaldegradation or make it more difficult to protect the environment.14

235Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

14 “I – Há uma íntima relação entre desenvolvimento e meio ambiente, desenvolvimento e direitos humanos. Possíveisligações podem ser encontradas, por exemplo, nos direitos à vida e à saúde em suas largas dimensões, as quaisrequerem tanto medidas negativas quanto positivas da parte dos Estados. De fato, esta relação íntima édemonstrada pela maioria dos direitos, econômicos, sociais e culturais e pela maioria dos direitos civis e políticos.Além de tudo, há um paralelo entre as evoluções da proteção dos direitos humanos e proteção ambiental, tendoambos passado por um processo de internacionalização e globalização. II – A ligação entre meio ambiente edireitos humanos é mais claramente demonstrada pelo fato que degradação ambiental pode agravar as violaçõesdos direitos humanos, e, por outro lado, as violações dos direitos humanos podem conduzir a grande degradaçãoambiental ou dificultar a proteção do meio ambiente”. In: “Conclusions of the Inter-American Seminar on HumamRights and Environment, Human Rights, Sustainable Development and the Environment”, Seminário de Brasília,1992, p. 293, Apud Karina Houat Harb. Direitos Humanos e Meio Ambiente, p. 78-79.

Cada vez mais, no mundo contemporâneo – industrializado eglobalizado – o direito à vida vem recebendo tratamento amplo edetalhado, advindo daí a concepção do direito ao meio ambiente comoextensão do direito à vida, pois este no seu sentido mais preciso nãose restringe à idéia de sobrevivência – não morrer – mas sim viver comqualidade e com dignidade, aspectos estes inerentes ao direito aomeio ambiente saudável.

O alargamento do sentido da expressão “qualidade de vida”, alémde acrescentar a idéia de bem-estar relacionado à saúde física e mental,referindo-se inclusive ao direito de o homem fruir de ar puro e de umabela paisagem, finca o fato de que o meio ambiente não diz respeito ànatureza isolada, estática, sendo imperiosa a integração da mesma àvida do homem social nos aspectos relacionados à produção, aotrabalho, especificamente ao seu meio ambiente de trabalho.

Neste sentido, obtempera Cristiane Derani:

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é umdireito à vida e à manutenção das bases que a sustentam. Destaca-se da garantia fundamental à vida exposta nos primórdios daconstrução dos direitos fundamentais, porque não é simplesgarantia à vida, mas este direito fundamental é uma conquistaprática pela conformação das atividades sociais, que devemgarantir a manutenção do meio ambiente ecologicamenteequilibrado, abster-se da sua deterioração, e construir a melhoriaintegral das condições de vida da sociedade15 (grifado no original).

Note-se, portanto, a absoluta simetria entre o direito ao meioambiente e o direito à vida, como bem observado por José Afonso daSilva, ao declarar que “o problema da tutela jurídica do meioambiente se manifesta a partir do momento em que sua degradaçãopassa a ameaçar, não só o bem-estar, mas a qualidade de vidahumana, se não a própria sobrevivência do ser humano”.16

Ante todo o exposto é inafastável a conclusão no sentido de queo direito ao meio ambiente equilibrado é, sim, direito fundamental,materialmente considerado, uma vez está que inexoravelmente ligadoao direito à vida.

Destaque-se, no mais, que qualquer argumento expendido nosentido de que o direito ao meio ambiente saudável não é fundamental,mormente porque não encontra guarida no “catálogo” da Constituição de

236 Sandro Nahmias Melo

15 Cristiane Derani. Meio Ambiente ecologicamente equilibrado: Direito Fundamental e Princípio da AtividadeEconômica. In: “Temas de Direito Ambiental e Urbanístico”, p. 97.

16 Direito Ambiental Constitucional, p. 8.

1988, ou seja, entre os dispositivos discriminados no Título II (DOSDIREITOS E DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS) da Constituição, é detodo permeado de fragilidade, devendo, de pronto, ser rechaçado.

Ora, como já foi demonstrado, os direitos podem serconsiderados como formalmente fundamentais e materialmentefundamentais. Com relação a estes, encontramos a autorizaçãoexpressa do § 2.º, do Art. 5.º, da Constituição Federal, ao declararque os direitos fundamentais expressos na Carta Magna “nãoexcluem outros decorrentes do regime e dos princípios por elaadotados (...)”. Este é o caso do direito ao meio ambiente hígido(Art. 225, caput) que, por seu conteúdo, ligado ao direito à vida, éindiscutivelmente fundamental.

Na mesma linha esposada nestas considerações, ponderaCristiane Derani que: “o direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado presente do Art. 225, caput da Constituição Brasileira de1988 é um direito fundamental. Esta premissa está fundada numacompreensão material – e não formal – do direito fundamental”(grifamos). Destaca ainda, a autora, que os “direitos fundamentaisnão são simplesmente aqueles que a Constituição explicita no seuArt. 5.º. Um direito é fundamental quando seu conteúdo invoca aconstrução da liberdade do ser humano”.17

3. A RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Definido o meio ambiente como direito fundamental, ou seja,como elemento imprescindível para o alcance do direito à vida, comqualidade e dignidade, emerge, de pronto, uma questão: o direito aomeio ambiente, como direito fundamental, deve prevalecer sobreoutros interesses ou direitos, inclusive sobre aqueles igualmentefundamentais? A resposta se nos afigura como negativa.

Desde logo, há que se reconhecer que, na maioria das situaçõesem que está em causa um direito do homem, constatamos oenfrentamento de dois direitos igualmente fundamentais, não sendopossível proteger um deles sem tornar o outro flexibilizado, comoobserva Norberto Bobbio:

Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito àliberdade de expressão, por um lado, e no direito de não serenganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipen-

17 Cristiane Derani, op. cit., p. 91.

237Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

diado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falarem direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, nosentido de que a tutela deles se encontra, em certo ponto, umlimite insuperável na tutela de um direito igualmente funda-mental, mas concorrente. E dado que é sempre uma questão deopinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outrocomeça, a delimitação do âmbito de um direito fundamental dohomem é extremamente variável e não pode ser estabelecida deuma vez por todas.18

Canotilho, por sua vez, sublinha a importância de “as regras dodireito constitucional de conflitos deverem-se construir com base naharmonização dos direitos, e, no caso de isso ser necessário, naprevalência de um direito ou bem em relação ao outro”.19

Sobre as limitações ao exercício de direitos fundamentais, JeanRivero Savatier, aponta, com clareza, que:

L’exercice d’un droit, même s’il s’agit d’un droitfondamental, doit se concilier avec les nécessités de la viesociale; c’est pourquoi les textes, et éventuellement lajurisprudence, l’ensserent dans un certain nombre de conditions,qui en marquent les limites.20

Diante do exposto, dada a necessidade de harmonização entredireitos fundamentais, torna-se imperiosa a relativização dos mesmos.

O mundo jurídico não pode estar apartado da realidade, e asexigências dos fatos informam as condições de realização da norma.Tendo como verdade o fato de que uma ampla discussão ambiental émais profícua numa sociedade que seja capaz de resolver asnecessidades básicas de fome, moradia e saúde, é óbvia aimpossibilidade do afastamento entre as normas de incremento depráticas econômicas socialmente justas – destinadas à realização deuma justa distribuição de riquezas – e as normas destinadas àproteção do meio ambiente.

Ao alcance da qualidade de vida, no meio ambiente,corresponde tanto um objetivo do processo econômico como umapreocupação da política ambiental, afastando-se a idéia de que as

238 Sandro Nahmias Melo

18 A era dos direitos, p. 42.

19 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional, p. 646-647.

20 “O exercício de um direito, mesmo em se tratando de um direito fundamental, deve se harmonizar com asnecessidades da vida social, isto porque os textos legais, e eventualmente a Jurisprudência, o cercam dentro deum certo número de condições, que marcam os seus limites”. Jean Rivero Savatier. Manuel de Droit du Travail, p.346/7.

normas de proteção do meio ambiente, no enfoque do meio ambientedo trabalho, seriam servas da obstrução de processos econômicos etecnológicos. A partir desta análise, é forçosa a conclusão pelanecessidade de uma compatibilização entre os processos de produçãoe as sempre crescentes exigências do meio ambiente.

Exatamente neste sentido, bem colocam Celso Fiorillo e MarceloAbelha ao asseverar que a degradação ambiental é, em últimaanálise, “uma obstrução do exercício dos demais direitos humanos,ou ainda, de que proteger o meio ambiente pode, muitas vezes,representar limitações a estes direitos individuais (...)”. Os autorescitam ainda, como reforço ao argumento, a lição de Canotilho e VitalMoreira que defendem justamente que a preservação do meioambiente possa gerar restrições a outros direitos constitucionalmenteprotegidos, exemplificando que “a liberdade de construção, quemuitas vezes se considera inerente ao direito de propriedade, é hojeconfigurada como liberdade de construção potencial, nas quais seincluem as normas de proteção ao ambiente”.21

Não há que se confundir, contudo, no que concerne ao meioambiente, o conceito de direito fundamental com o de direito absoluto.Neste particular, abstraída a questão, já pacificada na melhordoutrina quanto à inexistência de direito absoluto, caso assim fossereconhecido o exercício do direito ao meio ambiente hígido – comoabsoluto – estaríamos diante de situações insólitas, entretantolegítimas. Não seria possível qualquer crescimento econômico queoferecesse risco, por menor que fosse, à fauna e à flora. Muitas dasnecessidades básicas do homem (alimentação, moradia, saúde)sequer poderiam ser satisfeitas, necessidades estas sintonizadas como direito ao desenvolvimento previsto no Art. 170, da CF/88.

Como ensina Cristiane Derani a “escolha de um princípio emdetrimento de algum outro, o seu conteúdo teleológico delimitado nainterpretação, nada mais é que a opção por determinada ordem. (...)A descrição normativa do texto constitucional brasileiro identificauma série de relações e aspirações inerentes a esta sociedade numdeterminado tempo histórico, aportando à economia capitalista, quereafirma, novos matizes. Assim, um fator fundamental da produçãoeconômica, a natureza, submete-se aos efeitos da normatização dosmeios de sua apropriação. Ajusta-se, portanto, a exigências de razõeseconômicas, estéticas, culturais, ontológicas reguladas peloordenamento jurídico peculiar a cada formação social”.22

239Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

21 Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, p. 29.

22 Direito Ambiental Econômico, p. 32-34.

Em suma, todo homem tem direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado. Todavia, o exercício deste direito deve seranalisado, sistematicamente, com outros princípios e direitoscontidos na Constituição Federal, reguladores das necessidades davida em sociedade, justamente para que não haja supressão destesem nome da proteção daquele. Mas, ainda que clara esta idéia derelativização, haveria um limite para que este direito fosserelativizado sem que o mesmo não fosse obliterado?

Considerando-se que, ao longo da experiência histórica, sãofartos os exemplos nos quais sociedades sofreram abuso do poderinstitucionalizado – escudado nas vestes da lei formal – o tema oraproposto desponta com significativa importância, notadamente comrelação à manutenção de direitos e garantias fundamentais.23

Neste particular, Retortillo, com base na doutrina alemã,aponta o chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais “comogarantia dos direitos e liberdades frente a atividade legislativa delimitação dos mesmos”.24 Para Retortillo, a regulamentação do exercíciode um direito se concebe como uma atividade que engloba também alimitação do mesmo. Neste sentido, o chamado conteúdo essencial dodireito desponta como limite para a atividade legislativa limitadora dosdireitos, configurando, em síntese, “o limite dos limites”.25

Como resta evidente após estas considerações, a questão ora pro-posta é complexa, tornando, inclusive, difícil o alcance de uma definição,conclusiva, do chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

4 – CONTEÚDO ESSENCIAL. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Segundo esclarece Martin-Retortillo, o conteúdo essencial dosdireitos fundamentais assinala uma fronteira que o legislador nãopode ultrapassar, delimitando um terreno que a Lei que pretendelimitar-regulamentar um direito não pode invadir sem incorrer eminconstitucionalidade.26

240 Sandro Nahmias Melo

23 O tema proposto, inclusive, é marcado pela relevância na medida em que vez ou outra, no Brasil, vivencia-se umacrise institucional entre os Poderes Judiciário e Legislativo, na qual este ameaça aquele com a limitação depoderes. Neste sentido temos a declaração do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, em entrevista aoJornal Folha de S. Paulo (18, junho, 99), no qual comenta decisão do Supremo que restringia a atuação das CPI’s:“É de se esperar que esse assunto vá logo para o plenário do Supremo e que seja reformado, para que nós nãotenhamos que fazer uma legislação tirando até algumas das atribuições do Supremo” (Grifamos). Em resposta areferida declaração, o presidente do STF, Carlos Velloso, em entrevista ao mesmo Jornal (18, jun., 99), asseverouque: “O presidente do Senado, tenho certeza, há de refletir que ele deve cumprir uma Constituição que édemocrática e uma Constituição que impõe limites” (Grifamos).

24 Martin-Retortillo Baquer, op. cit., p. 125.

25 Idem, ibidem, p. 125-135.

26 Martin-Retortillo Baquer, op. cit, p. 126.

Vieira de Andrade, por sua vez, com base na teoria alemãabsoluta, assevera que: “o conteúdo essencial consistiria em umnúcleo fundamental, determinável em abstrato, próprio de cadadireito e que seria, por isso, intocável. Referir-se-ia a um espaço demaior intensidade valorativa (o coração do direito) que não poderiaser afetado sob pena de o direito deixar de realmente existir”.27

Como já exposto, há que se enfrentar “o problema da leiarbitrária, que reúne formalmente todos os elementos da lei, mas ferea consciência jurídica pelo tratamento absurdo ou caprichoso queimpõe a certos casos, determinados em gênero ou em espécie, temconstituído, em todos os sistemas de direito constitucional, umproblema de grande dificuldade teórica e de relevante interesseprático”.28

Neste sentido, a problemática sobre a necessidade deestipulação de um limite ao poder limitador do Legislativo, no queconcerne a regulamentação dos direitos fundamentais, é enfeixada,com clareza ímpar, por Gilmar Ferreira Mendes:

É possível que o vício de inconstitucionalidade substancialdecorrente do excesso do poder legislativo constitua um dos maistormentosos temas de controle de constitucionalidade hodierno. (...)

O excesso de poder como manifestação de inconstitu-cionalidade configura afirmação da censura judicial no âmbitoda discricionariedade legislativa ou, como assente na doutrinaalemã, na esfera de liberdade de conformação do legislador(Gesetzgeberische Gestaltungsfreiheit), permitindo aferir acompatibilidade das opções políticas com os princípiosconsagrados na Constituição. Nega-se, assim, à providêncialegislativa o atributo de um ato livre no fim, consagrando-se avinculação do ato legislativo a uma finalidade.29

Ressalte-se, por oportuno, que, ao defender-se a necessidade delimitação ao poder de regulamentação do Poder Legislativo, não estáse propondo, como adverte Suzana Barros, “reduzir a esfera deliberdade do legislador democraticamente legitimado pararegulamentar a Constituição, pela ampliação dos poderes do juiz,

241Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

27 Vieira de Andrade, José Carlos Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina,1987, p. 233.

28 Dantas, San Tiago, “Igualdade perante a lei e due process of law” (contribuição ao estudo da limitaçãoconstitucional do Poder Legislativo), Revista Forense, vol. 116, 1948, p. 357, apud Barros, Suzana de Toledo. Oprincípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais.Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 21.

29 Mendes. Controle de Constitucionalidade (Aspectos jurídicos e políticos). São Paulo: Saraiva, 1990, p. 38-39.

mas evitar que aquele poder político chegue ao excesso de produzirlei desnecessária, casuística ou desarrazoada, realidade assentemesmo nas democracias consolidadas e que precisa ser consideradapara merecer o devido controle”.30

Ao partir-se da premissa que os direitos, ainda quefundamentais, não são absolutos, é que temos que admitir alimitação dos mesmos, até para possibilitar o seu exercício na medidaem que: “É preciso partir da afirmação óbvia de que não se podeinstituir um direito em favor de uma categoria de pessoas semsuprimir um direito de outras categorias de pessoas”.31 Neste sentidoé o conteúdo essencial dos direitos atua como limite dos limites,impondo ao Legislativo uma ação arrazoada, justificada, sem o queincorrerá na inconstitucionalidade.

De maneira simplista, poderíamos comparar o efeito dochamado limite dos limites com a “eficácia negativa” emanada dasnormas constitucionais programáticas.

Ora, a doutrina alemã classifica as normas programáticas como“normas de promessa”32 (Versprechungsnormen), uma vez que contêmuma promessa de legislação, de regulamentação.

Assim sendo, inicialmente os doutrinadores atribuíram àsnormas programáticas frágil consistência jurídica, na medida em queesvaziavam sua força vinculante, convertendo-as em meras exortaçõesmorais. Entendendo alguns que as normas programáticas erampreceitos desprovidos de qualquer eficácia, que poderiam ser violados,inclusive por norma infraconstitucional, sem que isso resultasse eminconstitucionalidade. Retirada estava a própria juridicidade danorma programática.

Não se sustenta a teoria de falta de eficácia das normasconstitucionais programáticas, pois seria o mesmo que defender ainutilidade de parte da Constituição. E, neste particular, comosustenta Meirelles Teixeira: nada de inútil existe na Constituição.33

Rechaçando a citada teoria, vem a doutrina defendida peloitaliano Crisafulli,34 dividindo as normas constitucionais em normasde eficácia plena, dotadas de imediata aplicação, e de normas eficácialimitada, que abrangeriam as normas programáticas.

30 Barros. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitosfundamentais. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 21.

31 Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, 8.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42.

32 Teixeira, José Horácio Meirelles, [texto revisto e atualizado por Maria Garcia]. Curso de direito constitucional. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 324.

33 Teixeira. Op. cit., p. 324.

34 Vezio Crizafulli, “La constituzione e le sue disposizione de principio” Cf. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 93.

242 Sandro Nahmias Melo

Para esta teoria as normas programáticas constituemverdadeiras normas jurídicas que detêm “eficácia negativa”, posto queobstam atividade legislativa que lhe seja contrária. Neste momento,avanço significativo é registrado, já que ineditamente se confere àsnormas programáticas certa eficácia, embora em sentido negativo.

Tomemos o exemplo da norma insculpida no inc. VII, do Art.37, da CF/88. Nela fica garantido o exercício do direito de greve, nostermos e nos limites da lei, ao servidor público civil. Ora, como jádecidido pelo C. STF (Mandado de Injunção n.º 438-2-GO), trata-se deuma norma programática. Todavia, apesar de limitada, é evidente aeficácia do referido dispositivo na medida em que retira a eficácia asnormas que configurem a greve como preceito negativo, afastando,inclusive, a possibilidade de legislar-se, ordinariamente, contra oexercício do direito de greve. Temos aí um limite ao Poder Legislativo,que não pode ultrapassar o conteúdo essencial na norma insculpidano inciso VII, Art. 37, da CF/88.

Por fim, demonstrada a similitude entre os efeitos do conteúdoessencial dos direitos fundamentais e a “eficácia negativa” dasnormas programáticas, uma vez que ambos limitam, de algumaforma, a atividade do legislador, cumpre destacar que a garantia doconteúdo essencial, entendida como limite dos limites, não é privativados direitos fundamentais, sendo comum a qualquer normaconstitucional.

5. O CONTEÚDO ESSENCIAL NO DIREITO COMPARADO

Encontra guarida, de maneira expressa, o princípio de proteçãodo núcleo essencial (Wesensgehalt) dos direitos fundamentais noordenamento constitucional de alguns países:

– O Art. 19.2, da Constituição alemã dispõe que: “em nenhumcaso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência”(Grifamos);

– A Constituição portuguesa refere-se à garantia do núcleoessencial em seu Art. 18.3, segundo o qual “as leis restritivas dedireitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral eabstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão eo alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” (Grifonosso);

243Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

– O Art. 53.1, da Constituição espanhola também alude àreferida garantia, ao estabelecer que “os direitos e liberdadesreconhecidos no Capítulo II do presente Título vinculam todos ospoderes públicos. Somente por lei, que em todos os casos deverespeitar seu conteúdo essencial, poderão ser regulados esses direitose liberdades (...)” (Grifamos).

No Brasil, apesar do princípio da proteção do núcleo essencialdos direitos fundamentais não ter sido contemplado pelo constituintede 1988 de forma expressa, não se sustenta o argumento no sentidode que o mesmo não existe em nosso ordenamento jurídico. Ora,considerando a própria natureza protetora dos direitos fundamentaisseria ilógica a intervenção do legislador ordinário no âmbito do direitofundamental para destruí-lo. Ressalte-se, todavia, que previsão, naesfera constitucional, do princípio da garantia de proteção aoconteúdo essencial não deve ser encarada como um círculo extra ousupra-estatal, no qual o legislador esteja proibido, em hipótesealguma, de intervir.

6. CONSIDERAÇÕES DE ORDEM PRÁTICA

Considerando o conteúdo essencial como o núcleo de um direitofundamental e, portanto, figurando como limite dos limites, nosdeparamos com a idéia de o conteúdo essencial impedir qualquertentativa reguladora do legislador, como uma verdadeira muralhafrente ao mesmo.

Todavia, há que se reconhecer que, na maioria das situaçõesem que está em causa um direito do homem, constatamos oenfrentamento de dois direitos igualmente fundamentais, não sendopossível proteger um deles sem tornar o outro flexibilizado ouinoperante, como observa Norberto Bobbio:

Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito àliberdade de expressão, por um lado, e no direito de não serenganado, excitado, escandalizado, injuriado difamado, vilipen-diado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falarem direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, nosentido de que a tutela deles se encontra, em certo ponto, umlimite insuperável na tutela de um direito igualmentefundamental, mas concorrente. E dado que é sempre uma

244 Sandro Nahmias Melo

questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um terminae o outro começa, a delimitação do âmbito de um direitofundamental do homem é extremamente variável e não pode serestabelecida de uma vez por todas.35

É Suzana Barros, entretanto, que enfeixa com perfeição linhalimítrofe de ação do Legislativo, ao asseverar que: “A toda a evidência,o limite de restrição de qualquer coisa é tudo aquilo queconceitualmente a pode destruir. Todo o bem ou valor jurídico tem,por isso, uma essência a respeito da qual há um certo consenso,ainda que se trate de algo fluido ou ambíguo, a exemplo da boa-fé,conceito que recebeu inúmeros tratados técnicos”.36 Assim também oé com o direito ao meio ambiente. Se a limitação do mesmo é tal aponto de destruí-lo, o seu conteúdo essencial não foi respeitado.

Não há como se definir, entretanto, uma regra matemáticacapaz de identificar se relativização de um direito, especificamente odireito ao meio ambiente (considerados todos os seus aspectos –natural, artificial, cultural e do trabalho), quando harmonizada comoutro direito fundamental, afeta ou não o seu conteúdo essencial.Cada caso deve ser analisado in concreto com base em suaspeculiaridades.

7. CONCLUSÃO

De tudo quanto se expôs, parece autorizado concluir que:

É inafastável a conclusão no sentido de que o direito ao meioambiente equilibrado é, sim, direito fundamental, materialmenteconsiderado, uma vez está que inexoravelmente ligado ao direito à vida;

Definido o meio ambiente como direito fundamental, ou seja,como elemento imprescindível para o alcance do direito à vida, comqualidade e dignidade, emerge, de pronto, uma constatação: o direitoao meio ambiente, como direito fundamental, não deve prevalecer, deforma absoluta, sobre outros interesses ou direitos, inclusive sobreaqueles igualmente fundamentais;

Há que se reconhecer que, na maioria das situações em queestá em causa um direito do homem, constatamos o enfrentamento

245Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

35 Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, 8.ª ed. Rio de Janeiro, Campus, 1992.

36 Barros, op. cit., p. 96.

de dois direitos igualmente fundamentais, não sendo possívelproteger um deles sem relativizar o outro;

O conteúdo essencial dos direitos e garantias fundamentaisconstitui uma garantia dos direitos e liberdades frente a atividadelegislativa de limitação dos mesmos. Tal conteúdo assinala umafronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimitando umterreno que a Lei que pretende limitar-regulamentar um direito nãopode invadir sem incorrer em inconstitucionalidade;

A toda a evidência, o limite de restrição de qualquer coisa é tudoaquilo que conceitualmente a pode destruir. Todo o bem ou valorjurídico tem, por isso, uma essência a respeito da qual há um certoconsenso, ainda que se trate de algo fluido ou ambíguo, a exemplo daboa-fé, conceito que recebeu inúmeros tratados técnicos;

O texto do Art. 225, da Constituição Federal deve serinterpretado em consonância com o direito fundamental aodesenvolvimento e à luz dos objetivos e preceitos fundamentais daRepública;

O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado deve servisto, enquanto direito humano, como elemento integralizador da esferaindividual de cada ser ao seu campo político-jurídico, o qual qualifica ostermos cidadãos, indivíduos e coletivo, respectivamente, como social,sujeitos de direitos e nação, bases para um futuro contrato social,idealizado na vigência e plenitude dos direitos humanos.

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248 Sandro Nahmias Melo

– PARTE 03 –

O RISCO ACERCA DA UTILIZAÇÃO DA TRANSGENIA (ORGANISMOS GENETICAMENTEMODIFICADOS) NA AGRICULTURA MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .251

1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .251

2. A tematização do risco na sociedade moderna segundo a ótica de Raffaele de Giorgi . .254

3. Os Organismos Geneticamente Modificados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .260

4. Transgênicos – Aspectos controversos da polêmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .264

5. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .269

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .271

CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO . . . . . . .2731. Introdução – O quadro da indolência humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .273

2. Sociedade de Risco Mundial – admirável mundo tecnológico . . . . . . . . . . . . . . . . .274

3. Globalização, Estado-Nação e Cidadania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .281

4. Cidadania Ambiental Cosmopolita – Sociedade Civil Mundial . . . . . . . . . . . . . . . . .286

5. Conclusões articuladas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .294

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .296

O RESGUARDO DO PATRIMÔNIO CULTURAL POR MEIO DA MEMÓRIA COLETIVA .299

1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .299

2. A memória entre a Lenda e a Mitologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .301

3. As fases da memória coletiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .302

3.1 Memória Étnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .302

3.2 Entre a Pré-História e a Antigüidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .303

3.3 A Fase Medieval . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .304

3.4 O avanço do século XVI até o presente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .304

3.5 A memória na atualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .305

4. A cultura e a memória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .306

5. A importância dos bens culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .307

6. O patrimônio histórico e artístico na ordem constitucional . . . . . . . . . . . . . . . . . .308

7. O desenvolvimento da proteção jurídica das lembranças culturais . . . . . . . . . . . . .310

7.1 A proteção da memória do patrimônio cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .310

7.2 O patrimônio cultural brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .312

7.3 Do patrimônio material ao imaterial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .314

8. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .316

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .317

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos

Geneticamente Modificados) naAgricultura Moderna

Bruno Gasparini1

1. INTRODUÇÃO

Asociedade moderna sustenta-se sobre os princípiosda globalização e do neoliberalismo, primando por

um viés econômico para solucionar os problemas a ela inerentes. Odesenvolvimento tecnológico e o conhecimento científico inabalável,marcado pela racionalidade, proporcionou a criação da sociedade derisco, firmada na globalização e marcada pelo utilitarismo. Sob estesparâmetros, visualizamos ser o risco fruto da modernidade, sendoconseqüência da globalização e do progresso da ciência, tendo-sedesenvolvido sem a sustentabilidade necessária. O autor portuguêsBoaventura de Sousa Santos explicita essa situação:

(...) sendo um novo modelo global, a nova racionalidadecientífica é também um modelo totalitário, na medida em quenega o caráter racional a todas as formas de conhecimento quenão se pautem pelos princípios epistemológicos e pelas suasregras metodológicas. É esta a sua característica fundamental eque melhor simboliza a ruptura do novo paradigma com os que oprecedem.2

1 Mestrando em Direito. Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.

2 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto:Afrontamento, 2000, p. 58.

251O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

O contexto globalizado, que têm como características a ordemcosmopolita e transformadora, foi fundamental para a modificação daforma de pensamento e de enfrentamento da realidade quecaracterizam a sociedade moderna. O progresso tecnológicopossibilitou à humanidade romper as barreiras dos limites naturais,proporcionando um crescimento populacional exacerbado emodificando as relações sociais, mas também trazendo comodidade,conforto, bem-estar, agilidade, fluidez, praticidade, enfim, todas asbenesses características deste mundo globalizado.

Entretanto, embora a evolução seja inegável, ela traz consigoinúmeros problemas nunca dantes imaginados, cuja previsibilidadese torna parca em virtude dos desequilíbrios causados pelo sistema.A aculturação dos povos subdesenvolvidos, a mudança do modo devida, a alteração dos costumes e tradições, os problemas ecológicos,o esgotamento dos recursos, são temas característicos deste período.Desta forma, percebemos que a globalização traz consigo paradoxosde difícil contemporização, pois ao mesmo tempo em que nos oferecebenefícios, através da tecnologia, nos apresenta problemas que nosparecem insolúveis, causados pelo desequilíbrio. A única certezaplausível é a de que nada é seguro, mas, ao mesmo tempo, nada éimpossível para a sociedade moderna.

Este contexto e as práticas acima descritas ilustram a situaçãodos Estados subdesenvolvidos e dos agricultores tradicionais frenteàs indústrias transnacionais que controlam o agronegócio mundial,monopolizando a cadeia produtiva (sementes, fertilizantes eherbicidas), e impondo a aceitação mundial de novas tecnologiasagrícolas, fragmentando o campo de acordo com seus própriosinteresses e dividindo os mercados consumidores em fatias rentáveisa todos os integrantes do conglomerado financeiro internacional,gerando uma dependência financeira e tecnológica, que inibe odesenvolvimento de tecnologias locais que não sejam financiadas porestes grupos, das quais não possam garantir royalties através depatentes, e colocam os países subdesenvolvidos e os agricultorestradicionais numa ciranda de dependência, na qual o único interesseé mantê-los na mesma situação, reféns do conglomerado financeirointernacional.

Os agricultores são encorajados e convencidos a utilizarem-sede técnicas de produção cujo rendimento está diretamenterelacionado a um ciclo produtivo concebido através do encadeamentoseqüencial e ordenado das fases do cultivo de determinada variedadeagrícola. As transnacionais sementeiras fornecem os fertilizantes, as

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sementes, os herbicidas, toda uma técnica de produção que só darábons resultados se encadeadas e metodicamente utilizadas. A decisãodo agricultor em utilizar a nova técnica, implicará numcomprometimento deste com a empresa. O agricultor se comprometerápelo pagamento destes insumos através de sua produção, podendo sero pagamento em “soja verde”, ou no valor da soja no mercado novencimento das obrigações. Os preços da soja no mercado futuro jáestão sendo largamente contratados. A transnacional paga pelo risco,mas percebe, monopoliza e influencia os rumores do mercado quepodem influenciar o peço do grão, cotado em Bolsa.

A partir desta premissa, percebe-se que os Estadossubdesenvolvidos, que atrelam suas políticas públicas ao interesse doconglomerado financeiro internacional, acentuam os riscos de suassociedades ao atrelarem suas decisões políticas aos desígniosexternos, sem considerar que estas decisões humanas podemimputar danos irreparáveis ao entorno (humano e natural), gerandocausas que se tornam alheias ao seu próprio controle. A polêmicaadoção da transgenia está envolta num conturbado debate, queapresenta controvérsias de caráter ético, científico, político,econômico, cultural e ecológico, que ao invés de apresentar soluçõesplausíveis para a sociedade, apenas aumentam o grau de incertezaquanto à utilização desta nova biotecnologia.

Em cada um desses conflituosos campos do debate,encontraremos posições contrárias e posições favoráveis, queobscurecem ainda mais o tema, tornando-nos reféns das imposiçõesdos conglomerados financeiros internacionais, que apenas sepreocupam com as cifras relacionadas a este empreendimento.Existem aqueles que pregam, entre eles cientistas e estudiosos, queos Organismos Geneticamente Modificados não representam nenhumrisco extra para a sociedade; paralelamente, existem advertênciascontundes e comprovadas cientificamente, alertando sobre osproblemas irreversíveis que estes podem causar aos seres humanos eao meio ambiente.

A sociedade, por sua vez, sempre mal informada e alheia aodebate, recebe informações tendenciosas, veiculadas em meios decomunicação de massa, que são patrocinadas pelas grandesindústrias sementeiras transnacionais (como as propagandas daMonsanto que estão sendo exibidas na televisão, que ridicularizam osdebates e minimizam os riscos, sem ter um aporte científico paratanto). A única certeza é que estes grupos almejam apenas aumentaro seu mercado consumidor e conseqüentemente, seus lucros,

253O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

disseminando suas tecnologias sem maiores critérios, pretendendoque os riscos sejam avaliados posteriormente, negligenciando oprincípio da precaução, desrespeitando consumidores e agricultores.

Assim, no presente trabalho, o intuito é estabelecer umaconexão entre a utilização da transgenia na agricultura e a teoria dorisco na sociedade moderna, apontando as tendências favoráveis econtrárias a esta tecnologia, relacionando-as com a problematizaçãoformulada por Raffaele de Giorgi acerca do risco na sociedade pós-industrial.

2. A TEMATIZAÇÃO DO RISCO NA SOCIEDADE MODERNASEGUNDO A ÓTICA DE RAFFAELE DE GIORGI

A formulação de De Giorgi parte da constatação de que ametafísica das grandes descrições está esgotada, os grandesacontecimentos mundiais das últimas décadas transformaram nãosomente a “ordem do mundo”, mas também a “ordem dos conceitos”ou distinções, utilizadas para descrever a ordem vigente àquelaépoca. Tais distinções indicavam diferenças de contexto, de sentido,consideradas como potenciais evolutivos da sociedade contem-porânea. Uma parte das distinções eram isoladas e apresentadascomo uma condensação de sentido da própria distinção, estaoperação legitimava outras operações, que produziam ulteriorescondensações de sentido ou a passagem às outras partes da própriadistinção.

Eram operações que impunham uma representação do futuro,pois demandavam tempo na sua elaboração. Assim, a certeza dofuturo era produzida no presente, pois havia a certeza da existênciade um futuro cuja atualização dependeria de nossa atuação. Nahipótese desta certeza não se realizar, restaria a afirmação de que talfato poderia ser imputado à oposição previsível de forças contrárias,mas, de qualquer forma, conhecidas ou previsíveis. A racionalidadeestava inculcada nestas formulações. As ações do presente erampautadas na representação do futuro, baseado em esquemas desimplificação da sociedade possível, que davam plausibilidade àsdecisões, visto que permitiam tratar com previsibilidade ou comoexpectativas partilhadas, o dano ocasionado daquela atuação.

O potencial descritivo destas distinções havia sedimentado umasemântica que estabilizava estruturas de expectativas e forneciasegurança. Estas distinções se caracterizavam por valores positivos

254 Bruno Gasparini

ou negativos, sempre contrastantes, mas que tinham sua própriaplausibilidade, visto que mesmo as resistências que se opunham adeterminadas estratégias, tendiam a conservar a distinção,convalidando a possibilidade de autodescrição da sociedade. Opróprio De Giorgi elucida a questão: “De outra parte, os paísessubdesenvolvidos só eram assim considerados sob a perspectiva dedesenvolvimento dos países desenvolvidos, os quais, enquantoimpunham suas políticas em virtude de sua potência econômica,podiam legitimamente ter como objetivo de seu desenvolvimento amanutenção do subdesenvolvimento nos outros países”.

3

A diferença entre os valores que caracterizam cada uma daspartes da distinção criava situações de equilíbrio no sentido de que,também quando se verificava a transposição da linha demarcatória,a diferença entre os dois valores subsistia. A igualdade de todos oscidadãos perante a lei forçava a redistribuição, em âmbitos diversos,dos problemas que dali derivavam e levava, desta forma, à produçãode novas diferenças. A situação é cíclica e irremediável. Ascontraposições do sistema são diametralmente opostas, mas comcaráter complementar. É a manutenção das distinções e asestratégias de equilíbrio que garante segurança do sistema. Naafirmação de De Giorgi: “Mais Estado significava menos mercado;mais riqueza; menos pobreza; mesmo guerra, mais paz. Diante dorisco, podia-se oportunamente pensar em mais segurança. A guerrafria, o equilíbrio do terror, a política de dissuasão, as intervençõespara o desenvolvimento, são todas configurações destas estratégiasde equilíbrio e de manutenção das distinções”.

4

Nas autodescrições da sociedade contemporânea, o paradigmaera baseado num princípio de racionalidade que representava atensão face ao equilíbrio das distinções e que reforçava a expectativada normalidade. A indicação da normalidade permitia assinalar,distintamente, o limite além do qual os acontecimentos apresentavamo caráter de desvio. Os acontecimentos assumem o caráter denormalidade, quando o seu “acontecer” é sustentado pelo consensode regularidade, pelo fortalecimento daquelas estruturas de controledo desvio que são constituídas de expectativas. A regularidadepermite construir conexões entre os acontecimentos, imputarcausalidade e elaborar descrições que tornam manifestas as conexõesentre os acontecimentos. A calculabilidade das imputações naconstrução de conexões confere a estas caráter de razoabilidade. As

3 DE GIORGI, Raffaele. “O risco na sociedade contemporânea”, in Revista Seqüência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, jun., 1994, n.º 28, p. 47.

4 Op. cit, p. 47.

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(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

anotações de De Giorgi explicitam a situação: “A regularidade queopera na estrutura seletiva dos acontecimentos, fornece segurança àação e, ao mesmo tempo, possibilita o tratamento do desvio, ou seja,torna possível a normatização”.

5Através das autodescrições, a

dimensão temporal do agir harmoniza-se com a dimensão social emacontecimentos, utilizando-se, para tanto, da calculabilidade.

Tal sintonia possibilita as combinações entre os aconteci-mentos. O espaço no qual isto ocorre delimita a normalidade. Tudo oque não está disposto, o que está fora, não pertence à normalidade.Na sociedade moderna, o direito e a economia são (sub)sistemassociais que tratam a contingência de maneira a não permitir que estaadquira valor de estrutura, na concepção marxista do termo. Estessistemas produzem segurança através do tratamento de expectativascom base em decisões ou também com base no controle da escassezdos recursos, planejando políticas e assumindo riscos calculáveis,segundo os partidários desta teoria.

Atualmente, a autodescrição da sociedade está fragmentada,sendo que o potencial descritivo das distinções que a haviam tornadopossível, também está esgotado. A autodescrição foi privada de seufundamento, qual seja, o pressuposto da estabilidade da relaçãoentre racionalidade e tempo. Esta relação era precária, sendo anormalidade, portanto, uma construção contingente, capaz deduvidar de si própria, visto que constituída por indeterminaçõesinfinitas, pois o que nunca houvera acontecido ou tenha sidoverificado, pode acontecer de súbito.

Na medida em que se percebe que toda decisão também poderiater sido tomada de maneira diversa, percebe-se que esta écontingente, que o evento, ao qual ela se refere, é contingente e queo momento, no qual o acontecimento e a decisão se fundam, tambémé contingente. A normalidade, por sua vez, é o resultado encontrodestas contingências. Nesse caso, se não é possível determinar asindeterminações de maneira a maquiar a normalidade, será possíveltentar observar e descrever a sua natureza. O controle dasindeterminações sempre foi objeto de preocupação das diversassociedades ao longo da história da humanidade. São exemplos dessaprática, as adivinhações, o tabu e até mesmo o pecado. Mais recentessão as invenções do acaso e da probabilidade.

Apenas no século passado tivemos o desenvolvimento doconceito de incidente, que foi amplamente utilizado como técnicadescritiva de acontecimentos caracterizados por indeterminação até o

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5 Op. cit., p. 47.

advento de sua ocorrência, além do fato da decisão que dá origem aestes acontecimentos estar sempre orientada para evitar a ocorrênciados mesmos. Neste contexto, todos esses eventos que tentam serdeterminados pela racionalidade, são considerados danosos.

Se estas indeterminações pudessem verdadeiramente serevitadas, embora tenhamos consciência que o método cartesianoutilizado pela estatística não pode antever ou delimitar todas aseventuais indeterminações; se fosse possível evitá-las, teríamos quetornar possíveis outras indeterminações, as quais somosefetivamente impossibilitados de conhecer. Mesmo que os cálculose os testes comprovem a eficácia e eficiência de determinadosmateriais, que o tempo de vida útil de um empreendimento sejadelimitado, não conseguiremos antever todas as situações, e muitomenos normatizar o que não podemos delimitar. Raffaele de Giorgi,elucida a questão: “Medidas ulteriores de segurança não sãocompletamente capazes de controlar as indeterminações quenascem em virtude da sua própria ativação e, portanto, não dãoqualquer segurança complementar: estas podem, somente,deslocar o problema ou no tempo ou no espaço de produção desteseventos”.6

Nunca poderemos responder seguramente, ao menos queracionalizemos completamente uma indeterminação, qual é o nível desegurança da segurança? No mundo moderno, a sociedadecaracteriza-se pela sua suposta capacidade de controlar asincertezas, acabando, muitas vezes, por produzi-las. Há um paradoxoinsolúvel, que acrescenta a necessidade de proteção e segurança. Aação é conduzida desta forma visando evitar que as indeterminaçõespossam adquirir valor de estrutura, ou seja, que o desvio seestabilize. Nunca teremos a certeza sobre quais decisões podem sercapazes de evitar situações que não se sabe se ocorrerão.

Desta forma, podemos concluir que a estrutura da sociedademoderna é paradoxal, pois as considerações que desenvolvemos sãoplausíveis, e esta paradoxalidade tornou-se tema da comunicação,visto que a sociedade contemporânea reforça simultaneamente asproposições da segurança e da insegurança, determinação eindeterminação, estabilidade e instabilidade. Nas palavras de DeGiorgi: “(...) nesta sociedade, há simultaneamente mais igualdade emais desigualdade, mais participação e menos participação; maisriqueza e, ao mesmo tempo, mais pobreza”.7

6 Op. cit., p. 49.

7 Op. cit., p. 50.

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(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

Neste contexto, podemos afirmar que o futuro está maispróximo porque as possibilidades do agir e a sua complexidadedesenvolveram-se simultaneamente; entretanto, este futuro segueignorado e sempre mais incerto e preocupante, porque o desvio danormalidade é, ao mesmo tempo, mais estável e mais contingente. Naatual sociedade mundial, há mais exclusões e também maisinclusões. Assim, como ponto de chegada, no qual se estabiliza umanormalidade construída em virtude de uma projetualidade racionalrelativa à finalidade, o futuro está mais longe e improvável, fato queexclui a possibilidade de se utilizar representações unilineares dofuturo, baseados na razão ou no espírito. Segundo De Giorgi: “(...) aalta complexidade, autoproduzida pela sociedade moderna, fez daprecariedade da relação da razão com o tempo um pressupostoestável do agir, que pode ser imputado a homens ou organizações”.

8

De acordo com estas condições estruturais, a sociedade utiliza-se de uma forma de constituição de formas para a representação dofuturo e para produzir vínculos com o futuro. A forma dessarepresentação e a modalidade da produção destes vínculos com ofuturo está representada pelo “risco”, que atua através daracionalidade para construir outras formas, baseadas no binômioprobabilidade/improbabilidade. A análise do risco realizada pelasociedade contemporânea pode ter a função de racionalizar o medo,sendo um substituto para a angústia provocada pela própriaobservação da realidade e a constatação de que o homem influinegativamente em seu meio. O tema do risco tornou-se objeto deinteresse e preocupação da opinião pública, quando o problema daameaça ambiental permitiu a compreensão de que a sociedadeproduz tecnologias que podem gerar danos irreversíveis, não só paraa natureza, mas conseqüentemente, para a própria espécie humana.

Raffaele de Giorgi explica como a sociedade reagiu a essaconstatação:

Neste ponto, o risco foi tratado, considerando-se asegurança como sua alternativa e, portanto, também possível.Apelou-se para o uso de tecnologias seguras e invocou-se aintervenção de uma racionalidade linear capaz de controlar asconseqüências das decisões. Depois, constatou-se que aalternativa para o risco não era a segurança, mas um risco deoutro gênero, e tematizou-se a normalidade do risco.9

258 Bruno Gasparini

8 Op. cit., p. 50.

9 Op. cit., p. 51.

Assim, com a banalização do risco, a sociedade moderna passoua tratar como uma normalidade a iminência das catástrofes. Verificou-se que o Homem é incapaz de promover uma segurança total, diante dacorrida tecnológica contemporânea, onde o avanço da ciência chega apatamares inimagináveis, e a imprevisibilidade impera. Verificou-seque a segurança é um artefato em que não se pode confiar. Quando oHomem se dá conta de que o modelo de racionalidade utilizado e quenos dava segurança, não funciona, recorre-se à moral, que funciona emrelação aos princípios, mas não leva ao consenso nas decisõesindividuais, produzindo conflito sobre a avaliação dos riscos e suaaceitabilidade. Sem o auxílio prestado pela moral, o que resta é opânico, síndrome costumeira da modernidade.

A partir desta certeza, vislumbrou-se dois possíveis caminhos:ou a sociedade aceita o risco como uma condição existencial (soluçãoque traz a rejeição do saber do mundo e que não estimula a ação); oua sociedade aceita o fato de que o processo de modernização não seriamais capaz de controlar a si mesmo, o que impeliria a racionalidadepara um patamar onde mais fosse possível detê-la (sociedade de riscoou contra-modernidade).

Segundo De Giorgi, a sociedade de risco é caracterizada daseguinte forma:

Nasce assim uma Segunda modernidade que é asociedade de risco. Esta sociedade começa ali onde falham ossistemas de normas sociais que haviam prometido segurança.Estes sistemas falham pela sua incapacidade de controlar asameaças que provêm de suas decisões. Tais ameaças são denatureza ecológica, tecnológica, política, e as decisões sãoresultado de uma coação que derivam da racionalidadeeconômica que impõe o modelo de racionalidade universal.10

Sob este prisma, o risco é uma modalidade de relação com ofuturo, é uma forma de determinação das indeterminações segundo adiferença probabilidade/improbabilidade. Na sociedade moderna, orisco é condição estrutural da auto-reprodução, pois o fechamentooperativo dos sistemas singulares determinados pela estrutura eunidos estreitamente, torna possível o controle do ambiente,tornando improvável a racionalidade, constrangendo os sistemas aoperar sob as condições da incerteza. Esta estreita união estrutural,impõe um acordo temporal da seqüência, assegurando tanto a

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(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

10 Op. cit., p. 52.

possibilidade do perfeito funcionamento dos sistemas, quanto aiminente possibilidade de uma catástrofe, o liame é estreito, osistema opera sob os auspícios do risco.

Nesta situação, a razão clássica, baseada na calculabilidade ena regularidade, no sistema binário, é desestruturada pela incertezapresente no tempo. Assim, a precariedade da razão é tida como certa.O risco, torna-se, então, modalidade secularizada de construção dofuturo. Portanto, ainda que seja vivido como fatalidade, o risco é umaaquisição evolutiva do tratamento das contingências, que exclui todasegurança e também todo destino. De Giorgi faz uma aproximaçãoentre o risco, o direito e a economia, afirmando que:

O risco baseia-se na suportabilidade, na aceitabilidade enão, na certeza das próprias expectativas: por isso, os riscos nãopodem ser transformados em direito, ainda que possam sermonetarizados. O risco sobrecarrega o direito: trata-se, noentanto, de estratégias de retardamento do risco, não deestratégias que evitam o risco. O sistema mais diretamenteinteressado é a economia: isto ocorre seja porque os riscospodem ser monetarizados, seja porque as possibilidades dedívida são infinitas.11

A partir destas constatações, de como o risco se relaciona coma economia e com o direito, os sistemas sociais singulares, para trataras situações em que o risco está presente, são obrigados areestruturar os dispositivos comumente utilizados, adequando alegislação às diversas possibilidades, sempre com o cuidado deimputar um dano a determinada decisão, de maneira a monetarizaros riscos. Com isso, podemos afirmar que a perspectiva do riscoconstitui referência fundamental na descrição da sociedade moderna,mas esta, não é capaz de estabelecer e delimitar seus compormentosnas situações nas quais o risco está presente.

3. OS ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS

Nos últimos 40 anos a agricultura passou por um processo demodificação em seus métodos e técnicas em virtude dos váriosproblemas ambientais que vinha ocasionando; a erosão, odesmatamento, a alteração do ciclo hidrológico, são frutos de uma

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11 Op. cit., p. 53.

modernização desenfreada que apenas visionava economizar trabalhohumano, com a utilização de variedades com alta produtividade,maquinário, herbicidas e fungicidas, que acabaram por dar origem adesastres ambientais e sociais.

Fruto da chamada “Revolução Verde”, conhecida correnteiniciada na década de 60 do século XX, baseada na genéticaconvencional (mendeliana), na qual os agrônomos se utilizam detodas as técnicas que a biotecnologia lhes oferecem para omelhoramento das técnicas de engenharia genética,12 que consiste na“transformação da composição genética de um organismo resultanteda introdução direta de material genético de um outro organismo, ouconstruído em laboratório”,13 e posterior incremento da produção, autilização de OGM (Organismos Geneticamente Modificados),14 pormeio da fusão de genes adicionais (vírus, bactérias, palantas ouanimais), foi intensificada em meados da década de 80, tendoqualificativo aumento tecnológico na década de 90, com omapeamento das moléculas de ADN/ARN recombinante, tanto dosanimais, quanto dos humanos e vegetais, o que iniciou a denominadabiorevolução.

Nas palavras dos pesquisadores Gonzalo G. Mateos, R. Lázaroe M. I. Gracia, em palestra realizada na Conferência Apinco 2000 deCiência e Tecnologia Avícolas, verbis:

Dentro do campo da agricultura, a biotecnologia pode serutilizada em diversos processos e com diferentes finalidades.Assim, graças a ela, se desenvolvem novas variedades deplantas resistentes ao meio (salinidade do solo, estiagem, vírus,insetos, fungos, etc.), a diversos herbicidas (round up ready), oudiversos tipos de frutas e verduras com maior capacidade deconservação, melhorando assim a produtividade real e o valoreconômico dos cultivos. Processos industriais tais como cafédescafeinado, ervilha e milho doces de alta produtividade,plantas que acumulem plásticos biodegradáveis no lugar deamido ou açúcares como material de reservas, e em fibras dealgodão coloridas, serão produtos usuais no futuro.

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(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

12 A engenharia genética é conhecida também como “biotecnologia moderna”, “manipulação genética”, “modificaçãogenética” e, com sentido mais restrito e específico, de “tecnologia do DNA recombinante”.

13 REISS, M. J.; STRAUGHAN, R. Improving nature? The science and ethics of genetic engineering. Cambridge, UK:Cambridge University Press, 1996.

14 Alimentos transgênicos são aqueles que sofreram alterações na sua dotação genética, para acrescentar algumacaracterística considerada positiva. Têm sido concebidos como uma forma de melhorar a agricultura e pecuáriastradicionais, através de melhoramento genético. Não existe prova alguma, aceitável para a maioria da comunidadecientífica, de que estes produtos transgênicos sejam nocivos para a saúde humana das pessoas nem para o meioambiente, embora não possa ser descartado que no futuro apareçam efeitos prejudiciais (GARCÍA OLMEDO, 1998).

Dentro do campo da saúde humana ou animal, abiotecnologia permite a criação de novas variedades vegetais,ricas em oligofrutanos (substância que melhora os ecossistemasmicrobianos do intestino) que resultarão num menor uso deantibióticos, o desenvolvimento de plantas produtoras de fitasase diversos hormônios e medicamentos, e a modificação dacomposição do óleo de sementes, permitindo o enriquecimento emAGPI ou em ácido linoléico conjugado, que melhora a imunidadee reduz a incidência de distintos tipos de câncer. As novastecnologias podem inclusive, permitir a criação de variedadesricas em anticorpos contra coliformes, salmonellas e outrosmicroorganismos patogênicos.

Dentro do campo da alimentação animal, o uso das novastecnologias permitirá a obtenção de um leque de novos produtosde interesse comercial. Assim, poderemos modificar ouenriquecer, as diversas matérias-primas com vitaminas,aminoácidos essenciais e ácidos graxos de interesse, bem comoreduzir seu conteúdo em ácido fíticom fibra bruta eoligossacarídeos não digeríveis (estaquiose, verbascose, rafinosee outros).15

Os adeptos dessa doutrina, apenas se preocupam com autilização das técnicas que a moderna ciência lhes oferece, parautilizar-se dos métodos nas diversas formas de cultivo e plantio,sempre visando um aumento da capacidade produtiva relativa à área,a redução dos insumos e conseqüente diminuição dos custos, sem,no entanto, ater-se a conteúdos éticos, morais e até mesmo sociais,na difusão de seus meios de trabalho, é o que HANS JONASsintetizou na expressão “vazio ético”, ethical vacuum, resultante dofato da ciência contemporânea ser essencialmente reducionista,mecanicista e despreocupada com os anseios atuais acerca do futuroda vida sobre a Terra.16

Em reportagem veiculada no site da Revista Globo Rural,intitulada “Nova Fronteira”, sob a responsabilidade do jornalistaErnesto de Souza, a tematização, verbis:

É o caso da soja transgênica Roundup Ready, daMonsanto, um vegetal que recebeu genes de uma bactéria paratolerar a aplicação de determinado tipo de herbicida. Hoje são

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15 APINCO 2000, Conferência de Ciência e Tecnologia Avícolas, Anais, v. 2, p. 199.

16 JONAS H. The imperative of responsability. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

vários os métodos utilizados para fazer essa transferência degenes de um organismo para o DNA de outro. Além dobombardeio de micropartículas (biobalística), da microinjeção eda transformação direta para protoplastos (células sem paredecelular), o método que tem se mostrado mais eficiente é o que usaas Agrobacterium (A. tumefaciens ou A. rhizogenes), bactériasde solo que funcionam como vetores para transportar o geneselecionado até o interior do código genético da planta.

O processo tecnológico que identifica a seqüência de genesque constituem um organismo é conhecido como seqüenciamentodo genoma. Do genoma humano ao genoma de uma bactériapatogênica em laranjais, a ciência vem descobrindo cada letra doalfabeto de que são feitos os seres vivos. O desafio daqui parafrente é chegar às palavras que essas letras formam e o quesignificam. Essa próxima etapa, que vai adiante da descobertagenômica, concentra-se no estudo do ‘proteoma’, quer dizer, dasproteínas que os genes produzem e de suas funções – é agenômica aplicada ou pesquisa do genoma funcional. Como diz oprofessor Paulo Arruda, todo mundo quer saber agora para queserve o seqüenciamento dos genes.

Quem vai ajudar muito nesse passo são os experimentosde campo. O melhoramento genético convencional, que pareciasuperado ante a manipulação genética, é que vai dar sentido aosseqüenciamentos de genes e mapeamento molecular. ‘O simplesfato de anotar genes e gerar bancos de dados de seqüências nãoresultará em saltos qualitativos e quantitativos esperados deprojetos genoma. A capacidade de seqüenciamento de DNAtornou-se hoje secundária. A questão-chave agora é o que fazercom aquelas dezenas de milhares de seqüências geradas. E umadas ferramentas mais poderosas é o trabalho nos camposexperimentais’, defende Dario Grattapaglia, especialista emgenoma funcional do eucalipto e professor da UniversidadeCatólica de Brasília.

Na argumentação de muitos cientistas e algumasempresas, os benefícios apontados na adoção de todas essasbiotécnicas são inumeráveis e promissores. Na agricultura, apesquisa já chegou a plantas modificadas geneticamente parater resistência a pragas e a doenças. Com isso, a produtividadeaumenta, e a aplicação de defensivos diminui.

Grãos, tubérculos, verduras e frutas passarão pormodificações genéticas para resistir ao frio, à seca, à salinização

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(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

ou à umidade dos terrenos, incorporando fronteiras agrícolas atéentão improdutivas. As plantas crescerão mais rápido e darãoalimentos mais ricos em proteínas e possíveis de seremarmazenados por muito mais tempo. Os agricultores terãolavouras não mais para colher apenas alimentos, mas tambémremédios, pois as plantas receberão genes exógenos que astornarão capazes de diminuir os riscos de vários tipos de câncerou de atuar como vacinas para combater inúmeras doenças.17

É inegável que a biotecnologia, no caso em análise a transgenia,solucionará diversos problemas da humanidade, proporcionandosoluções para a saúde humana e o meio ambiente, mas isso ocorreráapenas se a ditadura tecnológica do conglomerado internacional doagronegócio não condicionar o encaminhamento das pesquisasvisando contemplar apenas a economia de mercado. O desenvol-vimento de cada variedade é extremamente dispendioso, podendochegar a 200 milhões de dólares em 10 anos de pesquisa. Até opresente momento, as pesquisas financiadas pelas transnacionaissão apenas para as variedades cujo potencial mercadológico éexpressivo, sendo que apenas as cultivares interessantes aoagronegócio mundial estão sendo desenvolvidas. O Brasil,particularmente, tem, na Embrapa, um reconhecido instituto depesquisas, conseguindo, desde que mantenha uma agenda positivade incentivo e fomento, manter sua soberania econômica e tecno-lógica, impulsionando o agronegócio brasileiro dentro de perspectivasque gerem emprego e renda também para as pequenas propriedadese não só para os grandes latifúndios, pouco numerosos, nas mãos dealgumas famílias e que respondem por pequena parcela na geraçãode empregos no campo. A cadeia produtiva do agronegócio geramuitos postos de trabalho, mas as extensas monoculturasmecanizadas, não.

4. TRANSGÊNICOS – ASPECTOSCONTROVERSOS DA POLÊMICA

De um lado, estão os que defendem a produção ecomercialização de OGM, alegando que sua utilização acabaria comos prejuízos econômicos causados pelos insetos, fungos ouperecibilidade dos cultivares, que atinge 40% das safras mundiais

264 Bruno Gasparini

17 In: http:globorural.globo.com/mensal/materias/repvio2.htm. Acesso em 30.10.2002.

atualmente. Em matéria veiculada no periódico Seed News, desetembro de 1997, a tematização:

Em 1995 uma empresa do Alabama, EUA, gastou US$414,6 mil com inseticidas. No ano passado, para tratar damesma área plantada, investiu apenas US$ 239,2 mil, ou seja,reduziu seus custos em 42%. O segredo foi à utilização desementes transgênicas.

Essas notícias, por um lado, preocupam as empresas quefabricam defensivos agrícolas, e por outro explicam as profundasalterações em suas estruturas. Grandes grupos mundiais estãovendendo suas empresas de produtos químicos e investindopesado em áreas diversas. Algumas dirigiram seus investi-mentos para a indústria farmacêutica, enquanto outraspassaram a comprar produtoras de sementes, por exemplo.

Os produtos agroquímicos movimentam cerca de US$ 30bilhões anualmente. Em contraste, já se espera que o mercado deprodutos geneticamente modificados, como o milho e o algodãoresistentes a insetos, e a soja que resiste aos herbicidas, disparepara algo em torno de US$ 20 bilhões em 2010.18

Em entrevista ao periódico Biotecnologia, Ciência &Desenvolvimento, de dezembro de 2000, o professor inglês daUniversidade de Reading, David Beever,19 ao ser perguntado se ocultivo de plantas geneticamentes modificadas com tolerância aherbicidas pode aumentar o uso de produtos químicos naagricultura, respondeu:

Não. O cultivo dessas plantas tem demonstradoexatamente o contrário, ou seja, elas reduzem o uso deherbicidas na lavoura. Os grupos ativistas é que tentam ‘plantar’a informação de que as plantas tolerantes a herbicidas podemaumentar o uso de produtos químicos na agricultura. É melhorter o gene de resistência a herbicidas no genoma da planta doque aplicar maciçamente produtos químicos para combater aservas daninhas, já que o impacto ambiental dos transgênicos,

265O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

18 SEED NEWS, n.º 1, set., 1997, p. 39, Biotecnologia cria a nova agricultura, com a colaboração de Roberto Rissi, daCargill; Jorge de Souza, da Zêneca; Alberto Leonardo, da Josapar; Lineu Rodrigues, da Agroceres;e Rodrigo L.Almeida, da Monsanto.

19 David Beever é bacharel pela Universidade de Durnelm desde 1966, e PhD pela Universidade de Newcastle–upon-Tyne, Inglaterra, em 1969. Atualmente é professor de ciências animais e produção, do Departamento de Agriculturada Universidade de Reading, e diretor do Centro de Pesquisas de Laticínios (Cedar). Além disso, é membro daSociedade de Nutrição; da Sociedade Britânica de Ciências Animais e da “American Dairy Science Association”, entreoutras instituições, e autor de mais de 350 publicações científicas.

neste caso, é expressivamente menor. Na minha opinião, essatecnologia de engenharia genética é extremamente positiva naprodução de alimentos e deveria ser utilizada por todos os paísesem desenvolvimento, em especial devido às altas taxas decrescimento da população.20

Também quanto a esta questão, as palavras de Aluízio Borém eMarcos Paiva Del Giúdice:

Outra preocupação às vezes levantada por ambientalistas,é a de que variedades transgênicas tolerantes a herbicidaspoderiam resultar em plantas daninhas tolerantes aosherbicidas, ou seja, superplantas daninhas. Vargas et al. (1999)discorreram sobre a resistência de plantas daninhas aherbicidas e concluem que uma população delas pode ter,naturalmente, diferentes níveis de tolerância a diferentesherbicidas. O risco de um febe específico de um OGM tolerante àherbicida ser transferido para uma planta daninha éextremamente remoto, em muitos casos, como já foi observadopor Conner & Dayle (1996). O fluxo gênico entre diferentesespécies é extremamente complexo e requer a quebra de váriasbarreiras de isolamento produtivo (KLINGER et al. 1991).21

Argumento análogo é de acabar com a fome do Terceiro Mundo,pois com o aumento da produção, e corte nas perdas, poder-se-iadistribuir melhor a produção. No periódico Financial Times, de28/05/1999, o filósofo Alan Ryan da Universidade de Oxford,membro do Conselho Nuffield, órgão diretivo de Ética nas CiênciasBiológicas do Reino Unido, em seu relatório, afirmava: “…odesenvolvimento de cultivares geneticamente modificadas paracombater a pobreza contém um imperativo moral obrigatório…”,concluindo, após 18 meses de estudos, que não há fundamentos paraa proibição no Reino Unido de cultivares e alimentos OGM.

Nesta mesma linha de argumentação, em artigo publicado nosite do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, intitulado“As Promessas das Plantas da Biotecnologia”, no tópico O Potencial daBiotecnologia Vegetal, verbis:

266 Bruno Gasparini

20 BIOTECNOLOGIA CIÊNCIA & DESENVOLVIMENTO, 12/2000, p. 4-8, entrevista concedida a Maria Fernanda DinizAvidos e Lucas Tadeu Ferreira, veiculada na matéria Os transgênicos e o futuro da agricultura.

21 INFORME AGROPECUÁRIO, v. 21, n.º 204, maio/junho de 2000, p. 14-19, Empresa de Pesquisa Agropecuária de MG.

A população mundial está crescendo vertiginosamente,enquanto a área de solo arável disponível para a produção dealimentos está cada vez mais reduzida. Nunca foi tão necessárioo emprego de uma nova tecnologia agrícola como agora.

A Organização Mundial de Saúde prevê que para o ano2025:

A população global deverá aumentar em 38%, de 5,8bilhões em 1998 para 8 bilhões.

O solo de primeira qualidade disponível para a agriculturadeverá permanecer em aproximadamente 1% do volume de terrano mundo.

A expectativa de vida em todo o mundo deverá passar damédia atual de 68 anos para 73 anos.

Além disso, à medida que melhora o padrão de vida, oconsumo de carne e, portanto, a demanda por ração animalaumentam.

O que os agricultores podem fazer? Para produziralimentos em quantidade suficiente para alimentar o númerocrescente de pessoas, os produtores necessitarão de plantas queproduzam mais e que necessitem de menor quantidade deinsumos, tais como solo, água, combustíveis fósseis, inseticidas,fungicidas e herbicidas.

Muito embora os métodos tradicionais de reprodução deplantas e a química agrícola tenham aumentado os rendimentosconsideravelmente a partir dos anos 60, novas tecnologias queconservem o meio ambiente e que gerem mais alimentosnutritivos se farão necessárias. E aí surge a biotecnologia, quepermite aos pesquisadores desenvolverem plantas com caracte-rísticas benéficas, aumentando a variedade de plantasproduzidas e, ao mesmo tempo, reduzindo o custo de produção eprotegendo o solo.22

Em informativo produzido e veiculado pela empresa Monsanto,no qual se respondem às questões mais usuais em matéria detransgênicos e biotecnologia, a resposta à pergunta sobre se osalimentos originários da biotecnologia podem causar alergias e/oupotencializar o efeito de substâncias tóxicas existentes emquantidades inofensivas nos alimentos:

267O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

22 In: http:www.nal.usda.gov/bic site do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Acesso em 22.08.2002.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação eAgricultura (FAO) desenvolveu o critério de equivalênciasubstancial, o qual tem orientado a análise da segurançaalimentar dos alimentos provenientes da biotecnologia.

Ele se baseia em análises químicas e nutricionais paraidentificação de semelhanças e diferenças entre cultivosgeneticamente modificados e seus pares convencionais, cujasegurança já é conhecida. Conclusão: os cultivos geneticamentemodificados desenvolvidos até o momento têm composição iguala das variedades convencionais. Em outras palavras, tomando-se a soja geneticamente modificada como exemplo, não existe umúnico caso documentado de reação adversa que não tenhaocorrido igualmente nas duas variedades porque ela éequivalente à soja tradicional.

Ou seja, quem tem alergia à soja comum tem alergia aqualquer soja. A modificação genética não interfere no potencialalergênico dos alimentos. Pelo mesmo motivo – porque háequivalência substancial entre os cultivos geneticamentemodificados e as variedades convencionais correspondentes –não há possibilidade de que substâncias tóxicas existentes emquantidades inofensivas nos alimentos possam ter sua açãopotencializada ou, ao contrário, que a ação de substânciasbenéficas possa ser diminuída.23

Nas palavras de Jorge Alberto Quadros Carvalho e Silva:

O site da Monsanto informa que a empresa, emcolaboração com a Agência para o Desenvolvimento Internacionaldos Estados Unidos, está trabalhando com cientistas do Quênia,um país com 26 milhões de pessoas, 96% passando fome, parao desenvolvimento da batata-doce com resistência ao vírus FMVatravés da biotecnologia. Essas lavouras, protegidas contraviroses e outras doenças, decerto viabilizariam a produçãosustentável de alimentos pelo agricultor africano.24

É justamente este o ponto que combatem os posicionadoscontra esta inovação, alegando que o problema se encontra nadistribuição da renda e dos produtos, pois estes existem e sãosuficientes a todos, mas só chegam aos governos que podem adquiri-

268 Bruno Gasparini

23 In: http:www.monsanto.com.br; site da Empresa Monsanto do Brasil. Acesso em 15.02.2002.

24 CARVALHO SILVA, Jorge Alberto Quadros. “Alimentos Transgênicos: Aspectos Ideológicos, Ambientais, Econômicos,Políticos e Jurídicos”, In: Revista Biodireito, p. 328.

los e mesmo assim, continuam sendo mal distribuídos, o problema éestrutural. Ademais, os riscos para a saúde humana e o meioambiente ainda são incalculáveis, imprevisíveis, mas presentes e nãodescartados por pesquisa alguma.

As palavras de Rubens Onofre Nodari, presidente da SociedadeBrasileira de Genética – Regional de Santa Catarina, corroboram esseposicionamento:

O fato de que esta mesma soja tenha sido liberada em outros paísesnão é garantia que ela é segura e não causa danos à saúde. Esta opiniãoé compartilhada por inúmeros cientistas, políticos e organizações não-governamentais. Recentemente, o Secretário de Meio Ambiente do EstadoScheleswig-Holstein, Alemanha, afirmou que os padrões dos testes atuaisnão são rigorosos o suficiente. Experiências anteriores com agrotóxicoscomprovam isto. A morte de 37 pessoas e seqüelas em outras 1.500causada pelo consumo do triptofano fabricado por um organismotransgênico, oficialmente testado e liberado nos Estados Unidos, tambémilustra que os testes não são eficientes para assegurar o nível de risco paraa saúde humana. Atualmente, poucos países liberaram plantastransgênicas para cultivo. Além disso, nem todos os testes necessários paragarantir uma decisão segura foram feitos com a soja transgênica, mesmonos países onde foi desregulamentada.25

Diante das assertivas anteriores, acreditamos ser impossívelposicionar-se contra ou a favor de determinada inovação tecnológica,em particular os transgênicos, pois a especulação e interessesfinanceiros que envolvem a questão, pode tornar as opiniões parciaise as pesquisas encomendadas, sem o verdadeiro compromisso com oefetivo esclarecimento de determinada situação. Portanto, os riscospara a saúde e meio ambiente não podem ser visionados, mas muitomenos descartados, sendo que a grande solução é a precaução,insculpida em princípio basilar do direito ambiental.

5. CONCLUSÃO

Na sociedade moderna, podemos visualizar que os avançostecnológicos proporcionados pelo desenvolvimento nos causam cadavez mais problemas, ao invés de nos apresentar soluções. Como nãopodemos racionalizar as incertezas através da probalidade e da esta-

269O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

25 In: http:www.monsanto.com.br; site da empresa Monsanto do Brasil. Acesso em 15.02.2002.

tística, as indeterminações tomam lugar comum no contextocontemporâneo, e somos obrigados a conviver com o risco e aiminência da catástrofe, somos abalroados por uma crise existenciale tomados por um estado de pânico, devido à impossibilidade decontrolar os efeitos advindos de nossas próprias decisões, calcadas,na maioria das vezes, em interesses econômicos, que nãosalvaguardam o homem, os animais ou os ecossistemas.

Os interessados na adoção de novas tecnologias, no caso emanálise, a transgenia, argumentam a inexistência do risco, e sãocompletamente irresponsáveis quanto às suas afirmações. É umdireito inerente à sociedade e ao consumidor conhecer as dimensõesdo problema, as características e a natureza do risco deste novoempreendimento. Se possuidora das informações corretas, nãoapenas as que são institucionais, ou financiadas pelastransnacionais sementeiras, a sociedade poderá debater aproblemática, tomando conhecimento do que pode ocorrer edecidindo, por si própria, qual política será adotada, dentre asdiversas alternativas apresentadas.

Mesmo que decida pela utilização da transgenia, a sociedadeterá a consciência do porquê escolheu este caminho, pois terá sidoinformada dos acontecimentos de forma imparcial, e não de maneiramanipulada, como atualmente vêm ocorrendo. Quem decidirá ofuturo dos Organismos Geneticamente Modificados é o consumidor,pois não existem produtos melhores ou piores, se estes não sãoaceitos pelo mercado, e não se convertem em lucros para osdetentores das patentes.

Ademais, pelo que visualisamos no atual ordenamento jurídicorelativo à biossegurança, a gestão dos riscos ambientais está sendonegligenciada, pois os instrumentos que estão sendo ofertados, nãosão capazes de abarcar todas as inúmeras situações que podemocorrer, tanto nos aspectos ecológicos, quanto políticos, comoculturais. Até mesmo a responsabilização e as obrigações ainda nãoestão definidas, visto que os agricultores não podem arcar sozinhoscom os riscos de uma tecnologia que não foi por eles criada, masapenas utilizada; empresas sementeiras e governo tentam eximir-sede sua parcela de responsabilidade, obrigando os agricultores que seutilizarem da nova tecnologia a assinarem termos de ajustamento deconduta, se comprometendo a arcar com os prejuízos porventuraadvindos de sua escolha.

Tal conduta governamental não é condizente com osregramentos constitucionais, pois cabe ao Poder Público preservar a

270 Bruno Gasparini

diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, além defiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação domaterial genético (art. 225, § 1.º, I, CF). Assim, não é lícito admitir autilização dos Organismos Geneticamente Modificados no país, atéque haja a comprovação científica de que estes não causarão danosà integridade do nosso patrimônio genético. Transferir essaresponsabilidade aos agricultores é impossível, pois a fiscalizaçãocompete ao Poder Público. Assim, até que esta contenda estejadirimida e seja definida uma orientação única quanto à problemática,pautada num ordenamento jurídico com caráter definitivo em relaçãoà biossegurança, o governo deveria orientar-se pelo princípio basilardo direito ambiental, o princípio da precaução, com o intuito dediminuir ao máximo a possibilidade de eventos danosos irreparáveis.

REFERÊNCIAS

APINCO’2000, Conferência de Ciência e Tecnologia Avícolas, Anais, volume 2, p. 198-200.

BIOTECNOLOGIA, CI NCIA & DESENVOLVIMENTO, 12/2000, p. 4-8, entrevista concedida aMaria Fernanda Diniz Avidos e Lucas Tadeu Ferreira, veiculada na matéria Os transgênicose o futuro da agricultura.

CARVALHO SILVA, Jorge Alberto Quadros. “Alimentos Transgênicos: Aspectos Ideológicos,Ambientais, Econômicos, Políticos e Jurídicos”, In: Revista Biodireito, p. 326-346.

DE GIORGI, Raffaele. “O risco na sociedade contemporânea”. In: Revista Seqüência. Revistado Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, jun.,1994, n.º 28.

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REISS, M. J.; STRAUGHAN R. Improving nature? The science and ethics of geneticengineering. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1996.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício daexperiência. Porto: Afrontamento, 2000.

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SOUZA, Ernesto de. “A Nova Fronteira Agrícola”. Revista Globo Rural. [Internet]http://globorural.globo.com/mensal/materias/repvio2.htm [Acesso em 15.Abr.2002].

271O Risco Acerca da Utilização da Transgenia

(Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

Cidadania ambiental cosmopolita –Um conceito em construção

Tiago Fensterseifer1

There are one hundred and ninety-three living species of

monkeys and apes. One hundred and ninety-two of them

are covered with hair. The exception is a naked ape self-

named Homo sapiens. This unusual and highly successful

species spends a great deal of time examining his higher

motives and an equal amount of time studiously ignoring

his fundamental ones. He is proud that he has the biggest

brain of all the primates… I am a zoologist and the

naked ape is an animal.2

1. INTRODUÇÃO – O QUADRO DA INDOLÊNCIA HUMANA

Oser humano, enquanto espécie animal, vive umacrise existencial. A natureza animal (selvagem) é

abstraída por completa da identidade humana e sobre ela consolidada acompreensão antropocêntrica do mundo. Além de romper com a suagênese e identidade animal (e os ecossistemas em si), tal concepção demundo afirma de modo absoluto a separação cartesiana entre homem enatureza. Chegamos ao absurdo da condição (des)humana!

O que se verifica, em verdade, é a face(ta) da compreensãofilosófica antropocêntrica, que guia a razão humana desde amodernidade, empurrando o ser humano rumo a um penhascoexistencial. O afastamento do ser humano da sua matriz naturalrompe de forma definitiva com a teia da vida, como preconizadaFritjof Capra,3 colocando em risco todas as espécies que habitam acasa planetária (incluindo o próprio ser humano).

1 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Membro do NEPAD – Núcleo de Estudos e Pesquisa “Ambientee Direito” da PUCRS.

2 MORRIS, Desmond. The naked ape. New York: Dell, 1969, p. 9. “Existem cento e noventa e três espécies de macacos.Cento e noventa e duas delas são cobertas de pêlo. A exceção é um macaco pelado autodenominado Homo sapiens.Esta espécie incomum e extremamente bem-sucedida passa grande parte do seu tempo examinando suas motivaçõessuperiores e um igual tempo diligentemente ignorando as que lhe são fundamentais. Ela se orgulha de ter o maiorcérebro entre todos os primatas... Eu sou um zoólogo e o Homo sapiens é um animal” (tradução livre do autor).

3 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

273Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

Num quadro de catástrofes e destruição ambiental semprecedentes na História,4 a dimensão global da problemáticaambiental impõe uma reorganização política dos Estados nacionaisrumo à estruturação de uma nova ordem jurídica e políticainternacional, no intuito dar respostas concretas às referidas aporiascontemporâneas. Para tanto, é necessário que os mesmos valores eprincípios que fundamentam os Estados de Direito DemocráticosConstitucionais sejam garantidos e efetivados também no planointernacional. Entre eles, destacam-se o princípio democrático e acidadania ambiental como elementos fundamentais para aconstrução geopolítica e jurídica da nova ordem mundial.

A atuação participativa e deliberativa da sociedade civil e dosmovimentos sociais no processo de formulação das decisões evontade política é elemento fundamental para a superação domomento de risco ambiental vivenciado pela civilização pós-moderna.Nesse contexto, projeta-se a figura da cidadania ambientalcosmopolita, enquanto condição política supraterritorial quereconhece a dimensão planetária da crise ambiental, bem comoafirma o princípio democrático para além das fronteiras nacionais.

2. SOCIEDADE DE RISCO MUNDIAL – ADMIRÁVEL MUNDOTECNOLÓGICO

Os livros e o barulho intenso, as flores e os choqueselétricos – já na mente infantil essas parelhas estavam ligadasde forma comprometedora; e, ao cabo de duzentas repetições damesma lição, ou de outra parecida, estariam casadasindissoluvelmente. O que o homem uniu, a natureza é incapaz deseparar. Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam umódio ‘instintivo’ aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmentecondicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânicapor toda a vida.5

A máxima de Hobbes6 elaborada no século XVIII, ao afirmar que “o

274 Tiago Fensterseifer

4 “Sob o pretexto de ‘progresso industrial’, sucederam-se, nos últimos anos, catástrofes ecológicas em todo o planeta,tais como as de Three Miles Island (200.000 pessoas evacuadas), Seveso (37.000 pessoas contaminadas), Bophal(2.800 mortos, 20.000 feridos), Tchernobil (300 mortos, 50.000 expostos à radioatividade), Guadalajara (200mortos, 20.000 sem-teto), a do sangue contaminado, do hormônio do crescimento, do amianto, da ‘vaca louca’,do tabaco, do diesel...” RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 4.ªed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 81.

5 Na passagem citada, Huxley descreve o condicionamento sofrido pelos personagens do seu livro para despertaremindiferença e repúdio ao meio natural e ao conhecimento, retratando a separação cartesiana entre homem enatureza. HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 18.ª ed. São Paulo: Globo, 1992, p. 24.

homem é o lobo do homem”, ajusta-se perfeitamente ao comportamentodo ser humano contemporâneo. Porém, hoje, o homem não é apenas olobo do homem, mas de todo o planeta Terra. A sua voracidade éamparada em um arsenal de instrumentos tecnológicos semprecedentes na história, bem como sua capacidade de destruição emmassa do meio natural e da própria espécie humana não encontralimites planetários, colocando a sociedade mundial em risco de extinção.

Os sociólogos descrevem a sociedade atual, já obviamentepós-industrial, como uma ‘sociedade de risco’ (Beck) ou uma‘sociedade do desaparecimento’ (Breuer), na medida em quecorre ‘perigos ecológicos’ (e perigos genéticos) ou, segundoalguns, caminha mesmo, por força do seu próprio movimento,para a destruição das condições de vida naturais e sociais (e daprópria pessoa) – é dizer, na medida em que ocorre o perigo depassar, ou transita efetivamente, da auto-referência(autopoiesis) para a autodestruição. 7

Os avanços científicos e tecnológicos8

operados pela ciênciamoderna, a partir da revolução científica dos séculos XVI e XVII

9–

pelas mãos de Copérnico, Descartes, Bacon, Galileu e Newton –serviram, e ainda servem, de instrumento de dominação e degradaçãodos recursos naturais. O conhecimento tecnológico e científico, quedeveria ter o desenvolvimento, o bem-estar social e a qualidade e adignidade da vida humana como suas finalidades maiores, passa aser, com todo o seu poder de criação e destruição, a principal ameaçaà manutenção e à sobrevivência da espécie humana, assim como detodo ecossistema planetário.10

275Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

6 HOBBES, Thomas. Leviatã – ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

7 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ª ed. Coimbra:Almedina, 2001, p. 61.

8 O geógrafo brasileiro Milton Santos leciona que “o desenvolvimento da história vai de par com o desenvolvimentodas técnicas. Kant dizia que a história é um progresso sem fim das técnicas. A cada evolução técnica, uma novaetapa histórica se torna possível”. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciênciauniversal. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 24.

9 “Nos séculos XVI e XVII, a visão de mundo medieval, baseada na filosofia aristotélica e na teologia cristã, mudouradicalmente. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como umamáquina, e a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era moderna. Essa mudança radical foirealizada pelas novas descobertas em física, astronomia e matemática, conhecidas como Revolução Científica eassociadas aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton”. CAPRA, op. cit., p. 34.

10 “O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo,a fim de viver melhor e sobreviver. Para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior àciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa algumaque se assemelhasse à nossa ciência. Depois de cerca de quatro séculos, desde que surgiu com seus fundadores,curiosamente a ciência está apresentando sérias ameaças à nossa sobrevivência”. ALVES, Rubem. Filosofia daCiência: introdução ao jogo e suas regras. 3.ª ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 21.

O método científico cartesiano, que orientou nos últimos séculosa pesquisa em praticamente todas as áreas do conhecimento, mostra-se indiferente à vida, porquanto compartimenta e disseca a realidadedo objeto estudado a tal ponto que não é mais permitido ao cientistavisualizá-lo em relação ao contexto onde está inserido, nãoacompanhando a sua dinâmica. Estruturada na máxima da verdadeuniversal e em uma metodologia rígida, a ciência moderna acreditavana neutralidade do cientista. Será possível tal neutralidade? Comcerteza, a resposta é negativa. O que se conhece é o olhar do cientistasobre o seu objeto de pesquisa e não a coisa em si. A complexidade domundo contemporâneo não contempla mais o pensamento científicoque, ao retirar o objeto do seu contexto social e ambiental para estudá-lo, não considere tais dimensões no momento de instrumentalizá-lo.11

A compreensão de um pensamento complexo e crítico constitui-se de pressuposto indispensável ao estudo da realidade contem-porânea. Longe dos maniqueísmos e todos os demais “ismos” quecirculam no universo científico, os problemas enfrentados pelahumanidade não comportam olhares simplistas e superficiais. Cadavez mais os elementos que compõem a realidade do mundo são maisdiversificados e complexos, demandando por um estudioso atento a talcontexto científico e real. Talvez no topo dos desafios mais complexos aque se defronta a Humanidade desponte a questão ambiental.

Devemos pensar em termos planetários a política, aeconomia, a demografia, a ecologia, a salvaguarda dos tesourosbiológicos, ecológicos e culturais regionais – por exemplo, naAmazônia, ao mesmo tempo as culturas indígenas e a floresta –,das diversidades animais e vegetais, das diversidades culturais– frutos de experiências multimilenares que são inseparáveis dasdiversidades ecológicas, etc. Mas não basta inscrever todas ascoisas e os acontecimentos num ‘quadro’ ou ‘horizonte’planetário. Trata-se de buscar sempre a relação deinseparabilidade e de inter-retro-ação entre todo fenômeno e seucontexto, e de todo contexto com o contexto planetário.12

A partir da constatação do perigo e da ameaça que ora secontrapõem à existência humana e à vida em todas as suas formas,

276 Tiago Fensterseifer

11 Para uma melhor compreensão crítica do método científico cartesiano, ver CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo:Cultrix, 1996; CREMA, Roberto. Introdução à Visão Holística. São Paulo: Summus, 1989; ALVES, Rubem. Filosofia daCiência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2001; SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica daRazão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001.

12 MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 3.ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 158.

impõe-se ao ser humano, como único ser consciente do momento derisco13 que vivenciamos, a assunção de suas responsabilidades naárdua tarefa de reverter esta situação em favor da vida. Nessecontexto, tomando por base os perigos tecnológicos que expõem aprópria sobrevivência planetária, construiu-se a partir das ciênciassociais a teoria da sociedade de risco.

A noção de sociedade de risco foi elaborada pelo sociólogoalemão Ulrich Beck, através da obra Risikogeselshaft, lançadaem 1986, na Alemanha, onde coloca as origens e asconseqüências da degradação ambiental no centro da sociedademoderna – é a ameaça de autodestruição que caracteriza asociedade da última metade do século XX. Embora Beck utilize aidéia de riscos e perigos para se referir a muitas áreas da vidasocial, estas idéias são analisadas mais minuciosamente naequação dos riscos e perigos relativamente à degradação domeio ambiente. No entanto, a idéia central da sociedade de riscoé a complexidade técnica das novas sociedades.14

A instrumentalização do arsenal científico e tecnológico pós-moderno, na grande maioria das vezes a serviço do interesseeconômico, coloca o ser humano como, dentre todas as espécies quejá habitaram o planeta Terra, a mais destrutiva e ameaçadora.

Solamente con la supremacía del pensamiento y con elpoder de la civilización técnica posibilitada por él, una forma devida, ‘el hombre’, se ha colocado en situación de poner en peligroa todas las demás formas de vida y, con ellas, a sí mismo. Nopudo ‘la naturaleza’ incurrir en mayor riesgo que el de hacersurgir al hombre.15

O cenário de constantes degradações ambientais que se registracotidianamente nas realidades local e global, provocadas pela açãoantrópica no meio natural, coloca homens e mulheres contem-

13 LEITE e AYALA apontam para a teoria da sociedade de risco, sob a ótica do direito ambiental. “A sociedadecapitalista e o modelo de exploração capitalista dos recursos economicamente apreciáveis se organizam em tornodas práticas e comportamentos potencialmente produtores de situações de risco. Esse modelo de organizaçãoeconômica, política e social submete e expõe o ambiente, progressiva e constantemente, ao risco”. LEITE, JoséRubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2002, p. 103.

14 ALBUQUERQUE, Letícia. Os dilemas da sociedade biotecnológica: o impacto da biotecnologia na condição humana.Anais do 3.º Congresso Brasileiro do Ministério Público de Meio Ambiente e do 2.º Seminário Regional do Instituto“O Direito por um Planeta Verde”. Porto Alegre: Corag, 2003, p. 65.

15 JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad: ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder,1995, p. 229.

277Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

porâneos diante de um desafio sem precedentes na história. OPreâmbulo da Agenda 21 descreve e alerta para esta realidade, aoreferir que “vivemos um momento de definição histórica”.

A humanidade encontra-se em um momento de definiçãohistórica. Defrontamo-nos com a perpetuação das disparidadesexistentes entre as nações e no interior delas, o agravamento dapobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com adeteriorização contínua dos ecossistemas de que depende nossobem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupaçõesrelativas ao meio ambiente e desenvolvimento e a elas sededique mais atenção, será possível satisfazer às necessidadesbásicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemasmelhor protegidos e gerenciados e construir um futuro maispróspero e seguro. São metas que nação alguma pode atingirsozinha; juntos, porem, podemos – em uma associação mundialem prol do desenvolvimento sustentável.16

O Relatório “O Nosso Futuro Comum”17 da Comissão Mundialsobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das NaçõesUnidas, publicado no ano de 1987, já apontava para a importância deuma compreensão comum da responsabilidade de todos, Estados ecidadãos, na reconstrução geopolítica do nosso mundo dividido. Orelatório prega um apelo a que as pessoas, mas também os Estados,se voltem para a compreensão de que o futuro de todos, em todos oscantos do planeta Terra, é comum. Ou ele existirá para todos, ou elenão existirá para ninguém.

O princípio da precaução,18 também compreendido aqui oprincípio da prevenção,19 declara o compromisso que todos temos para

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16 Preâmbulo da Agenda 21, Capítulo 1, Subitem 1.1. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento. 3.ª ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001, p. 9.

17 NOSSO FUTURO COMUM (Brundtland Report) – Relatório da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimentoda ONU, 1987. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1991.

18 O princípio da precaução está expresso no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento. “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamenteobservado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis,a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidaseconomicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIOAMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (RIO DE JANEIRO: 1992). Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de EdiçõesTécnicas, 2001. No direito brasileiro, o princípio da prevenção pode ser verificado no art. 225, § 1.°, V, daConstituição Federal de 1988, bem como através do Art. 54, § 3.°, da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais).

19 É importante frisar a autonomia conceitual que guardam entre si os princípios da precaução e da prevenção. “Otraço essencial que afasta e delimita os dois conceitos é o da identificação ou não de um dado risco. A prevençãoexige claramente a adoção de medidas contra riscos já identificados. Já o vorsorgeprinzip alerta para a necessidadede agir contra a emergência de riscos cuja existência ou dimensão ainda não foi demonstrada, ou mesmo anecessidade de agir na ausência de riscos, designadamente postulando a não perturbação de um dado recursoambiental como forma de gestão cautelosa do futuro”. MARTINS, Ana Gouveia e Freitas. O princípio da precauçãono direito do ambiente. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, p. 25.

com as futuras gerações, num âmbito de justiça e eqüidadeintergeracional, ademais de firmar as responsabilidades éticas quetemos na utilização de tecnologias que alterem o estado natural dosecossistemas e da vida em geral.20 Entre outras coisas, o referidoprincípio condiciona uma ação responsável e cautelosa dohomem/mulher na aplicação de tecnologias que possam – mesmo queremotamente – comprometer a vida e a qualidade ambiental. Aexpressão latina in dubio pro utilizada comumente no Direito Penal paradeterminar quem deve ser favorecido com o juízo de dúvida, no DireitoAmbiental é aplicada invariavelmente como in dubio pro “ambiente”.

O princípio da precaução, como estrutura indispensável aoEstado de justiça ambiental, busca verificar a necessidade deuma atividade de desenvolvimento e os potenciais de risco ouperigo desta. Parte-se dos pressupostos que os recursosambientais são finitos e os desejos e a criatividade do homeminfinitos, exigindo uma reflexão através da precaução, se aatividade pretendida, ou em execução, tem como escopo amanutenção dos processos ecológicos e de qualidade de vida.21

O princípio da precaução,22 que deve necessariamente orientar aspolíticas públicas, é constantemente acusado de anti-desenvol-vimentista ou mesmo anti-progressista, principalmente por empreen-dedores de novas tecnologias ou conhecimentos como as indústriasquímica e biotecnológica. No entanto, para a sua implementação, deve-se buscar no princípio da proporcionalidade a ponderação dos valores eprincípios, geralmente de natureza econômica, que conflitam com aproteção ambiental, a fim de extrair desse contexto a decisão política ea solução para o caso concreto mais apropriadas.

Em obra sobre a globalização, Milton Santos sugere o mundo comouma grande fábula, onde “a promessa de que as técnicas

20 Nesse sentido, a evidenciar o princípio da precaução no cenário jurídico brasileiro, a paradigmática decisão do JuizFederal Antônio Souza Prudente verificada na ação civil pública ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa doConsumidor – IDEC contra a UNIÃO FEDERAL, a MONSANTO DO BRASIL LTDA. e a MONSOY LTDA., que condenou aUnião Federal a exigir a realização de prévio Estudo de Impacto Ambiental da MONSANTO DO BRASIL LTDA. paraliberação de espécies geneticamente modificadas e de todos os outros pedidos formulados à CTNBio, declarando ainconstitucionalidade do inciso XIV do Art. 2, do Decreto n.º 1.752/95, bem assim das Instruções Normativas n.OS

03 e 10 – CTNBio, no que possibilitam a dispensa do EIA/RIMA (PROCESSO N.º 1998.34.00.027682-0, CLASSE 7100,6.ª Vara da Justiça Federal, DF).

21 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dosTribunais, 2000, p. 50-51.

22 “No Art. 5.º do projeto de Código ambiental alemão, o princípio da precaução vem definido nos seguintes termos:1. Os riscos para o ambiente e para os seres humanos devem, na medida do possível, ser excluídos ou minimizados,em particular, através do planejamento em longo prazo e da adoção das precauções técnicas adequadas; 2. Aabordagem assente na precaução visa igualmente a proteção de grupos sensíveis e de elementos sensíveis dosecossistemas. Deve ser preservada uma margem para usos futuros e ecologicamente apropriados; 3. A qualidade doambiente deve ser melhorada em áreas afetadas e preservada em áreas não afetadas”. MARTINS, op. cit., p. 26-27.

279Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

contemporâneas pudessem melhorar a existência de todos cai por terrae o que se observa é a expansão acelerada do reino da escassez, atingindoas classes médias e criando mais pobres”.23 Não obstante as promessasfascinantes do avanço científico, o que se verifica no contexto mundial éum constante agravamento das desigualdades entre os países detentoresdas tecnologias, e conseqüentemente do poder econômico, e os paísespobres, reféns dos seus desideratos políticos e econômicos.

Como conejos se reproducen los nuevos tecnócratas delmedio ambiente. Es la tasa de natalidad más alta del mundo: losexpertos generan expertos y más expertos que se ocupan deenvolver el tema en el papel celofán de la ambigüedad. Ellosfabrican el brumoso lenguaje de las exhorbitaciones al ‘sacrificiode todos’ en las declaraciones de los gobiernos y en los solemnesacuerdos internacionales que nadie cumple. Estas cataratas depalabras, inundación que amenaza convertirse en una catástrofeecológica comparable al agujero de ozono, no se desencadenangratuitamente. El lenguaje oficial ahoga la realidad para otorgarimpunidad a la sociedad de consumo, a quienes la imponen pormodelo en nombre del desarrollo y a las grandes empresas quele sacan el jugo.24

O comércio internacional, característico por sua vocação para adominação e busca incansável por recursos naturais em todos os cantosdo globo terrestre desde as Cruzadas, apresenta-se em constantemetamorfose de atuação. Aponta-se hoje a biotecnologia como a sua obra-prima mais audaz, e ao mesmo tempo mais letal, capaz de transformar emcapital todas as formas vivas, assim como pôr o ser humano à venda nosmercados mundiais. Os elementos sociais, humanos e ambientais nãointegram a fórmula do comércio internacional.

A entropia acelera-se, porque o mundo, apesar de notáveisesforços retóricos, continua acentuando suas características erelações reais: continua sendo financeiramente total, econo-micamente global, politicamente tribal e ecologicamente letal.Continua subordinando as questões éticas, políticas e sócio-ambientais, ao imperativo absoluto e constantemente,

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23 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal. 6.ª ed. Rio de Janeiro:Record, 2001, p. 118.

24 GALEANO, Eduardo. Úselo y tírelo: el mundo del fin del milenio visto desde una ecología latinoamericana. 5.ª ed.Buenos Aires: Planeta, 2001, p. 9-10.

obstinadamente reforçado, das exigências do comérciointernacional.25

Como Aldous Huxley previu em seu “Admirável Mundo Novo”,26

a biotecnologia está próxima de comandar os rumos da própriaexistência humana e, conseqüentemente, do planeta Terra. Os riscosà saúde humana e ao meio ambiente, ou seja, à própria vida em si,não parecem argumentos fortes o bastante para combater o interesseeconômico que fundamenta o discurso das empresas de biotecnologiae dos seus prepostos comercias e políticos (oficiais e não-oficiais).Enquanto isso, segue-se sonhando que um desenvolvimentosustentável é possível.

3. GLOBALIZAÇÃO, ESTADO-NAÇÃO E CIDADANIA

A globalização ou mundialização, como a doutrina francesaprefere referir, apresenta um espectro quase ilimitado de elementos nasua composição (culturais, ambientais, sociais, humanos, políticos,econômicos, etc.). Enquanto um processo em curso e até certo pontoimprevisível, vai, ao passo que avança, instaurando nova facegeopolítica na composição mundial e provocando mudanças internase externas na concepção política moderna dos Estados nacionais. Avontade econômica, como o carro-chefe a impulsionar os movimentosda globalização para todos os espaços planetários, dita, em grandemedida, a forma e as regras deste novo “Novo Mundo” em formação.

A partir de uma determinada definição de globalização (emtermos de transformação da organização espacial das relaçõessociais e privilegiamento das relações e exercício de poder ‘àdistância’ entre, dentro e para além dos Estados nacionais,numa complexa e contraditória desterritorialização e reterri-torialização do poder econômico, político e social), analisam-se osprocessos de mudança estrutural da política mundial e daprópria figura do Estado-nação, assim como seusdesdobramentos diretos sobre as noções de soberania,comunidade política e democracia, histórica e conceptualmenteatreladas a essa última.27

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25 CAUBET, Christian Guy. A irresistível ascensão do comércio internacional: o meio ambiente fora da lei? Revista deDireito Ambiental, n.º 22, abril-junho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 81.

26 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 18.ª ed. São Paulo: Globo, 1992.

27 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 9.

Nesse contexto, impõe-se uma releitura política da ordemmundial. Os valores ambientais, latentes desde a década de 70 doséculo XX nas novas construções sociais emergentes, passam, ou aomenos assim deveriam, a compor o centro gravitacional da ordempolítica contemporânea. A vida, diante do atual contexto de riscoambiental, enquanto o valor maior da Humanidade, impõe tal “Viradade Copérnico” à política mundial. Nesse processo em curso, asprimeiras transformações políticas são perceptíveis na estruturasoberana dos Estados nacionais, que, na medida em que nãoencontram respostas nacionais para os desafios contemporâneos,demonstram a sua fragilidade política para a solução de questõesambientais e sociais.

Hoje percebe-se claramente que o sistema políticointernacional baseado em Estados soberanos é cada vez menoseficiente na manutenção da ordem. A crise sócio-ambiental globale a erosão dos Estados-nação obrigam a repensar as bases dapolítica e o destino da humanidade. A emergência de umambientalismo global e multissetorial (com grande amplitudeteórica e prática) nos comunica com o passado e com o futuro,apostando em gerar uma nova phylia que derrube os murosnacionais da política e estenda seus alcances até os limites dahumanidade e do planeta.28

O Estado-nação, na sua concepção moderna, característico porum modelo absoluto de soberania, não encontra mais corres-pondência e possibilidade diante dos desafios contemporâneos,principalmente naqueles tocantes ao meio ambiente e à ordem social.É preciso que a soberania seja relativizada no plano externo.Ferrajoli,29 ao afirmar a antijuridicidade e crise do conceito modernode soberania, aponta sua crítica para o absolutismo ainda exercidopelos Estados nacionais ocidentais no que tange às suas relaçõesinternacionais. Em outras palavras, apesar de fundarem-se sob aégide dos direitos humanos fundamentais no plano interno dos seusEstados de Direito, o mesmo não é verificado no âmbito externo, ouseja, nas suas relações com os demais Estados, organizações e sereshumanos do planeta.

282 Tiago Fensterseifer

28 LEIS, Héctor Ricardo. A modernidade insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea.Petrópolis, RJ/Florianópolis, SC: Vozes/Editora da UFSC, 1999, p. 38.

29 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes,2002, p. 46.

Repensar o Estado em suas relações externas à luz doatual direito internacional não é diferente de pensar o Estado emsua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso querdizer analisar as condutas dos Estados em suas relações entresi e com seus cidadãos – as guerras, os massacres, as torturas,as opressões das liberdades, as ameaças ao meio ambiente, ascondições de miséria e fome nas quais vivem enormes multidõesde seres humanos –, interpretando-as não como males naturaise tampouco como simples ‘injustiças’, quando comparadas comuma obrigação utópica de ser moral ou política, mas sim comoviolações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de serdo direito internacional vigente, tal como ele já está vergado emseus princípios fundamentais. Isso quer dizer, em poucaspalavras, conforme a bela fórmula de Ronald Dworkin, ‘levar asério’ o direito internacional: e, portanto, assumir seus princípioscomo vinculadores e seu projeto normativo como perspectivaalternativa àquilo que de fato acontece; validá-los como chavesde interpretação e fontes de crítica e deslegitimação do existente;enfim, planejar as formas institucionais, as garantias jurídicas eas estratégias políticas necessárias para realizá-los.30

O Estado de Direito, conforme lição de Canotilho,31 apresenta asseguintes dimensões fundamentais: juridicidade, democracia,sociabilidade e sustentabilidade ambiental. A seqüência dasdimensões apresentada pelo constitucionalista português traça aevolução civilizatória na conquista e reconhecimento dos seus valorese princípios fundamentais. Desde a sua forma primitiva, o Estado deDireito vem passando por um processo evolutivo contínuo,reconhecendo e agregando novas dimensões jurídicas: o EstadoConstitucional, o Estado Democrático, o Estado Social e o EstadoAmbiental. Da mesma forma que ocorre com a evolução dos direitosfundamentais, as dimensões do Estado de Direito se agregam e sesomam para formar o arcabouço de princípios e valores consagradospela Humanidade em seu processo histórico contínuo.

Para tanto, na proposição de uma democracia radical, aconfiguração do Estado de Direito pressupõe uma sociedade civilpolitizada, criativa e protagonista do cenário político estatal,reclamando um indivíduo/cidadão autônomo, participativo, e não

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30 FERRAJOLI, op. cit., p. 46.

31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos n.º 7. Fundação Mário Soares. Lisboa:Gradiva, 1998, p. 23.

submisso à máquina estatal. Em outras palavras, o Estado de Direitoconstrói-se de cima para baixo e não de baixo para cima, a partir dasua base democrática, em oposição ao Estado de Não-Direito. Bobbio,sob a ótica dos Estado de Direito e dos Estado de Não-Direito, tece assuas críticas ao sistema internacional de proteção aos direitoshumanos.

Chamamos de ‘Estados de direito’ os Estados ondefunciona regularmente um sistema de garantias dos direitos dohomem: no mundo, existem Estados de direito e Estados não dedireito. Não há dúvida de que os cidadãos que têm maisnecessidade da proteção internacional são os cidadãos dosEstados não de direito. Mas tais Estados são, precisamente, osmenos inclinados a aceitar as transformações da comunidadeinternacional que deveriam abrir caminho para a instituição e obom funcionamento de uma plena proteção jurídica dos direitosdo homem. Dito de modo drástico: encontramo-nos hoje numafase em que, com relação à tutela internacional dos direitos dohomem, onde essa é possível talvez não seja necessária, e ondeé necessária é bem menos possível.32

A relativização da soberania é imposta pela nova organizaçãopolítica mundial em blocos econômicos, bem como pela inaptidão dosEstados nacionais para lidar com interesses que ultrapassem as suasfronteiras domésticas. Nesse quadro internacional, projetam-se novasrelações políticas, jurídicas e econômicas entre os protagonistas da novaordem política mundial em formação (organizações internacionais,empresas transnacionais, organizações não-governamentais, movi-mentos sociais mundiais, Estados nacionais, etc.). A estes seráincumbida a missão atuar no horizonte internacional e salvaguardar osvalores humanos e ambientais hoje ameaçados.

Fora do horizonte do direito internacional, de fato, nenhumdos problemas que dizem respeito ao futuro da humanidadepode ser resolvido, e nenhum dos valores do nosso tempo podeser realizado: não apenas a paz, mas tampouco a igualdade, atutela dos direitos de liberdade e sobrevivência, a segurançacontra a criminalidade, a defesa do meio ambiente concebidocomo patrimônio da humanidade, conceito que também inclui as

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32 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992,p. 41.

gerações futuras. E isso depende não apenas do caráter já globaldo tamanho desses problemas, pois uma integração do mundo jáse realizou em todos os planos e em todas as esferas de vida emrelação às quais tais problemas se colocam: na economia, naprodução, na exploração e no aproveitamento dos recursos, nosequilíbrios ecológicos, na grande criminalidade organizada, nosistema de comunicações.33

É chegado o momento histórico destes valores já consagrados noplano interno dos Estados e até certo ponto já idealizados para o planomundial,34 diante do esforço político necessário para lidar com asquestões ambientais e sociais, projetarem-se e institucionalizarem-separa além das fronteiras domésticas dos países. Na reconstrução daestrutura política mundial, os referidos valores e princípios quefundamentam hoje os Estados nacionais, como as construções huma-nas mais próximas do ideal humanitário, devem servir como o alicercedessa nova realidade política e jurídica global. Nesse sentido, Vieira deAndrade aponta para o conceito de dignidade humana comopatrimônio espiritual comum da humanidade:

Há um conjunto de direitos fundamentais, do qualdecorrem todos os outros: o conjunto dos direitos que estão maisintimamente ligados à dignidade e ao valor da pessoa humana esem os quais os indivíduos perdem a sua qualidade de homens.E, esses direitos (pelo menos, esses) devem ser considerados‘patrimônio espiritual comum da humanidade’ e não admitem,hoje, nem mais de uma leitura, nem pretextos econômicos oupolíticos para a violação do seu conteúdo essencial.35

Nesse contexto, a dignidade humana deve ser a chave a abrir asmuralhas dos Estados nacionais e possibilitar o trânsito livre dos sereshumanos por todos os cantos do planeta, bem como o elemento arestabelecer o elo perdido desde a modernidade entre homem enatureza. No entanto, não menos importante que o reconhecimento erespeito à dignidade humana pelas instituições supra-estatais eEstados nacionais, é a tomada de consciência dos indivíduos acerca daparticipação social na construção dessa nova ordem política mundial.

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33 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes,2002, p. 51.

34 Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948.

35 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ª ed. Coimbra:Almedina, 2001, p. 34.

4. CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA – SOCIEDADECIVIL MUNDIAL

O problema crucial é: como passar de uma situação críticaa uma visão crítica – e, em seguida, alcançar uma tomada deconsciência.36

A sociedade civil coloca-se hoje como a consciência política domundo. Na medida em que se verifica a inaptidão e incapacidade dosEstados nacionais para lidar com diversas temáticas sociaisrelevantes, a sociedade civil, geralmente em sua forma organizada,passa a ocupar espaços políticos cada vez mais importantes.Registra-se hoje a articulação de diversos movimentos sociais eOrganizações Não-Governamentais (ONG) em forma de rede ecoalizão, possibilitando a atuação conjunta de diversos atores sociaisregionais e internacionais na defesa de uma causa comum. Talarticulação, que talvez tenha a sua representação máxima no FórumSocial Mundial,37 possibilita unidade de atuação e força política paraa sociedade civil, vivenciando o local e o universal simultaneamente.

Em consonância com o que hoje se passa na vida efuncionamento da Administração Pública, em geral, também aonível do direito do ambiente se defende com uma intensidadeacrescida a necessidade de não apenas os órgãos e agentesadministrativos, mas igualmente os diversos grupos sociaisexistentes na comunidade, intervirem – não só de formaconsultiva, senão que também um papel ativo – nas tomadas dedecisão relevantes para o ambiente.38

Nessa teia social mundial, o elo de ligação é a informação.Através das redes de informação, possibilitadas principalmente pelaInternet, as ONG’s e movimentos sociais trocam informações earticulam com muito mais eficiência as suas ações políticas de formaconjunta. A democratização e o acesso à informação configuram-secomo as principais armas à disposição da sociedade civil para cobrarações e responsabilidades de Estados e empresas privadas.39 Nesse

286 Tiago Fensterseifer

36 , SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal. 6.ª ed. Rio de Janeiro:Record, 2001, p. 116.

37 CATTANI. Antonia David (Org.). Fórum Social Mundial: a construção de um mundo melhor. Porto Alegre/Petrópolis:Editora da Universidade/UFRGS/Vozes/Unitrabalho/Corag/Veraz Comunicação, 2001.

38 DIAS, José Eduardo Figueiredo. Direito constitucional e administrativo do ambiente. Cadernos do Centro de Estudosde Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 20.

39 No Brasil, há o exemplo da Lei de Informação Ambiental, enquanto espaço aberto para o exercício democrático.

contexto, a velocidade com a que a informação circula possibilita aarticulação política quase que imediata dos grupos sociaismobilizados na ação política.

Pode-se dizer que já há um início de materialização de umacidadania ativa global na emergência e na expansão de redes deatividades transnacionais, concebidas como projetos erealidades preliminares, abrangendo uma diversidade demovimentos sociais transnacionais, associações ou grupos decidadãos, organizações internacionais não governamentais, etc.(por exemplo, Anistia Internacional, Greenpeace, Médecins sansFrontéres, movimentos de mulheres, ambientalistas, de defesados direitos humanos). Tal ativismo transnacional, ao construirespaços institucionais rudimentares de ação e lealdadedesenvolvidos em e através dos Estados, produz novasorientações com relação à identidade e à comunidade políticaque estão na base de uma ‘sociedade civil global’ em gestação.40

No cenário internacional, destacam-se algumas ONG’sambientalistas com alcance e representatividade mundial: Amigos daTerra, Greenpeace, WWF, entre outras. No exemplo do Greenpeace,41

suas campanhas ultrapassam fronteiras locais e nacionais, buscandouma ação política integrada no plano internacional. A projeçãomundial das ONG’s reflete a necessidade de uma ação conjunta eintegrada de diversas sociedades mundiais na proteção ambiental.

Esse tema do meio ambiente, percebido outrora como umaquestão à parte, é cada vez mais apreendido como transversal atodos os campos. A proteção do meio ambiente impõe-se como umimperativo comum ao conjunto das sociedades. A convicção de queo planeta está em perigo aparece como uma das mais importantestomadas de consciência política deste final de século.42

O conceito de democracia se recria a cada nova tomada deconsciência política e avanço civilizatório. Não se pode aceitar afórmula democrática vendida pela modernidade como a suapossibilidade última. A democracia vai ser sempre a bandeira na luta

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40 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis/RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO;Rio de Janeiro: LPP – Laboratório de Políticas Públicas, 2000, p. 72.

41 Ver sites: www.greenpeace.org, www.greenpeace.org.br.

42 RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 4.ª ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 1998, p. 32.

contra a dominação e espoliação dos mais favorecidos economica-mente para com os desprovidos de poder econômico. E, na medida emque enfrenta novas realidades políticas e sociais, a democracia vai seadaptando e transformando, mas sem nunca perder o seu idealemancipatório e libertário.

Certamente, não se deduz do anterior que o potencialdemocrático das sociedades contemporâneas foi esgotado e que oprojeto e as forças da globalização dominante reinam com absolutahegemonia. Nesse sentido, basta lembrar o surgimento de váriastendências de claro perfil contra-hegemônico, tanto no Norte quantono Sul, que abrangem desde os sinais de recomposição dasociedade civil (movimentos sociais de base local e transnacionalque buscam uma visão de mundo alternativa, combinandoeqüidade social, sustentabilidade da biosfera e democraciaparticipativa substantiva; crescimento de comunidades de auto-ajuda sobre bases locais), até as ostensivas manifestações deoposição política e social (revoltas sociais, inúmeras greves – sendoemblemática a da França em novembro/dezembro de 1995 –,recentes triunfos eleitorais de oposição na França e na Grã-Bretanha, conformação de alianças aglutinantes das forças deoposição, etc.). Mas, para reverter as tendências dominantes, dadaa complexidade dos problemas e dos dilemas que geram, pareceevidente que se precisa bem mais do que a criação de condiçõessociopolíticas favoráveis: é indispensável repensar as perspectivase as possibilidades da democracia e da cidadania à luz daproblemática ambivalente da globalização quando entendida emum sentido mais amplo e diferente do dominante.43

Na nova fórmula democrática, evidenciado o seu carátersupranacional e extraterritorial, a defesa do meio ambiente projeta-secomo um dos seus elementos mais importantes. A composição que seextrai entre política e meio ambiente diz respeito diretamente com oprincípio democrático, pois está em contraposição à posturaopressora e dominante que o poder econômico impõe à grandemaioria dos habitantes mundiais.

El proyecto democrático y emancipatorio está en el centro,tanto del ideario ecológico con en el de los movimientos socialespopulares. De este modo, es parte importante de la inspiración

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43 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis/RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO;Rio de Janeiro: LPP – Laboratório de Políticas Públicas, 2000, p. 43-44.

política de un proyecto de sustentabilidad fuerte. Como en lanavegación de cabotaje, este proyecto se arriesga en la fronterade los paradigmas de sustentabilidad. En este sentido, losactores sociales que se organizan en torno a la idea de unasustentabilidad fuerte podrían ser pensados como ‘viajantesparadigmáticos’, en el sentido que Boaventura les confiere,siendo estos actores aquellos que están entre las márgenes delcontinente y de alta mar, del peligro y de la oportunidad, enaguas y rutas poco previsibles, en la crisis de la esfera políticaactual. Esto reinstala la discusión sobre las condicionesnecesarias para la articulación entre naturaleza y política – Biosy Polis -; entre los territorios de lo público y lo privado,particularmente transformados por las cuestiones de género, y,finalmente, entre la sustentabilidad, la ciudadanía y lademocracia, como una aventura en curso que penetra ysobrepasa los continentes exclusivamente ecológicos o de lasrelaciones de género, insertándose entre los grandes dilemaspolíticos de la sociedad contemporánea.44

O conceito de cidadania emerge com uma nova roupagem nouniverso político e jurídico contemporâneo. As novas realidadesenfrentadas pelos cidadãos atingem cada vez mais uma dimensãoglobal, colocando os cidadãos de diferentes e longínquos paísesdiante dos mesmos problemas. Nesse contexto, a questão ambientalcoloca-se como a pedra fundamental da construção política hodierna,impondo às nações e cidadãos mundiais uma aliança planetária naformulação e ação política internacional.

A cidadania é um conceito conquistado historicamente. Elaé uma superação da posição do súdito das decisões do poder. Ocidadão é o sujeito das normas e ações do poder. Se o Estadodispõe de instrumentos para controlar os cidadãos, estes têm emsuas mãos os instrumentos de sobrevivência ou não desseEstado. (...) Assim, a cidadania é um exercício tenso de sereshumanos que não dispõe nem das armas, nem da burocraciapara fazer valer seus desígnios. Seu campo de ação está na lutapolítica no campo dos direitos, dentro de uma ordemminimamente estável. Nas ordens instáveis e exasperadamentedesiguais, as alternativas serão outras. (...) O exercício

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44 CARVALHO, Isabel. Sustentabilidad democrática y ciudadanía. In: Mujeres y Sustentabilidad – Intercambio y debatesentre el movimiento de mujeres y el movimiento ecologista. Santiago de Chile: Fundación Heinrich Böell, 2001, p. 86.

democrático da cidadania é fundamentalmente ético. É umaopção valorativa no sentido de entendimento e práticas detransformação em busca de uma sociedade mais justa, mais livree mais feliz. Essas pautas éticas são o inverso do conformismo eestabelecem bases para a constituição de novos direitos.45

No que diz respeito às questões ambientais, o processodemocrático deve estar sempre presente, tendo em vista arepercussão e a natureza coletiva da degradação ambiental para todoo conjunto da sociedade. Toda e qualquer atividade lesiva ao meioambiente, antes de ser efetivada, deve ser subordinada a um processodecisório democrático, dando-se voz e vez a todos os representantesdos grupos sociais interessados na questão. O Princípio 1046 daDeclaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento47 declarade forma explícita a importância de se assegurar a participação detodos os cidadãos, locais ou globais, nos processos decisóriosrelativos a questões ambientais. O livre acesso às informaçõesambientais que as autoridades públicas dispõem é indispensávelpara a conscientização e participação cidadã na política ambiental.48

Princípio 10. A melhor maneira de tratar as questõesambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todosos cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo teráacesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de quedisponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca demateriais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como aoportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irãofacilitar e estimular a conscientização e participação popular,colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionadoo acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusiveno que se refere à compensação e reparação de danos.

A cidadania ambiental volta-se cada vez mais para umadimensão planetária. É preciso a ação local do cidadão ambiental,mas sempre com uma visão voltada para os reflexos que a degradaçãoambiental traz para todo o ecossistema planetário. Como exemplo, apoluição atmosférica gerada pelos países desenvolvidos tem reflexosdiretos na qualidade ambiental e condições de vida dos países em

290 Tiago Fensterseifer

45 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do Meio Ambiente e participação popular. Brasília: Edições Ibama,1998, p. 42-43.

46 CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. 3.ª ed. Brasília: Senado Federal,Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001, p. 595.

47 Elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro.

48 Nesse sentido, destaca-se a promulgação recente da Lei 10.650, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o acessoà informação ambiental.

desenvolvimento. Dessa forma, é necessária uma nova concepção decidadania, reconhecendo-se o papel e a importância que todos têm nadefesa do planeta Terra.

O grande número de tratados internacionais sobre meioambiente firmados desde a Rio-92 reflete, em parte, o consensouniversal sobre a necessidade vital de protegerem-se os recursosnaturais do planeta. No entanto, tal iniciativa não alcança um planode eficácia na realidade jurídica e política internacional, mas presta-se mais a evidenciar o quadro de negligência da grande maioria dospaíses para com a proteção ambiental.

...novas concepções e práticas de cidadania democrática paraalém das fronteiras (regionais, cosmopolita). Afinal, o principaldesafio que enfrenta a política democrática nesta época detransformação consiste, precisamente, em criar condições ecapacidades efetivas, por um lado, para cobrarresponsabilidades das forças transnacionais e internacionais daglobalização ‘pelo alto’ que vêm se beneficiando de umaespantosa concentração de recursos de poder econômico epolítico em escala planetária (e que operam, portanto, para alémdo único e cada vez mais impotente controle democráticoexistente – o territorial); e, pelo outro, para legitimar instâncias degovernança supranacional através de uma ampla participação –não exclusivamente interestatal – no processo de deliberação etomada de decisão política sobre problemas globais (ambientais,direitos humanos, pobreza e desenvolvimento, etc.) que dizemrespeito ao conjunto da humanidade.49

Canotilho afirma a superação da concepção moderna doEstado-nação e sua inaptidão para lidar com a problemáticaambiental global, sugerindo a estruturação de uma espécie deRepública Ambiental Planetária, impulsionando o princípiodemocrático para a ordem jurídica internacional. Na sua construçãorepublicana do mundo, os Estados Ambientais devem incorporar apostura democrática como sua pedra fundamental.50

291Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

49 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 10-11.

50 “A qualificação de um Estado como Estado Ambiental aponta para duas dimensões jurídicas-políticasparticularmente relevantes. A primeira é a obrigação de o Estado em cooperação com outros Estados e cidadãos ougrupos da sociedade civil, promover políticas públicas (econômicas, educativas, de ordenamento) pautadas pelasexigências da sustentabilidade ecológica. A segunda relaciona-se com o dever de adoção de comportamentospúblicos e provados amigos do ambiente de forma a dar expressão concreta à Assumpção da responsabilidade dospoderes públicos perante as gerações futuras”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. CadernosDemocráticos, nº. 7. Fundação Mário Soares. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 44.

O postulado globalista pode resumir-se assim: a proteção doambiente não deve ser feita ao nível de sistemas jurídicos isolados(estatais ou não), mas sim ao nível dos sistemas jurídico-políticosinternacionais e supranacionais, de forma a que se alcance umstandard ecológico ambiental razoável a nível planetário e, aomesmo tempo, se estruture uma responsabilidade global (deEstados, organizações, grupos) quanto às exigências desustentabilidade ambiental. Por outras palavras: o globalismoambiental visa ou procura formatar uma espécie de Welt-Umwelrrecht (direito de ambiente mundial). Isto não significa que sedesprezem as estruturas estatais e as instituições locais. Lá onde asinstâncias nacionais e locais consigam densificações positivas dosstandards ecológicos, impõe-se a autocontenção da “República-Ambiental Planetária”. O globalismo aponta também para um direitode cidadania ambiental em termos intergeracionais.51

Nesse sentido, o atual momento histórico não permite a inérciae a neutralidade de outros tempos, mas exige cidadãos e cidadãsplanetários conscientes da realidade que os permeia e capazes de agirem defesa da vida. O direito, nesse contexto, nas suas dimensõesnacional e internacional, insurge-se como um instrumento de luta ede resistência contra uma realidade que violenta os valores máximosdo Estado Democrático de Direito e da humanidade.

Hoje, a cidadania apresenta outra dimensão. A questão deseu exercício transcende a internacionalização e invade aplanetarização. Isso se dá pelo fato de a produção apresentarefeitos destrutivos em todo o planeta, não mais secircunscrevendo aos parâmetros geopolíticos do internacio-nalismo, mas avançando para a questão da própriasobrevivência do planeta e da espécie humana. O que leva ànecessidade do ser humano conceituar-se de modo diferente.Não mais um cidadão que domina a natureza para criar seumundo, mas um ser da natureza que cria seu mundo convivendocom ela. Esse cidadão planetário tem na questão ambiental umdos problemas políticos e humanos mais sérios da contem-poraneidade. O ser humano chegou a ponto de poder se destruirenquanto espécie.52

292 Tiago Fensterseifer

51 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In: DireitosFundamentais Sociais. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (No prelo)

52 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do Meio Ambiente e participação popular. Brasília: Edições Ibama,1998, p. 46.

No intuito de reconstruir os conceitos políticos e jurídicos à luzda realidade contemporânea e do atual estágio das construçõeshumanas, cabe destacar a citação de Fernando Pessoa, na figura doseu heterônimo Alberto Caeiro, em Poemas: “É preciso esquecer a fimde lembrar, é preciso desaprender a fim de aprender de novo”. Dessaforma, sugere-se a reconstrução de toda a leitura política e jurídica apartir dos novos valores sociais e ambientais emergentes no universocontemporâneo, os quais devem gravitar a partir dos seres humanosque os compõem e legitimam. A cidadania ambiental, na suadimensão planetária e cosmopolita, apresenta-se como a nova “carapintada” da democracia contemporânea, na medida em que agregaconsigo os valores mais elementares da humanidade. Propõe-se umareconciliação do homem natural com o espaço político.

Algumas questões que estão presentes no pensamentoecológico mais profundo oferecem elementos significativos parauma reconciliação do espaço político – no sentido mais amplo doespaço da convivência humana – com o Cosmos, ou com aNatureza. A busca desta reconciliação constitui uma força motrizde algumas das grandes utopias da história ocidental. Estaforça, que é uma energia reestruturadora do cultural e do político,brota sempre e novamente quando o homem se interroga arespeito daquilo que constitui a sua autêntica humanidade.Quando ele procura uma relação mais profunda com a suamedida. Quando ele reencontra a sua morada.53

Na abertura deste novo século, cada vez mais marcado pelocomprometimento dos valores ambientais em escala planetária,insurgem-se novas demandas no seio da sociedade civil pós-moderna, a qual chama para si a responsabilidade que os Estados-nação não foram capazes de assumir para com a destruição do meioambiente e a redução da qualidade ambiental no planeta. Dessaforma, como bem refere Enrique Leff, a democracia aparece como “oprojeto civilizador mais ambicioso da Humanidade” na atualidade.

No horizonte deste fim de século, a Democracia aparececomo o projeto civilizador mais ambicioso da Humanidade nareconfiguração das forças políticas de um mundo marcado peladesigualdade social, o empobrecimento das maiorias e a

293Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

53 UNGER, Nancy Mangabeira. O encantamento do humano – ecologia e espiritualidade. 2.ª ed. São Paulo: Loyola,2000, p. 63.

degradação ambiental em escala planetária. A partir das raízesda Terra e das bases da sociedade, surge a reclamação popularpela participação na tomada de decisões e na gestão direta desuas condições de existência.54

Até que o homem tecnológico crie mundos artificiais em outrosplanetas, o que hoje só é possível na ficção, a vida só irá seconcretizar e se desenvolver se houver condições ambientaisfavoráveis. Nesse contexto, tendo em vista a sua natureza difusa, aproteção ambiental passa a ser uma das bases-éticas principais dasociedade pós-moderna na sua caminhada civilizatória, exigindo-se,para o convívio harmonioso entre todos os integrantes da sociedadebrasileira e mundial, a firmação de um pacto ambiental com a Terra,onde todos os atores sociais e estatais assumam as suasresponsabilidades e papéis na construção de uma sociedade mundialambientalmente sustentável.

5. CONCLUSÕES ARTICULADAS

A compreensão de um pensamento complexo e crítico constitui-se de pressuposto indispensável ao estudo da realidade ambientalcontemporânea. Os problemas ambientais enfrentados pela huma-nidade não comportam olhares científicos simplistas e superficiais,devendo-se restabelecer o elo perdido desde a modernidade entrehomem e natureza.

A concepção moderna de Estado-nação, característico por umconceito absoluto de soberania, não encontra mais correspondênciae possibilidade diante dos desafios contemporâneos, principalmentenaqueles tocantes ao meio ambiente, aos direitos humanos e à ordemsocial. É imperativa a relativização da soberania no plano externo,orientando-se pelos direitos humanos fundamentais nas relaçõescom os demais Estados, organizações, empresas multinacionais eseres humanos do planeta.

A sociedade civil coloca-se hoje como a consciência política domundo. Na medida em que se verifica a inaptidão e incapacidade dosEstados nacionais para lidar com diversas temáticas sociais eambientais relevantes, a sociedade civil, geralmente em sua formaorganizada, passa a ocupar espaços políticos cada vez mais

294 Tiago Fensterseifer

54 LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimentosustentável. Blumenau: Editora da Furb, 2000, p. 359.

importantes. Destaca-se a importância da articulação de diversosmovimentos sociais e Organizações Não-Governamentais (ONG) emforma de rede e coalizão, possibilitando a atuação conjunta dediversos atores sociais regionais e internacionais na defesa de umacausa comum, vivenciando o local e o universal simultaneamente.

Toda atividade ou empreendimento potencialmente lesivo ao meioambiente, antes de ser efetivado, deve ser obrigatoriamente subordinadoa um processo decisório democrático, com a participação ampla e efetivade todos os grupos sociais (nacionais e internacionais) interessados naquestão. O livre acesso às informações ambientais que as autoridadespúblicas dispõem é indispensável para a conscientização e participaçãocidadã “qualificada” na política ambiental. A democratização e o acessoà informação configuram-se como os principais instrumentos àdisposição da sociedade civil para cobrar ações e responsabilidades deEstados e empresas privadas.

O conceito de cidadania emerge com uma nova roupagem nouniverso político e jurídico contemporâneo. Não se pode aceitar a fórmulademocrática vendida pela modernidade como a sua possibilidade última.As novas realidades enfrentadas contemporaneamente atingem cada vezmais uma dimensão global, colocando os cidadãos de diferentes elongínquos países diante dos mesmos problemas. Nesse contexto, aquestão ambiental coloca-se como a pedra fundamental na construçãopolítica contemporânea, impondo às nações e aos cidadãos mundiaisuma aliança planetária na formulação e ação política internacional. Acidadania ambiental cosmopolita afirma o princípio democrático paraalém das fronteiras nacionais, recriando-se a cada nova tomada deconsciência política e avanço civilizatório.

A defesa do meio ambiente constitui-se de uma das bases-éticas fundamentais da sociedade contemporânea, exigindo-se, parao convívio harmonioso entre todos os integrantes da sociedadebrasileira e mundial, a firmação de um pacto ambiental comum coma Terra, onde todos os atores sociais e estatais assumam as suasresponsabilidades e papéis na construção de uma sociedade mundialambientalmente sustentável.

295Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

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297Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

O Resguardo do Patrimônio Cultural por

Meio da Memória ColetivaPaulo Fernando de Britto Feitoza1

1. INTRODUÇÃO

Oser humano é memorialista, tanto que a visão quese faça de qualquer cidade mostrará o quanto o

homem produz lembranças. Os nomes das ruas evocam antepassadosilustres; os monumentos, acontecimentos históricos; as praçaslembram eventos significativos e as construções reproduzem a épocamarcante que passou ou o presente que transcorre.

Afora estas evocações, existem os museus, outrora dedicadosàs musas, que na atualidade apresentam coleções sobre raridades ede interesse geral, como, por exemplo, as pinacotecas, asnumismáticas, os sacros, de história natural, além das exposiçõestemporárias de arte e de peças antigas que movem multidões paravisitá-las. Em tudo pontua a memória, pois ir a uma exposição deraridades ou visitar um museu é estimular lembranças passadas.

Na sua individualidade, o homem também se volve para opassado, documentando sempre no presente as recordações deamanhã. A memória biológica sempre desempenhou esta função depreservar o passado para ser lembrado no presente. Na atualidade,outros meios modernos, fabricados com a melhor eletrônica, auxiliamna tarefa de registrar acontecimentos pessoais, familiares e até

1 Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Civil. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado doAmazonas. Especialista em Direito Público e Privado pela Fundação Getulio Vargas – Amazonas.

299O Resguardo do Patrimônio Cultural

por Meio da Memória Coletiva

mesmo sociais, para servir de suporte às lembranças futuras. Mesmoassim, a memória, como atributo do homem, ainda é imbatível na suaimportância e significado.

Oportuno que se tenha esta consciência de que, mesmoinvoluntariamente, o homem está em continuado processo dememorizar e lembrar, sendo este acontecimento vital para a garantiada individualidade, favorável às práticas de convívio social, epromissor para o progresso da humanidade.

Neste começo, já se pode assegurar que a falta de memóriainvalida o homem. É, sem dúvida, uma enfermidade grave, porquecompromete a individualidade da pessoa. Quem não tem memórianão tem a possibilidade de expressar o seu eu – a sua identidademaior. Aliás, a perda da memória compromete a própriasobrevivência da pessoa privada desta faculdade.

Igualmente, a falta de memória compromete o convívio social.Este pode ser pensado a partir da solidariedade, que justifica aproximidade de uma pessoa a outra, sendo que cada uma contribuicom suas vivências e adquire outras experiências. As experiências davida são conhecimentos que a memória guarda e na falta desta, nãoserão preservados, muito menos partilhados com outros.

O progresso da humanidade é fundado, sobretudo noconhecimento. No saber que o cotidiano possibilitou e a memóriaacumulou. Mas, se faltar a memória ou, se a cada dia, asexperiências anteriores bem-sucedidas tiverem que ser repetidas, nãohaverá avanço e a humanidade estará sem a possibilidade de umaevolução. Verdadeiramente estagnada.

Desse modo, a humanidade não prescinde da memória, tantono sentido pessoal como na dimensão coletiva, por ser o veículo daindividualidade e do progresso, respectivamente.

Conclusivamente, a memória é uma garantia da identidade. Nela,pode ser sistematizado o eu, o indivíduo, a pessoa, nos três tempos –passado, presente e futuro. Mais ainda, desta memória que individualizao eu, é possível chegar a uma memória social ou coletiva, simbolizadapelos monumentos, documentos, lendas, mitos, ritos e outros fatospertinentes à história de um grupo social.2 Coletivo, ressalta-se, é tudoaquilo que não pertence a um único indivíduo, mas é comum a muitaspessoas simultaneamente; é algo peculiar a uma sociedade.

Estas noções fazem-se necessárias para facilitar a compreensãoda memória e do discurso que se desenvolve ao seu redor, bem comoda associação que dela se faz com o patrimônio cultural.

300 Paulo Fernando de Britto Feitoza

2 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

2. A MEMÓRIA ENTRE A LENDA E A MITOLOGIA

Como a memória pode estimular a própria imaginação, introduz-se, neste começo, a lenda da própria memória desenvolvida com afantasia de Simônides de Céos (556/467 a. C.), poeta lírico grego, quededicou um poema ao rei de Céos e aos deuses Cástor e Pólux,recitado-o durante um banquete ao monarca e seus convidados.

Após a declamação, o poeta solicitou o pagamento pela obraliterária, tendo o monarca se prontificado a pagar metade dosolicitado, porquanto o poema homenageara igualmente os deuses,que deveriam ser responsabilizados pela outra metade do pagamento,haja vista que todos tinham sido homenageados igualmente.

Nesse ínterim, o poeta grego Simônides foi avisado de que forado recinto do palácio, lá nos jardins, duas pessoas o procuravam.Apressou-se a ir vê-las e quando deixou o palácio este desabou,matando a todos. Estavam os deuses Pólux e Cástor quites com opoeta, pois a narrativa popular afirma que foram os deuses,encarnados em dois jovens, que vieram evitar a morte dele.

Os familiares dos convidados não conseguiam reconhecer seusparentes mortos e recorreram ao poeta Simônides, que se recordavado local onde teria sentado e das roupas que usava cada um doscomensais.

Parte daí a relação que se fez na Antigüidade entre a memória e umpalácio. Passeando-se pelo recinto desse palácio, seria possível recordartodos os fatos pretéritos e trazê-los ao momento presente.

Presumivelmente, a lenda tem relação com o texto de SantoAgostinho, extraído da sua obra Confissões, que pensa na memóriacomo a sede de um palácio, conforme a seguinte transcrição: “Chegoaos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros deinumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí estátambém escondido tudo o que pensamos, quer aumentando querdiminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que ossentidos atingem”.3

Posto nestes termos, a memória seria a sede das lembranças e opalácio um estímulo favorável ao processo de recordar, desempenhadopela própria memória. Sua característica maior consiste em guardar osacontecimentos, preservando-os do esquecimento, porquanto o tempo ofaria desaparecer, não fosse o recurso da memória com o seucontinuado sistema de registrar e lembrar.

301O Resguardo do Patrimônio Cultural

por Meio da Memória Coletiva

3 AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultura, 1996, p. 266/268 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. SãoPaulo, Ática, 1994, p. 126.

A memória também tem o seu mito. Para os gregos, era adivindade Mnemósine,4 que, juntamente com Zeus, gerou as musasClio (história), Euterpe (música), Talia (comédia), Meupômine(tragédia), Terpsícore (dança), Erato (elegia), Polínia (poesia lírica),Urânia (astronomia) e Calíope (eloqüência), as quais representavamem conjunto a proteção das artes em geral.

Era atribuição da deusa Memória conceder aos poetas eadivinhos a faculdade de uma viagem ao passado com a possibilidadede revelá-lo no presente à coletividade. Sua função ia além, posto queoutorgava a imortalidade aos artistas, uma vez que todos eles, aoregistrarem os acontecimentos pretéritos e presentes, tornavam-seinesquecíveis e, portanto, imortais.5

Por sua vez, se a memória tinha a função de proteger alembrança, as musas tinham o encargo de inspirar os artistas acriarem suas obras, materializando as idéias e imaginações quetivessem. Ademais, havia a crença de que estas mesmas musasmotivavam os autores à sinceridade, de tal sorte que, ao buscaremnas musas suas inspirações, procuravam eles, do mesmo modo, agraça de não faltarem com a verdade.

3. AS FASES DA MEMÓRIA COLETIVA

A memória social ou coletiva, por causa da sua relação com oprocesso de coletivização, tem uma correlação com a própria vida e aevolução das sociedades.

O percurso desta memória coletiva desenvolve-se da oralidadeaté a fase escrita, conforme classificação desenvolvida por Le Goff,que lhe atribuiu os estágios seguintes: a) a étnica, dos povos ágrafos;b) da Pré-História à Antigüidade; c) medieval (oral-escrita); d) escrita,do século XVI até o presente; e) a memória na atualidade.6

3.1 Memória Étnica

Relativamente à fase da memória étnica, deve-se realçar osvalores seguintes, típicos dessa ocasião: a) os mitos, que representamum fator de congregação do grupo; b) a genealogia ou a política da

302 Paulo Fernando de Britto Feitoza

4 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994; DUARTE, Luiz Fernando Dias. Memória e reflexividadena cultura ocidental. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio deJaneiro: DP&A, 2003.

5 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

6 LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. [S.l.]: Edição Portuguesa Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1984, v. 1.

dominação de uns, pela submissão da maioria; c) o conhecimentovinculado a uma prática religiosa, sob uma liderança.

Aqui, a memória não se processa, como é obvio, por palavras,com a precisão que se vê na atualidade.

As lembranças dos povos ágrafos são confiadas a determinadaspessoas que funcionam como depositárias dos acontecimentosdaquela sociedade. São indivíduos destacados nestas etnias, como oschefes de famílias, sacerdotes, anciãos, os quais, com a sua funçãode preservar a memória-história, desenvolvem outro encargo relativoà unidade do grupo, em reverência ao conhecimento do qual estãoinvestidos.

3.2 Entre a Pré-História e a Antigüidade

Entre a Pré-História e a Antigüidade, a própria evolução social,gradualmente, chegou à escrita. A fase é muito pontuada de lendas emitos, destacando-se a divindade da Memória como a fonte dalembrança, e a do esquecimento representada por um dos rios doinferno, denominado de Letes. Sucedem nesse ínterim os debatesfilosóficos, dos quais participam Platão e Aristóteles, dentre outros,para afirmar que a memória faz parte da alma.

Efetivamente, surgem os monumentos, em alusão aosacontecimentos; as inscrições; multiplicam-se no Oriente antigo asestelas e obeliscos. Além desta forma de memória – a monumental –surge também a documental, pela qual, projeta-se o fato escrevendo-o sobre um suporte físico, que pode ser: osso, estofo, pele, folhas depalmeira, carapaça de tartaruga, papiro, pergaminho, papel.7 Sãoduas as funções básicas do documento: o armazenamento deinformações e a criação de um estilo de escrita, por meio daretificação, reexame, correção; enfim, o aprimoramento do que foiregistrado.

A partir de então, sucedem, por parte dos reis, atenções paracom o registro dos seus feitos, arquivos de dados, bibliotecas etc. Emresumo, a vida e a morte são documentadas. Há uma memóriaurbana; sucede, do mesmo modo, um registro da memória funerária,lembrado pelas estelas gregas e os sarcófagos romanos.8

7 Op. cit. p. 17.

8 Op. cit. p.18.

303O Resguardo do Patrimônio Cultural

por Meio da Memória Coletiva

3.3 A Fase Medieval

Na época medieval, o judaísmo e o cristianismo são os propulsoresdo processo da memória. Estas duas religiões estão permanentementesugestionando o processo de recordação dos feitos cristãos.

São inúmeras as passagens que traduzem a memória comoelemento da devoção cristã ou evocam lembranças da reverência àdivindade de santos e Deus, tanto que a memória é entremeada deeventos religiosos como a Quaresma, a Páscoa, o Natal. Além destes,celebram-se os santos, até mesmo com dias tidos como santificadose a um determinado santo dedicam-se duas datas, como a data donascimento e a outra da sua imolação. Afora as datas registradas ecelebradas, há também os túmulos, que são lugares sagrados. Tudose desenvolvendo por uma ação da memória social, das lembrançasque todos têm da sua crença.

Além de todo este processo memorialista, havia o hábito de orarpelos mortos, tanto nas comunidades judaicas quanto nas cristãs. Oprocesso de memória dos mortos é tão amplo que os falecidosmemoráveis passam a fazer parte da liturgia da missa e, no século IX,é instituído o dia 2 de novembro como data dedicada aos falecidos.

No século XII, com a instituição do purgatório, um lugar quemediava o céu e o inferno, intensificou-se a lembrança dos mortospelos vivos em favor da rápida ascensão do ente querido morto aoparaíso. Tudo evoca uma lembrança; todo o conjunto promove umarecordação entre o passado e o presente.

Porém, deixando o lado religioso da memória coletiva, veja-seque na vida social também sucederam mudanças com o advento daescrita. Os arquivos dos monarcas eram modestos, no entanto sedesenvolveram, sendo exemplo a França com os registros reais e doparlamento, a partir do século XIII. Igualmente, por esta época e peloséculo XIV, na Itália e em outros países, houve uma difusão dosarquivos notariais.

3.4 O AVANÇO DO SÉCULO XVI ATÉ O PRESENTE

Do século XVI até o presente podem ser assinalados algunseventos representativos dessa época, como a imprensa, que favorecea publicação de obras, difunde informações e populariza o saber;igualmente, muitas datas compõem o calendário; monumentos sãoerguidos e fotografias passam a ter uso corrente, de tal sorte quetodas estas causas realçam a memória social.

304 Paulo Fernando de Britto Feitoza

Sendo assim, a marca primeira desta fase é a imprensa, queembora descoberta no século IX na China (xilografia), somente teveaplicação efetiva com o invento dos tipos por Gutemberg. Assim, aChina ficou com a difusão dos seus impressos bem restrita e sem olargo alcance popular, a não ser para a elite. Já no Ocidente, autilização dos tipos revolucionou a memória pela divulgação que aimprensa propiciava dos fatos e acontecimentos.

Com a imprensa, surgem os livros, dicionários e asenciclopédias, com ideários que podem ter fomentado as grandesaspirações dos povos pelos direitos individuais da pessoa humana.Por aí se vê o quanto este novo paradigma que a imprensa trouxe,com a divulgação de tantos valores, terá revolucionado as estruturassociais e levantado as massas a uma reivindicação de direitos tãopróprios, quanto até então postergados.

As festas ou celebrações também têm espaço e compõem ocalendário. Os arquivos vindos da fase anterior passam a serutilizados como registro documental franqueado ao público, como é ocaso do Arquivo secreto do Vaticano e o da Revolução Francesa. Nãosão fatos isolados, mas acontecimentos efetivos que se espalham portoda a Europa, numa típica proliferação da memória coletiva.

Bibliotecas são inauguradas e monumentos são edificados,notadamente para homenagear os mortos na Primeira Grande GuerraMundial e, por este mesmo acontecimento, em preito ao soldadodesconhecido. Logo, a memória de um ser não identificado, mas queteve um feito heróico, é cultuada.

Os eventos continuam sendo documentados para posteriorrecordação. Assim sucede com a fotografia, muito utilizada para o fimde registrar e recordar. Primeiramente, fotos esparsas, programadasem ateliês, depois o pai ou a mãe são os fotógrafos que vão registrara ocasião comemorativa familiar e preservar para o futuro umacontecimento social da família.

Esta fase da memória, praticamente, oferece sólidas bases paraque se possa fundamentar ou estruturar a importância da memóriacoletiva.

3.5 A MEMÓRIA NA ATUALIDADE

Do ponto de vista material, a eletrônica introduziu ocomputador, que é um forte auxiliar da memória, na medida em quefaz operações precisas e armazena dados com a segurança queultrapassa o cérebro humano. Contudo, não pode ser olvidado que este

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por Meio da Memória Coletiva

engenho – útil e moderno – é submetido ao homem, pelo programa queele desenvolveu, como pelos comandos que o mesmo determina. Logo,a memória eletrônica é um equipamento auxiliar a serviço do homem.

Por sua vez, quanto à memória coletiva, observa-seconsideráveis transformações neste setor, sobretudo pelo adventodas ciências sociais, que produziram novos conceitos e deram outravisão à concepção de história. Anteriormente, tinha-se como históricoaquilo que estava registrado documentalmente e materialmente, queeram produtos de acontecimentos memoráveis.

Na atualidade, a memória social tende a ser um acervo de fatose bens que representem a trajetória do homem, independentementede serem objetos ou acontecimentos de elevado valor histórico,porque a história é representativa dos feitos, como produção coletivada humanidade. Não mais estão em voga os excepcionais ou notáveisvalores de um homem ilustre, mas sim as ações de um grupo socialpor meio da sua produção cultural. Esta é a nova fase da história,que melhor dimensiona a memória coletiva.

4. A CULTURA E A MEMÓRIA

O delineamento da memória coletiva mostra que o homem,observada a premissa inicial deste trabalho, é avezado a produzirlembranças, bem como a evitar os esquecimentos. Assim,individualmente, tem suas recordações gravadas na memória, comoigualmente documentadas em papéis e coisas.

Coletivamente, a sociedade também resguarda sua históriaanterior e acompanha, sempre com muito interesse, o desenrolar dosacontecimentos que vive. Preserva lembranças do seu passado e evita,a todo custo, qualquer ato que possa turvar as recordações ou destruiro suporte desses registros sociais significativos.

O direito, então, é invocado como tutor das relações sociais eprotetor da cultura que a sociedade edificou. Decorrem destassituações as normas que amparam o patrimônio cultural e a memóriaque ele suscita.

Ilustra-se a tutela legal com a Lei dos Crimes Ambientais(9.605/1998), que tipifica como crime a destruição, inutilização oudeterioração de arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca,sendo compatível a sanção com o zelo que a sociedade tem por suaslembranças. Os arquivos, os registros, os museus, as bibliotecas e aspinacotecas são todos bens representativos de uma cultura,

306 Paulo Fernando de Britto Feitoza

sustentados na documentação escrita ou nas artes plásticas. Por issomesmo, a proteção jurídica a esses bens, que, da mesma forma, sãotutelados civilmente, até por imperativo constitucional.

Na verdade, quando se protege os vestígios do passado,resguardam-se selecionadas lembranças que sintetizam um momento,um fato, uma comunidade, um fazer, ou um saber, dentre muitasoutras atividades culturais que antepassados fomentaram. É umaforma de se ter no presente o que terá ocorrido no passado e, quemsabe, até mesmo colher os ensinamentos existentes nos legados.

A cultura é a intervenção do homem nos processos naturais; asmanifestações do espírito e os processos de criação que a pessoaexprime. Por sua vez, para a humanidade é importante e de bomaugúrio obter no presente os acontecimentos anteriores, ou melhor,receber a cultura anterior, através das coisas preservadas ouconfiadas oralmente a pessoas, que se encarregaram de transmiti-lasàs gerações vindouras.

Delimitando bem a questão, observa-se que a cada dia ohomem intervém na natureza e a modifica. Cultiva-a, pois.Transforma o que o rodeia para a satisfação das suas necessidadesou deleite pessoal. A sua intervenção cultural vai demarcar suasações com obras e conhecimentos, que ficam materializados nasconstruções e nos saberes que circulam nos dias de hoje, precedidosde incontáveis gerações que os aplicou e os repassou adiante. Tudoisto é cultura, que a memória social busca preservar.

Se não houver uma memória, se não existir uma lembrança, aprodução cultural anterior e, sobretudo o patrimônio cultural estarãoinutilizados, na função de trazer ao presente vivências e a história dosancestrais. Decorre desta circunstância o valor da memóriaestimulada pela preservação do patrimônio cultural.

5. A IMPORTÂNCIA DOS BENS CULTURAIS

Ana Lúcia G. Meira, ao prefaciar a obra Bens culturais eproteção jurídica, realçou que “o tema dos bens culturais cada vez setorna significativo nesses tempos de globalização. Sua preservaçãopassa a significar a valorização das diferenças que constituem asnossas identidades – base da nossa capacidade transformadora e denossa resistência”.9

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por Meio da Memória Coletiva

9 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e Proteção Jurídica. 2.ª ed. Porto Alegre: UE/Porto Alegre,1999, p. 11.

Em abono à assertiva, considere-se que no mundo globalizado,onde todos podem estar em toda parte ao mesmo tempo, unidos pelosistema on-line, o patrimônio cultural é um referencial identificadorda história dos homens e das sociedades em um determinadoquadrante do planeta.

Este é o valor da cultura. A história do homem no planetaTerra. Suas referências e laços com o passado.

Este elo unindo o presente ao passado está representado pelopatrimônio cultural, que estimula as recordações. O valor que ele tempode ser deduzido a partir da reflexão que se faz do que seria opresente sem o registro pretérito, que tanto pudesse justificar atrajetória humana.

Por outro lado, a cidadania pressupõe uma identidade com acultura. O cidadão, para sê-lo, deve ser constituído com os valores eas peculiaridades da sociedade que o originou. Por isso mesmo, acultura reporta-se à cidadania como o veículo que mantém o cidadãojungido à sua história cultural.

Quadra dizer que a cultura é um direito social, informado peloprincípio da universalidade, porque a norma é voltada em favor detodos. Trata-se de uma extensão dos direitos fundamentais dohomem. Por direitos sociais deve-se compreender aquelas prestaçõespositivas estatais que colimam reduzir as desigualdades e avivar oexercício da liberdade. Como se vê, uma associação de preceitosinstituídos para diminuir as desigualdades, favorecer o exercício daliberdade e consolidar o conceito de cidadão.

6. O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NA ORDEMCONSTITUCIONAL

Deflui do conceito de meio ambiente a noção de que orepresenta o conjunto de elementos naturais e as criações humanasindispensáveis à sadia qualidade de vida, como um preceito decaráter fundamental, outorgado indistintamente a todos eproclamado constitucionalmente no Art. 225. Sendo assim, asmanifestações do espírito humano e os processos de criação,representativos da ação cultural do homem, integram o meioambiente e ensejam a devida proteção legal.

Na atualidade, pode-se pensar que as Constituições anterioresconsignaram normas de amparo à cultura e seu respectivopatrimônio. Não foi bem assim e o que se vivencia no presente é

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resultante de uma trajetória que rompeu com a tradicional posturajurídica, relativa à intocabilidade da propriedade. Vivia-se uma épocade predominância civilista, de tal sorte que a propriedade era umdireito considerado individual e absoluto.

Houve uma evolução, inclusive estatal, abdicando-se do EstadoLiberal para o Estado de Bem-Estar Social, que trouxe comoresultado a identificação da propriedade com encargos próprios doseu uso. Conseqüentemente, a utilização de um bem apresentavaônus ao seu titular, de tal sorte que o caráter absoluto já não eraacatado como outrora. Ocorre, por outro lado, a oportunidade doEstado intervir na ordem econômica e, portanto, nos meios deprodução e em tudo o mais que com estes estava relacionado, sendobásico o aspecto do novo tratamento dado à propriedade.

Como uma situação atrai a outra, a Constituição de 1934 foi aprimeira a dedicar um título à ordem econômica e social, inspiradana Constituição de Weimar. Conseqüentemente, tratou daintervenção na ordem econômica, o que permitiu proteger os bensculturais mesmo que estivessem em mãos de particulares, uma vezque o direito de propriedade não poderia ser exercido contra ointeresse social ou coletivo.

Assim, à União e aos Estados foi atribuída competência paraproteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ouartístico, podendo impedir a evasão de obras de arte (inc. III, Art. 10,CF). Além do mais, foi imposta à União, aos Estados e Municípios aobrigação de favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, dasartes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos deinteresse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestarassistência ao trabalhador intelectual (Art. 148).

Cumpre anotar que a terminologia patrimônio artístico foiutilizada pela primeira vez nesta Constituição, tanto que remetida aoDecreto-Lei n.º 25/37.

A Constituição de 1937, 1946, 1967, a Emenda de 1969consignam, todas elas, normas relativas à proteção do patrimôniohistórico, artístico e paisagístico. Tanto que a Constituição de 1937reporta-se, em seu Art. 134, aos monumentos históricos, artísticos enaturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotadospela natureza, os quais gozam de proteção e cuidados especiais danação, dos Estados e dos municípios.

A Constituição de 1946 institui entre os Arts. 174 e 175 o deverdo Estado de amparar a cultura, estando sob sua proteção as obras,os monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem

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por Meio da Memória Coletiva

como os monumentos naturais, as paisagens, os locais dotados departicular beleza.

Já a Constituição de 1967, nos Arts. 172 e 180, repete emtermos idênticos o que tratou a anterior. No entanto, acrescentoucomo bem sob a proteção estatal a jazida arqueológica, que resultaem fator significativo para a identificação da ancestralidade nacional.

Suprindo a lacuna deixada pelas Cartas Federais anteriores, aConstituição de 1988 tratou em seção exclusiva a respeito dopatrimônio cultural, em substituição ao combalido patrimôniohistórico, artístico e paisagístico.

7. O DESENVOLVIMENTO DA PROTEÇÃO JURÍDICA DASLEMBRANÇAS CULTURAIS

7.1 A proteção da memória do patrimônio cultural

A diretriz deste trabalho é a memória de todos em favor dopatrimônio cultural. O contributo que as lembranças dão parapreservar o passado, em paralelo com o aspecto constitucional daproteção dos bens e fatos significativos à nacionalidade brasileira.

Por esta premissa, e evocando as constituições anteriores,deduz-se que até a Carta Federal de 1967 tinha-se unicamente oPoder Público com o encargo de proteger monumentos e documentosde valor histórico e artístico, bem como as paisagens naturaisnotáveis. Muito vagamente falava-se em cultura como sendo umdever do Estado (CF, 1946, Art. 174).

Afora estas disposições constitucionais de natureza restritivaquanto à cultura, o bem para integrar a seleta categoria depatrimônio cultural tinha que ter valores sublimes, que o levassem acompor o selecionado conjunto histórico e artístico da nação. Veja-seque o Art. 1.º, do Decreto-Lei n.º 25/37, dispôs que “constituía opatrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveise imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interessepúblico, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história doBrasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,bibliográfico ou artístico”. O parágrafo 2.º do mesmo artigo referia-seaos monumentos naturais, sítios e paisagens notáveis, produzidospela natureza ou engenho humano.

Pode-se deduzir pela transcrição da norma que o conceito depatrimônio histórico, artístico e paisagístico tinha que sugestionar

310 Paulo Fernando de Britto Feitoza

um excepcional valor, notável beleza e ser digno de permanecer namemória. Portanto, o valor da cultura até o advento da ConstituiçãoFederal de 1988 era elitista e voltado, sobretudo, para asmanifestações do espírito humano ou para a consagração de vultosnacionais que teriam promovido feitos heróicos. Por esses temposdesdenhava-se do popular, com a eleição do erudito, do memorável,do notável e do excepcional.

Afora este conceito limitativo da cultura pátria, havia a obrigato-riedade do tombamento para que o bem de excepcional valor passassea integrar o patrimônio nacional, posto que a Lei de Tombamento (DL25/37), somente considerava parte integrante do patrimônio históricoe artístico brasileiro os bens inscritos no livro do tombo.

São aspectos manifestados com o fim de elucidar que a culturade outrora era representada pelos memoráveis fatos históricos,produções artísticas excepcionais e de paisagens notáveis, bem comosubmetida a um processo de tombamento, que demandava tempo eritos legais para a sua consecução. Sem o tombamento não haviaproteção ao bem, por mais significação que tivesse para a histórianacional. A Lei de Tombamento era bastante enfática ao dizer que“só” eram considerados do patrimônio cultural os inscritos nos livrospróprios.

Associava-se à notabilidade dos bens do patrimônio histórico eartístico a necessidade do tombamento, de sorte que havia umalimitação às lembranças do povo. Não era a memória coletiva quemelegia o patrimônio histórico e artístico da nação. A escolha dessesbens era remetida ao Poder Público, que baniu as manifestaçõespopulares de participarem da cultura nacional.

Por isso que a história nacional tem como vultos os militares,os políticos e outros destaques mais, como intelectuais e profissionaisliberais, que podem ter dedicado suas vidas a uma causa social oucientífica, mas nunca serão suficientemente os únicos representantesda extensa cultura brasileira.

Não se ouvia falar na proteção jurídica ao sincretismo religioso,no resguardo à lembrança dos quilombos, na proteção ao trabalhodos mestres das artes populares e assim sucessivamente. Ajustificativa presumível é que estas ocorrências revelavam a presençapopular na história, sem o apoio dos grupos elitizados, que viam,nessas manifestações ou recordações sociais, hábitos muito singelospara comporem o elenco de notáveis trabalhos artísticos e as açõesde ilustres personagens da história oficial.

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por Meio da Memória Coletiva

Por isso a temática desenvolvida acerca da memória comoprecursora do patrimônio cultural, que deve conter lembranças dosprocessos de fazer, maneiras de ser e viver, bem como dasmanifestações artísticas de um grupo social. São as lembrançassociais que elegem o patrimônio cultural e este será sempre umsuporte às recordações, sendo procedente dizer que, quando seresguarda a cultura, protege-se igualmente a memória coletiva.

Não foi sempre assim, como bem se elucidou. Tanto que muitasseções da história brasileira estão sendo reescritas e outras aindanão foram sequer escritas, em razão do conflito existente entre oerudito e o popular, o notável e o singelo, o excelso e o comum. Opovo é o agente da sua história e dela não pode ser apartado, nemsuas características podem ser desconsideradas dentro desta visãoatual de cultura, como um direito social de origem fundamental paraa existência humana.

7.2 O patrimônio cultural brasileiro

A nova ordem cultural, que alçou a cultura à condição dedireito social, produziu mudanças na questão do patrimônio históricoe artístico nacional. Por isso que a vigente Constituição Federaldedicou uma seção à cultura, de maneira que os Arts. 215 e 216detalharam e renovaram o processo cultural do país.

Desse modo, a Carta Federal garantiu a todos o exercício dosdireitos culturais, franqueou as fontes de cultura e impôs ao Estadoapoiar, incentivar e valorizar a difusão das manifestações culturais.

Nessa mesma seção, foi imposto ao Estado proteger asrepresentações da cultura popular, indígena, afro-brasileira e deoutros grupos formadores da sociedade brasileira. Reservaram-sedatas que tivessem significado com as diversas etnias que compõemo povo brasileiro, favorecendo este preceito com dias especiaisdedicados aos negros, aos aborígines e outros grupos mais.Doravante passam a ser respeitadas as datas cívicas e as datassociais, ao lado de outros eventos religiosos reverenciados pelosdiferentes integrantes da sociedade brasileira. Veja-se que a memóriapode ser efetivamente exercida em razão de todos estes registros, quesugerem inclusive comemorações, como de fato acontecem.

O Art. 216, da Constituição Federal consagra a grande mudançaentre o passado e o presente. Neste dispositivo o patrimônio deixa deser artístico e histórico e passa a ser denominado de patrimôniocultural. Como realça José Afonso da Silva, “sai-se também do limite

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estreito da terminologia tradicional, para utilizarem-se técnicas maisadequadas, ao falar-se em patrimônio cultural, em vez de patrimôniohistórico, artístico e paisagístico, pois há outros valores culturais quenão se subsumem nessa terminologia antiga”.10

Por conseguinte, o termo patrimônio cultural retrata amudança ocorrida entre o modelo existente até a Constituição de1988 e o que passa a viger a partir de então. Pelo modelo anterior, arepresentação cultural da nação era os feitos históricos e asproduções artísticas, que são ocorrências bem restritas para arepresentação das manifestações peculiares de um país. Por isso, opassado limitava as lembranças que povo poderia ter dos fatosdesenvolvidos anteriormente por seus antepassados. Verdadeira-mente, desconsideravam-se as recordações.

Por meio da Constituição vigente, o conceito de patrimôniocultural foi ampliado. Aliás, consideravelmente distendido, tanto quepassaram a constituir o patrimônio cultural os bens de naturezamaterial e imaterial, em conjunto ou individualmente, que tivessemreferência com a identidade, a ação e a memória dos diferentesgrupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: a)as formas de expressão; b) os modos de criar, fazer e viver; c) ascriações científicas, artísticas e tecnológicas; d) as obras, objetos,documentos, edificações e demais espaços destinados às manifes-tações artístico-culturais; e) os conjuntos urbanos e sítios de valorhistórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,ecológico e científico.

Como se constata, a referência para a formação do patrimôniocultural é étnica. Funda-se o patrimônio cultural doravante no valordos grupos sociais, dos integrantes desses grupos, de suas ações eproduções. Foi abolido o aspecto notável e memorável de outrora, emhomenagem às manifestações populares, o que não elimina a arteclássica, nem a erudição, mas remete à igualdade todas asexpressões de um povo.

Este é o novo sentido do patrimônio cultural, que tem bens denatureza material e imaterial, como garantia de que todas asmanifestações, mesmo as orais, tenham espaço e importância noprocesso cultural brasileiro, diante de uma nova ordem cultural.

Por sua vez, não mais se impõe que o bem seja tombado paraintegrar o patrimônio cultural brasileiro. A exigência de outrora foiabolida, de tal sorte que, apresentando o bem, características que o

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por Meio da Memória Coletiva

10 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 7.ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1991.

induzam à condição de cultural, estará resguardado do extravio e,naturalmente, comporá o patrimônio cultural.

Entretanto, na iminência da perda do bem, é possívelobstar o acontecimento por meio de ações judiciais postas àdisposição do particular ou do Poder Público para a proteção dopatrimônio cultural, conforme os termos do art. 216, § 1.º, daConstituição Federal. Além das ações judiciais, outras providênciasmais podem ser tomadas para a salvaguarda desse patrimônio, comoo inventário, registro, vigilância, o próprio tombamento e adesapropriação.

7.3 Do patrimônio material ao imaterial

Possivelmente, uma dos maiores avanços que a culturabrasileira teve foi a proteção constitucional concedida ao patrimônioimaterial. Ampliou-se a memória nacional e valorizou-se a cidadania,com o espaço dado à população para que visse respeitadas aspráticas populares cotidianas, que vão do saber ao fazer do povo.

A trajetória, para que se tenha chegado a este grau dereconhecimento jurídico de uma das vertentes da cultura brasileira,é longa. No âmbito nacional, o poeta Mário de Andrade já preconizavao valor dos bens intangíveis, por volta dos anos 30 do século anterior,tanto que via na cultura uma produção humana que transcendia omaterial. O poeta fazia altaneiras as expressões culturais quetraduzissem festas, danças, lendas, mitos e tudo o mais que fosserepresentativo da cultura popular.

Oportuno ressaltar que o conceito de patrimônio esteve voltadopara coisas físicas, de maneira que a preservação fosse desenvolvida poratos que mantivesse o bem nas suas condições originais. No entanto,após a Segunda Guerra Mundial, sobreveio uma mudança deconcepção. Engenhos ou práticas culturais, sem que fossemrepresentadas por um determinado objeto, passaram à condição debens culturais, livres de quaisquer representações materiais.

Este valor atribuído às práticas culturais imateriais não terásido fruto de uma concepção européia ou Ocidental de cultura.Decorreu a idéia de um patrimônio incorpóreo de países asiáticos ede outros denominados de terceiro mundo, que têm nas criaçõespopulares anônimas, independentemente de qualquer materialidade,um grande patrimônio.11

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11 SANT’ANNA, Márcia. A face imperial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In:ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 49.

A questão patrimonial no mundo oriental difere daquilo quecomumente ocorre no Ocidente. Aqui, a história constrói-se pelosmonumentos, ao passo que, na cultura oriental, os objetos não sãoindispensáveis para a perpetuação da tradição cultural. Dá-se maisvalor ao conhecimento das tradições e à forma de reproduzi-las.

Por conseguinte, são importantes no processo cultural orientalaquelas pessoas que transmitem as tradições, porquanto ficaassegurada a preservação da identidade do povo. Até porque o que écorporificado, mesmo com toda a preservação, poderá estiolar-se. Asassertivas são procedentes, pois no Japão, ao redor dos anos 50,quando instituída a primeira legislação de preservação do seupatrimônio cultural, o objetivo maior foi incentivar e apoiar pessoas egrupos encarregados das tradições daquele país. Conseqüentemente,são conceitos distintos os que compõem a relação patrimonial noOcidente e no Oriente.

Como se pode deduzir, o conceito ocidental de patrimôniocultural, fundamentado na conservação e autenticidade do objeto,além da limitação imposta ao direito de propriedade, não é suficientepara acolher a amplitude do significado do patrimônio cultural. Poreste motivo, a partir de 1970, foram incorporados ao conceitoaspectos imateriais. Em 16 de novembro de 1972, após a aprovaçãoda Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco,os países do Terceiro Mundo reclamaram contra a falta de proteçãoàs expressões populares culturais.

Desenhou-se aí uma idéia consolidada em 15 de novembro de1989, também pela Unesco, sob o título de Recomendação sobre aSalvaguarda da Cultura Tradicional e Popular.

Esta tutela instituía instrumentos que protegessem epreservassem as manifestações populares que tivessem característicacultural. Quase quinze anos após a vigência da recomendação arespeito da proteção à cultura tradicional e popular, poucos são ospaíses ocidentais que instituíram políticas e instrumentos efetivospara a salvaguarda do patrimônio intangível.

A França surge como um desses países, que, repetindo aexperiência dos países orientais e a proposta da Unesco, instituiuuma política de incentivo aos “mestres de ofícios tradicionais”,estimulando-os a transmitirem suas vivências e saberes aos que irãosucedê-los.12

Como a França, que se destaca, o Brasil também muito evoluiuno campo do patrimônio imaterial, tanto que, por meio do Decreto

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por Meio da Memória Coletiva

12 Op. cit., p. 50.

3.551, de 4 de agosto de 2000, implantou o registro do patrimônioimaterial.

Desde então, valorizou-se a cultura imaterial, em contraposição àcultura materializada pelos bens de pedra e cal, tais como “igrejas, fortes,pontes, chafarizes, prédios e conjuntos urbanos representativos deestilos arquitetônicos específicos”.13 Ao mesmo tempo, diga-se que foiretomado um tema destacado por Mário de Andrade, representado pelavalorização do patrimônio cultural imaterial.

O fato, pode-se dizer recente, da edição do Decreto n.º 3.551, de4 de agosto de 2000, que instituiu o registro de bens culturais denatureza imaterial, realça o raciocínio que motivou a produção destetrabalho. Enfatizou-se, desde o começo, a proteção que a memóriarecebeu a partir do momento em que foi constitucionalizado opatrimônio cultural, tanto com a apresentação material quantoimaterial.

Agora, reforçado o valor do patrimônio imaterial , está ratificadaa proposição da importância das lembranças que os bens sugerem,que de tão necessárias e grandiosas resultam em ser – aslembranças, ou memórias, como se queira designar, – asdestinatárias da proteção constitucional, ao lado do próprio bemcultural tutelado.

Se não houver a lenda, o imaginário popular empobrecerá pelafalta de registros da criação do sobrenatural. A proteção é dada ànarrativa para que a memória não perca a fantasia que uma históriaestimula. Por isso mesmo, memória e patrimônio cultural estãojuntos, lado a lado.

8. CONCLUSÃO

Como tem sido realçado, a tutela do patrimônio cultural e a suaconstitucionalização são proteções diretas à memória social. Por isso, areferência feita de que a memória coletiva estaria constitucionalizada,como de fato está. O patrimônio, seja material ou imaterial, é um veículoque estimula a recordação, que traz lembranças.

Esta é a função maior de todo o bem culturalmente identificado:não permitir que seja esquecida a lembrança produzida por aquelacoisa. São os semióforos, que não estão avaliados pela materialidadecom que se apresentam, mas pelo simbolismo que contêm e pela

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13 ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio:ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 11.

evocação que suscitam. A bandeira de um país é um semióforo, pelarepresentação que traz daquela nação; um crucifixo, do mesmomodo, pela fé que pode suscitar ou até por uma história religiosa quepode lembrar e assim sucessivamente temos incontáveis objetos quepovoam lembranças e sugerem reverências, em preito à lembrançaque traduzem.

Tudo isso é cultural. É a sociedade que escolhe os seussemióforos e a lei promove a proteção deles, para resguardar que aslembranças sugestionadas venham a desaparecer, deixando aquelegrupo social desprovido de memória.

Este é certamente o maior valor do patrimônio culturalbrasileiro, porquanto na medida em que se preservam os bensmateriais e são resguardados do extravio os imateriais, mantém-se namemória as recordações de tantos acontecimentos significativos paraa nacionalidade, sejam eles populares ou eruditos, clássicos ouusuais. Por isso que o constituinte de 1988 atualizou o conceito depatrimônio cultural e constitucionalizou a importância da memóriacoletiva, como um direito social influente no exercício da cidadania.

REFERÊNCIAS

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CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Memória e reflexividade na cultura ocidental. In: ABREU,Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro:DP&A, 2003.

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SANT’ANNA, Márcia. A face imperial do patrimônio cultural: os novos instrumentos dereconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória epatrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 7.ª ed. rev. e ampl. deacordo com a nova Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. 2.ª ed. PortoAlegre: UE/Porto Alegre, 1999.

317O Resguardo do Patrimônio Cultural

por Meio da Memória Coletiva

– PARTE 04 –

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO SEMESTRE (RESUMOS)

INSTITUTO DO TOMBAMENTO NA PROTEÇÃO DO BEM CULTURALRobério dos Santos Pereira Braga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .321

SOBERANIA NA AMAZÔNIA LEGAL SOB O ENFOQUE DA DOUTRINA JURÍDICAAMBIENTAL BRASILEIRARaimundo Pereira Pontes Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .323

RESPONSABILIDADE OBJETIVA NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURALPaulo Fernando de Brito Feitoza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .325

“O Instituto do Tombamento naProteção do Bem Cultural”

Mestrando: Robério dos Santos Pereira Braga

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Cristiane Derani (Orientadora)Prof. Dr. David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha-Espanha)Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas (UEA)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO

Oestudo sobre o patrimônio cultural especialmenteprotegido nos centros urbanos objetiva rever as

implicações com o direito de propriedade, as relações de vizinhança eas repercussões para o Poder Público e o proprietário privado. Cuida-se do direito de propriedade, sua evolução histórica e a relação como bem cultural, bem como do que se constituiu em direito devizinhança, da propriedade urbana e a função social que lhe éprópria, do uso nocivo e suas repercussões na vizinhança comum enaquela em que se insira o bem protegido e do papel que o Estudo deImpacto de Vizinhança pode representar na prevenção de questões demeio ambiente urbano. Estudando o bem como propriedadeindividual e social e de caráter ambiental, ficou evidenciado que obem cultural se insere no rol dos bens ambientais. A descrição dosprocessos de preservação e de tombamento, a indicação dos meios desua efetivação e controle, as restrições gerais decorrentes e as quesão específicas do tombamento, assinalam que o bem tombadocomporta proteção especial inclusive do planejamento com avaloração que lhe foi conferida pelo Estatuto da Cidade.

O estudo centrou-se nas imposições constitucionais e legais,mas considerou as resoluções de cunho internacional, recomen-

321O Instituto do Tombamento na Proteção do Bem Cultural

dações técnicas e de política cultural dos fóruns de nações e de seusorganismos científicos e sociais, de maneira recorrente no apoio aosconceitos da doutrina expedida. Considerou que o bem protegido seinsere também nas cidades e que estas, conforme a evoluçãoassinalada, se configuram sem pré-ordenamento espacial, sendoobjetivo da contemporaneidade que passem a cumprir função social,de bem-estar social, inclusive nos centros ou sítios antigos nos quaiso uso do bem tombado pode representar papel preponderante navalorização urbana e expressão da cultura das populações.

322 Robério dos Santos Pereira Braga

“Soberania na Amazônia Legalsob o enfoque da Doutrina

Jurídica Ambiental Brasileira”

Mestrando: Raimundo Pereira Pontes Filho

Banca Examinadora:Prof. Dr. José Augusto Fontoura Costa (Orientador)Profa. Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM)Prof. Dr. David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha-Espanha)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO:

Adissertação trata do princípio da SoberaniaNacional na Amazônia Legal, sob o enfoque da

doutrina jurídica ambiental brasileira, considerando o contextocontemporâneo de globalização do capitalismo neoliberal, dacrescente escassez dos recursos naturais do planeta e daspeculiaridades ambientais da Amazônia Legal, que a tornam alvodireto de interesses e pressões, oriundas geralmente de Estados maisinfluentes junto às forças hegemônicas internacionais, constituem-sequase sempre em manifestações questionadoras da soberanianacional brasileira sobre a referida região, inclusive sob a forma depropostas de constituição de um ordenamento jurídico mundial, quealcançaria os diversos ramos de direito, sobrepondo-se aosordenamentos normativos internos e, portanto, desconstituindo aprimazia da soberania do direito nacional em favor de um direitoglobal. Analisou-se que esse movimento tendente à globalizaçãojurídica quando não ignora os efeitos sobre certos valoresconsagrados como direitos no Ocidente, considerados conquistasirrenunciáveis, tais como os direitos humanos e sociais, ademocracia, o respeito à diversidade étnica e à pluralidade cultural,

323Soberania na Amazônia Legal sob o enfoque da Doutrina Jurídica Ambiental Brasileira

não sabe como lhes dar garantias ou evitar que os mesmos sejameliminados. Conclui-se, enfim, que essa orientação para umaglobalização jurídica ambiental pátria, que adota como fundamentobásico, em suas diversas vertentes do Direito Ambiental, desde asque o entendem como público às que o compreendem o difuso, aprimazia do princípio da soberania nacional sobre os recursos eespaços do território brasileiro, nele incluído a Amazônia Legal.

324 Raimundo Pereira Pontes Filho

“Responsabilidade Objetiva naProteção Do Patrimônio Cultural”

Mestrando: Paulo Fernando de Britto Feitoza

Banca Examinadora:Profa. Dra. Cristiane Derani (Orientadora)Prof. Dr. José dos Santos Pereira Braga (UFAM)Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas (UEA)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO

Opatrimônio ambiental cultural, outrora, jádependeu do tombamento como exclusiva forma

de proteção. No entanto, pela Carta vigente e nos termos do § 1.o doArt. 216, outras formas de tutela existem. Mas, verdadeiramente, oproblema a ser enfrentado é impor a responsabilidade objetiva aquem degrada o patrimônio cultural ou se omite da sua preservação,seja ente físico ou jurídico, público ou privado.

Diariamente, notícias são veiculadas informando o estado dedeterioração de um bem cultural, público ou privado. Mesmo assim,e apesar de serem seguidas as denúncias de descaso com opatrimônio cultural, poucas medidas judiciais são adotadas.Continua-se, neste particular, a justificar a ausência de tombamentoou mesmo silenciar, enquanto o bem se degrada, sem que ocorra umaefetiva providência para salvaguardar o acervo.

Desse modo, a aplicação da responsabilidade objetiva, com oprático resultado de obrigar o proprietário do bem ao seu devido zelo,apresenta-se plausível, embora seja pouco difundida, para pôr cobroao descaso generalizado com o patrimônio cultural brasileiro.

Com esta consciência, o meio ambiente cultural, devido àresponsabilidade que todos devem ter por ele, merecerá a devida

325Responsabilidade Objetiva na Proteção o Patrimônio Cultural

atenção na dissertação elaborada. Para o fim determinado, o textoprincipia com uma análise da memória (individual e coletiva), seguidade um estudo particularizado do patrimônio cultural. Depois, sãoabordados o Direito, a sociedade e o Estado, porquanto representamelementos culturais.

Na segunda parte, trata-se da proteção jurídica do patrimôniocultural, oportunidade em que se discorre sobre o percurso que opatrimônio histórico trilhou até receber a devida proteção estatal. Domesmo modo, faz-se uma retrospectiva da responsabilidade civil, cominício na Antigüidade romana e o seu desenvolvimento até diasatuais.

Na terceira parte, mostra-se a responsabilidade de todos –Estado e sociedade – na proteção do patrimônio cultural, bem comoo aprimoramento desta mesma proteção com a aplicação daresponsabilidade objetiva.

326 Paulo Fernando de Brito Feitoza

Esta obra foi composta emManaus pela KintawDesign, emBookman Old Style 10/14 eimpressa em outubro de 2004,pela Grafisa.