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GESTÃO E TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA

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GESTÃO E TRATAMENTO DA INFORMAÇÃONA SOCIEDADE TECNOLÓGICA

OTHON JAMBEIRO

Diretor do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia

a sociedade global a moeda forte é a informaçãodisponibilizada de forma universalmente aces-sível, just in time. As mudanças daí decorrentes

terão enorme impacto nos modos de aprender e fazer doser humano. A revolução da informação poderá modifi-car de forma permanente a educação, o trabalho, o gover-no, os serviços públicos, o lazer, as formas de organizar asociedade e, em última análise, a própria definição e en-tendimento do ser humano. A nova sociedade caminha paraa multidisciplinaridade, flexibilidade operacional, velo-cidade, precisão e pontualidade da informação. A huma-nidade está entrando na era da socialização da informa-ção e da democratização de seu acesso.

Na base tecnológica das mudanças tem estado um in-tenso desenvolvimento científico e tecnológico que, des-de os anos 70, vem apontando fortemente para a conver-gência entre a eletrônica, a informática e as comunicações.Como conseqüência lógica da expansão internacional docapitalismo, esses setores industriais e de serviços foramenvolvidos no processo geral de conglomeração e inter-nacionalização das empresas e de globalização dos mer-cados. Privatização e liberalização tornaram-se tendên-cias aparentemente incontroláveis em todo o mundo. Emconseqüência, a economia política do setor da informa-ção e das comunicações passou a sofrer dramáticas mu-danças, particularmente no que se refere à composição docapital e controle das empresas. A re-regulamentação daprestação de serviços de informação e comunicações pas-sou a amplificar e expandir a lógica mercantil na área e aexcluir normas e controles estatais e sociais que pare-ciam consolidados.

O conteúdo dos serviços de comunicações, isto é, ainformação – aqui compreendido como dados, notícias,literatura, imagens, sons – começou a ser tratado de ma-

neira tecnológica e economicamente igual. Não importaa natureza da informação, a tecnologia necessária paratransformá-la, editá-la, transportá-la ou armazená-la é amesma, embora em certa medida persistam métodos equalificações diferenciados para os processos de concep-ção e produção de serviços e produtos. Serviços e produ-tos estes que passaram a submeter-se aos processos deapropriação típicos das estruturas econômico-financeirasda sociedade.

No que se refere às práticas profissionais, novas fun-ções surgiram e outras continuam surgindo, ligadas à in-tercessão de diferentes áreas do conhecimento. Entre es-tas práticas novas estão: monitoramento tecnológico;engenharia do conhecimento; documentação técnica paracertificações de qualidade; navegação dentro de recursoseletrônicos; participação e montagem de hipertextos eprogramas inteligentes, editoração eletrônica; gerencia-mento e administração de múltiplas áreas de informaçãoe comunicações.

A tendência no campo da informação indica o adven-to de grandes bancos de dados interligados em redes na-cionais e internacionais, em associação com seletivosserviços personalizados, voltados para usuários de inte-resses específicos. Isto está determinando o surgimentode um novo profissional – o gestor de recursos informa-cionais – com o perfil de estrategista, com capacidade decompreender, analisar, criticar, captar e interpretar a rea-lidade, em função do conhecimento disponível em supor-tes diversos, inclusive virtuais, e apresentado sob a for-ma de eventos, notícias, idéias, debates, conferências,documentos ou o que seja.

A essência do trabalho deste profissional, não importao título dado a ele, deve, portanto, ser a organização e adisponibilização do conhecimento e não apenas a orga-

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nização de dados ou informações. Por isso ele precisasaber como localizar, captar, selecionar, organizar, transformare disseminar, pelos meios disponíveis, no tempo certo, oconhecimento desejado. Em outras palavras, ele deve sa-ber o que se quer, como e quando, de acordo com o inte-resse da instituição em que trabalhe, suas metas, objeti-vos e contexto no qual está envolvida, provendo infor-mações relevantes de acordo com suas demandas.

Este texto tenta situar as redefinições de práticas pro-fissionais no âmbito da informação, por força da conver-gência tecnológica que se verifica nos campos da infor-mática, eletrônica e comunicações. Convergência que sedá num contexto condicionado por: expansão do pensa-mento liberal e da economia de mercado global; aumentovertiginoso da necessidade de informações e conhecimentoespecífico nas diversas áreas do saber e da produção; de-senvolvimento incessante e convergente das tecnologiasdas áreas de comunicações, eletrônica e informática; econglomeração de corporações industriais/comerciaisnacionais e multinacionais do setor de serviços de comu-nicações e informação.

INFORMAÇÃO COMORECURSO ESTRATÉGICO

É largamente aceito que a futura sociedade da infor-mação tende a ser caracterizada por enorme diversidade– e maior número – de oportunidades individuais. As pes-soas terão crescentemente aumentada a possibilidade depoder controlar e modelar suas vidas. Na verdade, a pres-suposição mais comum entre os que acreditam que asnovas tecnologias de informação e de comunicações têmalto potencial de transformação da sociedade mundial, vaibem mais além. Afirma-se que a implementação das es-tratégias nacionais e multinacionais em curso levarão aum modelo de sociedade composta de indivíduos gastan-do a maior porção de seu tempo em frente a um terminalde computador, pelo qual ouvem música, vêem TV, na-vegam na Internet, comunicam-se com quem jamais vi-ram, obtêm dados sobre qualquer coisa que lhes interes-se. Esta é a mais difundida visão de futuro da humanidade.

O conceito de sociedade mundial não anula, contudo,a existência de sociedades particulares, estados-naçõescom cultura, tradições e etnia próprias. Pelo contrário,defende-se a crença de que haverá tantas sociedades dainformação quantas sejam as sociedades. Isto porque cadasociedade quererá e deverá usar as novas tecnologias eoportunidades de serviços para suas específicas necessi-dades prioritárias, e assim construir seu futuro. A cons-trução de uma abrangente sociedade mundial da informa-ção implicará a expansão das oportunidades de cadasociedade particular para realçar sua distinção.

Tudo isto dependerá de uma enorme infra-estruturamontada no âmbito mundial, sobre plataformas nacionais,integradas ou não, econômica e/ou culturalmente, emmacrorregiões. Esta infra-estrutura tem pelo menos qua-tro componentes fundamentais:- sistema de telecomunicações, que está passando poralterações estruturais em todo o mundo, exatamente emfunção da sua importância estratégica para o desenvolvi-mento da humanidade. Somente um sistema de telecomu-nicações com avançadas possibilidades interativas pode-rá permitir a construção de uma worldwide informationsuperhighway, necessária e mesmo vital para a consoli-dação não só de um mercado internacional, mas ao mes-mo tempo de uma sociedade civil. Não importa a nature-za do produto, se material, se virtual, se político, seeconômico, se ideológico, se científico, se literário, tudotende a circular, incontrolada e incontrolavelmente, poresta via universal de informação;

- sistema de produção, classificação, catalogação, inde-xação, disseminação, análise e seleção da informação,constituído de recursos humanos plenamente capacitadosa estas funções e profundamente inseridos no domínio dastecnologias de informação e telecomunicações. Normas,rotinas, manuais – todo o conhecimento hoje constitutivoda chamada Ciência da Informação – terão que ter seuspadrões renegociados em âmbito mundial, de tal formaque a indexação, a classificação, a catalogação, por exem-plo, obedeçam a uma linguagem e a um método univer-sal;

- sistema de produção de hardwares e softwares, possi-bilitadores do funcionamento integrado da rede mundialde informações. Este sistema tem sido até agora – e deve-rá continuar a sê-lo – o grande propulsor do desenvolvi-mento de novas tecnologias aplicadas à produção e dis-seminação de informação e às telecomunicações;

- finalmente, políticas de governo e das indústrias, arti-culadas nacional e internacionalmente. Na atualidade –momento em que damos os primeiros passos rumo à so-ciedade da informação e das comunicações – estas políti-cas parecem ainda, por um lado, dispersas e, por outro,guiadas pelos tradicionais vícios do imperialismo e docolonialismo. Porém, o que se propõe é que passem a vi-sar a evolução das sociedades da informação por um ca-minho em que o resultado alcançado reflita as circuns-tâncias, prioridades e valores de cada sociedade, dentrode um quadro de cooperação e compatibilidade interna-cionais.

A visão estratégica da indústria indica que, emboraserviços de entretenimento devam se manter e mesmo seexpandir como importantes mercados no próximo sécu-lo, os maiores benefícios para as sociedades deverão advir

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da aplicação das novas tecnologias na economia, o quedeverá transformar os tradicionais métodos de operar gran-des e pequenos negócios, agências de governo, organiza-ções de educação e saúde, possibilitando aos cidadãosobterem serviços mais eficientes e eficazes. O começodisto já se deu em alguns setores da economia, como osbancos, por exemplo; e a largos passos está se iniciandona educação não-formal, principalmente através de cur-sos e atividades de treinamento a distância ou computerassisted.

A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO EDAS COMUNICAÇÕES

Qualquer análise dos sistemas contemporâneos de co-municações e informação requer que estes sejam coloca-dos dentro de um contexto determinado principalmentepor: crescente transformação de mercados locais paranacionais e internacionais; convergência de comunicações,informática e eletrônica; e expansão de políticas de re-regulamentação e privatização. Além disso, a intensifica-ção da ideologia de mercado aplicada tanto aos bens cul-turais quanto aos econômicos, aliada à inovação em cabosde fibra ótica, tecnologias digitais e de satélite, tem dadosuporte à internacionalização dos sistemas de Informaçãoe Comunicações e de sua propriedade.

O conseqüente declínio da soberania nacional, além deforçar um fundamental repensamento da clássica teoriado direito de informação – que vê os sistemas de produ-ção e difusão somente dentro da estrutura de estados-na-ções –, determina três posturas críticas:- leva a que se considere o poder das empresas de Comu-nicações e Informação organizadas globalmente;

- relembra a importância do crescente impacto dos acor-dos legais e políticos supranacionais;

- revela o lento e delicado desenvolvimento de uma so-ciedade civil internacional (Keane, 1991).

Globalizadas e conglomeradas, as empresas de comu-nicações, informática e eletrônica – tanto as produtorasde bens materiais quanto as de serviços – têm a cada diamais forte presença nas transações comerciais e financei-ras nacionais e internacionais. Independentemente de leise normas governamentais, ou mesmo estimuladas por eles,um mercado mundial de empresas destes convergentessetores industriais foi estabelecido e a propriedade con-comitante de variadas e numerosas delas, independen-temente da base original de engenharia e insumos de cadaqual, tornou-se uma comum e normal situação.

O ambiente competitivo tem provocado muitos reali-nhamentos organizacionais, com redes de TV aberta in-vestindo em TV a cabo e vice-versa; redes de TV a cabo

investindo em produtoras de programas; estúdios com-prando estações de rádio e TV; empresas produtoras dehardware e software investindo em serviços de telecomu-nicações e vice-versa; provedores de serviços de infor-mação associando-se a empresas de rádio e TV, editorase mídia impressa; e também grandes e multifacetadoscomplexos de informação e entretenimento fundindo-seentre si. Como uma conseqüência das fusões e aliançasempresariais no setor de comunicações, informação e ele-trônica, ocorridas nas últimas três décadas, muitas com-panhias estão agora ligadas a setores nucleares do capitalindustrial e financeiro. Uma ligação que coloca dois gra-ves problemas: primeiro porque ela tem aumentado opoder de uma não representativa elite capitalista no con-trole da distribuição de informações e idéias em uma es-cala sem precedentes na história da humanidade; e segundoporque seu crescimento tem sido acompanhado por umaerosão dos processos competitivos, os quais, anteriormen-te, numa limitada mas ainda assim importante maneira,tornavam as empresas de comunicações e informação re-lativamente transparentes (Curran, 1991).

Constata-se ainda que o desenvolvimento da Informáti-ca, das Comunicações e da Eletrônica está permitindo umaexplosão mundial na produção e circulação de informaçõesde toda natureza (dados, imagens, sons, notícias, mensagensprivadas, etc.) via cabo, satélite, ondas hertzianas e suportesmateriais como disquetes, discos óticos, videotapes, etc. Tudoisso mais a concepção e produção de evoluídos equipamen-tos multimídia têm aperfeiçoado e expandido as possibili-dades de o consumidor escolher, acessar e usar programas,serviços e informações. Prevê-se que, assim como os anos90 têm sido a década da internacionalização da indústria dastelecomunicações e das comunicações em rede, aumentan-do o uso do telefone e serviços a ele ligados, nos primeirosanos do terceiro milênio as indústrias da Informática, Co-municações e Eletrônica deverão se consolidar como os prin-cipais motores do desenvolvimento econômico, social e cul-tural.

Esta nova base tecnológica é considerada possibili-tadora e estimuladora da desmassificação das audiências,podendo levar a uma crescentemente diversificada pro-dução cultural, cujo público-alvo será não mais uma massainforme, mas sim numerosos e distintos fragmentos daaudiência geral. A tese que se projeta é a de que, sendotecnologicamente possível – embora não ainda economi-camente, em função da evidente desigualdade entre po-vos, países e classes sociais – a cada cidadão solicitar in-formação e entretenimento diretamente de um cardápiopreviamente conhecido, poderemos evoluir para uma talvariedade de multiestratificados produtos simbólicos queos mídia perderão sua original natureza de meios de mas-sa. Agindo ao mesmo tempo como parceira e adversária dos

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conglomerados de Comunicação, a nova base tecnológi-ca poderá, portanto, permitir aos vários segmentos daaudiência geral que achem um lugar mais ativo e influen-te na produção e consumo de bens culturais e na circula-ção da informação.

O fenômeno da conglomeração nos setores de Infor-mática, Eletrônica e Comunicações, impulsionado peladinâmica e racionalidade da economia capitalista inter-nacional, tem levado também as corporações a inter-conectarem tecnologias, cujos limites de convergência nãopodem ser ainda previstos. Esta é uma das razões pelasquais a estrutura das indústrias de Comunicações, Eletrô-nica e Informação – e seu status legal e institucional naspolíticas públicas – tem estado em acelerado processo demudança.

Esta interconexão vem eliminando os limites entre osprocessos e os produtos daquelas três indústrias, tornando-os solidários em termos operacionais, e erodindo as tradi-cionais relações que mantinham entre si e com seus usuá-rios. O telefone, por exemplo, que era usado apenas paracomunicação direta entre duas pessoas, há mais de duas dé-cadas vem sendo combinado com televisão e radiodifusãoem geral, para fazer transmissões ao vivo, e mais recente-mente com computadores, para fazer transferências de da-dos, informações e conhecimento. Ele pode também ser usadoem reuniões e conferências eletrônicas e na distribuição do-méstica e simultânea de programas de televisão.

A tecnologia digital torna possível o uso de uma lin-guagem comum, através da qual os diversos produtos sim-bólicos libertam-se de seus tradicionais meios de trans-missão. Um filme, uma chamada telefônica, uma carta,um artigo de revista podem ser transformados em dígitose distribuídos por cabo ou satélite ou ainda por via de ummeio físico de gravação, como uma fita magnética ou umdisco. Além disso, com a digitalização, o conteúdo tor-na-se totalmente plástico, isto é, qualquer texto, som, ouimagem pode ser editado, mudando de qualquer coisa paraqualquer coisa.

A convergência tecnológica cancela, com efeito, a va-lidade de fronteiras entre diferentes tipos de serviços deinformação e suprime as linhas divisórias – até agora con-sideradas naturais – entre informação privada e de mas-sa, entre meios baseados em som e em vídeo, entre textoe vídeo, entre as imagens baseadas em emulsão e as ele-trônicas, e mesmo a fronteira entre livro e tela (Smith,1991). Uma das maiores conseqüências disso é a obser-vável tendência de integração entre diversos aspectos daspolíticas públicas para Informática, Eletrônica e Teleco-municações e alguns aspectos das políticas relativas àeducação e à cultura. A imprensa, a indústria gráfica, orádio, a televisão, a biblioteca, a sala de aula, o computa-dor, o scanner, o videoprojetor, a Internet, o fax, o CD

estão ficando mais interconectados e interdependentes, detal forma que uma política de governo para um deles podeter significativas implicações para os outros.

O outro aspecto da equação é a crescente “desu-manização” dos ambientes de trabalho, particularmentecruel na sua tendência de produzir cada vez mais, utili-zando cada vez menos recursos humanos. Nos EstadosUnidos, por exemplo, as 500 maiores companhias indus-triais reduziram seus quadros funcionais em 3,4 milhõesde empregados durante os anos 80 (Ball, 1993). Segundodeclaração de Michel Candessus, na abertura da 48a As-sembléia Anual do FMI, em outubro de 1993, em Wa-shington, os países industrializados tinham então 32 mi-lhões de desempregados, três milhões a mais do que em1983 (Jornal da Ciência Hoje, 02/10/93).

Na chamada “Sociedade da Informação”, ou “Socie-dade Tecnológica”, parece estar ocorrendo um fenômenosimilar àquele verificado durante a revolução industrial:a redução de energia humana necessária para manipularos materiais usados na produção de bens e serviços. Tam-bém hoje o trabalho humano está sendo removido de cres-cente número de tarefas que podem ser feitas por máqui-nas, por preço mais baixo e de maneira mais rápida eacurada. Agora, entretanto, o problema é muito mais sé-rio porque computadores podem substituir os seres hu-manos mesmo no que se refere à manipulação e ao con-trole de outras máquinas complexas.

A GESTÃO DA INFORMAÇÃO EDAS COMUNICAÇÕES

A expansão dos suportes técnicos na área da Informa-ção, Eletrônica e Comunicações tem levado ao apareci-mento de formas organizacionais distintas e ao estabele-cimento de novas relações entre os indivíduos, estejameles em funções laborais ou simplesmente no exercícioda cidadania. A tendência dos setores de Informação, Ele-trônica e Comunicações indica o advento de grandes ban-cos de dados interligados em redes nacionais, em asso-ciação a seletivos serviços personalizados de informaçãovoltados para usuários de interesses específicos. Em con-seqüência, as mais recentes tecnologias, que permitem oacesso quase indiscriminado ao uso da informática, iso-ladamente ou associado às telecomunicações, dentro e foradas instituições, impõem a necessidade de profissionaisaptos a usarem estas possibilidades e a geri-las para ou-tros indivíduos ou organizações. No entanto, é difícil hojeidentificar, dentre os atualmente graduados pelas institui-ções de ensino superior, indivíduos com o perfil profis-sional adequado à gestão de processos e produtos de In-formação, Eletrônica e Comunicações, numa organizaçãode qualquer natureza.

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Situados entre as tradicionais profissões de bibliote-cário, arquivista, programador e analista, os novos pro-fissionais – que podem ser chamados de informatas – de-verão circular num campo multidisplinar e multipro-fissional em que se encontram hoje, mais bem estabeleci-dos, principalmente bibliotecários, arquivistas, adminis-tradores, engenheiros e uma grande massa de indivíduoscom ou sem formação superior, que desenvolveram ouprocuram desenvolver a capacidade de criar, produzir egerir produtos e processos de Informação, Eletrônica eComunicações.

Estas pessoas ocuparam um espaço laboral momen-taneamente vazio, mas sob fulminante e ascendentepressão por parte de empresas e organizações gover-namentais e não-governamentais. A tecnologia evoluí-ra e abrira possibilidades amplas de prestação de no-vos serviços. Crescera a necessidade de captar, filtrar,tratar, recuperar, distribuir, disseminar informações detal forma que a gestão da informação passou a ser ati-vidade vital para qualquer organização da sociedade,nos âmbitos internacional, nacional e também no lo-cal. Entretanto, não havia indivíduos formalmente pre-parados para a execução dessas tarefas. Instigada e atraí-da pela força do mercado e também pelo fascíniotecnológico, considerável força de trabalho deslocou-separa o setor. Os indivíduos componentes dessa massamigrante passaram então a desempenhar importantepapel social, econômico e cultural.

A sociedade e o mercado exigem hoje, contudo, pro-fissionais adequadamente preparados, com a necessáriachancela do sistema de ensino superior brasileiro, e ca-pazes de gerir, tratar e disseminar a informação, utilizan-do plena e convergentemente as conquistas tecnológicasdo ser humano nos setores de informática, comunicaçõese eletrônica. Exige-se, portanto, a formação de informatas,isto é, profissionais capazes de:- monitorar informações sobre o ambiente social, cultu-ral, político, econômico e de mercado;

- exercitar visão crítica sobre a produção, distribuição econsumo de informação, porque somente com esta visãopoderão produzir, selecionar, organizar e disseminar ade-quada e eficientemente a informação;

- analisar o conteúdo e dialogar com a fonte ou produtore o consumidor sobre a qualidade da informação obtida eseu adequado tratamento;

- dominar dois níveis de linguagem: a terminologia dafonte ou produtor e a linguagem para comunicação como público;

- combinar competência de gerenciamento e tratamentode informações com o domínio de uso das tecnologias deComunicações e Eletrônica;

- valorizar o conhecimento sobre o ambiente em que vi-vem, buscando identificar possíveis facilidades e dificul-dades ao exercício de sua missão;

- enfatizar o uso da informação como uma vantagemcompetitiva para o indivíduo e as organizações na socie-dade;

- sinalizar necessidades de mudança para a sociedade eparticularmente para a comunidade social ou organiza-cional em que vivem;

- reconhecer o valor econômico e político da informa-ção.

Neste sentido, o informata terá de ser um estrategista,com capacidade de captação, compreensão, análise críti-ca e interpretação da realidade, dentro de uma perspecti-va histórica, apresente-se ela sob a forma de eventos,notícias, idéias, dados, imagens, sons, mensagens ou do-cumentos de qualquer tipo. Daí porque se deve pretenderque estes novos profissionais sejam indivíduos inteligen-tes, inovadores, flexíveis e criativos.

Nas organizações, a presença de profissionais com operfil aqui traçado deverá evitar os gastos excessivos ori-ginados da duplicação de dados e do fracionamento dosserviços de informação, conflitos de poder e desin-formação. Como se sabe, a informação certa, no momen-to certo, evita erros e otimiza o uso dos recursos disponí-veis, possibilitando economia, eficiência, eficácia e me-lhoria da produtividade. A eles caberá dar suporte aomonitoramento de informações sobre o ambiente social,cultural, político, econômico e de mercado. Deverão igual-mente socializar a informação, quebrando a cadeia depoder dentro sociedade, da comunidade ou da organiza-ção, transformando as informações em impulsos de po-der e melhorando seu nível de tratamento e gerenciamen-to.

Estes novos profissionais devem também ser capazesde exercitar visão crítica sobre a produção, distribuição econsumo de informação, porque somente com esta visãoeles poderão produzir, selecionar, organizar e disseminaradequada e eficientemente a informação. A regra básicade seu exercício profissional será a consideração de queo benefício da informação deve ser maior que seu custo.Isto é, deverão ser capazes de analisar o conteúdo e dia-logar com o especialista sobre a qualidade da informaçãoobtida e seu adequado tratamento. O informata deve, alémdisso, dominar a terminologia interna do especialista e alinguagem para comunicação com o público não especia-lizado, bem como ser capaz de combinar a gestão de in-formações com o domínio de uso das tecnologias.

O informata manejará também informações que nemsempre estão registradas, necessitando localizar, captar,selecionar, organizar, transformar e disponibilizar pelos

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meios próprios, no tempo certo, a informação desejada.Ou, em outras palavras, ele deverá saber o que cada umquer, como e quando, e também o que é relevante, de acor-do com a estrutura da organização em que trabalhe, suasmetas, objetivos, contexto no qual está envolvida e pú-blico a que serve. Deverá igualmente estar diretamenteenvolvido com o “ambiente informativo” e os recursosinformativos, dando-lhes coesão e coerência. Sua princi-pal missão será transformar informação em conhecimen-to e ação.

A FORMAÇÃO DO INFORMATA

O Artigo 53 da Lei de Diretrizes e Bases e seu pará-grafo único asseguram a autonomia didático-científica dasUniversidades, transferindo para seus colegiados de en-sino e pesquisa decidir sobre: criação, expansão e extin-ção de cursos; ampliação e diminuição de vagas; elabo-ração de programas de cursos; programação das pesquisase das atividades de extensão; contratação e dispensa deprofessores; planos de carreira docente.

Extingue-se assim a necessidade de cumprir um currí-culo mínimo e uma carga horária rígida, o que proporcio-na às universidades dar início a um processo de reformu-lação de seus cursos de graduação, para melhor atendertanto às demandas do mercado quanto às aspirações indi-viduais de formação profissional.

Tal reformulação deve ser coerente com o desenvolvi-mento do conhecimento técnico e científico, com o pata-mar de aperfeiçoamento que cada universidade alcance acada etapa de seu plano estratégico, bem como com suasdiretrizes, planos gerais e programas de trabalho especí-ficos. O importante é que sejam ultrapassadas as normase conteúdos estabelecidos pelo antigo CFE e que se ouse,no exercício da autonomia didático-científica, quebrarparadigmas, tendo como norte o atendimento das deman-das da sociedade e do mercado e a missão maior de capa-citar o aluno para competir e inovar.

Além disso, levando em conta a notória convergência queexiste entre o perfil desejado para informata e o dos já exis-tentes profissionais da área da ciência da informação, infor-mática e comunicações, parece sensato pensar-se numa re-visão mais ampla, de caráter estrutural. É possível que umtronco comum de conhecimentos básicos na área de ciênciae tecnologias da informação e das comunicações possa le-var a um flexível e contemporâneo currículo. A segura for-mulação deste tronco comum permanente permitiria às uni-versidades extinguir e criar novas habilitações de acordo como desenvolvimento científico e tecnológico e as oscilaçõesdas demandas da sociedade e do mercado.

Neste sentido, poder-se-ia seguir alguns passos prepa-ratórios, tais como:

- definir o perfil desejável para informatas, levando emconta que deverá ser um profissional com habilidadesmultidisciplinares, com conhecimento e domínio da evo-lução tecnológica em Informática, Comunicações e Ele-trônica, com capacidade gerencial, motivação profissio-nal, criatividade, capacidade de se antecipar à demandado meio ambiente e de adaptar seu perfil a novas deman-das;

- refletir um programa filosófico/estratégico de tal for-ma que não se abandone totalmente o passado – tomadocomo provedor de processos e cultura pedagógicos his-tóricos do ensino nas áreas de Comunicações e Ciênciada Informação – e se vislumbre o futuro com diversidadede atividades/funções e ocupações para os profissionaisdas respectivas áreas;

- aperfeiçoar o sistema de ensino fazendo uso mais in-tensivo de recursos audiovisuais, práticas e atividadesextraclasse, com o acesso a redes e bases de dados não sóna biblioteca e em laboratório, mas também na própriasala de aula; isto significará também o convívio diário comtecnologias de Informática, Comunicações e Eletrônica,enquanto ferramentas para toda e qualquer área de atua-ção profissional, e preocupação e postura interdiscipli-nar, em que aportes teórico-metodológicos de áreas deinterface como Administração, Lingüística, ComunicaçãoSocial, Economia e Política concorrerão para o desenvol-vimento das atividades profissionais;

- revisar continuamente os currículos e programas, a fimde adaptá-los à realidade em transformação, eliminandodisciplinas e conteúdos desnecessários e incluindo novosconhecimentos; conceber o estágio como um espaço devivência profissional, em que o educando tem a oportu-nidade de aplicar os conteúdos veiculados pelo curso emsituações concretas;

- rever a estrutura curricular da graduação buscando prin-cipalmente: máxima integração entre a graduação, a pes-quisa, a extensão e a pós-graduação; estrutura curricularflexível, com pré-requisitos, carga horária e créditos re-duzidos, incorporando como carga horária as atividadesdesenvolvidas pelos alunos nos programas acadêmicosextraclasse, extensão e estágios não-curriculares; estimularo aluno ao cultivo da autonomia na busca do conhecimen-to; criação de um núcleo teórico básico, um núcleo queabranja os processos, considerando a contínua evoluçãotecnológica, e um núcleo humanístico e filosófico, parti-cularmente voltado para a ética, a cultura e a sociedadecontemporâneas.

Como estratégia de formulação e implantação do pro-jeto definitivo do curso, propõe-se a realização de:- painel reunindo executivos de organizações públicas eprivadas, incluindo tomadores de decisão;

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GESTÃO E TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA

- painel reunindo especialistas em informação, dentre osquais bibliotecários, museólogos, jornalistas, relaçõespúblicas, publicitários, produtores editoriais, profissionaisde marketing, analistas de sistemas, gerentes de centrosde análise de informação;

- entrevistas com gerentes intermediários e da alta admi-nistração de organizações públicas e privadas.

Em termos de conteúdo, poderiam ser propostos quatroblocos de conhecimento:

- teorias e metodologias da informação e das comunica-ções (compreendendo também elaboração e execução deprojetos de pesquisa, análise e avaliação de informações);

- informação, estado e sociedade (relação com a demo-cracia, políticas públicas, regulamentação da Informáti-ca e das Comunicações, Economia Política da Informa-ção e das Comunicações, Ética, História e Cultura);

- tecnologias de informação e das comunicações (evolu-ção tecnológica do setor, bancos de dados, redes compu-tacionais, infra-estrutura multimídia, processamento ecomunicação de textos, sons e imagens, tecnologias dearmazenamento de informação);

- informação e organização (planejamento e modelos desistemas de informação, modelos de gestão de recursosinformacionais e processos comunicacionais, informaçãoe planejamento estratégico, custo de informação, acom-panhamento e avaliação de projetos).

CONCLUSÃO

Os fenômenos contemporâneos da globalização, pri-vatização e liberalização estão assentados num desenvol-vimento científico e tecnológico vertiginoso. Uma dascaracterísticas deste desenvolvimento é a convergênciatecnológica na área da Informática, Comunicações e Ele-trônica. Esta convergência não é apenas tecnológica, mastambém de investimentos na concepção, produção e ven-da de produtos e serviços de informação e comunicação.As práticas profissionais estão atreladas a isto. A conver-gência de capitais e tecnologias necessita de operadores,criadores, produtores, gestores que não apenas dominemas tecnologias, mas sobretudo compreendam seu caráterconvergente e favoreçam seu uso pelo consumidor demodo também convergente. A convergência passou a ser,pois, além de um componente econômico e tecnológicono processo de produção, também um atributo e um con-dicionador das práticas profissionais no campo da Infor-mação e das Comunicações.

Esta configuração determina uma proximidade muitomaior do que a anteriormente existente entre as profis-sões que compõem este campo, porque elas cada vez mais

tendem a interagir. No momento é ainda nítida a linhadivisória entre os profissionais da Informação e os dachamada área de Comunicação Social. O profissional daInformação tem tido a missão de contribuir para a inte-gração do cidadão à sociedade, aumentando sua capaci-dade de desfrutar os benefícios da disseminação da infor-mação e de utilizá-la como recurso para seu desen-volvimento social, cultural e econômico. A missão doprofissional da Comunicação Social tem tido historica-mente componentes diferenciadores que variam da per-suasão ao desempenho do papel de consciência crítica dasociedade.

Contudo, há indicadores vindos do mercado e da so-ciedade no sentido de que podemos estar num percursode fusão de missões e práticas profissionais. É necessárioainda sistematizar a investigação para perceber e equa-cionar adequadamente os limites e possibilidades destaconvergência abrangente. Porém, isto não pode mais serretardado sob pena de permanecermos reféns das rígidasdelimitações do campo profissional que absorvemos his-toricamente e que têm sido a base não só das corporaçõesde trabalhadores e profissionais liberais, mas também doplanejamento de ensino das instituições de ensino supe-rior. Cabe à Universidade formar pessoas para trabalharna criação, tratamento, administração e distribuição dainformação, nos diversos formatos em que esta se apre-senta: texto, imagem, som e multimídia. No momento, istoparece dirigir-se para a formação do que aqui chamou-sede informata. Em dias que ainda virão, poderemos estarpressionados pela sociedade e pelo mercado para a for-mação de um novíssimo profissional resultante da fusãodo que, no futuro, poderá ser chamado de comunicata como certamente então já existente informata.

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COMUNICAÇÃO, MÍDIA E CULTURA

NORVAL BAITELLO JUNIOR

Diretor da Faculdade de Comunicação e Filosofia,Coordenador do Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia da PUC-SP

á pouco mais de 100 anos os limites da históriaabrangidos pela historiografia humana alcança-vam modestos períodos de poucos milhares de

nas uma visão transdisciplinar poderá enxergar o objetoplurifacetado que é o processo comunicativo do homem.E se concordamos que processos comunicativos são cons-truções de vínculos, então temos de dizer também que arede dos objetos com os quais nos comunicamos encon-tra-se em franca expansão, tal qual o universo. Expansãosignifica aqui não apenas espaço e tempo cada vez maio-res; significa também relações internas cada vez maisnumerosas. Há, portanto, um crescimento para fora e umcrescimento para dentro. Um vetor nos conduz ao infini-to e outro ao transfinito. A conseqüência mais imediata éque o instrumental de que a ciência dispunha para a in-vestigação dos processos comunicativos seguramente nãoconsegue mais dar conta da complexidade do objeto.Vejamos alguns aspectos desta complexidade, lembran-do sempre que a palavra “complexus” vem do latim e temtrês grandes grupos de significados: aperto, abraço; pele-ja, combate corpo a corpo; e amor, vínculo afetuoso (Fa-ria, 1967:216). O conceito pressupõe, em todos os seustrês significados, uma ação entre pelo menos dois sujei-tos, portanto, algum tipo de vinculação, o que é, sem dú-vida, instrumental apropriado para o campo de estudosda comunicação.

COMUNICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DOESPAÇO-TEMPO

Todo processo comunicativo tem suas raízes em umademarcação espacial chamada corpo. O que se denomina“comunicação” nada mais é que a ponte entre dois espa-ços distintos. A consciência deste espaço enquanto enti-dade autônoma inicia-se no momento do nascimento. Amudança de um espaço quente e aquoso para um espaçofrio, aéreo e hostil exige a manifestação explícita do novo

anos. Hoje o homem tenta lançar pontes (ainda que hipo-téticas) não apenas sobre a origem do universo, sobre ochamado big bang, mas também sobre as raízes remotasdos códigos da comunicação humana. Constata que a ca-pacidade comunicativa não é privilégio dos seres huma-nos; está presente e é bastante complexa em muitos ou-tros momentos da vida animal, nas aves, nos peixes, nosmamíferos, nos insetos e muitos outros. O homem procu-ra compreender a complexidade de sua comunicação apartir de uma reconstrução hipotética da evolução filo-genética de seus códigos. É como se o tempo de nossahistória se tivesse expandido também em um tipo de ex-plosão.

EXPLOSÃO DA INFORMAÇÃO

Os recortes sincrônicos de breves períodos da histórianão dão mais conta das necessidades cognitivas da atua-lidade. Expande-se o tempo que deve ser conhecido eexpande-se o espaço dos objetos que devemos levar emconta para o conhecimento de uma determinada área. Aampliação do espectro visível espelha o espantoso cresci-mento dos objetos com os quais o homem hoje, de algu-ma forma, tem de lidar, seja como objeto de sua investi-gação científica, seja como conhecimento que modificasua práxis. Com esse espectro cada vez mais amplo, ain-da em crescimento exponencial, pode-se dizer que nãoapenas houve e está havendo uma explosão informacio-nal na sociedade humana de nosso tempo, como tambémse pode dizer que a investigação da comunicação humanapassa por uma explosão similar, compreendendo que ape-

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ser, seja pelo choro, seja pelas outras linguagens de seucorpo: linguagens térmicas (a febre ou a hipotermia), lin-guagens olfativas (odores normais e anormais) ou lingua-gens visuais (arroxeamento ou amarelecimento da pele,da face, dos lábios, cor das fezes). O nascimento deveriaser definido como momento inaugural de toda comunica-ção social, conforme afirma Oliveira (1995). O momentoda criação de vínculos de linguagem entre o bebê e a mãeserá a matriz primeira da complexa comunicação social.Para o recém-nascido não há outro objeto senão seu pró-prio corpo. É o corpo que transmite suas mensagens, é arespiração, a temperatura, é a vibração das cordas vocaisque produz o choro que se transformará mais tarde emsons articulados. E talvez os seus primeiros e mais im-portantes sentidos receptores neste momento não sejamnem a visão, nem a audição ou o olfato, mas o tato e apropriocepção (Montagu, 1986). A partir de sua inteli-gência tátil e proprioceptiva, desenvolverá a consciênciade corpo e, conseqüentemente, seu primeiro meio de co-municação.

Assim, é de enorme relevância o conceito de “mídiaprimária”, formulado por Harry Pross em seu livroMedienforschung (Investigação da mídia). As investiga-ções da mídia primária, o corpo e suas incontáveis possi-bilidades de produção de linguagens têm sido relegadas aum segundo plano nas ciências da comunicação (mas nãona Psicologia, na Etologia Humana, na Antropologia). Ossons e a fala, os gestos com as mãos, com a cabeça, comos ombros, os movimentos do corpo, o andar, o sentar, adança, os odores e sua supressão, os rubores ou a palidez,a respiração ofegante ou presa, as rugas ou cicatrizes, osorriso, o riso, a gargalhada e o choro são linguagens dosmeios primários. Assim, afirma Pross: “toda comunica-ção humana começa na mídia primária, na qual os indiví-duos se encontram cara a cara, corporalmente e imediata-mente, e toda comunicação retorna para lá” (Pross,1972:128).

Em época de adoração das tecnologias da chamada“virtualidade”, nunca será demais relembrar esta verda-de, afirmada com pioneirismo pelo pensador alemão.Aquilo que Pross já dizia em 1972 (e que repete em seuSociedade do protesto de 1997) continua cada vez maisatual. A instância “corpo” é fundante para o processo co-municativo. É com ele que se conquista a vertical, a di-mensão do espaço que configura as codificações do po-der. É com ele que se conquista a dimensão da horizon-talidade e as relações solidárias de igualdade. É com o cor-po, gerando vínculos, que alguém se apropria de seu pró-prio espaço e de seu próprio tempo de vida, compartindo-oscom outros sujeitos. Mas é também aí, no estabelecimentode vínculos, materiais ou simbólicos, que inicia a apropria-ção do espaço e do tempo de vida de outros.

SISTEMAS BÁSICOS DE VINCULAÇÃO

As investigações dos chamados sistemas afetivos en-tre primatas superiores, dos quais nós humanos somosparte, nos trazem esclarecimentos essenciais a respei-to da natureza e da motivação dos vínculos primor-diais de seu sistema comunicativo. O biólogo H. F.Harlow (1972), em um famoso experimento a respeitodo conceito de amor materno entre chimpanzés, clas-sifica os cinco sistemas afetivos de base em: sistemaafetivo maternal; sistema de amor do filho pela mãe;sistema afetivo da mesma faixa etária; sistema afetivoheterossexual; e sistema paternal ou adulto. As inves-tigações de Harlow apontam para uma compreensãocomplexa dos vínculos afetivos (e comunicativos) pri-mordiais entre os primatas. Revelam como cada um dossistemas interfere no outro e como a sociabilidade deum indivíduo pode ser prejudicada por falhas ocorri-das em um dos sistemas básicos.

Também as descobertas da Etologia Humana e Com-parada têm constituído uma vertente importante das in-vestigações dos meios primários. As descobertas de Eibl-Eibesfeldt, em seu livro Amor e ódio (1993), oferecemsubsídios importantes para uma arqueologia da comuni-cação dos meios primários. O autor estuda os padrões eas propensões ou as dificuldades do homem para agre-gar-se em uma sociedade anônima complexa, sendo oriun-do de pequenos grupos individualizados. A necessidadede estabelecer vínculos amistosos com estranhos, domi-nando sua própria agressividade, termina por modificar osistema comunicativo do homem, levando-o a mediaçõessofisticadas de suas mensagens básicas de amor e ódio.Em seu El hombre preprogramado (1983), ele faz ummapeamento dos gestos básicos de vinculação presentesnas mais diversas culturas e povos, demonstrando o pa-pel importante da mídia primária na constituição dos vín-culos comunicativos.

Por fim, devem-se considerar ainda indispensáveispara a investigação das ciências da comunicação as fren-tes de trabalho, como aquela aberta pelo etólogo ho-landês Frans de Waal. Em seu último livro Goodnatured, de 1996, ele trata das origens dos conceitosde “certo” e “errado”, quer dizer, de um protoconceitode ética entre os chimpanzés. Em seu outro livroPeacemaking among primates, de 1989, investiga oscódigos da diplomacia, da preservação da paz e da ne-gociação de conflitos entre chimpanzés, bonobos ebabuínos, mostrando a sofisticação destas operações deprevenção e reparação de vínculos deteriorados.

Em resumo, a Etologia tem-nos ensinado que o espec-tro dos processos comunicativos e suas raízes são muitomais amplos e profundos do que se acreditava. E que a

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COMUNICAÇÃO, MÍDIA E CULTURA

comunicação humana possui áreas de intersecção quepoderão ser mais bem compreendidas se conhecemos acomunicação de outras espécies. As ciências da comuni-cação não terão nada a perder quando deixarem de ladoseu antropocentrismo e passarem a considerar, estudar ecompreender outros sistemas comunicativos não huma-nos.

COMPLEXIFICAÇÃO DA MÍDIA,DO CORPO À VIRTUALIDADE:A ESCRITA E A MÍDIA SECUNDÁRIA

A utilização de ferramentas para alcançar alimentos,comprovadamente usadas por outras espécies animais, édenominada pelos antropólogos “cultura” (Bonner, 1982).Há consenso quanto à existência de uma “cultura animal”,em que habilidades aprendidas são transmitidas de gera-ção em geração. O que está em jogo é a durabilidade deuma informação. Consegue-se uma certa permanência dainformação no tempo por meio da aprendizagem e datransmissão social. A dimensão do tempo já não é puroatributo genético, mas passa a ser atributo social (talvezseja mais apropriada a expressão “transmissão social detécnicas” ao invés de “cultura animal”).

Há nisso, porém, uma chave para a complexificaçãodo sistema comunicativo humano: o uso de ferramentascomunicativas com a finalidade de amplificar suas men-sagens no tempo, no espaço ou na intensidade (podería-mos dizer, no impacto receptivo). Em princípio, cores epinturas corporais, máscaras e vestimentas festivas, ador-nos e outros objetos com a função de acrescentar ao cor-po uma informação são um prolongamento da mídia pri-mária e, assim, inauguram a mídia secundária, o quesignifica, segundo Pross, a presença de um aparato me-diador entre receptor e emissor. A grande importância damídia secundária é que ela possibilitou a ampliação decampos comunicativos (espaços, tempos, intensidades).O uso de materiais, ferramentas e instrumentos os maisdiversos – com a intenção de criar mensagens – permitiuo surgimento das inscrições e pinturas rupestres e, final-mente, abriu as portas para a escrita e seus desenvolvi-mentos posteriores, o livro, o jornal, os cartazes, etc. Seráconveniente lembrar que as inscrições e a escrita signifi-caram a vitória simbólica sobre o tempo e sua pior quali-dade, a perda gradativa do corpo e seu espaço. A escritase perpetua e com isto vence a morte (Baitello, 1997:66).Se não vence a morte do corpo, preserva sua memória. É,portanto, com a escrita, com a mídia secundária (aquelaque requer o uso de um instrumental de amplificação doemissor) que se inicia a era da virtualidade. A escrita é apresença virtual de um corpo e de uma vida associados àsua história.

A ELETRICIDADE E AMÍDIA TERCIÁRIA

A ampliação do alcance permitida pela virtualidadeda escrita e sua magia passa por uma nova revolução:a eletricidade. A eletricidade possibilita o nascimentoda mídia terciária, que requer o uso de um aparatoemissor e codificador da mensagem e de outro aparatoreceptor e decodificador. Com a mídia terciária, am-pliam-se ainda mais as escalas espaciais e de impactoreceptivo. O impacto é tão grande que o próprio con-ceito de comunicação passa a ter uma versão que serestringe à mídia terciária. A ampliação do espaçoabrangido – e sua apropriação simbólica – é tão gran-de que já não é mais apenas um delírio falar-se em umacultura mundial. O impacto é tão forte que as velhasformas de encantamento – os mitos, rituais e as cren-ças – migram para a mídia terciária, dando espaço paradois fenômenos gêmeos: a mídia religiosa e a religiãomidiática. O primeiro é a transformação da tecnologiaem objeto da idolatria e culto, com a conseqüente per-da da distância crítica. O segundo é o surgimento e orápido crescimento de seitas que lançam mão de pode-rosos canais da mídia terciária, adquirem canais de te-levisão e emissoras de rádio, como forma de arreba-nhamento de fiéis. Ademais de seu poder mágico, quelhe conferem uma força inusitada, um impacto e umaintensidade ímpares no quadro da comunicação hu-mana, a mídia terciária possui um alcance espacialimpensável nos outros tipos de mídia que exigem otransporte ou do corpo ou de um suporte de sua men-sagem. A mídia terciária transporta impulsos que setransformam em mensagem perceptível no aparatoreceptor.

Com a mídia terciária, a apropriação do tempo não maisse dá apenas por meio da durabilidade da mensagem con-servada, mas pelo somatório dos tempos dos milhões dereceptores.

A cada dia são descobertos novos materiais, mas suadurabilidade pode ser cada vez menor. Discos de vinil,fitas magnéticas, compact discs, disquetes, suportes físi-cos, suportes magnéticos, suportes óticos digitalizados vãose tornando obsoletos em uma velocidade cada vez maior.Os disquetes de dez anos já não podem ser lidos peloscomputadores hoje. E os disquetes de hoje já não serãolidos em cinco anos. O tempo já não conta como duraçãoe promessa de eternidade, mas como somatório de peque-nos tempos, como multidão de tempos individuais. Já nãoimporta expandir o tempo simbólico criado pela mídia se-cundária. O que importa é a escala expandida. E isto criauma nova categoria de tempo, agora subdividido em uni-dades micrométricas.

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COMUNICAÇÃO COM O DIFERENTE E AALTERIDADE DENTRO DO INDIVÍDUO

Dizem os neurologistas, dentre eles Aleksandr R. Luria,Roger Sperry, Oliver Sacks, Antonio Damasio e MichaelGazzaniga, que convivem em nossa caixa craniana doissistemas de processamento de informação completamen-te diferentes entre si. E que estes dois sistemas se comu-nicam por meio de pontes de neurônios chamadas“comissuras” e “corpo caloso”. Pacientes epilépticos quetiveram a separação cirúrgica dos dois hemisférios pas-saram a manifestar sintomas bastante inusitados. Gazzanigarelatou há 30 anos um caso de paciente que, ao desenten-der-se com sua mulher, com uma mão tentava espancá-la, enquanto a outra mão tentava segurar a primeira(Ivanov, 1983). O mesmo Gazzaniga escreve na ediçãode julho de 1998 da revista Scientific American, 30 anosdepois, sobre a especificidade do cérebro humano, de-monstrando, em primeiro lugar, que as pesquisas comcérebros de outros primatas chegaram a resultados total-mente divergentes e pouco úteis para a neurologia huma-na e, em segundo lugar, sobretudo demonstrando que“despite myriad exceptions, the bulk of split-brain researchhas revealed an enormous degree of lateralization-that is,specialization in each of hemispheres” (Gazzaniga,1998:37).

O autor acrescenta, enfatizando a diferença entre osdois hemisférios em sua disputa desigual por tarefas e suadifícil convivência um com outro: “The researchers foundthat split-brain patients perform better than normal peopledo in some of these visual searching tasks. The intact brainappears to inhibit the search mechanisms that eachhemisphere naturaly possesses.(...) Thus, it seems that themore competent left hemisphere can hijack the intactattentional system” (Gazzaniga, 1998:36).

Também aí se manifesta a complexidade do processocomunicativo, em suas raízes neurológicas. Combatementre si os dois hemisférios, a ponto de um inibir o fun-cionamento do outro. Do lado de fora do cérebro, na es-fera social, a comunicação não é menos complexa.

TÉCNICA E DINÂMICA DA MAGIA

Se, por um lado, há uma tendência a localizar os pro-cessos comunicativos em um contexto cada vez maisamplo e mais complexo, enxergando a complexidade dasrelações, de suas implicações, tanto no tempo quanto noespaço, por outro lado existe uma outra tendência simpli-ficadora e reducionista, sobretudo regressiva, de enxer-gar os processos de comunicação. Vejamos como ela semanifesta. O desenvolvimento da comunicação humanaexigido pela expansão de seus limites e fronteiras, que

decorre da sofisticação e complexificação das sociedadeshumanas, trouxe consigo a busca de novas e mais eficien-tes tecnologias. No entanto, as máquinas sempre alimen-taram o imaginário do homem. As máquinas da comuni-cação ainda mais, pois além de trazerem a memória davida, simulando-a, também simulam uma de suas quali-dades mais enigmáticas, a de falar. Assim, as máquinasque falam ou transmitem a fala ou a imagem em movi-mento em distâncias planetárias provocam no homem oimpacto da expansão de suas fronteiras perceptivas. As-sim foi com o telégrafo, com o telefone e o cinema, de-pois com o rádio e a televisão e finalmente com a Internet.Toda mídia, quando é novidade, chama a atenção sobresi mesma, exigindo da mensagem um alto tributo de sa-crifício, de renúncia. O surgimento de uma nova tecnolo-gia, até que ela se torne uma parte do repertório corri-queiro das comunidades, tende a provocar o encantamento,como se fosse mágica. Este sentimento distancia os parti-cipantes de um processo comunicativo daquilo que deveser sua meta primeira: informar. A magia não tem e nun-ca teve como meta informar, mas sim encantar, iludir,desviar a atenção, literalmente enganar. O mesmo pensa-mento mágico-mítico que produz magníficos textos dacriatividade artística do homem, da arte e da cultura, podecriar deuses lá no mais profundo reduto da racionalidadee da ciência.

A MEDIÇÃO E OS DEDOS

Assim como diferentes épocas e culturas se encantamcom aparatos e tecnologias, podem também encantar-secom métodos. Não são apenas as máquinas que encan-tam, mas também construções culturais e crenças proje-tadas em objetos, formando assim textos culturais. Umadas crenças mais sólidas e crescentes, em princípio nasculturas ocidentais e depois também no Oriente, é a cren-ça na medição, nos sistemas de medida e em sua exati-dão. Isto traz como conseqüência a crença na universali-zação de parâmetros e o inevitável esquecimento dadiversidade. Afinal, as medidas são unidades abstratasconstuídas a partir de dimensões humanas. E as dimen-sões humanas são profundamente diversas. Um pé nuncaé igual a outro pé, um dedo jamais se iguala a outro dedo.Como lembra Pross (1996), em Der mensch im mediennetz(O homem na rede da mídia), a tecnologia digital utilizao conceito de “digitus”, que em latim quer dizer “dedo”.O dedo desde sempre foi uma unidade de medida. O quedevemos evitar é transformá-lo em unidade de pensamen-to, ou seja, medir com os dedos, sim, mas não pensar comeles. Os padrões unificadores são ferramentas fundamen-tais para o desenvolvimento da tecnologia, mas não se deveesquecer jamais que ferramentas são meios, mídia.

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COMUNICAÇÃO, MÍDIA E CULTURA

TEOLOGIA DO MERCADO

Assim como o “pensamento com os dedos”, um outrotexto cultural elaborado pela inventividade humana é o con-ceito de mercado. Como toda criação social, também o mer-cado é uma relação comunicativa. Não é uma entidade autô-noma, mas um ser de ficção, por assim dizer, inventado,alimentado pelas pessoas, pelas sociedades e pelas culturasque o criaram. Ora, se o mercado é uma relação ou uma redecomplexa de relações comunicativas, será um exercício depensamento mágico-mítico acreditar que ele em si possaregulamentar algo, já que sua intencionalidade reside na in-tencionalidade de seus participantes. Não será difícil enten-der as intenções manipuladoras desta pregação diária. A pro-posta de entendimento destes sistemas complexos enquanto“textos de cultura” – proposta pela semiótica da cultura dotcheco Ivan Bystrina (1989) – deixa clara sua natureza tecida,criada pelos homens e sua história. Dizendo de outra forma,o mercado possui o mesmo status abstrato que deuses e de-mônios, criados pela imaginação do homem e alimentadospor seus hábitos culturais.

JUVENTUDE OBSOLETA

Outro texto cultural bastante difundido é o de juventu-de e sua transformação em parâmetro universal, aplicá-vel a todos os objetos. A universalização do conceito dejuventude pressupõe sua transformação em categoriaatemporal. Isto traz como conseqüência a perda de umaescala de graus e nuances variados. Coloca-se em seu lu-gar o par de opostos “novo-obsoleto”. Tal perversão trans-formada em crença justifica o descarte imediato de pes-soas e coisas, restringindo sua vida útil a um período breve,após o qual atingem sua obsolescência e descarte. Tudoque não é novo tende a ser obsoleto e, portanto, destina-se ao descarte. Cria-se não apenas a crença na juventudee na novidade enquanto categorias imutáveis, mas tam-bém suas conseqüências práticas, ou seja, a diversidadede pessoas e objetos em diferentes estágios e graus é eli-minada pelo descarte.

A COMUNICAÇÃO COM O HOMO DEMENS

Edgar Morin (1973:109) escreve em seu O paradigmaperdido: “O homem é um ser de uma afetividade intensae instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustia-do, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso,amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que co-nhece a morte, mas não pode acreditar nela, um ser quesegrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritose deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quime-ras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objeti-

vo são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vaga-bundagem, um ser úbrico que produz desordem. E comochamamos de loucura à conjunção da ilusão, do excesso,da instabilidade, da incerteza entre real e imaginário, daconfusão entre subjetivo e objetivo, do erro, da desordem,somos obrigados a ver o homo sapiens como homodemens.”

É inegável que todas as marcas “negativas” do homemacabaram por contribuir infinitamente para sua criativi-dade. Até mesmo os sonhos mais irreais e o imagináriomais absurdo, as patologias mais dolorosas, ofereceramao homem o alargamento de seu horizonte perceptivo eestético, que contribuíram para o desenvolvimento de umainteligência aberta para o imprevisto e para o incerto, parafenômenos caóticos e para as lógicas difusas, estágiosavançados da ciência humana. Porém, ao mesmo tempoque os delírios podem se desdobrar em conhecimento eciência, a proliferação da desordem pode conduzir a ten-dências regressivas socialmente pouco construtivas. É ocaso da violência transformada em show, das transmis-sões ao vivo de acidentes e coberturas policiais, das pro-gramações tipo mondo cane, que apresentam anomalias eaberrações, doenças e mutilações, buscando a qualquerpreço os altos índices de audiência. Associadas estas aber-rações às tendências regressivas de se enxergar o merca-do como único deus ou demônio controlador do própriomercado, pode-se ter como conseqüência a face mais ex-plosiva e destrutiva do homo demens: a submissão a suaspróprias ficções.

O SENTIDO, SUA PERDA, SUA BUSCA

Diante da expansão dos limites do campo de conheci-mento, diante de sua crescente complexidade, diante dastendências mágico-míticas regressivas de endeusamentoda tecnologia pela tecnologia, diante da des-historicizaçãoda vida embutida na crença da obsolescência programa-da para as máquinas e para os seres vivos, que caminhose que desafios se colocam para as investigações em ciên-cias da informação, da comunicação e da cultura?

Em primeiro lugar, o resgate do sentido. E o sentido nãoé apenas mais uma construção arbitrária e auto-referente doespírito, mas um conjunto de vínculos maiores, que levemem conta o homem na sua dimensão histórica, política e so-cial, mas também psicológica e antropológica, ou seja, emsua inteira complexidade, com suas potencialidades e suasnecessidades. O desafio maior será integrar as áreas do sa-ber que trazem aportes essenciais para as ciências da comu-nicação. O conceito de Marcel Mauss de “fenômenos hu-manos totais” se torna mais uma vez atual e necessário.Assim, resume Edgar Morin a necessidade de elos e víncu-los entre áreas do saber antes incomunicáveis: “Para com-

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preender o cérebro é preciso interrogar os mitos, as obras dearte, as sociedades, a história, mas para compreender os mitos,as obras de arte, as sociedades, a história, é preciso interro-gar o cérebro” (Morin, 1973:19).

De forma análoga, o comunicólogo espanhol VicenteRomano (1993) propõe uma “ecologia da comunicação”,um pensamento processual que não ignore os vínculos desentido, uma perspectiva mais ampla e histórica que per-gunte ao mesmo tempo pelas raízes e pelas projeçõesprospectivas sociais, políticas, culturais e psicológicas dosfatos da comunicação.

Buscar na arqueologia da comunicação suas possíveisprojeções futuras e não esquecer, nas incursões prospectivas,dos vínculos históricos mais profundos, nos quais se plas-mam as bases da cultura e de onde provém a seiva do senti-do: esta é a tarefa e este é o desafio que se colocam para acompreensão desse universo de informações em explosão.

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MUITO ALÉM DA INFORMAÇÃO: MÍDIA, CIDADANIA...

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MUITO ALÉM DA INFORMAÇÃOmídia, cidadania e o dilema democrático

MAURO P. PORTO

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

ual o papel dos meios de comunicação de massanas democracias contemporâneas? Uma respostaa esta questão tende a prevalecer entre jornalis-

tas, acadêmicos e o público em geral: os mídia forneceminformações para que cidadãos possam tomar decisõesconsistentes e racionais, incluindo a decisão do voto. Deacordo com este ponto de vista, os meios de comunicaçãoafetam o processo político ao transmitirem informaçõesde forma objetiva e imparcial ou manipulando e detur-pando os fatos. Para bem servir à democracia, bastaria quejornalistas e profissionais da comunicação transmitissemos fatos de forma neutra às suas audiências. Um dos ar-gumentos centrais deste artigo é o de que este enfoquetradicional sobre os mídia é insuficiente para o estudo e aconsolidação da democracia e deve ser modificado. Alémdisso, a redução da comunicação a um processo de trans-missão de informações contribui para tornar invisíveisdiversos problemas relacionados ao papel das instituiçõese dos profissionais da comunicação.

A ênfase tradicional na esfera da informação torna-seainda mais problemática quando consideramos o conflitoentre as expectativas da teoria democrática e o desempe-nho real dos cidadãos. Uma premissa central da teoriademocrática é a de que cidadãos bem informados elabo-ram e expressam livremente suas vontades, elegem repre-sentantes e influenciam de forma efetiva o processo dedecisão política do Estado. Entretanto, tanto em paísescapitalistas avançados como subdesenvolvidos, registra-se um alto grau de desinformação sobre assuntos políti-cos entre os públicos de massa. Cria-se assim o “parado-xo da política de massas”: a distância entre a expectativade uma cidadania bem informada por parte da teoria de-mocrática e a realidade incômoda revelada nas pesquisasde opinião (Neuman, 1986). Este paradoxo pode ser ex-

presso em termos do “dilema democrático”, ou seja, o fatode que as pessoas que devem tomar decisões razoáveispossam não ser capazes de cumprir esta expectativa (Lupiae McCubbins, 1998).

Como resolver este dilema? Podem os cidadãos for-mular preferências e influenciar efetivamente seus gover-nos apesar dos baixos níveis de informação? Devem osmeios de comunicação insistir em sua função informati-va ou necessitam repensar o seu papel em um regimedemocrático? Estas são algumas questões a serem discu-tidas neste artigo. Mas antes de enfrentá-las, é precisodiscutir as características do dilema e revisar as propos-tas já apresentadas para sua solução.

O DILEMA DEMOCRÁTICO

Cidadãos Ignorantes?

O paradoxo apontado sobre a política de massas geraquestões importantes. Como resolver o dilema democrá-tico? Vários observadores do processo político contem-porâneo tendem a apresentar uma resposta pessimista. Ograu de desinformação da grande maioria dos indivíduosdificultaria, ou até mesmo inviabilizaria, a constituiçãode um regime democrático. Ao analisar a política norte-americana na década de 20, o jornalista Walter Lippmannressalta as debilidades do processo de formação da opi-nião pública. Segundo ele, as pessoas desenvolvem suasvisões de mundo de forma indireta e deturpada, de acor-do com idéias falsas sobre o seu meio ambiente, os cha-mados “pseudo environments” (Lippman, 1922:15). Ci-dadãos comuns não têm tempo para prestar atenção aosassuntos públicos e a absorção das informações da im-prensa é distorcida. Esta forma de desenvolvimento da

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opinião pública gera grandes dificuldades para o regimedemocrático (Lippman, 1922:30-31). Outros analistas,apesar de menos pessimistas em suas conclusões, tambémchamam atenção para o dilema democrático. Já na déca-da de 40, Joseph Schumpeter argumenta que o reduzidosentido de responsabilidade dos cidadãos comuns expli-ca o alto grau de ignorância e incapacidade de julgamen-to sobre temas de política nacional ou internacional. Ocidadão comum é reduzido a um nível inferior de perfor-mance mental assim que entra no campo político, argu-menta de forma infantil e primitiva e seu pensamento tor-na-se associativo e afetivo (Schumpeter, 1976:262).

Nas ciências sociais, com o desenvolvimento de no-vos métodos para o estudo da opinião pública, principal-mente os surveys, estes diagnósticos sobre a desin-formação do eleitorado ganham uma base empírica e“científica”. Em um estudo sobre a eleição presidencialnorte-americana de 1948, pesquisadores da Universida-de de Columbia argumentam que o que se espera dos ci-dadãos é que sejam bem informados sobre assuntos polí-ticos. Eles ou elas devem supostamente saber quais sãoas questões em jogo, os fatos relevantes, as alternativaspropostas, o programa dos partidos e as possíveis conse-qüências. A conclusão dos autores é que, segundo estescritérios, os eleitores fracassam. Os cidadãos não possueminformações detalhadas e freqüentemente percebem acampanha de forma distorcida e emocional (Berelson etalii, 1986:308). Também baseado em dados empíricos,Philip Converse afirma que há enormes diferenças na dis-tribuição de informação entre setores da população: mui-to pouco vai além da elite de cidadãos mais sofisticadosideologicamente (Converse, 1964:212-213). Posterior-mente, ao revisar os estudos sobre opinião pública e com-portamento eleitoral, o autor ressalta que o fato mais fa-miliar destes estudos é que os níveis de informação sobreassuntos públicos entre a população são extremamentebaixos (Converse, 1975:79).

No caso brasileiro, a situação não é diferente. Pesqui-sas realizadas nas últimas décadas mostram baixos níveisde informação e conhecimento sobre questões políticas,tais como projetos relevantes dos governos, temas e acon-tecimentos que marcam o debate político, nomes e fun-ções de personalidades políticas (Silveira, 1998:81). Aoaplicar a tipologia de Converse sobre os cinco tipos deestratos de eleitores em surveys realizados em Porto Ale-gre, Baquero (1994:54) demonstra que os setores cominformação reduzida e baixo conteúdo ideológico consti-tuem cerca de 60% do total do eleitorado, um número bemsuperior aos 47% identificados por Converse nos Esta-dos Unidos.

Uma das respostas ao dilema democrático é, portanto,o reconhecimento de que o nível de desinformação que

prevalece entre os cidadãos comuns coloca sérios obstá-culos ou mesmo inviabiliza o regime democrático. En-tretanto, esta não tem sido historicamente a única reaçãoao paradoxo da política de massas. Como veremos a se-guir, vários autores mostram como eleitores pouco infor-mados conseguem tomar decisões coerentes e responsá-veis no campo da política.

Cidadãos Racionais?

Outra reação ao dilema democrático tem sido a recusado diagnóstico de que os baixos níveis de informaçãoimpedem os cidadãos de tomarem decisões consistentesou mesmo racionais. Um dos primeiros trabalhos nestalinha é o de Key, que apresenta um argumento pouco or-todoxo para a época, após analisar as pesquisas de opi-nião pública: os eleitores não são idiotas. Em geral, elesse comportam de forma racional e responsável no pro-cesso eleitoral (Key, 1966:7). Mesmo aqueles que trocamde partido entre uma campanha e outra, os eleitores volá-teis, baseiam suas decisões nas questões substantivas(issues) sobre as alternativas políticas apresentadas. Oseleitores consideram as ações do governo, possuem pre-ferências políticas e relacionam seus votos com ambosfatores (Key, 1966:58-59).

A capacidade de cidadãos comuns de compreender oprocesso político de forma coerente, apesar dos baixosníveis de informação, foi investigada não só a partir desurveys eleitorais, mas também a partir de metodologiasmais flexíveis, de caráter qualitativo. Um dos trabalhospioneiros nessa perspectiva é o de Robert Lane (1968). Apartir de entrevistas abertas realizadas com 15 cidadãoscomuns para investigar de que forma estes desenvolvemseus entendimentos acerca de conceitos como liberdade,democracia, igualdade e poder, Lane mostrou que os en-trevistados são capazes de desenvolver argumentos razoa-velmente consistentes a partir de suas experiências e tem-peramentos.

De forma não surpreendente, os argumentos de Key eLane são criticados por Converse, um dos autores que maisenfatizam os vínculos entre informação e sofisticação ideo-lógica. Key, segundo Converse, falha no tratamento do“problema da informação” e por usar um conceito vagode racionalidade (Converse, 1975:122-125). No caso deLane, a crítica está relacionada ao fato de que as diferen-ças nos resultados das pesquisas que utilizam surveys eentrevistas qualitativas não são necessariamente contra-ditórias. O autor ressalta, todavia, que os surveys são osinstrumentos metodológicos mais apropriados para o es-tudo das relações entre opinião pública e o funcionamen-to dos mecanismos de comunicação democráticos, comoeleições e referendos (Converse, 1975:89).

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Segundo alguns autores, o eleitorado é capaz de tomardecisões consistentes ao longo do tempo, combatendo aidéia de que pouca informação leva necessariamente a umeleitorado volátil em suas preferências. Analisando osresultados de cinco décadas das pesquisas de opinião pú-blica nos Estados Unidos, Page e Shapiro argumentam quebaixos níveis de informação parecem afetar a capacidadede alguns cidadãos de tomar decisões de forma coerente,embora no nível agregado a opinião coletiva seja estávele racional. Todavia, existem problemas importantes noargumento destes autores. Para obter resultados que indi-cam a estabilidade da opinião pública, eles eliminam daanálise todas as respostas “não sabe”, “sem opinião” ou“não tem certeza” dadas pelos entrevistados nos surveys(Page e Shapiro, 1992:44). Este artifício metodológico naeliminação das “não-respostas” favorece a obtenção deresultados que indicam a estabilidade das preferências dapopulação.

A partir do final da década de 60, um novo paradigmapassará a conquistar uma posição dominante na ciênciapolítica norte-americana: a teoria da escolha racional.Baseados na premissa de que indivíduos fazem suas es-colhas nos marcos da racionalidade instrumental (pesan-do custos e benefícios e utilizando coerentemente os meiosdisponíveis para maximizar seus interesses próprios), osautores desta tradição contribuíram para consolidar a vi-são de que cidadãos comuns são capazes de tomar deci-sões consistentes e razoáveis. Fundada a partir de traba-lhos de economistas que passaram a se interessar porassuntos políticos (Downs, 1957; Arrow, 1963; Buchanane Tullock, 1971; Olson, 1971), o paradigma tende a sus-tentar o pressuposto proveniente da teoria econômicaneoclássica de que os indivíduos tomam suas decisões nosmarcos de uma situação de “informação perfeita”. Umadiscussão mais detalhada sobre as várias versões desteparadigma está além dos objetivos deste artigo.1 O enfo-que estará concentrado nos autores que, sendo parte ou bus-cando inspiração nesta tradição, trabalham com a noção de“racionalidade com baixos níveis de informação”. Tais tra-balhos se baseiam, em grande medida, no livro An economictheory of democracy, de Anthony Downs (1957).

Um aspecto central do argumento de Downs é o de quea coleta de informações tem seus custos (demanda tem-po, atenção, esforço, etc.) e os benefícios nem sempre sãoevidentes. Para fazer suas escolhas racionais com o me-nor custo possível, eleitores utilizam “atalhos” na coletade informações. Por exemplo, a identificação com umpartido político ou a adoção de uma ideologia substitui anecessidade de buscar informações mais completas sobrepartidos e candidatos. A teoria de Downs sobre a infor-mação tem sido, todavia, criticada. Segundo Downs, in-divíduos investem suas energias na busca de dados so-

mente até o momento em que o retorno obtido com a in-formação iguala os custos envolvidos na sua procura. Estetipo de cálculo é difícil, senão impossível, já que o agen-te tem de decidir o valor da informação que ele ainda nãopossui antes de determinar se vale a pena se esforçar paraobtê-la (Elster, 1986:19-20; Green e Shapiro, 1994:19).Além disso, meios audiovisuais como a televisão, cujaexposição exige menos “esforço” do que outros meios,como a imprensa escrita, reduzem consideravelmente oscustos envolvidos na obtenção de informações (Conver-se, 1975:96).

Com base em Downs e outras fontes, diversos autorestêm destacado o fato de que baixos níveis de informaçãonão impedem os indivíduos de tomarem decisões razoá-veis ou coerentes. Um dos trabalhos mais importantes nodesenvolvimento da noção de “racionalidade com baixosníveis de informação” é o de Samuel Popkin (1994). Aoanalisar as eleições primárias nos Estados Unidos, o au-tor argumenta que os eleitores usam diversos tipos de ata-lhos para avaliar, obter e armazenar informações. Ao to-mar decisões políticas, as pessoas incorporam o queaprenderam em suas experiências passadas, em seu dia-a-dia, na exposição aos meios de comunicação e nas cam-panhas eleitorais. Desta forma, apesar da pouca informa-ção, suas decisões se baseiam em questões substantivasdo processo político.

Adotando um modelo mais formal, e com base em es-tudos experimentais realizados em laboratório, Lupia eMcCubbins (1998) argumentam que decisões razoáveisnão exigem informação completa. Ao contrário de Popkinque apresenta uma diversidade de atalhos utilizados pe-las pessoas em suas decisões políticas, os autores se con-centram em um único instrumento: o conselho de outraspessoas. Em suas conclusões, os autores sugerem comoinstituições podem ser desenhadas para facilitar decisõesracionais.

Estes são alguns dos autores que insistem na possibili-dade de decisões consistentes, estáveis e racionais, ape-sar dos seus baixos níveis de informação. Discutiremos aseguir as propostas apresentadas por estes e outros auto-res para a solução do dilema democrático.

SOLUCIONANDO O DILEMA DEMOCRÁTICO

Limites do Modelo “Cidadãos Ignorantes”

Existem, portanto, duas respostas principais ao dile-ma democrático. O fato de que a grande maioria da popu-lação possui baixos níveis de informação leva alguns aconcluírem que a realização de princípios democráticosé difícil, senão impossível. Já para outros, pouca infor-mação não impede as pessoas de tomarem decisões cons-

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cientes e racionais. O eleitorado estaria apto a cumprirplenamente, ou pelo menos de forma razoável, as expec-tativas da teoria democrática.

As soluções para o dilema democrático apresentadaspor ambas perspectivas têm limites importantes. No pri-meiro caso (“cidadãos ignorantes”), a resposta tem sidofreqüentemente a afirmação da necessidade de adotar ins-tituições de caráter elitista, ou de promover um conceitode democracia centrado na elite. Walter Lippmann foi umdos primeiros a argumentar que o governo representativonão pode funcionar com sucesso a menos que seja esta-belecida uma organização independente de expertos parafazer com que os “fatos invisíveis” sejam compreendidospela massa de indivíduos responsáveis pelas decisões. Talorganização permitiria ultrapassar a “ficção inviável eintolerável”, segundo a qual cada um de nós deve adqui-rir uma opinião competente sobre todos os assuntos pú-blicos. Lippmann considera que os cientistas políticos, enão a imprensa, estariam capacitados para exercer estasfunções (Lippmann, 1922:31-32).

John Dewey, poucos anos após a publicação do livrode Lippmann, também ressaltou o importante papel dosexpertos para resolver os problemas da opinião pública.Segundo este autor, os assuntos governamentais impor-tantes são tecnicamente complicados para os cidadãoscomuns e devem ser conduzidos por expertos. Sem isso,a decisão pela regra da maioria (“contando as cabeças”)faz com que o público se transforme em um fantasma queconfunde e desorienta a ação governamental de formadesastrosa. Todavia, ao contrário de Lippmann, Deweyreconhece que a ênfase no papel de expertos envolve sé-rios riscos, já que um governo de expertos desvinculadodas massas não passa de uma oligarquia.2 O ideal, paraele, seria aperfeiçoar os métodos e condições para o de-bate, discussão e persuasão. Assim, Dewey mantém umaposição ambígua quanto à solução do dilema democráti-co (Dewey, 1991:123-125, 208).

No caso de Schumpeter (1976), a solução é entendidaem termos da substituição da teoria clássica por uma teo-ria competitiva da democracia. A democracia passa a serdefinida como um conjunto de regras de procedimento,“método” que permite às elites adquirirem poder medianteuma luta competitiva pelos votos dos eleitores. Destemodo, o autor reduz o papel dos eleitores à escolha da-queles que irão deter poder político por um determinadoperíodo. Portanto, nas democracias, as elites competempelos votos dos eleitores que delegam a certos indivíduoso poder político. Schumpeter busca, assim, reconciliar asteorias elitistas e a teoria democrática.

Os autores que destacam a ignorância dos cidadãostendem, em menor ou maior grau, a promover uma solu-ção de caráter elitista para o dilema democrático. A “in-

capacidade” do cidadão comum de entender os compli-cados assuntos públicos seria remediada pelo papel deexpertos e elites. Estas soluções ao paradoxo da políticade massas restringem perigosamente o regime democrá-tico, gerando a possibilidade de criação de oligarquiasmuito pouco responsáveis e sensíveis às preferências dacidadania. Como afirma Robert Dahl, o principal perigono processo de delegação de poder por parte de cidadãosdesinformados é o estabelecimento de uma “tirania deexpertos” (apud Lupia e McCubbins, 1998:3).

Limites do Modelo “Cidadãos Racionais”

No caso daqueles que defendem o ponto de vista deque indivíduos com pouca informação são capazes detomar decisões consistentes e razoáveis (cidadãos racio-nais), as propostas apresentadas também têm limites im-portantes. O principal problema desta corrente é o pres-suposto implícito e não problematizado de que o regimedemocrático funciona bem, refletindo as preferências doscidadãos. De forma não surpreendente, estes autores ounão apresentam propostas para a solução do dilema de-mocrático ou propõem apenas alterações marginais aossistemas políticos existentes.

Samuel Popkin, por exemplo, apesar de reconhecer queo sistema norte-americano de eleições primárias tem de-ficiências importantes – como a ênfase da cobertura tele-visiva nas personalidades dos candidatos e não em suaspropostas políticas –, apresenta propostas marginais parasua melhoria, basicamente o aumento do espaço de tem-po entre as primárias (Popkin, 1994:220-236). Os limitesdas propostas apresentadas pelo autor são surpreenden-tes, principalmente tendo em vista que vários analistasdestacam as conseqüências negativas da introdução dasprimárias no sistema político norte-americano, principal-mente no que se refere aos seus efeitos no declínio dospartidos políticos (Polsby, 1983).

Lupia e McCubbins apresentam um número maior desugestões para que instituições políticas e jurídicas pos-sam resolver o dilema democrático. Entretanto, tais suges-tões se restringem basicamente no processo de escolha daspessoas a quem pedimos conselhos. A solução estaria no es-clarecimento dos interesses de outros agentes e na introdu-ção de penalidades para os que mentem (Lupia e McCubbins,1998:205-227). As propostas têm, portanto, uma basesimplista, pois buscam apenas assegurar que os agentes te-nham acesso a “bons” conselhos sobre a melhor decisão.

Por que as propostas das teorias baseadas na noção decidadãos racionais são inexistentes ou limitadas? Em pri-meiro lugar, existe um viés normativo, o pressuposto deque o regime e as instituições funcionam bem. Questõessobre desigualdade política e econômica estão praticamen-

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te ausentes destes modelos. Em particular, não existe qual-quer preocupação como o fato de que grupos privilegia-dos na sociedade possam influenciar a formação de pre-ferências dos cidadãos de modo a sustentar suas própriasposições no sistema político.

Os modelos derivados das noções de racionalidadebaseiam-se quase sempre em uma concepção liberal doindivíduo como unidade autônoma diante de relações so-ciais mais amplas. Tais modelos se apóiam em um con-ceito extremamente limitado e insuficiente de poder po-lítico.3 Em particular, estão fundamentadas na definiçãode poder da teoria pluralista. Segundo Robert Dahl, umdos principais expoentes desta teoria, “A tem poder so-bre B na medida em que pode levar B a fazer algo que Bnão faria de outra forma” (Dahl, 1969:7). A ênfase dospluralistas está, portanto, no comportamento observáveldos agentes no processo decisório. Tal concepção de po-der político foi criticada por Bachrach e Baratz (1962).Estes autores salientam que, antes de se questionar comose exerce o poder político nas sociedades democráticas, épreciso identificar os grupos beneficiados pelas estrutu-ras vigentes, já que estes dispõem de instrumentos paraevitar que algumas questões prejudiciais aos seus inte-resses tornem-se objeto de deliberação pública (Pio e Por-to, 1998:303-304). Os pluralistas teriam ignorado essa face“oculta” do poder (as “não-decisões”), não identificando asformas subliminares de seu exercício através do domínioda agenda pública. Tais questões estão ausentes dos estudosque trabalham com o modelo do cidadão racional.

Além destas duas “faces” do poder, Steven Lukes iden-tifica uma terceira dimensão, de especial relevância paraa nossa discussão, segundo a qual A exerce poder sobreB não só ao fazer com que B faça algo contra sua vonta-de, mas também ao dar forma, influenciar ou determinaras próprias vontades e preferências de B. Assim, o poderé exercido ao se garantir obediência através do controledos pensamentos e desejos dos indivíduos (Lukes,1974:23). Este tipo de controle está diretamente relacio-nado ao que Gramsci (1989) denomina hegemonia: a di-reção cultural, política e moral que as classes dominantesexercem sobre as classes subalternas.

Quais são as implicações das “faces” do poder políti-co sobre a discussão dos limites das teorias baseadas nanoção de cidadão racional? A terceira face do poder, ouhegemonia, desafia as teorias liberais acerca da autono-mia e racionalidade dos indivíduos. Como afirmaRosenberg, a teoria política liberal baseia-se no pressu-posto de que os indivíduos são seres razoáveis ou racio-nais, senhores dos seus próprios destinos. A atividadepolítica é entendida, assim, como um produto da ação deindivíduos (Rosenberg, 1988:24). O que este enfoque ten-de a ignorar, em menor ou maior grau, é o papel de rela-

ções sociais na formação das próprias identidades dosindivíduos, inclusive nos modos de apropriação da reali-dade. Diferentes grupos, instituições e formações cultu-rais têm papel ativo na constituição do plano cognitivodos indivíduos. Nesta visão alternativa, a atividade polí-tica é entendida não só como um produto da ação de indi-víduos, mas fundamentalmente como um produto de re-lações sociais, políticas, econômicas e culturais maisamplas nos marcos dos quais atuam os indivíduos.

Como exemplo desta visão pode-se tomar a brilhanteanálise da “racionalidade com baixos níveis de informa-ção”, através da qual Samuel Popkin reconhece que aspreferências dos indivíduos não são dadas e fixas, masfreqüentemente se constroem no processo decisório. En-tretanto, toda a ênfase no livro está no processo atravésdo qual indivíduos autônomos usam intencionalmenteatalhos para obter informações e atuar coerentemente apartir de suas preferências. Fatores externos, como as in-formações provenientes dos meios de comunicação, sãomediados pelo raciocínio e pelas expectativas dos indiví-duos (Popkin, 1994:17, 33-34). A influência de institui-ções e grupos sociais, como os mídia, dependeria, por-tanto, das operações cognitivas de cada indivíduo. Masserá realmente autônomo o processo pelo qual imprimi-mos sentido ao mundo? Popkin deixa de considerar apossibilidade de os meios de comunicação, ou outras ins-tituições e grupos sociais, darem forma ou influenciaremdiretamente o “raciocínio” e as “expectativas” dos indi-víduos. Este processo, de extrema importância para odebate do dilema democrático, será examinado a seguir.

UMA SOLUÇÃO ALTERNATIVAAO DILEMA DEMOCRÁTICO

Nesse ponto da discussão, é importante ressaltar duasproposições centrais: 1) o modelo do cidadão bem infor-mado, dominante na teoria democrática, necessita sermodificado; 2) um modelo alternativo deve consideraraspectos que vão além do problema da informação. Veja-mos cada uma das proposições.

Modificando o Modelo “Cidadãos Bem Informados”

O conceito de cidadania não é único, nem fixo, e pas-sa por transformações importantes no decorrer de proces-sos históricos e lutas sociais. Ao analisar o processo polí-tico norte-americano desde a independência, MichaelSchudson mostra como instituições e práticas políticasespecíficas originaram uma concepção particular do “bomcidadão”. A noção do “cidadão bem informado” foi pro-movida pelas reformas da “era progressiva” (final do sé-culo XIX) e desde então passou a dominar o discurso

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político e popular. O autor argumenta que este modelofalhou em resolver a relação entre o conhecimento popu-lar e o dos expertos, necessitando algumas modificaçõespara fazer sentido nos dias de hoje; e propõe que a obri-gação dos cidadãos de serem bem informados e teremconhecimento seja substituída pela obrigação de monito-ramento. Cidadãos “monitores” passam uma vista geralnas informações, em lugar de uma leitura atenta das mes-mas. Sua função é vigiar o cenário político e não colherinformações (Schudson, 1998:309-311).

Acreditamos que o argumento de Schudson está cor-reto em um aspecto central: o modelo do cidadão beminformado necessita ser modificado. Todavia, não cremosque o modelo proposto pelo autor do “cidadão monitor”resolva o dilema democrático. Ele não especifica as con-dições que tornariam o monitoramento eficiente e, emespecial, os parâmetros a serem utilizados na vigilânciado cenário político. Com que critérios cidadãos devemdecidir se um aspecto do cenário merece uma reação ounão? Não podem os grupos com influência política, eco-nômica e social eliminar da agenda pública os temas pre-judiciais aos seus interesses (a segunda face do poder deBachrach e Baratz)? Não podem os mesmos grupos tor-nar legítimas entre os cidadãos propostas que os prejudi-cam, que passam então a ser vistas como “naturais” (aterceira face do poder de Lukes)? Acreditamos que omodelo do cidadão monitor não resolve estas questões.

É importante aqui fazer uma ressalva: o abandono domodelo do cidadão bem informado não sugere que a es-fera da informação não tem relevância para a solução dodilema democrático. Afinal de contas, uma das formas derestrição das informações, a censura (seja por parte doEstado ou como autocensura dos meios de comunicação),é um dos maiores obstáculos à realização de um regimedemocrático. Entretanto, trata-se de uma medida visível,de caráter coercitivo, não tão eficiente como outras for-mas mais sutis de controle do debate público, o que nãoquer dizer que a luta pela ampliação das informações dis-poníveis na esfera pública não seja fundamental para asdemocracias contemporâneas.

O abandono do modelo também não significa que nãodevamos nos preocupar com os baixos níveis de infor-mação entre os públicos de massa. Ao contrário, ampliaro acesso dos cidadãos às informações é uma tarefa im-portante de qualquer movimento democratizante. É pre-ciso discutir e implementar medidas para melhorar os ní-veis de informação entre os públicos de massa. Um estudocomparativo de sete países sobre os níveis de informaçãoacerca de assuntos internacionais (Dimock e Popkin, 1997)revelou que o público norte-americano tem um conheci-mento muito menor destes assuntos do que os públicosde outros países capitalistas desenvolvidos. Os autores

ressaltam que estas diferenças não podem ser explicadaspelo nível de desenvolvimento econômico ou por variá-veis como educação. Como então explicar estas diferen-ças? Os norte-americanos tendem a dedicar basicamenteo mesmo tempo aos noticiários e aos jornais que as de-mais populações. A diferença não está, portanto, na quan-tidade de informações a que têm acesso, mas na qualida-de da informação: sistemas públicos de comunicação(como a BBC da Grã-Bretanha) realizam uma coberturade melhor qualidade destes assuntos do que as redes co-merciais de televisão dos Estados Unidos. Este estudo reve-la que diferenças no caráter dos sistemas de comunicação(sistemas públicos versus sistemas comerciais) afetam di-retamente os níveis de informação dos públicos de massa.

Além da Informação:Cidadãos Construtores de Significados

Para contribuir para a solução do dilema democrático,um novo modelo de cidadania deve ir além da esfera dainformação, incorporando a capacidade de interpretaçãoda realidade e construção de sentido por parte dos indiví-duos. A descoberta feita pelo modelo de “racionalidadecom níveis baixos de informação” de que cidadãos co-muns são capazes de tomar decisões coerentes e razoá-veis é correta e importante. Todavia, o modelo falha aoenfatizar a esfera da informação e ao ignorar, ou colocarem segundo plano, o processo subjetivo da construção desentido. Cidadãos com pouca informação podem tomardecisões coerentes, mas apenas quando o debate públicoestá aberto a uma pluralidade de interpretações sobre arealidade política. Pode haver informações abundantes naesfera pública sobre um determinado tema, mas se existeapenas um ponto de vista ou enquadramento para sua in-terpretação disponível aos cidadãos, a democracia ficaperigosamente ameaçada. Por outro lado, se existe umapluralidade maior de enquadramentos dos problemas naesfera pública, e particularmente nos meios de comuni-cação, mesmo cidadãos com baixos níveis de informaçãotêm acesso a atalhos que lhes permitem desenvolver opi-niões coerentes sobre temas políticos.

A disputa pelo poder político não se restringe, portan-to, à garantia do acesso dos cidadãos às informações, mastambém inclui a luta em torno da interpretação da reali-dade. Esta distinção foi desenvolvida por Wolfsfeld (1997)em seu estudo sobre o papel dos meios de comunicaçãoem conflitos políticos. O autor distingue entre a dimen-são estrutural, vinculada à luta pelo acesso aos mídia, e adimensão cultural, relacionada à luta em torno da cons-trução de significados. A grande maioria dos esforços porresolver o dilema democrático ignoram, ou colocam emum segundo plano, a dimensão cultural.

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MUITO ALÉM DA INFORMAÇÃO: MÍDIA, CIDADANIA...

A definição dos cidadãos como construtores de signi-ficados permite desenvolver um entendimento mais apro-priado do processo através do qual indivíduos passam adar sentido à realidade política. Os modelos “cidadãosignorantes” ou “racionais” apresentam exigências irrea-listas ou ignoram as dificuldades do processo democráti-co de formação da opinião pública. Exigir que cidadãostenham conhecimento enciclopédico ou sofisticação ideo-lógica pouco nos ajuda a entender o processo político. Asreclamações sobre a volatilidade e inconsistência das opi-niões dos públicos de massa revelam um viés acadêmicoe elitista de pouca utilidade para a solução do dilema de-mocrático. Como afirma Popkin, ambivalências e incon-sistências são fatos “normais” da vida e ocorrem inde-pendentemente do nível de educação das pessoas(Popkin, 1994:218).

No modelo que propomos, de cidadãos como constru-tores de significados, estes não necessitam ter sempreopiniões consistentes e racionais. A formação da visãode mundo dos indivíduos é freqüentemente intuitiva: aspessoas comuns “sentem”, e nem sempre sabem explicar,suas visões de mundo. Isto já havia sido ressaltado porMax Weber, ao afirmar que na maioria dos casos a açãoreal ocorre “em surda semiconsciência ou inconsciênciade seu ‘sentido visado’”. Segundo este autor, “o agentemais o ‘sente’, de forma indeterminada, do que o sabe outem ‘clara idéia’ dele; na maioria dos casos, age instinti-vamente ou habitualmente” (Weber, 1991:13).

Antonio Gramsci desenvolve este aspecto, de formacentral, na sua teoria sobre a hegemonia a partir do con-ceito de senso comum. Para ele, a filosofia não pode servivida pelo homem do povo senão como uma fé, de cará-ter não racional, no grupo social ao qual pertence. O sen-so comum é a concepção desagregada, incoerente, ade-quada à posição social das multidões, das quais ele é afilosofia (Gramsci,1987:26-27,143). Um aspecto centralda teoria política de Gramsci é que as organizações quelutam para obter a direção ideológica e moral na socieda-de civil devem fazê-lo a partir do senso comum das clas-ses populares e não tentando substituí-lo completamentepor ideologias coerentes e sistemáticas. A luta pelo po-der político passa pela construção de um bloco históricocapaz de incorporar interesses e aspirações das classespopulares e conquistar a sua adesão.

Portanto, exigir dos cidadãos definições organizadase ideologicamente consistentes sobre o mundo da políti-ca é uma atitude elitista e pouco útil para a solução dodilema democrático. Por outro lado, as teorias que defi-nem os cidadãos como racionais, mesmo que possuambaixos níveis de informação, tendem a ignorar o proces-so pelo qual grupos sociais consolidam seu poder políti-co ao restringir, não a quantidade de informações, mas

sim a variedade de pontos de vista disponíveis na esferapública. Tais grupos controlam deste modo a disponibili-dade de enquadramentos que permitem às pessoas darsentido à realidade política.

OS MÍDIA E O DILEMA DEMOCRÁTICO

Mídia: Fonte de Informação ou de Significados?

Um dos obstáculos mais importantes no estudo dopapel dos meios de comunicação na política é a visãocomum de que seu papel se limita à transmissão de in-formações. Segundo o estudo já mencionado sobre aseleições presidenciais norte-americanas de 1948, osconteúdos da campanha são providos pelos partidos ecandidatos e a função dos mídia é transmiti-los. Os pos-síveis aspectos negativos para as democracias com rela-ção à atuação dos meios se referem basicamente à possi-bilidade de seleção parcial e não objetiva das informaçõesque são apresentadas (Berelson et alii, 1986:235, 238-239). Este enfoque passou a ocupar uma posição domi-nante nos estudos empíricos sobre o papel dos meios decomunicação.

A noção de que os meios de comunicação são apenascondutores de informação prevalece não apenas entreacadêmicos, mas também entre jornalistas e outros pro-fissionais da comunicação. Como demonstra MichaelSchudson (1978), o desenvolvimento da imprensa e daprofissão do jornalista a partir do século XIX nos Esta-dos Unidos levou ao primado do princípio da objetivida-de. Segundo este princípio, o papel da imprensa é relataros fatos de forma neutra, sem que as opiniões ou valoresdos jornalistas interfiram no relato das notícias. Segundoa “teoria da democracia dos jornalistas”, seu papel é in-formar a cidadania (Gans, 1998).

Entretanto, o jornalista não é apenas um provedor de in-formação, mas contribui para dar significado político aomundo (Hallin, 1994:1). Para vários autores, o regime de-mocrático necessita de um papel mais ativo dos profissio-nais dos mídia. Doris Graber afirma que jornalistas preci-sam apresentar avaliações, já que fatos sem interpretaçãofazem pouco sentido para a audiência (Graber, 1994:334-336). Para Herbert Gans (1998:15), a imprensa precisa apre-sentar mais estórias analíticas que estimulem a participaçãopolítica dos cidadãos. Jornalista têm, portanto, um papelimportante e legítimo no diálogo normativo. Entretanto, oproblema com esta função é a perda de uma base: sem cone-xões com as instituições de debate político de onde interpre-tações se originam, jornalistas movem-se sem direção e deforma irresponsável por inúmeras posições, apresentandouma visão de mundo intimamente vinculada às perspectivasdos membros do Estado (Hallin, 1994:5-7).

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A definição dos mídia como fonte de informação nãoé, portanto, a única alternativa disponível. James Careyidentifica duas concepções alternativas sobre a comuni-cação. A primeira, e mais comum, define a comunicaçãocomo transmissão e a segunda como ritual. Na primeiraconcepção, o papel dos mídia seria enviar e transmitirinformações estando baseada na metáfora com os siste-mas de transporte. A visão ritualista é mais antiga e estáfundamentada em idéias como participação e comunida-de. Este enfoque alternativo define a comunicação nãocomo o ato de transmitir informações, mas com a repre-sentação de crenças comuns (Carey, 1989:14-18).

Vários estudiosos das relações entre comunicação epolítica, como Venício Lima (1996), insistem na necessi-dade de ampliar o estudo dos mídia para além da trans-missão de informações e, baseados no modelo ritualistade Carey, ressaltam o processo pelo qual os mídia repre-sentam a realidade política e social. Tal enfoque permite:a) compreender os meios de comunicação não apenascomo condutores de dados, mas fundamentalmente comoum fórum no qual se desenvolve a disputa em torno daconstrução dos significados; b) trazer o plano da culturapara a discussão do plano cognitivo, ou seja, do processopelo qual agentes fazem sentido da realidade. Como afir-ma Gamson, em um interessante estudo sobre a relaçãoentre televisão e consciência política, a consciência dosindivíduos se desenvolve a partir da relação entre culturae cognição. Em lugar de pensar os mídia como um “estí-mulo” ao qual indivíduos respondem, devemos pensá-loscomo um espaço no qual se desenvolve uma complexadisputa simbólica sobre qual interpretação irá prevalecer(Gamson, 1995:xi-xii). O modelo do cidadão como cons-trutor de significados apresentado neste artigo comparti-lha estes pressupostos e entende o papel dos meios decomunicação não só em termos da transmissão de infor-mação, mas fundamentalmente como fontes de significa-dos e interpretações da realidade.

Os Mídia e o “Enquadramento” da Realidade Política

Para concluirmos a discussão sobre como o novo mode-lo de cidadania proposto pode contribuir para a solução dodilema democrático, é importante definir mais especifica-mente o processo pelo qual os meios de comunicação afe-tam a interpretação da realidade política pelos indivíduos. Oconceito de “enquadramento” (framing), já aplicado no es-tudo do papel dos mídia na política (Gitlin, 1980; Iyengar,1991; Gamson, 1995; Hallin, 1994; Albuquerque, 1994), éum instrumento de análise essencial. Enquadramentos en-volvem a seleção de certos aspectos da realidade para fazê-los mais salientes no conteúdo da comunicação e promoveruma interpretação causal particular (Entman, 1994:294). Em

termos mais simples, um enquadramento pode ser definidocomo uma “idéia organizadora” que dá forma às nossas con-versas e entendimentos (Gamson, 1995:3).

Portanto, a ênfase do conceito de enquadramento estános processos de interpretação e construção de sentido.Isto permite ultrapassar a ênfase tradicional no plano dainformação das soluções existentes ao dilema democráti-co (cidadãos ignorantes e cidadãos racionais). Algunsestudos sobre a racionalidade com baixos níveis de infor-mação trabalham com o conceito de enquadramento.Popkin (1994:81-91), por exemplo, inclui o conceito emsua análise das decisões dos eleitores norte-americanos.Entretanto, os enquadramentos são entendidos pelo autorbasicamente como o ponto de vista utilizado pelo indiví-duo para a coleta de informação. Em sua importante análi-se, Popkin não discute o processo pelo qual os meios decomunicação afetam os enquadramentos utilizados pelosindivíduos para interpretar a realidade política.

A análise de enquadramento possibilita investigar oprocesso pelo qual interpretamos a realidade política uti-lizando atalhos (pontos de vista ou “filtros”) que nos per-mitem dar sentido ao mundo, mesmo que com pouca in-formação. Em seu trabalho pioneiro, Lippmann já haviaressaltado que, por causa da complexidade da realidade,o cidadão comum necessita de “mapas” (Lippmann,1922:16). A ênfase do autor estava nos aspectos negati-vos destes recursos, como, por exemplo, na tendência dese utilizar estereótipos na formação de opiniões. Toda-via, como afirma corretamente Popkin (1994:218), é pre-ciso parar de considerar os atalhos utilizados pelos cida-dãos comuns de forma pejorativa. Em seu estudo baseadoem entrevistas com trabalhadores e pessoas comuns,Gamson (1995:34) ressalta como estes não são passivosou idiotas, sendo capazes de estabelecer uma discussãocoerente de assuntos políticos a partir de uma idéia orga-nizadora implícita, ou seja, de um enquadramento.

Mas, ao contrário do modelo cidadãos racionais, omodelo aqui proposto ressalta como os enquadramentosse relacionam com a disputa pelo poder político. A partirdo conceito gramsciano de hegemonia, é possível con-textualizar a formação de enquadramentos em termos daluta pela liderança intelectual e moral na sociedade civil,como já demonstrado por alguns trabalhos na área dacomunicação política (Gitlin, 1980; Hallin, 1994). Assim,apesar do reconhecimento de que as pessoas não são pas-sivas ou idiotas, o modelo proposto neste artigo possibi-lita analisar o processo pelo qual enquadramentos sãomanipulados (inclusive pelos meios de comunicação),freqüentemente de forma excludente e antidemocrática,para manter a posição subalterna de vários segmentos dapopulação. Em especial, os meios de comunicação devemultrapassar a forte dependência em fontes oficiais do Es-

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MUITO ALÉM DA INFORMAÇÃO: MÍDIA, CIDADANIA...

tado e em grupos privilegiados já identificada por diver-sos autores (Sigal, 1973; Hallin, 1994) e abrir a possibili-dade de que a sociedade civil, grupos subalternos e mi-norias apresentem seus pontos de vista ou enqua-dramentos. Em pesquisas anteriores, buscamos discutiralgumas destas questões em relação ao conteúdo das te-lenovelas (Porto, 1995) e, em particular, no caso do Jor-nal Nacional (Porto, 1998).

O novo modelo do cidadão construtor de significadospossibilita avançar na solução do dilema democrático.Cidadãos comuns são capazes de cumprir as expectativasda teoria democrática, desde que sejam observados doispressupostos: que tais expectativas sejam entendidas emtermos da capacidade dos indivíduos de interpretar a rea-lidade política, em lugar da exigência de serem bem in-formados; e que exista uma pluralidade de pontos de vis-ta ou enquadramentos da realidade disponíveis na esferapública, particularmente nos meios de comunicação.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

1. A literatura sobre a teoria da escolha racional (TER) é extensa, podendo-se men-cionar, por exemplo, Elster, (1986). Em outro trabalho, revisamos os pressupostosdo paradigma e ressaltamos suas debilidades no estudo do papel dos mídia na políti-ca (Porto, 1997). Para uma revisão crítica das aplicações da TER na ciência política,ver o livro de Green e Shapiro (1994) e o debate que o sucedeu (Friedman, 1996).

2. Sobre a “democracia de expertos” de Lippmann e Dewey, consultar Schudson(1998:211-219).

3. A discussão sobre poder político que desenvolvemos a seguir baseia-se emBybee (1987). Sobre a teoria pluralista de poder e as “não-decisões”, ver Pio ePorto (1998).

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E

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO,COMUNICAÇÕES E DEMOCRACIA

xpressões como idade da informação e socieda-de da informação – originalmente “informationage” e “information society” – encontram-se hoje

ge dessa convergência tecnológica digital e capturar averdadeira dimensão do fenômeno. A sociedade contem-porânea seria mais bem identificada, portanto, com o usoda expressão sociedade das comunicações, incluídos aíos mass media, as telecomunicações e a informática.

CENTRALIDADE DAS COMUNICAÇÕES

Na verdade, talvez a principal característica das socie-dades deste final de século seja exatamente sua centrali-dade nas comunicações (media centered). Isto significaque as comunicações são centrais nas principais esferasda atividade humana, vale dizer, na economia, no social,na política e na cultura. O que significa exatamente isso?Para uma melhor compreensão do fenômeno com o qualnos defrontamos é necessária uma curta digressão emtorno da idéia de centralidade.

A noção de centralidade tem sido aplicada nas Ciên-cias Sociais igualmente a pessoas, instituições e idéias-valores, implicando a existência de seu oposto, vale di-zer, o periférico, o marginal, o excluído. Porém, ao mesmotempo, ela admite gradações de proximidade e afastamen-to, isto é, pessoas, instituições e idéias-valores podem sermais ou menos centrais. Apresentam-se, a seguir, dois bre-ves exemplos ilustrativos.

O estudo da participação política tem revelado que,considerando a dimensão centro-periferia, existe corre-lação positiva entre aqueles que ocupam uma posiçãosocial central e participação: pessoas próximas ao centroda sociedade tendem a participar mais da política do queaquelas próximas da periferia social (Milbrath e Goel,1977).

Existem várias maneiras de se definir uma posição socialde centralidade, mas é provável que a mais adotada seja

VENÍCIO A. DE LIMA

Professor do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília

incorporadas ao vocabulário corrente de um número sig-nificativo de pessoas, tanto no idioma português como emoutras línguas contemporâneas. No senso comum, estestermos evocam, sobretudo, a informatização da socieda-de, isto é, a recente introdução no nosso cotidiano de no-vas tecnologias como o computador, o videocassete, o fax,o telefone celular e a Internet.

Ao refletir sobre a sociedade contemporânea, todavia,o risco que se corre na utilização das expressões socieda-de da informação e idade da informação – ambas articu-ladas em torno do conceito de informação – é de reduziro seu significado apenas à disponibilidade e à velocidadedo transporte de dados, isto é, ao processo formal. Ex-clui-se, assim, não só o conteúdo das comunicações quese materializam através da informatização, como tambémas questões ligadas à progressiva integração – tanto eco-nômica quanto tecnológica – de setores até há pouco temposeparados e independentes. Trata-se da convergência tec-nológica provocada pela chamada revolução digital, queestá dissolvendo as fronteiras entre as telecomunicações,os mass media e a informática, isto é, entre o telefone, atelevisão e o computador ou entre a televisão, a Internet eo computador. Textos, sons e imagens são transforma-dos em bits, acarretando a substituição das diferentes tec-nologias que eram necessárias para as várias transmissõesanalógicas – telégrafo para texto, telefonia para voz, ra-diodifusão para sons e imagens, etc. – por redes integra-das de usos múltiplos – via cabo ótico, satélites ou radio-digitais.

Dessa forma, o plural comunicações parece a formamais adequada para identificar a nova realidade que emer-

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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÕES E DEMOCRACIA

aquela definida em termos de comunicação. Dos estudos quetiveram origem nas pesquisas eleitorais de Paul Lazarsfeld,na década de 50, desenvolveu-se o conceito de “líderes deopinião” responsáveis diretos pelos diferentes fluxos de co-municação na sociedade. Esses líderes de opinião são consi-derados numa posição social central não só por observado-res imparciais, como também por eles próprios, que “sesentem” mais próximos do centro da sociedade.

Por outro lado, na Sociologia e na política, o estudo deGeertz (1985) – um antropólogo – recolocou de maneiraconvincente a questão da definição do conceito weberianode carisma. Afirma o autor, com base em extensivos es-tudos de poderosos líderes dos séculos 14, 16 e 17, quecarismáticos são aqueles que, mais do que característicaspsicológicas individuais, conseguem aproximar-se docentro da sociedade, sendo que esses centros nada têm aver com geometria e pouco com geografia, consistindo“no ponto ou pontos na sociedade onde suas principaisidéias se encontram com suas principais instituições paracriar uma arena na qual acontecem os eventos que afetama vida de seus membros de maneira mais decisiva”.

Desta forma, a centralidade das comunicações nas socie-dades contemporâneas refere-se à mesma noção de centrali-dade que está presente na identificação dos cidadãos commaior participação política e também redefine o conceito decarisma.

E a centralidade das comunicações?Antes de mais nada, é preciso considerar que a exis-

tência de sistemas nacionais (networks) consolidados detelecomunicações – indispensável base física – é, natu-ralmente, um pressuposto para se falar em uma socieda-de media centered. Assim, este artigo se atém, ainda quesumariamente, na manifestação da centralidade das co-municações nas diferentes esferas da atividade humanano mundo contemporâneo.

No que se refere à centralidade econômica, vale lem-brar o exemplo dos Estados Unidos: estima-se que o se-tor de comunicações representará 1/6 ou cerca de 17% detoda a economia norte-americana no ano 2000. “Em ter-mos globais é possível afirmar que este é o setor da eco-nomia que mais cresce e mais crescerá até depois do iní-cio do próximo milênio. Isso será medido na base de dezenasde trilhões de dólares nos próximos dez anos”, afirmou opresidente da Federal Communication Commission ameri-cana, em 1995 (Hundt, 8/11/95).

Quanto à centralidade social, basta mencionar o papelcrescente das comunicações no processo de socializaçãoe, em particular, no processo de socialização política.Como se sabe, a socialização é um processo contínuo quevai da infância à velhice e é através dele que o indivíduointernaliza a cultura de seu grupo e interioriza as normassociais. Uma comparação da importância histórica das

instituições sociais no processo de socialização revela que,nos últimos 30 anos, as igrejas, a escola e os grupos deamigos têm perdido espaço para as comunicações.

Já para a centralidade das comunicações na política, orespeitado cientista político italiano Giovanni Sartori(1992) afirmou recentemente que “a televisão está mu-dando o homem e está mudando a política. A primeiratransformação engloba a segunda. Porém é a videopolíticaa que melhor representa, neste momento, o poder do ví-deo, a força que nos está modelando. Por isso, a video-política transforma a política no mais amplo contexto deum videopoder que está transformando em homo ocularo homo sapiens, produto da cultura escrita”.

De fato, além de substituir os partidos políticos na fun-ção de principais mediadores entre candidatos e eleitores nascampanhas eleitorais, as comunicações têm desempenhadooutras funções que, tradicionalmente, foram atribuídas aospartidos, tais como: definir a agenda dos temas relevantespara a discussão na esfera pública; gerar e transmitir infor-mações políticas; fiscalizar a ação das administrações pú-blicas; exercer a crítica das políticas públicas; e canalizar asdemandas da população junto ao governo (Lima, 1998a).

Finalmente, é na esfera da cultura que a centralidade dascomunicações torna-se ainda mais importante. Aqui ela de-corre do poder de longo prazo que o conteúdo das comuni-cações tem na construção da realidade através da represen-tação que fazem dos diferentes aspectos da vida humana.Aponta-se aqui para o reconhecimento do poder das comu-nicações, agora, não mais em termos de efeitos comporta-mentais de curto prazo, mas sim de “efeitos cognitivos” delongo prazo, que seriam capazes de “condicionar a maneirapela qual os indivíduos percebem e organizam seu ambientemais imediato, seu conhecimento sobre o mundo e a orien-tação em relação a determinados temas, assim como sua ca-pacidade de discriminacão referida aos conteúdos da comu-nicação de massas” (Lima, 1998d).

O BRASIL E A SOCIEDADEDAS COMUNICAÇÕES

A indagação que se coloca de imediato é saber se asociedade brasileira contemporânea poderia ser identifi-cada como uma sociedade das comunicações. Manifesta-se entre nós a centralidade contemporânea das comuni-cações nas diferentes esferas da vida humana?

Em primeiro lugar, deve-se registrar que o pressupos-to básico de um sistema nacional de comunicações só seconsolida no Brasil a partir da década de 70, com o surgi-mento das redes nacionais de televisão. Existiram, é ver-dade, transmissões de rádio (AM e OC) em rede desde adécada de 40 (a mais famosa continua no ar até hoje, arede oficial A Voz do Brasil ) e, pelo menos, uma revista

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– O Cruzeiro, dos Diários e Emissoras Associados –, quecirculava nacionalmente e chegou a ter uma tiragem de550 mil exemplares na década de 50. Entretanto, essasexperiências não caracterizam a produção e a distribui-ção nacional, integrada e centralizada, de informações eentretenimento definidos pelos mídia de massa. É a partirda década de 70, após a criação da Embratel, que se tornapossível a integração do país por redes nacionais de tele-visão, mais recentemente também por redes de rádio (FMe AM). Da mesma forma, jornais e revistas, hoje com ti-ragens superiores a um milhão de exemplares, circulamem todo o território nacional (Lima, 1998a).

No que se refere à centralidade econômica das comuni-cações, a situação brasileira contemporânea abriga grandescontradições. De um lado, o setor movimenta recursos fan-tásticos. Um exemplo é o anúncio do Ministério das Comu-nicações, fartamente veiculado na mídia no final de 1996,que prometia o segundo maior plano de investimentos nosetor do planeta, logo depois da China, no valor de 75 bi-lhões de reais (Veja, 25/12/96). Poucos meses depois, emmarço de 1997, esses valores foram revisados e o total deinvestimentos previstos até 2003 aumentou para 83,5 bilhõesde reais (Lobato, 21/03/1997). Além disso, estimativa doBanco Lloyds de Londres antecipou em 95 bilhões de dóla-res o valor total da privatização das telecomunicações bra-sileiras até o mesmo ano de 2003 (Veja, 25/06/97).

Por outro lado, considerando que o critério tradicionalpara se avaliar até que ponto uma sociedade avançou nosentido da sociedade da informação é o tamanho de suaforça de trabalho alocada no setor de informação, os in-dicadores disponíveis apontam o Brasil caminhando paradireção bastante diferente.

Estudo comparativo recente realizado por Pochmann(1998) no âmbito do Cesit-Unicamp revela que, ao con-trário do que tem estado presente no discurso oficial, “asmudanças verificadas na estrutura ocupacional não per-mitem observar claramente os efeitos decorrentes da di-fusão do novo paradigma técnico-produtivo. Os postosde trabalho abertos no setor de serviços tenderam, em suamaior parte, a se concentrar na classe de distribuição, tendoos serviços de produção reduzido a sua participação rela-tiva no total da ocupação. (...) a evolução das ocupaçõesno período recente no Brasil aponta para uma definiçãodistinta da verificada nas economias avançadas”.

Ademais, se forem aplicados outros critérios normal-mente usados para se avaliar o grau de informatização deuma sociedade (Dordick e Wang, 1993), verifica-se apermanência dos paradoxos. O mais importante deles re-fere-se ao fato de que o Brasil possui um dos maiores ín-dices de disponibilidade de aparelhos de televisão, pordomicílio, do mundo: 85,1% o que corresponde a pertode 50 milhões de aparelhos (Grupo de Mídia, 1997).

As implicações deste fato remetem a uma outra esferada centralidade das comunicações: o processo de sociali-zação. Apesar de serem poucos os dados disponíveis so-bre o assunto, é possível identificar tendências compa-rando duas pesquisas: uma realizada na década de 60, antesportanto da existência de um sistema nacional de comu-nicações no Brasil, que aparece em Lambert e Klineberg(1967); e outra da DataFolha, realizada em 1997.

Na primeira pesquisa, crianças brasileiras entre 6 e 14anos de idade citavam os pais, o cinema, as revistas e osamigos entre suas principais fontes de informação. Trin-ta anos depois, a pesquisa realizada pelo DataFolha (1997)revela uma presença ainda mais decisiva das comunica-ções. Na pergunta “V. poderia nos dizer qual a importân-cia que cada uma das fontes de informação abaixo tempara v. saber o que acontece no mundo”, a televisão(75%), os jornais (55%), as revistas (52%) e a Internet(50%) receberam a resposta “muito importante”.

Estes dados confirmam também outra pesquisa reali-zada pelo Cedec/DataFolha/USP, que constatou que 86%(1989) e 89% (1990) dos entrevistados declaram que to-mam conhecimento sobre os acontecimentos políticosatravés da televisão (Moisés, 1992).

Confirma-se, portanto, a importância singular da televi-são – e de seu controle – na sociedade brasileira contempo-rânea. Como se sabe, as profundas reformas que têm sidoimplementadas desde 1995 pelo governo de Fernando Hen-rique Cardoso não foram ainda capazes de alterar o quadrotradicional e histórico do setor de comunicações: oligopoli-zação privada, controle de poucos grupos familiares e vínculocom as elites políticas locais e regionais (Lima, 1998b e 1998c).

E A DEMOCRACIA?

Uma consulta à história da literatura que acompanha aintrodução das novas tecnologias de comunicações, desde ametade do século XIX até Bill Gates, indicará com nitidez aassociação constante dessas tecnologias com o avanço de-mocrático e a melhoria da qualidade de vida. A história “dofuturo” nesse discurso é a celebração constante da democra-cia através da participação e da integração crescentes.

A falácia desse discurso assenta-se em dois pressupos-tos equivocados: o primeiro refere-se à equação acríticade informação e conhecimento; e o segundo, menos cla-ro, indica que os problemas da democracia decorrem daescassez de informação. Apresenta-se, a seguir, uma bre-ve análise de cada um desses dois pressupostos.

Informação versus Conhecimento

Citam-se, aqui, as palavras de James Carey e John Quirkem brilhante ensaio sobre “A história do futuro” (1996).

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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÕES E DEMOCRACIA

“Nos escritos sobre a nova tecnologia das comunica-ções, raras vezes a relação entre informação e conhecimen-to é articulada de modo adequado, porque ela simples-mente não é reconhecida como um problema. Informaçãoe conhecimento são geralmente considerados como idên-ticos e sinônimos. Assume-se que a realidade consiste dedados ou bits de informação, e que esta realidade é, emprincípio, registrável e armazenável. Portanto, é possível,também em princípio, para um usuário saber tudo ou pelomenos ter acesso a todo o conhecimento. Mas estaepistemologia primitiva, reconhecidamente descrita demodo primitivo, não conseguirá executar o trabalho inte-lectual ou transportar a carga argumentativa colocadasobre ela. O conhecimento, no final das contas, é para-digmático. Ele não surge na experiência em forma dedados. Não existe uma coisa chamada “informação” so-bre o mundo fora dos sistemas conceituais que criam edefinem o mundo no próprio ato de conhecê-lo. Essesparadigmas estão presentes nos sistemas de informação;eles são metainformativos, e estão contidos nos progra-mas de computadores, nos instrumentos estatísticos, noarmazenamento de informação e nos códigos de recupe-ração, nas teorias técnicas que pré-definem a informação,e, talvez ainda mais importante, nos sistemas de oposi-ções binárias, esta língua franca da ciência moderna. Alémdisso, como se espera que a história e a sociologia da ciên-cia já tenham demonstrado, os paradigmas não são inde-pendentes de propósitos e distorções exteriores; eles ex-pressam em linguagem técnica um raciocínio impregnadode valores. Os sistemas de informação por computador nãosão apenas meros instrumentos de registrar informaçõesobjetivas. Eles são emanações de atitudes e esperanças.”

Informação versus Democracia

O discurso contemporâneo sobre a relação entre infor-mação e democracia parece supor também que mais infor-mação, com maior velocidade, solucionaria os problemasda consolidação democrática. Isso implicaria reconhecerque os problemas da democracia decorrem da escassezde informação? Seria esse o caso? É verdade que aquelesque detêm o poder são os que estão mais bem informa-dos? São aqueles que podem download as informaçõesdisponíveis na Internet?

A reflexão sobre a sociedade das comunicações reme-te necessariamente para a questão do poder no mundo con-temporâneo uma vez que são as comunicações que cons-troem a representação das coisas e, portanto, definem arealidade. Ademais, a centralidade das comunicações nas

diferentes esferas da atividade humana faz com que o se-tor ocupe hoje posição ímpar em relação ao efetivo con-trole do poder e, portanto, a definição da democracia. Alição que se tem da história recente é a de que quanto maisfechado e oligopolizado um sistema de comunicações,existem menos diversidade e menos pluralidade, vale di-zer, menos democracia. Desta forma, democratizar ascomunicações é sinônimo de democratizar a sociedade.Não seria exagero, portanto, reinvidicar a democratiza-ção das comunicações como prioridade número um doprojeto democrático brasileiro para o século XXI.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

Este texto corresponde a outline de apresentação oral feita no IV Simpósio In-ternacional Fundação Konrad Adenauer – Organização Democrata Cristã daAmérica, “A Questão Democrática como Projeto para o Século XXI”, realizadoem Teresópolis, RJ, de 3 a 5 de junho de 1998.

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A

O MAL-ESTAR BRASILEIRONA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

ANA MALIN

Economista, Consultora em Gestão da Informação

Contudo, terei eu o direito de presumira sobrevivência de algo que já se encontrava

originalmente lá, lado a lado com o queposteriormente derivou? Sem dúvida, sim.

Freud, O Mal-Estar na Civilização

forma brasileira de adesão ao mundo pós-indus-trial – entendido aqui como o das sociedades quese estruturam em torno do trabalho de produção

e propagação da informação – é tema pouco explorado.No mais das vezes, a atenção da reflexão brasileira está

voltada para as versões de origens européia, no caso dareflexão teórica acadêmica, e norte-americana, no casoda reflexão sobre as práticas, numa postura de comenta-ristas de textos estrangeiros.

Portanto, instigar a que se pense no encontro donosso modo particular de fazer e saber com as formaspós-industriais de fazer e saber, ainda que por trilhaseventualmente equivocadas, pode ser em si mesmo ummérito.

O ponto de partida, neste artigo, são observações so-bre o funcionamento do ambiente de informações noEstado e a consideração de que a sociedade de informa-ção aguça o antigo desafio de o Estado brasileiro condu-zir e se mover sobre processos estruturados de informa-ção.

Responder à demanda por produção e distribuição deinformação de maneira “industrializada”, como ocorreatualmente, requer um padrão gerencial baseado em re-gras impessoais, estáveis e racionalmente estruturadas. Éa tradicional fragilidade desse padrão de comportamen-

to, sobretudo no âmbito institucional, que alimenta o mal-estar num mundo movido a partir de informações.

O peso dessa herança sobre a governança e a governa-bilidade no Brasil de hoje se manifesta através de inúme-ros sintomas, aparentemente desconexos.

Parte da questão do déficit público passa pela soluçãodo problema da informação sobre gastos, receitas e patri-mônio; parte do problema da inserção competitiva doBrasil no mercado mundial passa pelo equacionamentode programas de disseminação de informações; parte doproblema da administração federal é não saber quem sãoseus funcionários e tampouco quantas são as suas unida-des administrativas. Mais ainda, parte do problema dacorrupção passa pela resolução de questões de informa-ção, assim como parte da via-crúcis que são obrigados apercorrer os beneficiários da Previdência decorre de fal-ta de informações sobre seus processos.

Qual o sentido e as conseqüências de se omitir a for-mulação destes problemas, por exemplo, nesses termos?

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO:O PADRÃO NORTE-AMERICANO

Lidar com uma nova formação social causa certo in-cômodo, a começar pela dificuldade de nomeá-la. Esta-mos em meio a um processo de transição não concluído edo qual não se possui afastamento histórico, por isso asnomeações são escorregadias.

Uma maneira já difundida, e bastante explicitativa, éa de chamar esta nova realidade de Sociedade da Infor-mação. Para o entendimento deste trabalho, que olha onovo sob a ótica de formações sociais que se estruturamem torno da informação produzida intencionalmente,como uma atividade racional voltada para esse fim e con-

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O MAL-ESTAR BRASILEIRO NA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

trolada pelos resultados que gera, quer dizer, como pro-duto de uma estrutura de trabalho voltado expressamentepara este objetivo, a nomeação é adequada.

Nas precedentes sociedades agroindustriais, o eixo dotrabalho social organiza-se em torno da produção e movi-mentação dos objetos físicos que satisfazem as necessida-des humanas. A quase totalidade da força de trabalho estavaaí ocupada e a demanda para investimentos no campo dotrabalho com conhecimento e informação era marginal.

Hoje essa equação inverteu-se e, no máximo, 20% daforça de trabalho dos países desenvolvidos trabalham coma “produção e movimentação dos objetos físicos”. O con-junto central de atividades produtivas passa a ter por raisond’être a produção/tratamento/propagação de conhecimen-tos sob a forma de informação. A produção, o tratamentoe a difusão de bens e serviços de informação respondem,atualmente, por cerca da metade da riqueza e dos postosde trabalho nos EUA.1

Assim, a sociedade da informação é vista por detrásdo grande outdoor tecnológico, como complexas redesprofissionalizadas de produção e uso da informação, dis-tribuídas, em grande medida, através do mercado. Seudesafio é o de produzir e administrar o conhecimento esuas ferramentas de trabalho no sentido mais amplo – ouseja, como usar conhecimento para gerar conhecimento– e não mais como produzir e distribuir bens materiais.2

A institucionalização do status de recurso para a in-formação, que ocorre nesse contexto, transforma a infor-mação em objeto passível de políticas econômicas e ge-renciais. O volume de ações desencadeadas neste sentidoé intenso e grande: em vários países, a partir dos anos 70,são buscadas formulações em matéria de política e ge-rência da informação, tateando-se sobre o movediço ter-reno da definição do que os temas devam comportar.

Práticas e concepções desta natureza pressupõem umcerto tipo de mentalidade, que, traduzindo através do dis-curso da sociologia, corresponde a estender a base da ra-cionalidade característica da sociedade industrial capita-lista – a razão formal ou funcional que assegura àsorganizações, conforme Weber (1979), “a calculabilidadeprecisa dos fatores técnicos, a completa previsibilidadede funcionamento”, a razão que considera o homem cal-culador utilitário de conseqüências – para além do mun-do do fazer material, agora também para o mundo do sa-ber imaterial e inexaurível.

É como extensão deste processo que, contemporanea-mente, a informação deixa de ser vista como um fenôme-no espontâneo e fortuito da vida cotidiana – como o porfavor, uma informação! – e, para o bem e para o mal, passaa ser objeto de maciço processo de trabalho industrial.

O discurso da informação floresce e se desenvolve apartir e sobretudo nos EUA, sendo natural que aí se en-

contrem a fundação de uma política de Estado coerente euma prática gerencial específica.

Essa prática interessa aqui por diversas razões: por seprestar a ser contraponto, como em um jogo de forma efundo, ao modelo brasileiro; por ilustrar o atual padrãode referência do (novo) conceito de política e gestão dainformação governamental; e, sobretudo, porque o cen-tro sempre pode ser tomado como paradigma para a peri-feria, até porque os que se desenvolvem mais cedo deter-minam a agenda para os que chegam mais tarde.

Os termos usados para enunciação da política norte-americana são bastante includentes: ficam abarcadas ques-tões ligadas desde à burocracia, à privacidade, à transpa-rência governamental, aos fluxos de dados transfronteira,à construção da infra-estrutura de informação – parquede tecnologias de informação – até ao desenvolvimentodo mercado de produção, organização e distribuição daprópria informação.

Para se ter uma idéia dos esforços nesta área, no perío-do 1977-91, de auge do liberalismo norte-americano, fo-ram aprovadas cerca de 300 leis sobre o assunto (Hernone Mcclure, 1993).

Um dos textos oficiais de referência é o Policy for themanagement of federal information resources, que defi-ne diretrizes analíticas e de procedimentos para toda ainformação governamental, quer seja ela tecnológica,administrativa ou censitária.3

Isto quer dizer que a questão Estado-Informação nosEUA é colocada em cima da mesa enquanto tal e não comorelações desintegradas pelos inúmeros e tradicionais cam-pos da atividade-fim governamental: “O governo federalé o maior produtor, coletor, consumidor e disseminadorde informações nos EUA. Em função da extensão das suasatividades, a gestão dos recursos federais de informaçãoé uma área de crescente importância para todas as agên-cias federais, para os governos estaduais e locais assimcomo para o público” (OMB no A-130, 1996:64).

Acreditando que a informação governamental “seja umrecurso de valor nacional capaz de prover o público comconhecimento sobre o governo, a sociedade, e a economia;que seja um meio de garantir o controle (accountability) dogoverno, de gerenciar suas operações e de manter a boa per-formance da economia, sendo ela mesma uma commodity”,estabelece um conjunto de ações orientadas por quatro gran-des grupos de princípios políticos.

A democracia e o direito público de acesso à infor-mação governamental, tal como fixados na Constitui-ção Norte-Americana e no Freedom of Information Act, 4

justificam a obrigatoriedade de programas em cadaagência, visando estruturar e disseminar informaçõessobre missão, ações e serviços, além de obrigar o ca-dastramento de suas bases de dados num catálogo ge-

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ral de informações governamentais – GovernmentInformation Locators System GILS – disseminado pu-blicamente desde 1982.

O princípio do direito à privacidade gera talvez a maisimportante fieira de projetos que serviram para organizara área. A busca do “equilíbrio entre os direitos à privaci-dade e as necessidades governamentais de dispor de in-formações personalizadas num cenário de crescente usodas tecnologias da informação” acarretou a obrigatorie-dade de atualização e divulgação de um rigoroso inven-tário dos sistemas automatizados e não-automatizados quecontenham dados individuais; de sempre responder à de-manda do cidadão sobre quais informações a respeito deledetém, como estão sendo usadas e de garantir o direito àfidedignidade e integridade da informação, com dever deretificação no caso de erros.5

Os objetivos da desburocratização, desregulamentaçãoe de corte dos custos públicos – uma das pernas maisimportantes das políticas de controle do déficit norte-americano – geraram a idéia da reforma administrativaconduzida pelo critério da informação: reviram-se os inú-meros microambientes de trabalho da área pública, colo-cando-se questões como: Quais informações são sistema-ticamente produzidas? É missão da agência produzir essasinformações? Esta atividade duplica a atividade de algumoutro órgão? A informação é duplamente coletada? Qualo custo de sua produção e sua manutenção?6

Como resultado, soube-se que os gastos com informa-ção variavam entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões porano e que 25% dos dados coletados eram redundantes,resultando, a partir daí, a formação de “condomínios” deórgãos usuários da mesma informação, ou ainda a inade-quação de informações, que acarretava custo extra de U$1bilhão no pagamento a veteranos e outros pensionistas(Burk, 1984).

O quarto ponto orientador da política, subjacente aosdemais e fundador de uma concepção que vem tornando-se universal, é o princípio – tornado lei para a burocraciafederal – de que informação é gerenciável. A filosofia doInformation Resources Management constitui-se em dis-ciplina e prática, ganhando organicidade e estrutura pró-pria na área federal. Trata-se de um órgão dirigente dafunção, ligado à Presidência da República, com funçõesreproduzidas em cada uma das agências federais sob co-ordenação de um Chief of Information Office – CIO lo-cal, com responsabilidade de planejar “cada estágio dociclo de vida da informação, o efeito de decisões e açõessobre os outros estágios do ciclo, particularmente àque-les relativos à disseminação.”7

Talvez, dentre todas as posições do documento, a maissurpreendente e reveladora para os objetivos deste artigoseja como a questão tecnológica é tratada. Num documento

oficial de política de informação de 64 páginas, a diretriztecnológica ocupa duas linhas: “tecnologia da informa-ção não é um fim em si mesmo. É um conjunto de recur-sos que pode trazer efetividade e eficiência aos progra-mas federais”(OMB no A-130, 1996:5).

O PADRÃO BRASILEIRO

A inserção do Brasil na sociedade da informação se-gue caminho contrário e paradoxal: ao lado da fácil acei-tação dos aparatos tecnológicos, há uma resistência silen-ciosa mas tenaz às práticas necessárias para produzir eorganizar as informações.

A valorização do aspecto exterior – no caso os artefa-tos tecnológicos – em detrimento da visão do trabalhorequerido para a construção e uso de cadeias de informa-ção – que aí transitam – denuncia o antigo hábito de ado-tar técnicas como meras técnicas.

A lógica que impera inverte posições e descola a tec-nologia de seu sentido final, isto é, o de ferramenta quetem por objeto tratar e propagar informação. Uma primeiraexplicação seria a de que esse comportamento não é pri-vilégio nosso, mas sim decorrência de um baixo estágiode familiaridade com as tecnologias: o computador aindanão seria para nós algo transparente como o lápis e o pa-pel acabaram se tornando.

Anthony Smith (1987), ao avaliar a relação com oscomputadores na Europa, nos anos 80, usou a seguintemetáfora: “Quando se martela um prego num pedaço demadeira, se a pessoa está demasiadamente consciente domartelo, não consegue pregar corretamente o prego. Ocarpinteiro habilidoso não fica obcecado pela noção domartelo.”

No entanto, a postura brasileira não parece decorrerde uma questão de estágio. Nos anos 70, o Plano de In-formatização da Sociedade Francesa – conhecido comoRapport Nora – ao analisar os documentos oficias con-gêneres do Canadá, EUA, Alemanha e Japão registrava:“Uma mudança na definição da própria informática. Aoinvés de ser vista como uma técnica aplicável direta ouindiretamente à produção da maior parte de bens e servi-ços, eles a vêem como uma tecnologia aplicada ao trata-mento de um objeto específico: a informação” (Lemoine,1978).

Essa transferência de objeto fazemos a duras penas. Aprópria predominância do termo informática sobre o ter-mo anglo-saxão tecnologia da informação – que só maisrecentemente começa a ser empregado – é uma manifes-tação dessa situação, legando uma visão por demais in-dustrial da sociedade da informação.

O seguinte caso pode ilustrar – quase como caricatura –o raciocínio. No início dos anos 90, por ocasião da pre-

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O MAL-ESTAR BRASILEIRO NA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

paração de um acordo bilateral de cooperação entre oBrasil e a França, uma das demandas importantes brasi-leiras era pela tecnologia de um sistema francês chamadoSTAIRS, que poderia resolver o problema do controle daedição dos inúmeros atos legais do Executivo federal efacilitaria a edição eletrônica do Diário Oficial.

A visita que se seguiu ao órgão francês – Centre Nationald’Informatique Juridique – mostrou onde, de fato, resi-dia o fator de sucesso do STAIRS: há 30 anos uma equi-pe de juristas realizava, centralizadamente, a consolida-ção de todos os atos gerados pelos ministérios franceses,analisando o efeito de uns sobre os outros, assinando pes-soalmente cada parecer e tratando as informações segun-do procedimentos padrões. É natural que a digitalizaçãodos arquivos em papel e o emprego do sofware STAIRS,neste contexto, tenha trazido grande produtividade e efi-ciência. Desde 1985 o governo francês dispõe dos atoslegais do Executivo consolidados em um banco de dadosdisseminado pelo próprio serviço jurídico e por serviçosprivados.

Hoje, sete anos depois deste episódio, ao consultar ahome page da nossa Imprensa Oficial em busca de atoslegais – do Poder Executivo, da Presidência da Repúbli-ca ou de algum dos outros sete ministérios oferecidos nomenu do site – a resposta encontrada para todas as op-ções: “A matéria solicitada não está disponível”, seguidada seguinte justificativa: “Este é um projeto-piloto de in-formatização dos Jornais Oficiais, elencando apenas al-gumas matérias deste ano, enviadas em meio magnético.Aguarde outras informações e novas publicações.”8

O paradoxo permanece em um site na Internet que nadainforma e que revela um antigo traço de desleixo – comonos diria Sergio Buarque – na descompromissada respos-ta oficial.

Até que ponto este caso pode ser generalizado como re-fletindo a situação da gestão da coisa pública no país? Maisdo que se possa imaginar. O governo federal, para se falarde um importante ator, nunca teve tradição de cuidar dasquestões relativas à informação e à meta-informação, aindaquando estavam grudadas ao suporte papel, nas bibliotecase nos arquivos de aço. Nem tem tradição de planejamento,portanto, de fixar uma demanda por informações baseadaem problemas a serem resolvidos.

A entrada do novo aparato tecnológico junto com umainserção que se baseia cada vez mais em transferência deinformação de e para um meio ambiente complexo tornaexorbitante para o país o preço a ser pago por essa tradição.

As notícias sobre recentes recadastramentos – aposenta-dos, funcionários ativos e inativos, pessoa física, devedoresdo Banco Central, etc. – denunciam a necessidade de esfor-ço especial para se atualizar registros administrativos bási-cos sem os quais é difícil imaginar como se governar.

A introdução das tecnologias de informação no âmbi-to do setor público se deu, até hoje, sem um pronuncia-mento político a seu respeito. As tentativas de coordena-ção das ações na área têm sido reiteradamente rechaçadas.O resultado é o desconhecimento dos valores e da topo-logia da área, em termos de hardware, de software, deacervos, de recursos humanos e financeiros.

Mesmo uma operação do porte do censo tem seu custodesconhecido, como revelou o ex-presidente do IBGE,Simon Schwartzman: “para ser sincero, não tenho a me-nor idéia do custo do censo. No serviço público as coisassão assim” (Jornal do Brasil, 09/09/1994).

Em 1984, a extinta Secretaria Especial de Informática– SEI publicou um diagnóstico da informática públicaregistrando “o desperdício e a inadequação de recursostecnológicos e o acúmulo de desconhecida massa de in-formações armazenada em meios estanques e subuti-lizada”. Em 1986, através de um esforço centralizado,realizou um grande levantamento com o objetivo de “for-necer indicadores para caracterização de bases de dadosmantidas por instituições públicas de modo a facilitar oacesso pelos interessados” (MCT/Conin/SEI, 1984:2). Em1989, 1991 e 1996 tenta-se retomar o processo de atuali-zação do diretório de bases sem sucesso. O último – e único– retrato da situação data, portanto, de mais de dez anosatrás.

José Maria Jardim, em seu trabalho sobre a opacidadeinformacional do Estado brasileiro, refere-se a essa situa-ção como o “caos informacional da administração públi-ca na sua teia de estruturas organizacionais e nos conten-ciosos legais entre seus aparelhos” (Jardim, 1998).

Nesse frouxo regime de informação, os órgãos tendem ase relacionar com suas informações como se estas fossemobjeto de apropriação privada. É interessante observar, porexemplo, que nem toda a crise gerada pelo nosso déficit pú-blico traz à superfície a questão da redução de custos viacompartilhamento de acervos e dados, que no exemplo nor-te-americano gerou redução de custos de US$ 5,2 bilhões(Burk, 1984:23). Ou que a recente pressão privatizante edesregulamentadora tenha deixado intocado o monopólioinstitucional da informática pública, em que empresas esta-tais praticam preços e serviços a salvo de concorrência.9

Entretanto, talvez seja nas questões relativas à esfera dadistribuição da informação governamental que o caráter per-nicioso da situação se manifeste com repercussões políticasmais fortes. A ausência de diretrizes sobre a maneira de seproceder, o que disseminar, para quem, quando e quantocobrar faz da informação uma moeda negociada segundoopacos critérios, além de desincentivar a organização de ummercado de informações no país.

Na década de 80, por exemplo, a equipe do Serpro quetrabalhava no sistema Aruanda – serviço de disseminação

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da própria empresa –, para conseguir colocar no ar uma basede dados pública com informações derivadas do Impostosobre Produtos Industrializados – IPI, teve que recorrer àintermediação da Confederação Nacional da Indústria – CNI.A uma primeira solicitação de liberação das informações paradisseminação pública, feita pelo próprio Serpro, a SRF, pro-prietária das informações, negou autorização. Quando novasolicitação, para o mesmo objetivo, foi realizada através daConfederação, um convênio de repasse de informações foiassinado e a base de dados foi construída e disseminada,assumindo a CNI a figura de provedora das informações quea própria empresa já dispunha.10

Recentemente, em janeiro de 1999, um questionamentosobre os critérios de uso do mailling da Receita Federalveio à tona na imprensa: a notícia relata que um brasilei-ro temporariamente residente no exterior e precisandofornecer à Secretaria da Receita Federal um endereço paracorrespondência no Brasil tomou “emprestado” o ende-reço de um amigo expressamente para essa finalidade.Desde então, além da correspondência da SRF, todo tipode propaganda, nomeadamente cartões de crédito, che-gam em nome do residente no exterior à casa do amigo(Jornal do Brasil, 29/01/99). Quais são – ou deveriam ser– nossos critérios de disponibilização das informaçõesgovernamentais para o mercado?

Desde os anos 80, essa questão vem sendo regula-mentada de forma bastante convergente em diversospaíses – como, por exemplo, nos EUA e na França(Martine, 1996) –, dispondo-se hoje de um corpo deorientações e determinações – políticas, legais, admi-nistrativas e econômicas – que cercam o assunto comcritérios de acesso à informação, critérios para usosdiferentes daquele para os quais a informação foi cole-tada, critérios de tarifação e fixação de preço para usuá-rios e condições para terceirização e parceria com osetor privado.

Existe uma lógica que torne o quadro brasileiro inteligível?Como mostram historiadores, vêm de longe as práti-

cas patrimoniais brasileiras de estabelecer regras casuís-ticas segundo interesses particulares dos ocupantes doscargos públicos e não segundo interesses coletivos racio-nalmente estruturados.

O padrão europeu de ruptura e até oposição entre ocírculo familiar e o Estado, em que a lei geral suplanta alei particular, fazendo do simples indivíduo um cidadãoe substituindo as instituições e relações sociais fundadasem laços de afeto e de sangue por aquelas baseadas emprincípios abstratos, processa-se aqui com dificuldade.

Esse desvio brasileiro em relação à matriz do com-portamento europeu – sentido por nós como uma falta,quase como uma ferida narcísica – é retratado, em 1936,por Buarque de Holanda: “No Brasil, onde imperou,

desde tempos remotos, o tipo primitivo da família pa-triarcal, não era fácil aos detentores das posições pú-blicas de responsabilidade, formados por tal ambiente,compreenderem a distinção fundamental entre os do-mínios do privado e do público. As funções, os empre-gos e os benefícios que deles aufere relacionam-se adireitos pessoais do funcionário e não a interesses ob-jetivos, como sucede no verdadeiro Estado Burocráti-co (...) Cada indivíduo, neste caso, afirma-se ante osseus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta leicontrarie suas afinidades emotivas, e atenta apenas aoque o distingue dos demais, do resto do mundo. (...) Apersonalidade individual dificilmente suporta ser co-mandada por um sistema exigente e disciplinador.”

Raimundo Faoro (1973), na sua abordagem política denossa história realizada na década de 50, mostra que aoEstado Moderno – caracterizado por relações de autori-dade entre posições ordenadas sistematicamente de modohierárquico, por esferas de competência claramente dis-tintas e uma precisa separação entre pessoa e cargo – con-trapõe-se “a realidade histórica brasileira, que demons-trou a persistência secular da estrutura patrimonial, resis-tindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em faseprogressiva, da experiência capitalista. Adotou do capi-talismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar.(...) Daí se arma o capi-talismo politicamente orientado, não calculável nas suasoperações”.

E que à burocracia, expressão formal do domínio racio-nal, própria a empresa e ao Estado modernos contrapõe-se “o estamento burocrático capaz de absorver e adotaras técnicas deste, como meras técnicas” (Faoro, 1973).

Se este traço sempre nos marcou – também se mani-festando no paradoxo de importar carro e não ter estradas –, oproblema é que ele hoje incide mais diretamente sobre ocoração dos requisitos para o desenvolvimento das socie-dades.

Informação – do latim informatio “ação de formar”; v.informare, “dar forma, esboçar” (Dantas, 1994:36) – é umamaneira específica de se formatar conhecimento. Esseformato só se torna dominante num contexto histórico emque se requeira que o conhecimento possa ser decifradopor um emissor e um receptor qualquer, sem relaçõespessoais, assim como a previsibilidade e a calculabilidadenas ações sociais.

Dificilmente na época dos poetas gregos do século VI,quando a verdade residia no que o discurso era – quem opronunciava e como – e não no que ele dizia, ou nas co-munidades regidas por rituais sagrados, a informação tor-nar-se-ia um acontecimento importante.

A herança de um baixo grau de conversão das instân-cias de relacionamento pessoal em relacionamento impes-

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O MAL-ESTAR BRASILEIRO NA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

soal dentro da nossa coisa pública, que tantas e gravesrepercussões traz à sociedade brasileira, é que tambémpode tornar inteligível a frouxidão do ambiente brasilei-ro de informações governamentais. Nesse contexto, a in-teração verdadeiramente eficaz dentro e com o Estado,tanto no ambiente de trabalho quanto no exercício dopoder, é a rede de relações pessoais, que passa a valermais do que as estruturas voltadas para atender aos clien-tes/usuários de forma impessoal.

Por isso, de fato, nunca foi estratégico dispensar altograu de atenção à organização das informações governa-mentais. Mais ainda, a instituição de regras universais,especialmente no tocante às informações, apresenta-secomo um incômodo adorno. Só levando em consideraçãoessa lógica, o quadro atual torna-se inteligível.

No entanto, o inexorável avanço da sociedade da in-formação torna cada vez mais aguda a situação e insus-tentável o custo da ação governamental brasileira. Alémdisso, mais grave é o fato de que a ausência de instru-mentos para controle das atividades operacionais do go-verno e dos seus recursos gerenciais e patrimoniais afetaa governança e a governabilidade do país. A forte crisede evasão de divisas que atinge a estabilidade monetáriado país nesta virada de 1998/99 está mais ligada à baixacredibilidade de que o Brasil consiga deter esses instru-mentos do que à questão da rentabilidade do capital.

A precariedade do ambiente de informação governa-mental afeta também a eficácia das políticas públicas, quenão levam em conta os requisitos de informação necessá-rios tanto para formulá-las quanto para sustentá-las emdireção aos objetivos desejados.

Infelizmente, ainda hoje, essa crise mantém-se invisí-vel, não se vislumbrando o fortalecimento de uma vonta-de política para enfrentá-la. Pelo contrário, o principalesboço de solução brasileira, que já começou a delinear-se, sem que a ele se preste muita atenção, contorna o en-frentamento dos reais problemas. E revela que – mais umavez no Brasil – mais fácil do que controlar o Estado écontrolar a sociedade com a qual tem de lidar: é este ocaminho que aponta a adoção do registro único do cida-dão e do registro único de empresa.

Essa solução “técnica” foi veementemente rechaçadatanto pelos EUA quanto pela União Européia, como umaindesejada saída autoritária. A opção foi, como já vistoaqui, pelo desenvolvimento de pesados programas gover-namentais de informação, que nas últimas duas décadas,além de garantirem ao cidadão o direito à vida privada,forneceram instrumentos para controle e transparência dasatividades e ações governamentais.

Como na velha piada, tem-se aqui a ilusão de resolver oproblema jogando fora o sofá da sala. O dramático desafiopara o próximo século é saber se conseguiremos romper com

a repetição aperfeiçoada desses velhos padrões. Na socieda-de da informação, mais do que na sociedade industrial, amodernização não pode ser uma mera questão de aparência.

NOTAS

1. Para um estudo mais detalhado sobre a economia da informação, ver Malin, 1994.

2.Vide a formulação sobre o assunto de Drucker, s.d.

3. OMB Circular no A-130. Management of federal Information reosurces. Feb. 1996.Office of Management and Budget, Executive Office of the President, Washington,USA. A primeira versão deste documento, que data de 1976, foi elaborada por umacomissão ligada ao presidente Carter e dirigida por Nelson Rockfeller.

4. U.S. 89TH Congress, 5 U.S.C. 552, 1966.

5. Vide Appendix I to OMB Circular no A-130, Federal Agency Responsabilitiesfor Maintaining Records About Individuals, p.18.

6. 44 U.S.C. Chapter 35 Paperwork Reduction Act (PRA) of 1980, as amendedby the Paperwork Reduction Act of 1995.

7. O conceito, oficialmente, representa planning, budgeting, organizing, directing,training, and control associeted with government information. It is concerned withinformation assets, or the content of information, as well as with information resources,or the equipment, funds, and technology. Abaixo do CIO, subfunções são criadas,como gestão de arquivos (records management ), gestão da disseminação (informationdissemination management), gestão das tecnologias de informação (informationtechnology management) vide OMB A-130, 1985, p.3 e 1996, p.6.

8. Mensagem enviada pelo site http://www.dou.gov.br

9. Trata-se, no governo federal, das empresas Dataprev, Serpro e Datamec e dasempresas estaduais de processamento de dados.

10. Trata-se da base de dados Cadin – Cadastro Industrial, que trazia a relação deinsumos e produtos por estabelecimento industrial declarados no anexo da declara-ção do Imposto de Produtos Industrializados conforme registrado em Serpro (1984).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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T

DESMIDIATIZAR O PENSAMENTOeconomia das representações e

subdesenvolvimento informacional

MARGARETHE BORN STEINBERGER

Professora de Comunicação Jornalística da PUC-SP

Os homens fazem sua própria história,mas não a fazem como querem

Marx. O 18 Brumário de Luis Bonaparte

comunidade global da informação e tornou-se um pode-roso instrumento de revitalização do capitalismo. Longede permanecer apenas na condição mediadora entre ohomem e o mundo, a mídia assumiu o papel de configu-rar e organizar esse mundo. No caso do Brasil, não é de-mais generalizar: todo poder emana da mídia, reconheci-da como legítima representante da opinião pública.2

A história da formação da opinião pública tem sidoobjeto de múltiplos estudos. Bourdieu (1980) provoca-doramente pontificava: “A opinião pública não existe.”Champagne (1990) define a opinião pública como “má-quina de guerra ideológica improvisada, durante o sécu-lo XVIII, pelas elites intelectuais e pela burguesia de togaa fim de legitimar suas próprias reivindicações no campopolítico e enfraquecer o absolutismo régio”. O reconhe-cimento da soberania popular engendrou um sofisticadorecurso de legitimação da vontade dos poderosos, substi-tuindo a força bruta (Darnton, 1987 e Luhmann, 1992).3

No universo da mídia, os processos de configurar e orga-nizar uma visão de mundo – sustentada como “consenso” elegitimada por sua atribuição à “opinião pública” – expres-sam-se através de diferentes estratégias e em múltiplos pla-nos: político, social, cognitivo. No plano político, regula-mentam a distribuição do poder por meio do critério de acessoà informação selecionada como relevante. No plano social,reconfiguram as diferenças sociais e o conceito de classe apartir de novos critérios para o estabelecimento de identida-des, sobretudo baseadas no consumo. No plano cognitivo,instalam um novo sistema de representações que pareceabarcar, inclusive, os demais planos.

Entre os vários planos, desenvolve-se uma relação di-nâmica avessa a hierarquias e esquemas de causalidadesrígidas. O fato de o plano cognitivo lidar com as repre-sentações não permite crer que ele tem ascendência so-

riamente potencializados pela máquina midiática, a sim-ples atuação junto a grandes jornais, rádios ou redes na-cionais de tevê transforma-o em figura pública da noitepara o dia. Como representante da instituição midiática,ele tem livre trânsito social e livre-arbítrio para classifi-car, nomear e interpretar os fatos do cotidiano. Jornalis-tas incautos até desenvolvem uma certa arrogância e jus-tificam o epíteto de “donos da verdade”.

O day after vem quando o jornalista afasta-se da em-presa onde trabalha: o mesmo milagre que o alçou ao es-tatuto de figura pública fá-lo apear para o anonimato deuma hora para outra. Trata-se do mesmo indivíduo, do mes-mo preparo, das mesmas idéias, mas, no dia seguinte, nãovale mais nada no espaço da mídia, foi “desinvestido” deseu efêmero poder. Se não galgar agilmente um outroposto, sua existência apaga-se do cenário midiático. Ape-nas alguns poucos vencem essa barreira da memória econseguem criar uma griffe própria. São exceções: o po-der do jornalista emana da mídia.1

O PODER QUE EMANA DA MÍDIA

Neste final de século XX, o desenvolvimento tecnoló-gico no campo da comunicação permitiu a criação de uma

odo jornalista brasileiro já passou pela experiên-cia que chamamos de síndrome do day after.Acostumado a ver sua palavra e seus juízos dia-

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DESMIDIATIZAR O PENSAMENTO: ECONOMIA DAS REPRESENTAÇÕES E...

bre os demais. Ao contrário, a gênese das representaçõesobedece a uma lógica operatória sediada no princípio desobrevivência da vida material. Isso nos remete a um quar-to plano – o econômico – que interage com os outros três.

Historicamente, o papel de mediação social das represen-tações que hoje se atribui à mídia pode ser enganosamenteidentificado ao do Estado, no passado. O poder que emanada mídia não se sustenta, contudo, a partir de um centro po-lítico para onde reconverge sua força. Ao contrário, legiti-ma-se pela livre circulação e disseminação, identificado ape-nas por uma vaga submissão aos preceitos do liberalismoeconômico. Diante disso, em países emergentes como o Bra-sil, cumpre repensar o conceito de “subdesenvolvimento”no âmbito informacional. Ele não se define a partir da sim-ples oposição ao conceito de desenvolvimento e nem se po-lariza geograficamente através da distinção entre países de“centro” e “periferia”. Define-se através de funções que serevelam no processo de configurar, organizar e distribuir ainformação. Mecanismos responsáveis pela atribuição devalores à informação, seus modos de circulação e suas con-dições de variação são objeto de estudo da Economia daInformação.

Outros autores latino-americanos (García-Canclini,Martin-Barbero, Milton Santos, para citar apenas alguns)já se debruçaram sobre o tema com fôlego e profundida-de.4 Nossa discussão teórica inscreve-se no quadro de re-ferência do subdesenvolvimento brasileiro – condiçãodeterminada por, pelo menos, dois tipos de indicadores:polarização social por má distribuição de renda e viola-ções dos direitos humanos. Os altos índices de mortalida-de infantil e de analfabetismo que quantificam o subde-senvolvimento econômico são, contudo, de pouca valiapara qualificar o subdesenvolvimento informacional. Pelomenos à primeira vista, não há uma correlação necessáriaentre os dois tipos de subdesenvolvimento.

Referindo-se ao poder dos Estados autoritários quecontrolavam a mídia e, por extensão, o pensamento so-cial, Mattelart (1987) defendeu a necessidade de “deses-tatizar” o pensamento. Segundo o autor, os sujeitos nãosão livres para produzir o discurso que quiserem porquese curvam às restrições da prática discursiva. O conceitode prática discursiva foi definido em Foucault (1987) como“conjunto de regras anônimas, históricas, sempre deter-minadas no tempo e no espaço, que definiram numa épo-ca dada, e para uma área social, econômica, geográficaou lingüística dada, as condições de exercício da funçãoenunciativa”.

Para Foucault, a prática discursiva é indissociável danoção de formação discursiva, “espaço marcado ao mes-mo tempo tecnológica e socio-historicamente, que defineum regime de verdade – o regime do que pode ser dito edo que pode permanecer não-dito”. Na verdade, tanto

Mattelart quanto Foucault tinham em mente a imagem deum Estado controlador, contra o qual cumpria objetar amicrofísica do poder fragmentário.

Na nova ordem informacional, não se trata apenas deenunciar ou silenciar, mas de desvelar a gênese dos siste-mas categoriais que permitem configurar os enunciados.A formulação de Mattelart traduz-se melhor, a nosso ver,em uma “desmidiatização” do pensamento. “Desmidia-tizar” o pensamento requer uma permanente desconstru-ção das categorias que facultam à informação transfor-mar-se em notícia. Para avaliar as condições sociais deprodução dessa tarefa, adotamos como posto de observa-ção o lugar de lingüista social – interessado em averiguar,com auxílio da análise do discurso, a possibilidade dehomologia entre estruturas da linguagem e estruturas dasociedade.

Uma análise do discurso jornalístico trabalha com ascondições de produção desse discurso, aquelas que “de-finem o horizonte dentro do qual se movem as decisõesque permitem falar de uma certa maneira sobre um certoobjeto” (Verón, 1977). Tal empreitada fundamenta-seprimariamente em um esforço de descrição dos modos deprodução da notícia, sua constituição, seu funcionamen-to e suas transformações. A avaliação do subdesenvolvi-mento informacional brasileiro no âmbito de uma econo-mia das representações é um problema complexo. Não setrata de avaliar o produto midiático (a informação) em sie seu eventual teor de qualidade. Trata-se de avaliar oprocesso que engendra as representações que sustentama existência e a qualidade social de tal produto. É esse osentido de nossa contribuição aqui.

DUAS LÓGICAS PARA ENTENDER A MÍDIA

O campo de estudos da mídia abarca, neste final deséculo, o conflito entre duas lógicas principais. De umlado, a lógica marxista baseada no conceito de “vida ma-terial”, segundo a qual é a sobrevivência material do ho-mem que dá a última palavra em um mundo estruturadopelos desejos. De outro lado, a lógica neoliberal radicali-zada no conceito de “simulacro” que, em um mundo dedesejos fabricados, libertou os signos da necessidade decontato com o que representam.

Propomo-nos a discutir, a partir da lógica marxista,alguns dos efeitos que a onda neoliberal trouxe às plagasbrasileiras no que diz respeito ao campo das representa-ções midiáticas. Para não incorrer em heresia, atentamosdesde já que se trata aqui da apropriação de uma lógica –e não de uma teoria. Nossa escolha não implica a assumi-da refutação de outras lógicas. Na verdade, experimenta-mos uma dupla repulsa. Contra modelos neocolonialistasque se dizem a favor das periferias em detrimento dos

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centros, e contra modelos totalizantes que crêem naneutralização da diversidade.

Assumimos que a concepção da atividade jornalísticatal como a conhecemos hoje está intrinsecamente atrela-da a um modo capitalista de produção da notícia. Se omarxismo consiste, ainda hoje, em um dos sistemas depensamento capazes de evidenciar as contradições docapitalismo, lançaremos mão de algumas de suas ferra-mentas conceituais para refletir sobre as condições deprodução da informação jornalística num país de Tercei-ro Mundo.

Dentro de uma concepção liberal, o jornalismo é vistocomo uma atividade produtora de informação em um sis-tema de compra e venda de informações regulado pelomercado. Isso se dá de tal forma que as empresas jorna-lísticas produzem proporcionalmente ao que o públicoconsegue consumir. A superprodução de informação, nestaperspectiva, não pode existir. O que há é uma adequaçãopermanente da oferta aos parâmetros da (suposta) deman-da. O papel dos institutos de pesquisa nesse contexto éfundamental: configuram-se como instrumentos de aferi-ção dos parâmetros utilizados em checagens periódicasencomendadas pelas empresas.

No modelo de concorrência perfeita preconizado peladoutrina liberal, cada veículo de comunicação de massaresponde à demanda de seu público, mantendo-se em ge-ral um equilíbrio entre os fatores de produção quanto àsua importância e necessidade no processo de produçãoda informação. Assim, a força de trabalho do jornalista(potencializada pela tecnologia), a matéria-prima infor-macional e o investimento das empresas de comunicação,conjugados, constituem os elementos básicos desse pro-cesso de transformação da informação em notícia.

A garantia liberal do equilíbrio entre os fatores de pro-dução vem da concepção da economia como sistema deinterações regulado por inclinações subjetivas individuais.A medida da necessidade de informação postulada porcada indivíduo – e consolidada como demanda – seriaresponsável pelas características e o volume da oferta. Adoutrina liberal cunhou o princípio da utilidade marginaldecrescente. Expressa-se através de uma função que aplicao grau de dificuldade de acesso a uma determinada infor-mação sobre uma escala de demanda social dessa mesmainformação. Resulta daí o valor da informação em parâ-metros de tempo e espaço preestabelecidos. Ou seja, ainformação mais rara e mais desejável é sempre a infor-mação mais cara.

Na concepção marxista, as inclinações subjetivas doindivíduo submetem-se ao determinismo do arcabouçosocial. A economia das representações é, em última aná-lise, o sistema de referências que orienta os princípios derelevância e pertinência responsáveis pela constituição da

própria matéria-prima informacional (a partir de catego-rias de construção social do conhecimento) e pela suapotencialidade de transformação em notícia (a partir denecessidades sociais e não individuais).

Isso significa que os parâmetros que orientam a dife-renciação entre fato e notícia são diretamente associadosa sistemas de relevância e pertinência socialmente deter-minados. Saber diferenciar fatos que são notícia e fatosque não são notícia é a primeira lição de jornalismo. Étambém o primeiro passo para distinguir o que é social-mente reconhecido como novo, relevante, interessante,importante, saliente, e o que fica como default value ou“elemento marcado” na acepção da teoria estruturalista.

Nessa perspectiva, as inclinações subjetivas passam aser vistas como passíveis de manipulação, seja através damáquina publicitária, seja através de meios subliminares.O conceito de manipulação vincula-se originalmente aotrabalho mecânico de fazer funcionar ou levar à ação umdispositivo. Manipular idéias significa utilizar-se delascomo meio para levar o indivíduo ou grupo a uma deter-minada ação estabelecida como meta. Na lógica liberal,este conceito não se coloca, ou vem atrelado a uma éticaque pressupõe cidadãos maduros para reconhecer e rejei-tar estratégias manipulatórias.

Já na lógica marxista, o conceito de manipulação vin-cula-se a um homem impotente diante de forças muitomaiores do que ele. Vincula-se ao conceito de “explora-ção” e recoloca-se, por exemplo, diante do fato de queuns poucos sistemas corporativos internacionais possamcontrolar a produção da informação em escala mundial.Como o “homem comum” pode exercer o livre-arbítriona recepção do produto informacional, se tal produto égerado em um sistema cartelizado, que monopoliza osmeios de produção?

Sabemos que hoje cerca de 30 megaempresas contro-lam toda a informação que circula no planeta. Novas fu-sões ainda estão acontecendo. No panorama nacional, porexemplo, a Globo associou-se recentemente ao australia-no Robert Murdock. Esse sistema oligopolizado está muitolonge do modelo de concorrência perfeita imaginado pe-los liberais. Ele desvaloriza a força do trabalhador-jorna-lista, obrigando-o a alienar sua competência por valorinferior ao do produto que é capaz de gerar. O enfraque-cimento dos sindicatos neutraliza os caminhos da resis-tência – como ilustra a história do movimento sindicalbrasileiro no setor das comunicações.

MANIPULANDO O LAISSEZ-FAIRE

O desenvolvimento tecnológico pode gerar capital in-dependentemente do fator trabalho. Vamos acompanharum exemplo. A microeletrônica permitiu calcular novos

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padrões de design de mercadorias bem mais baratos. Comum mínimo de recursos materiais, fabricam-se hoje osmesmos produtos, do ponto de vista de suas funções parao consumidor, mas com um custo de produção significa-tivamente mais baixo. A microeletrônica gerou, portan-to, grandes volumes de capital que, sem reaplicação dire-ta, acabaram migrando para os mercados financeiros.

No que se refere à questão do emprego, o capital inter-nacionalizado em associação com a doutrina neoliberaltraz contradições. Vincula-se, de um lado, a práticasoligopolizantes na busca de uma ampliação dos merca-dos; e, de outro, rejeita políticas de promoção de empre-go que poderiam desencadear o incremento da demanda.Há quem sustente que o incremento no consumo de bensinformacionais não depende mais de incremento da ren-da, mas do capital cultural. Investir em educação seria,assim, o melhor caminho para ampliar o mercado dessesbens. Desenvolvendo papel análogo ao da tecnologia nobarateamento da produção industrial, a educação – e nãoo emprego – passam a constituir a prioridade do capitalliberal investido no setor da comunicação. Trata-se degerar desejos, mais do que rendas.

Assim entendido, o laissez-faire informacional traz umefeito perverso por detrás da tão decantada apologia dacirculação livre das informações, da qual a rede Internetavulta como melhor expressão. A adoção do laissez-faireinformacional significa abandonar o consumidor aos seusdesejos – entendidos como “desejos fabricados” ou comogerados por livre-arbítrio.

Um lugar-comum vem afirmando que o papel socialda mídia é o de formar cidadãos e não consumidores.Há aqui um perigoso equívoco: assume-se que a mídiareconhece esse papel formador, coisa que nenhumaempresa de comunicação aceita abertamente. Muitopelo contrário, as empresas vendem seu produto, inde-pendentemente dos efeitos que possa suscitar. Episó-dios lamentáveis como o da Escola Base, que envergo-nharam toda a categoria, demonstram que a preocu-pação com a verdade é secundária quando as vendasestão em questão. A falta de memória do público trans-forma-o em cúmplice, preservando a instituição damídia, a despeito dos sucessivos escândalos que amea-çam sua credibilidade.

Os conceitos de “manipulação” e “exploração” noâmbito da produção jornalística brasileira aplicam-se aoprofissional da mídia em duplo sentido: de agente e pacien-te. Explorador e explorado, manipulador e manipulado, ojornalista brasileiro aceita o trabalho que o assujeita, pagapara ser vilipendiado, anestesiado, desrespeitado. Há aíuma contradição: o trabalho jornalístico do profissional évendido abaixo do valor de troca; e o produto desse tra-balho é comprado acima do valor de uso.

A negociação do valor de troca é assimétrica. Isso serevela, por exemplo, na discussão sobre liberdade de im-prensa. A liberdade de acesso à informação pelo públicoé confundida com a liberdade dos empresários de comu-nicações para veicular toda e qualquer informação quelhes convenha. Ao público, não lhe permitem intervirqualitativamente, seu poder é apenas do “sim” ou do “não”,ligando ou desligando seu aparelho de rádio ou televisão,comprando ou ignorando jornais e revistas.

Em contrapartida, alguns exemplos ainda revelamresíduos de controle da informação: a manutenção doprograma eleitoral gratuito em todos os canais da tevêaberta; a preservação da Voz do Brasil. Há também umaforma indireta de controle através da autocensura daspróprias empresas jornalísticas. Um exemplo coletivo:toda a mídia brasileira esforçou-se para divulgar umaimagem amenizada da crise econômica até a realiza-ção do pleito eleitoral. Um exemplo localizado: o can-celamento de contrato para veiculação do quadro “Forado Ar” criado pelo jornalista Marcelo Tas para o Fan-tástico e depois remanejado para o Jornal Nacional. Oquadro foi censurado como “de baixo nível” por mos-trar que qualquer cidadão pode ser transformado empolítico através de artifícios televisivos tais comoteleprompter, maquiagem e guarda-roupa, treinamen-to de voz.

A concepção equivocada de um laissez-faire informa-cional também não resiste a interesses de ordem econô-mica, traduzidos no controle que patrocinadores de pro-gramas da mídia exercem sobre seu conteúdo e/ouformato. Esse controle transfere para grupos restritos,comprometidos com a lógica liberal de ampliação dosmercados, o poder de orientar o consumo e, assim,globalizar identidades e valores locais. Reeditam-se, dessaforma, em versão pós-moderna, as antigas práticas dopacto neocolonial baseado na aliança da burguesia localcom os interesses agora não mais das metrópoles, mas dasgrandes corporações transnacionais.

CAPITAL INFORMACIONAL, VOLATILIZAÇÃOE DESMONTE POLÍTICO

Há outras formas de gerar capital informacional inde-pendentemente do fator trabalho. No epicentro da criseeconômica internacional, temos ouvido falar da volati-lização dos capitais financeiros que circulam pelo mun-do globalizado em busca de mercados que paguem jurosmais altos e ofereçam relativa segurança aos especulado-res. A mesma filosofia neoliberal que se aninha nos bas-tidores dessa crise pode, analogamente, ser tomada comoreferência para explicar a volatilização de um outro tipode capital: o informacional.

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O conceito de capital informacional baseia-se na con-cepção da informação como meio de gerar outras formasde capital. Pode ser usado em dois sentidos, dependendode que se tome como referência seu valor de uso ou seuvalor de troca.

Tomado como referência de um valor de troca, o capi-tal informacional pode se transformar em capital finan-ceiro. Isso se dá, por exemplo, no contexto dos mercadosfinanceiros internacionais, quando informações sobre osetor produtivo da economia servem de base para opera-ções de compra e venda de ações. A troca de informaçõesnesse universo pode basear-se em consensos artificiais,independentemente da situação real das empresas cujasações são negociadas. A informação privilegiada de umcorretor pode significar enriquecimento do dia para a noite.Boatos derrubam o valor das ações. Tais capitais infor-macionais circulam restritivamente e em grupos muitofechados. A expressão “informação privilegiada” denotabem a dificuldade de romper o sigilo que tais gruposmantêm. No Brasil, em geral, eles são grandes empresá-rios, políticos e tecnocratas. Não jogam no bicho, na senaou na loteria como o homem do povo. Confiam mais naexpertise do que na sorte.5

Tomado como referência de um valor de uso, o capitalinformacional baseia-se na concepção da informação comomeio de prestação de serviço de utilidade pública, ou comomeio de lazer e entretenimento. No mercado brasileiro decapitais informacionais, temos assistido nas duas últimasdécadas à sua volatilização, através da crescente espetacu-larização da notícia, à transformação das campanhas po-líticas em show e à utilização irresponsável dos númerosdas pesquisas eleitorais.

O conceito de volatilização do capital informacionalrefere-se a operações simbólicas de construção de repre-sentações sem lastro e com bases precárias de sustenta-ção no mundo que consensualmente é tomado como real.Dramas forjados em quadros sensacionalistas de progra-mas de auditório – tal como denunciado recentemente pelaRevista da Folha sobre o progama Ratinho Livre, veicu-lado pelo SBT – são apenas a parte mais visível de todoum processo que troca uma lógica ética por uma lógicamercadológica na produção da informação. Tais proce-dimentos, a longo prazo, podem acabar depreciando ovalor de uso do capital informacional.

Um dos fatores da volatilização do capital informa-cional, isto é, da perda de sua base de realidade, é, nocampo político, o desmonte do sistema político-parti-dário. Não há identificação dos políticos e nem dos elei-tores com as legendas, o campo político organiza-se noespaço brasileiro em categorias fluidas, não há posi-cionamento claro à esquerda ou à direita. No âmbitodo Congresso brasileiro, por exemplo, a substituição

das agremiações partidárias por bancadas já é um forteindicativo desse fenômeno.

Segundo Habermas, há uma mudança em curso nasformas de participação política, e a organização político-partidária tende a ser neutralizada pelo “elemento plebis-citário” facultado pela comunicação eletrônica de massa.E também pelas “iniciativas que permanecem no estágiode organizações contestadoras” (como o Greenpeace). Operigo de que a mídia passe a administrar a política ad-vém do fato de não ser ela apenas um mediador entre elei-torado e seus representantes, mas um poderoso ator doprocesso político.

O desmonte político traduz-se, no terreno da mídiajornalística, pela estetização da política. O eleitor assisteatônito ao show televisivo das campanhas eleitorais, ondenão há vestígio de compromisso ideológico: torce-se poraquele que tem mais chances de vencer. Se, do ponto devista da empresa jornalística neoliberal, isto faz algumsentido, deixa de fazer quando é o eleitor que, mimeti-camente, reproduz essa atitude e aposta no vencedor. Comisso, ele abdica da cidadania e nega um pressuposto bási-co da educação democrática, que é o de lutar pelo queacredita, assumir um partido, fazer uso de seu direito deescolha. O voto torna-se repositário de uma obrigaçãocivil, e não de uma esperança.

A concepção de uma mídia democrática só se sustentaquando os diferentes veículos aceitam a distribuição dopoder, isto é, comprometem-se com políticas editoriais,ainda que se contraponham às de seus concorrentes. Ademocracia midiática surge das práticas de conflito e diá-logo nesse conjunto plural de veículos. Na mídia brasi-leira, contudo, cada veículo tenta apostar no espectropolítico mais amplo possível, ganhar a maior fatia possí-vel do mercado.

A campanha política é uma pauta como outra qualquer,as pesquisas são o instrumento para fomentar o jogo dastorcidas. Não se trata aqui de pôr em dúvida a validade (ea necessidade) de publicar resultados de pesquisas elei-torais, prática salutar em ambiente democrático. Saben-do, contudo, que sua divulgação influencia um públicoainda indeciso, contribui-se para gerar uma espécie de“efeito cascata” que favorece os primeiros colocados logode início. Ou seja, a preferência do eleitorado nas primei-ras pesquisas vai determinando sucessivamente os per-centuais de preferência nas pesquisas seguintes. Nessamedida, pode-se dizer que a mídia vai, passo a passo, fa-bricando a vitória de certos candidatos, ainda que sujeitaa reviravoltas.

A volatilização dos capitais informacionais de trocaatrela-se a uma defesa da desregulamentação da econo-mia. A volatilização dos capitais informacionais de usoatrela-se à defesa da desregulamentação total da mídia.

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DESMIDIATIZAR O PENSAMENTO: ECONOMIA DAS REPRESENTAÇÕES E...

Se a informação se volatiliza em seu compromisso com aordem consensual que estabelece a realidade, como re-gulamentar a atuação da mídia? Como sustentar uma éti-ca desassociada de um consenso? Este é um dos labirin-tos a que a lógica liberal pode conduzir. Pela lógica mar-xista, desregulamentação é descompromisso. É a desre-gulamentação que autoriza o crescimento de uma mídiaoportunista.

A sociedade brasileira, já impotente e desarmada diantedo cenário de esvaziamento político e do caos econômi-co, insiste em delegar à mídia seu direito de crítica, emacreditar na utopia de uma mídia independente e defen-sora do social. A liberdade de imprensa submete-se àmesma lógica da liberdade de mercado: rejeita-se a regu-lamentação tanto da circulação de mercadorias quanto dacirculação de informações. Vivemos a aparente utopia deum mundo livre de normas, guiado apenas pelas prefe-rências individuais.

A mídia age sem limite, em nome da defesa do direitodo público à informação. A sociedade aceita o fait-diverscomo informação, aceita o sensacionalismo e o espetácu-lo como informação, engole a ficção como informação,digere a crítica infundada como informação, espera regur-gitar apenas no limitado espaço dos painéis e cartas deleitores. Não se trata aqui de impelir ao criminoso saudo-sismo da censura, mas de incentivar meios de defesa doconsumidor contra os abusos da mídia. Desmontado oaparelho de censura construído nos tempos da ditaduramilitar, nem o Estado nem a sociedade tomaram a inicia-tiva de implementar formas mais democráticas de regu-lamentação. Não serão os ombudsmen e os críticos demídia vinculados à própria mídia que terão a independên-cia e distanciamento para desempenhar essa função.

Cabe à sociedade civil organizada e a seus represen-tantes fazê-lo. O poder de fogo de uma crítica resguarda-da por detrás das novas mídias eletrônicas é pouco efi-caz. Não só porque atinge apenas um limitado público,mas também porque acaba expressando a crítica geradaapenas no seio desse público. A educação democráticarequer muito mais do que isso. Requer uma organizaçãocivil capaz de defender o interesse comunitário e de mantercom a mídia uma relação, inclusive, utilitária. É a comu-nidade que deve usar a mídia e não ser usada por ela. Semmistificar o espaço da mídia, o cidadão começa a neutra-lizar a dispersão social, na medida em que busque espa-ços de identificação para além do que consome – no di-reito à solução de seus problemas cotidianos.6

CREDENCIAMENTO E CREDIBILIDADE

O desenvolvimento tecnológico no século XX possibili-tou a produção de informações em uma escala nunca dantes

imaginável, e trouxe conseqüências. Do ponto de vista doacesso, a informação ficou muito barata, produzida em es-cala industrial. E do ponto de vista das empresas jornalísti-cas, isto significou a garantia de estoques permanentementeabarrotados de informação com atualização contínua.

No afã de ganhar mercados cada vez maiores, capazesde consumir essa abundante safra noticiosa, as empresasoptaram por um noticiário indiferenciado politicamente,que satisfizesse os gostos e colorações de todos os possí-veis segmentos. Neste cenário, ganham importância osinstitutos de pesquisa, responsáveis pelo levantamento dascaracterísticas do público, pela identificação dos seuscomportamentos e desejos – sempre com o intuito de ade-quar o produto jornalístico à demanda.

Instala-se, assim, a lógica mercadológica em lugar dalógica política no horizonte da produção jornalística. Es-tabelecem-se novos parâmetros de atribuição de valor àinformação. Do ponto de vista da recepção, já não agregavalor apenas a informação que for ao encontro da demandaquantitativamente mais expressiva. Do ponto de vista daprodução, o valor da informação, hoje, já não se medepelo acesso – mais fácil e rápido ou mais difícil e lento –,mas pela confiabilidade. Há informação em quantidade àdisposição do usuário ou consumidor, mas de qualidadee valor muito variáveis.

A informação de alto valor é aquela que tem o certifi-cado de garantia de suas fontes. O mais importante não éo que se informa, mas quem informa, quem assume aresponsabilidade pela correção e exatidão do produto in-formacional. Portanto, trata-se de criar parâmetros segu-ros para avaliar, não as informações em si, mas as fontesde informação.7

Pouco se pesquisou, no âmbito da mídia de países sub-desenvolvidos, a gênese de critérios para estabelecer o graude confiabilidade das fontes. Através de quais procedi-mentos elas chegam a se credenciar? Como avaliar talcredenciamento em uma escala mensurável? Como oscritérios de atribuição de confiabilidade relacionam-secom parâmetros gerais da sociedade para a formação doconsenso? Como caracterizar o nível de independênciado veículo e do sistema de comunicação no interior doqual uma fonte foi credenciada?

Haverá fontes de informação acima de qualquer com-prometimento? Definitivamente, não. Para gerar confia-bilidade, é preciso ter parâmetros de checagem. Comochecar a informação que é veiculada por um sistema cor-porativo fortemente oligopolizado? A homogeneização ea pasteurização levam ao decréscimo da qualidade, já queneutralizam os mecanismos de mensuração do valor in-formacional.

Segundo o sistema liberal da concorrência perfeita, ocapital informacional deveria ser socialmente distribuído

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de forma a que todos os segmentos da sociedade fossemcapazes de gerar informação e usufruir igualmente dela.Sabemos, no entanto, que a distribuição da informaçãoobserva parâmetros semelhantes aos da distribuição depoder político dentro das sociedades. Atribui-se mais va-lor às informações que provêm dos grupos de maior pesopolítico.

O credenciamento de indivíduos e instituições que fun-cionem como referência para uma informação mais con-fiável é, por conseguinte, determinado por critérios polí-ticos e de reconhecimento social. A credibilidade não seatrela à informação, mas ao informante diretamente (ou aquem o coloca sob sua chancela). Credenciar as universi-dades como fontes de informação alternativa, capazes derelativizar o peso dos produtos informacionais geradospela lógica mercadológica das empresas jornalísticas é umpasso importante para agregar valor inclusive ao produtode tais empresas.

O debate público que se instalou durante a eleição noBrasil sobre o valor das pesquisas eleitorais e seu poderde definir o candidato vencedor pode gerar conseqüên-cias muito positivas. Tal efeito já foi provocado com oimpeachment de Collor, levando todos os eleitores quevotaram “nelle” a uma atitude de desconfiança da infor-mação. Para o grande público televisivo – em geral pou-co afeito à leitura de livros, jornais e outros instrumentosde aferição da realidade –, isto significaria o início daderrubada dos falsos templos da objetividade e transpa-rência que têm abrigado a mídia. O cidadão que hoje põeem dúvida os números de vantagem dos candidatos é omesmo que amanhã poderá torcer o nariz para os núme-ros do orçamento público, da inflação, da balança de pa-gamentos.

O mesmo público que agora começa a descobrir queuma foto não é o retrato puro e simples da realidade, queimagens podem ser simulacros, que números e cifrasmedem verdades aos pedaços, será capaz de votar commais competência – porque com mais independência. Estáem curso o amadurecimento simbólico das massas comocondição para a educação política.8

QUALIDADE INFORMACIONAL,ARBÍTRIO E CIRCULARIDADE

O poder que emana da mídia é também o que determi-na os parâmetros de sua própria qualidade informacio-nal. O refúgio crítico em ilhas de um pensamento inde-pendente ou alternativo é privilégio de uns poucos. Asuniversidades, constantemente criticadas pela mídia, aindafazem parte desse raro espaço “desmidiatizado”. Avaliara qualidade da informação significa colocar-se fora dosistema que codifica e estrutura essa mesma informação.

Há quem fale da necessidade de um estranhamento epis-temológico, mas tudo isso requer a construção de umuniverso alternativo de valores, com uma coerência pró-pria, um sistema de percepção autônomo. Já não se tratamais de um conflito de classes, mas de representações –que circularmente estarão na gênese da constituição denovas classes sociais.

Se o advento das novas tecnologias levou à produçãojornalística em escala ao barateamento, também tornoudisponíveis estoques permanentemente abarrotados deinformação com atualização contínua. Uma vantagemrelativa, considerado o fato de que a informação jorna-lística é um produto altamente perecível em função de seucomprometimento com o novo. Mas que novo é esse, re-novável de hora em hora em alucinante velocidade? Adesconfiança do novo é um primeiro passo para romper acircularidade epistemológica da mídia. A conquista daliberdade começa pelo desprezo da hierarquização arbi-trária que despeja os “principais fatos do dia”.

No sistema de percepção jornalística do mundo, a es-tocagem do capital informacional só interessa a curtíssi-mo prazo e, mesmo assim, em áreas editoriais específicas– como as de ciência, comportamento, educação e saúde,envolvendo matérias “frias” tais como resultados de pes-quisas, descobertas e avanços tecnológicos, questões eco-lógicas, etc. Já nas áreas de economia, esporte, políticanacional e internacional, assume-se um timing dos fatosbem mais acelerado. A meio termo fica a área culturalque, geralmente, acompanha o lançamento de produtos etrabalha com uma agenda mais previsível. A pressão dotempo de estocagem tende a tornar-se, contudo, cada vezmais irrelevante em certos tipos de jornalismo que prefe-rem fabricar fatos em vez de andar a seu reboque ou de-senvolver competência para prevê-los.

Do ponto de vista político, a produção de informaçõesem grande escala trouxe conseqüências. No afã de ganharmercados cada vez maiores para fazer escoar a safra noti-ciosa, as empresas optaram por um jornalismo politica-mente indiferenciado, “pluralista e apartidário”, comodefende a Folha de S.Paulo, de modo a satisfazer gostose colorações de todos os segmentos de público. “Estar derabo preso com o leitor” significa “estar de rabo presocom o mercado”, fornecer ao leitor (e ao mercado) a in-formação que ele deseja/espera ou, pelo menos, que elereconheça como desejável. Se, como dizia Marx, na eraindustrial o valor do trabalhador diminui à medida queele produz bens, na era informacional o valor do jornalis-ta diminui à medida que mais informação é lançada nocircuito da mídia.

A mensuração da qualidade é de praxe baseada no custode produção da informação. Na mesma tradição deHollywood, que anuncia os custos como argumento de

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DESMIDIATIZAR O PENSAMENTO: ECONOMIA DAS REPRESENTAÇÕES E...

venda, são avaliadas nossas produções televisivas espe-ciais. Um outro critério baseia-se no (falso) reconheci-mento de que determinados gêneros são automaticamen-te melhores que outros. Nessa concepção, erigem-se comobaluartes da qualidade o jornalismo investigativo e asgrandes reportagens. Um terceiro critério identifica qua-lidade aos artifícios gráficos e estilísticos investidos naembalagem do produto. Esse critério confunde-se com oprimeiro quando o investimento estético na embalagem émenos custoso do que o investimento direto no conteúdoinformacional. Há ainda um quarto critério, que condenaa priori toda e qualquer reciclagem (por exemplo, adap-tação e tradução de artigos de grandes jornais estrangei-ros), procedimento muito utilizado na mídia brasileira. Umquinto critério analisa a independência das pautas comrelação ao agenda-setting. Um sexto avalia se a mídiainveste em profissionais capazes de agregar valor à in-formação das agências através de matérias interpretati-vas, opinativas e críticas.

Todos esses são critérios que se estabelecem a partirdo próprio espaço interno à mídia. Sabemos que o fluxode informação mantém com o fluxo de fatos uma relaçãoarbitrária, isto é, para preencher o tempo das rádios e te-levisões ou as páginas das revistas e jornais, não é neces-sário esperar que ocorram novos acontecimentos no mun-do dos fatos. O produto midiático tem um limite físicopreestabelecido em páginas ou em minutos. A criaçãodesse limite não parte do fato óbvio de que, no vastomundo em que vivemos, sempre haverá um fato novoacontecendo. Se assim fosse, o custo da produção seriainacessível a qualquer empresa do mundo. Os limites fí-sicos da produção midiática foram estabelecidos a partirde critérios de conveniência (custo) e não da determina-ção exterior do volume de fatos.

A mídia pode adotar pelo menos três modos diferentesde lidar com tais limites: primeiro, engendra uma redecapaz de recolher mais informações; segundo, desenvol-ve recursos de manipulação capazes de fabricar uma in-formação desvinculada dos fatos; terceiro, investe na suaimagem junto ao público, levando-o a “esquecer” dos seuslimites.

Sabemos também que há uma relação de transitividadeentre os diferentes veículos e empresas de informação,até chegar ao consumidor final, que é o público. O em-presário do setor toma a informação de um outro capita-lista a um custo inferior à sua expectativa do valor queessa informação venha agregar. É o caso dos grandes jor-nais, alimentados pelas grandes agências. E dos peque-nos, que reprocessam ou reciclam a informação dos gran-des. Dado o seu ritmo mais veloz de produção, o rádio ea televisão também funcionam como fornecedores damídia impressa. Mais do que de transitividade da quali-

dade informacional, a relação entre os media é de cum-plicidade perante mecanismos de avaliação que atingemcomo um dominó a todas as mídias dessa cadeia.

O fenômeno da recessão informacional caracteriza-sepor uma fração indefinida de tempo no mercado em queé mais barato não informar do que informar. Trata-se deuma espécie de censura de natureza econômica. À dimi-nuição da oferta de informação de qualidade, entretanto,não se segue necessariamente uma queda da demanda,contrariando as expectativas. Só esporadicamente o con-sumidor deixa de se interessar pelo produto informacio-nal, o que se traduz na retração das assinaturas e do mo-vimento de patrocínios e anunciantes. Ou seja, a cum-plicidade entre os media reproduz-se no âmbito do pró-prio mercado consumidor.

O direito do cidadão à informação tem um preço. Demodo geral, o brasileiro se deixa baratear. A informaçãode qualidade tem um custo. A empresa jornalística traba-lha dentro de uma margem perigosa de responsabilidadesocial. Em países politicamente subdesenvolvidos, o com-promisso e a obrigação de informar dessas empresas sóvão até o limite de seu equilíbrio orçamentário e dos pa-drões particulares de ética que, à revelia do público, es-colham adotar. Nesses casos, não há suporte do Estadopara garantir o direito social à informação, a sociedadenão se organiza para exigir e cobrar qualidade no produ-to informacional que consome. Quando muito, o Estadomantém, paralelamente à produção privada, emissoraspúblicas com maior compromisso e com potencial demodelos de referência para padrões de qualidade desejá-veis – como é o caso da TVE e TV Cultura. Há, portanto,todo um conjunto de forças sociais articuladas que sus-tentam a ficção dos padrões de qualidade.

MÍDIA E VONTADE POLÍTICA

Para Kalecki, o aumento da expectativa de lucro e oincremento da demanda efetiva não dependem de atitu-des subjetivas do consumidor (estimulado, por exemplo,pelo marketing e pela publicidade). Dependem dos pró-prios capitalistas, pois só eles têm a opção real de pouparou investir em consumo. Ora, a margem de expansão dademanda a partir da expansão do público consumidor ébastante estreita: não é pela circulação em bancas que osjornais se sustentam, mas pelo investimento dos anun-ciantes. Nessa perspectiva, as rédeas econômicas da pro-dução informacional estariam nas mãos dos próprios ca-pitalistas e não nas de uma sociedade politicamente orga-nizada. Seria inócua a organização política da sociedadetendo em vista uma alteração desse quadro? A concepçãode que a sociedade é capaz de regular a qualidade e aquantidade da informação que consome baseia-se no pres-

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suposto de uma forte auto-identificação e coesão entre seusmembros – condições sine qua non também para o ama-durecimento político.

Se as empresas passam a demandar mais informação,e informação de maior qualidade, junto às agências denotícias, sobe o nível de emprego de profissionais do jor-nalismo, aumentam os gastos das empresas, aumenta olucro das agências, mas o quadro final de consumo podenão se alterar. Nesse caso, as empresas “intermediárias”são perdedoras. O quadro final de consumo tem poucachance de mudar porque a margem de expansão de suademanda é, como dissemos anteriormente, muito estrei-ta. A capacidade de poupança do consumidor final é muitolimitada para permitir expectativas de aumento da deman-da efetiva.

De acordo com o raciocínio de Kalecki, as decisõesna área do capital informacional não dependem do vai-vém livre dos mercados, mas da área política. Ou seja,a decisão dos capitalistas quanto a investir ou pouparnão é determinada pela expectativa de demanda agre-gada, mas, sim, por vontade política. Nessa visão, ocomponente arbitrário é total, o sobe-desce da quali-dade informacional não é fruto de nenhum misteriosomecanismo automático: é gerado por decisões que, emúltima análise, são orientadas pela ganância e estreite-za de pensamento político.

Segundo Marx, é o modo de produção da vida mate-rial que determina a consciência, e não o contrário. A his-tória social, segundo ele, é a história do arbítrio indivi-dual que, no entanto, nada pode em relação ao curso dagrande História, que segue independente das consciên-cias individuais. “A História é o conjunto de atividadesdos homens em busca de seus fins.” No campo da mídiabrasileira, o apartheid informacional expresso no confron-to das tevês abertas com as tevês a cabo, ou dos jornaispopulares com os jornais “sérios” revela um território so-cial cheio de conflitos. Por detrás do debate da qualidadeinformacional, por exemplo, em um programa de auditó-rio da tevê, podem estar a entretecer-se lassos fios daHistória na construção das representações para uma novacidadania brasileira.

NOTAS

1. Em países emergentes como o Brasil, o poder da mídia concentra-se nas pró-prias empresas de comunicação. O jornalista geralmente é um faz-tudo, sofrecom a alta rotatividade de mão-de-obra e não desenvolve competência editorialem áreas específicas. Isso o torna mais facilmente substituível e, portanto, dimi-nui seu valor no mercado de trabalho. A especialização profissional, em contra-partida, funciona como hedge, palavra da moda nos mercados financeiros, queindica a possibilidade de proteger valores durante situações de instabilidade. Ojornalista especializado preserva melhor seu “poder de fogo”, isto é, seu poderde formar opiniões. Quando desempregado, é reaproveitado como conferencis-ta, consultor ou assessor junto a empresas, universidades e fundações. Sobre aformação do jornalista no Brasil, ver Steinberger (1998 e 1999).

2. Além de representar e formar a opinião pública, a mídia, segundo critérios daprópria conveniência, detém o poder de decidir quem serão os representantes eformadores dessa opinião pública, assim como de destituí-los. Quem tem o po-der de falar (na mídia), quando, sobre qual tema, onde, por quanto tempo, de quemaneira. E esses critérios obscuros valem para os profissionais do jornalismo etambém para políticos e personalidades que dão depoimentos e entrevistas. Issopode criar eventuais relações de “vassalagem” entre jornalistas e suas fontes.Ironicamente, às vezes a pressa e a desinformação na apuração da notícia fazem“vazar” para o público ângulos inesperados e mais realistas das pautas.

3. No mundo de hoje, já não são as elites intelectuais que controlam a mídia,mas a burguesia de toga. Esta sim ainda permanece, encarnada nos capitalistasglobalizados do Fórum de Davos.

4. Canclini analisou a informação no campo da produção artística; Barbero abor-dou a produção da informação como mediação; e Santos revela a tecnologia comocondição de engendramento da informação.

5. Tal expertise regula-se através do fechamento de contratos de confiança entrefontes e beneficiários da informação. A volatilização do capital informacionalocorre quando se rompem tais contratos de confiança: o valor informacional éposto em dúvida, falta lastro de confiança para bancar os valores contratados.

6. O subdesenvolvimento informacional parece atrelar-se, portanto, a três tiposde cenário: o da desregulamentação da mídia, o da volatilização da informaçãoatravés da geração de capital informacional desvinculado da força de trabalho eo de desmonte político.

7. Confiança, credenciamento, credibilidade, confiabilidade e credulidade sãocinco conceitos fundamentais para explicar a base de funcionamento dos jogosde negociação e troca informacional praticados hoje.A confiança é um valor básico agregado ao capital informacional. A nego-ciação do valor da confiança é tão importante quanto a do valor da própriainformação. Na troca informacional, quando esse valor de confiança é insti-tucionalmente atribuído à fonte, traduz-se em “credenciamento”. Diz-se, por-tanto, que a fonte de informação é “credenciada” quando tem reconhecida-mente competência para produzir e/ou distribuir a informação em questão.Tal reconhecimento é um título fornecido por instituições socialmente inves-tidas de poder para tal (por exemplo, as universidades credenciam professo-res e concedem titulação de doutor, mestre, especialista mediante certas con-dições; o governo credencia seu porta-voz; as empresas jornalísticascredenciam seus profissionais).Quando o valor de confiança não é diretamente outorgado à fonte por meio ins-titucional para a negociação em questão, mas já lhe foi outorgado por uma outrafonte ou instituição merecedoras de crédito, traduz-se em “credibilidade”. Essafonte é entendida como “passível de crédito”.Geralmente tal crédito é concedido transitivamente graças aos antecedentes dafonte, isto é, a contratos de confiança anteriores que foram bem-sucedidos se-gundo atestado de fontes ou instituições merecedoras de crédito.A confiabilidade baseia-se em uma petição de princípio de que a fonte é passívelde confiança até que se prove o contrário. Trata-se, portanto, de um conceito deafirmação negativa, isto é, afirma-se que não se conhecem impedimentos paraque se agregue confiança à informação de uma determinada fonte. Toda fonte é,em princípio, confiável, se nada depuser contra ela.Já a confiança, como valor atribuído a uma fonte sem qualquer lastro ou jus-tificativa racional para tal, traduz-se em “credulidade”. Nesse caso, a confi-ança é agregada à informação da fonte, ainda que socialmente esteja disponí-vel o conhecimento de possíveis impedimentos para tal. O sujeito que aceitao contrato informacional nessas condições é chamado de “crédulo”. No mer-cado financeiro internacional, o limite da confiança é o crack. Não vivemosapenas no limite da saturação da informação, mas também no limite da con-fiança na informação.

8. A superação do subdesenvolvimento informacional depende de movimentosde transformação na economia das representações. O amadurecimento simbóli-co está amarrado a estados de confiança que o sujeito experimenta para cons-truir a imagem de um mundo estável, sem a qual ele será incapaz de se desenvol-ver. Ir de um estado A para um estado A’ requer a confiança de que A permane-cerá como tal enquanto o sujeito se desloca para A’. Não há desenvolvimentosem confiança. A qualidade do produto informacional está atrelada ao seu valorde confiança. O jornalista deve atuar como se fora advogado, ele precisa ter malíciae desconfiança para aventar possibilidades de violação do contrato de confian-ça. Só assim ele pode tentar garantir a redação de um bom contrato. A descon-fiança é uma das mais importantes ferramentas de trabalho do jornalista. Seuspressupostos de estabilidade cognitiva, mais do que os de qualquer outro cida-dão, estão todos (e o tempo todo) sujeitos a revisão. (Na prática, isso é cada vezmenos verdadeiro.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DESMIDIATIZAR O PENSAMENTO: ECONOMIA DAS REPRESENTAÇÕES E...

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O

O IMAGINÁRIO DA CIBERCULTURA

ANDRÉ LEMOS

Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneasda Faculdade de Comunicação da UFBa

Your idea is crazy, but it isn’t crazy enough to be true.

Neils Bohr

imaginário da cibercultura é permeado por umapolarização que persegue a questão da técnica des-de tempos imemoriais: medo e fascinação. O que

vemos hoje, com o desenvolvimento da cibercultura (Internet,realidade virtual, cyborgs, hipertextos, etc.), é o acirramentoda querela entre o que Umberto Eco chamou de apocalípti-cos e integrados (Eco, 1979). Neste final de milênio, surge aradicalização dos debates intelectuais sobre a ciberculturaentre aqueles que são taxados de neoluddites (contra a eufo-ria tecnológica) e os que são chamados de tecno-utópicos(promotores dessa mesma euforia).

Com o objetivo de esgotar a querela e instaurar o consen-so, um grupo de intelectuais americanos criou, em março de1998, uma corrente de pensamento e posicionamento emrelação à tecnologia batizada de “tecno-realismo”, uma es-pécie de “movimento” intelectual pelo bom senso e pela frie-za nas observações e análises sobre a cultura tecnológicacontemporânea. Nem luddites (pessimistas-apocalípticos)nem utópicos (otimistas-integrados), os tecno-realistas, comoo nome expressa, pretendem-se realistas (?), sendo a voz darazão, da objetividade e, mais do que isso, da neutralidade.Eles buscam encontrar a posição do meio, plantar-se no centrodo debate sobre os impactos sociais das novas tecnologiasde comunicação, instaurando (impondo?) o consenso. Maisdo que nunca, a questão da técnica emerge dessa misturaesquizofrênica de amor e ódio.

Vamos tratar nesse artigo da polarização desse imaginá-rio social da técnica contemporânea, tentando mostrar que omovimento tecno-realista não passa de uma cruzada contra

as posições extremadas de “otimistas” e “pessimistas”, bus-cando a “via racional” da cibercultura. Nesse sentido, tal-vez estejamos mais próximos de um “tecno-surrealismo”(Sirius) do que da unanimidade da visão tecno-realista. Comoveremos, numa pequena digressão histórica (necessária paracompreendermos a origem dessa tensão), essa polarizaçãonão é um fato novo na história da técnica.

A QUESTÃO DA TÉCNICA

Nossa relação com a técnica sempre foi permeada poruma mistura de medo e fascinação. A palavra “técnica”, naacepção etimológica, vem do grego “tekhnè” (ou “techné”)que podemos traduzir por “arte” num sentido amplo. Atekhnè grega é um conceito filosófico que visa descrever asartes práticas; o “saber fazer” humano em oposição à“phusis”, o princípio de geração das coisas naturais. Tekhnèe phusis fazem parte de todo processo de “vir a ser”, de pas-sagem da ausência à presença: da “poièsis”.1

A tekhnè compreende as atividades práticas humanasdesde a elaboração de leis e a habilidade para contar emedir, passando pela arte do artesão ou do médico, pelastécnicas de confecção do pão até as artes plásticas ou belasartes. O conceito de tekhnè era assim um primeiro esfor-ço para a formação de uma filosofia da técnica, buscandodiferenciar o fazer poiético humano (tekhnè) do fazerpoiético da natureza (phusis). A tekhnè é assim uma arteque coloca o homem no centro do fazer poiético. A tekhnèrevela todo fazer humano. Como mostra Stiegler (1994),“la danse est tekhnè, la politesse est tekhnè, la cuisineest tekhnè”. Para Aristóteles “toute ‘tekhnè’ a pourcaractère de faire naître une oeuvre” (Aristote, 1990a).

O nascimento da filosofia grega, cinco séculos antes danossa era, vai ser decisivo para a formação da nossa visão

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O IMAGINÁRIO DA CIBERCULTURA

atual dicotômica da tecnologia. Como veremos, a críticacontemporânea da tecnologia será marcada por essa filoso-fia da técnica, principalmente influenciada por Platão eAristóteles. A crítica de Platão aos sofistas buscava mostrarcomo a contemplação filosófica era a atividade nobre dohomem, acima da tekhnè. Platão critica os manuais e recei-tas sofísticas e não é por acaso que os sofistas são chamadosde “tekhnai” (Platon, 1989). A tekhnè vai ser colocada pelaprimeira vez em oposição ao saber teórico-contemplativo, aépistèmé (contemplação filosófica).2

A filosofia de Platão e de Aristóteles vai induzir nossapercepção em relação às artes práticas, consideradas inferio-res à atividade intelectual. O artista, aquele que possui o domde uma tekhnè, é para Platão um “démiurgos”, um imitador.Ele possui o dom da cópia e da produção de simulacros. Osobjetos técnicos são assim produtores de aparências, imita-dores do ser. Como cópia, imitação ou simulacro, a técnicaé vista com desconfiança (por produzir cópias) e em posi-ção inferior ao pensamento reflexivo (atividade menor emrelação à contemplação).

Aristóteles vai trazer mais um elemento a essa descon-fiança ao mostrar na sua Física que a atividade prática é tam-bém inferior às coisas da natureza, já que essa última é auto-poiética. A tekhnè é apenas poiética, necessitando de umDemiurgos criador. Para Aristóteles, “aucune chose fabriquéen’a en elle le principe de la fabrication” (Aristote, 1990b).Sendo assim, as coisas artificiais, fruto da tekhnè, são infe-riores às coisas naturais, pois essas últimas são auto-poièticas,ou seja, possuem em si o princípio de vir a ser. A tekhnèserá assim um saber prático que imita e domina a phusis,sendo inferior a ela (Aristote, 1990a). Podemos notar que,com o surgimento da filosofia, a técnica passa a ser vistacomo menos nobre que a contemplação, produtora de simu-lacros e inferior às coisas naturais. Mais um fator será fun-damental na construção da polarização contemporânea en-tre neoluddites e tecno-utópicos: a mitologia grega.

A técnica será tema dos mitos gregos, que a associam auma violação do sagrado, instaurando para sempre esse medoancestral de transgressão.3 Para os mitos gregos, os mitos deorigem do homem são também os mitos de origem da técni-ca (como em Prometeu, Dédalo e Ícaro, Hefaístos, Atena,Pandora) que nos colocam diante da questão do homem comoser da técnica. A antropogênese coincide com a tecnogênese.A técnica será fonte de violação dos limites sagrados im-postos pelos deuses aos homens. A tekhnè é, assim, ao mes-mo tempo, inferior à natureza, menos nobre que a contem-plação filosófica e instrumento de transgressão do espaçosagrado imposto pelos deuses.

Nesse sentido, Gille (1978) mostra que os primeiros sis-temas técnicos instauram-se a partir de dois motivos princi-pais: a potência dos deuses e a imitação da natureza. A téc-nica é, nesse momento, uma arte, uma atividade prática de

origem divina. A técnica pré-histórica nasce como desvio eimitação da natureza segundo moldes cedidos por deusesancestrais (Leroi-Gourhan, 1943-1971). O homem torna-seassim um inventor, um demiurgos, profanador do universosagrado. Ele é aquele que “ne reçoit plus, il invente” (Gille,1978:127). O sagrado e o profano se estabelecem: o sagradocomo qualidade do mundo e o profano como o mundo con-creto onde o homem pode agir através de seus instrumentos(Eliade, 1965). Assim, nas origens pré-históricas da técnica,o sagrado torna-se lugar do interdito. O profano é a trans-gressão (Miguel e Ménard, 1988). A técnica, por atuar noespaço profano, mas ensinada aos homens pelos deuses, vaiser ao mesmo tempo vinculada à transgressão e à potênciadivina.

O modelo da técnica pré-histórica é aquele da “fase má-gica”, que se caracteriza como uma “técnica de sacra-lização” (Miguel e Ménard, 1988). O universo técnico ain-da não é autônomo em face da natureza ou de outras esferasda vida social. A técnica é, ao mesmo tempo, instrumentoprofano (transgressão da ordem da natureza) e de potênciamágica e simbólica (o poder de transformar o mundo). Oobjeto técnico, preso a esse esquema de transgressão, serápara sempre depositário de um medo e de uma fascinaçãopresentes hoje na gênese do movimento tecno-realista.

A partir do século XVIII, a atividade técnica vai estar li-gada ao conhecimento científico. Este processo vai culmi-nar no século XX com os Centros de P&D, determinando ajunção definitiva entre ciência e técnica. Forma-se assim umatecnosfera (a tecnologia transforma a natureza), umatecnociência (cientifização da técnica e tecnificação da ciên-cia) e uma tecnocultura (a técnica domina toda a socieda-de). A técnica moderna, ou o que chamamos hoje de tecno-logia, é o produto da radicalização dessa segunda natureza,da naturalização dos objetos técnicos e da sua fusão com aciência: cria-se a tecnociência. Como mostra Stiegler(1994:102), “ce monde étendu à la planète est celui de lascience et de la technique occidentales ayant noué, (...) unnouveau rapport – monde de la technoscience”. A tecnoculturaé formada por uma tecnociência autônoma, universal e tota-litária.

A tecnologia moderna torna-se autônoma, universal ehegemônica em relação aos outros campos da atividade so-cial (Ellul, 1954 e 1977). Na modernidade, a natureza e avida social serão requisitadas como objetos de intervençõestecnocientíficas. Daí emergem as conseqüências nefastas dodesenvolvimento científico e tecnológico. A tecnociênciadomina a natureza, racionaliza os modos de vida e controlaa política e a mídia. Com o advento da tecnologia moderna,as contradições do fenômeno técnico alcançam seu clímax(desigualdades sociais, impactos ecológicos, armamentos).A ação técnica humana mudou a natureza, transformando-anuma tecnosfera, como também a própria “natureza” do

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homem. Associa-se de forma radical o potencial inventivohumano ao potencial destrutivo da técnica. A modernidadenos mostrou o lado perverso do desenvolvimento tecnológico.

NEOLUDDISMO E TECNO-UTOPIA

A cibercultura contemporânea vai acirrar essa ambi-güidade ancestral que está na origem do fenômeno técni-co. Estamos hoje no fogo cruzado entre intelectuais que as-sociam uma postura “crítica” a uma visão negativa datecnologia (por exemplo, Virilio, Baudrillard, Shapiro,Postman) e aqueles ditos utópicos, que vêem nas novas tec-nologias um enorme potencial emancipatório, fonte de cria-ção de inteligentes coletivos, de resgate comunitário e deenriquecimento do processo de aprendizagem (Negroponte,Lévy, De Rosnay, Rheingold).

Como vimos, essas posturas não são novas, mas frutodo desenvolvimento da tecnologia e de seu imaginário nassociedades avançadas. De um lado, estão os neoluddites,que insistem em regular e manter sob controle social asnovas tecnologias, alertando contra o seu potencial des-truidor (da sociedade, do homem e da natureza). De ou-tro, os tecno-utópicos, que tentam mostrar como as no-vas tecnologias criam possibilidades inusitadas para ahumanidade, sendo uma espécie de panacéia contra osmales da tecnocracia moderna.

O neoluddismo é inspirado no movimento “luddites”dos operários ingleses do século XIX, que protestavam equebravam máquinas em plena revolução industrial commedo de perderem seus empregos. A partir da liderançade Ned Ludd (que deu nome ao movimento), “the Luddites,reaped havoc on industrial Britian. From the campaignsagainst Lancashires power looms, to the Swing Riots ofsouthern and western England, Luddite revolts became alegendary example of the anti-technology movement.Luddites view the world in an extensively differentviewpoint from that of an industrialist. Luddites view theworld as a collective organism, a living organism of in-dividual organs. Luddites concentrate on a globalcommunity interwoven upon human consiousness.Luddites cherish personal relationships and biologicaldiversity”.4

O movimento começou em Nottingham, em 1811, e seespalhou pelas fábricas de Yorkshire e Lancashire, conti-nuando até 1816, quando começou a enfraquecer. Hojeeles estão presentes na Internet com o intuito de desa-celerar os ritmos da informatização da sociedade alertandocontra os malefícios da cibercultura.5 Um de seus expo-entes é o pensador francês Paul Virilio que, entre outroslivros, publicou um de entrevistas com o sintomático tí-tulo de Cybermonde. La logique du pire (Virilio, 1996).No site dos luddites on line encontramos essa introdução:

“Do you loathe computers? Does advanced industrialsociety really annoy you? Looking for a bike lane on theinformation superhighway? Luddites On-Line is the onlyplace in cyberspace devoted exclusively to luddites,technophobes and other refugees from the InformationRevolution. Our user-friendly graphic interface allows youto discuss strategies for undermining the growingcybourgeoisie and explore luddite-related links on thehated Internet. We even have t-shirts (printed by hand ofcourse). Feeling like roadkill on the infobahn? Tune in,turn off and click here”. 6

Os tecno-utópicos, embora não reivindicando esse ró-tulo, são tidos como aqueles intelectuais para os quais astecnologias recentes representam um novo patamar nodesenvolvimento tecnológico do Ocidente, abrindo pos-sibilidades até então inexistentes de comunicação nãomassificada, de acesso hipertextual à informação e de cria-ção de coletivos inteligentes. Para os tecno-utópicos, es-sas novas tecnologias de comunicação – digital, multi-modal e imediata – (Lévy, 1997) levam a uma reestrutu-ração das estruturas de poder vigentes – midiático, políti-co, social –, descentralizando-o. Não é à toa que Negroponte(1995) clama por uma “vida digital” e Pierre Lévy (1995),por uma “inteligência coletiva”.

TECNO-REALISMO

“As technorealists, we seek to expand the fertilemiddle ground between techno-utopianism and neo-Luddism. We are technology “critics” in the sameway, and for the same reasons, that others are foodcritics, art critics, or literary critics. We can bepassionately optimistic about some technologies,skeptical and disdainful of others. Still, our goal isneither to champion nor dismiss technology, butrather to understand it and apply it in a manner moreconsistent with basic human values.”

Manifesto Tecno-Realista

O movimento tecno-realista surge nos EUA com o obje-tivo de encontrar o caminho do meio, alternativo tanto aostecno-utópicos como aos neoluddites. O movimento foi cria-do em 12 de março de 1998 a partir de um encontro de 12escritores e intelectuais no Bistrô Les Deux Gamins, noGreenwich Village, em Nova York. Entre os fundadores estãoDavid Bennahum (Wired, Spin), Brooke Shelby Biggs,Paulina Borsook (autor de Cyberselfish), Marisa Bowe,Simson Garfinkel, Steven Johnson (Feed), Douglas Rushkoff(autor de Cyberia), Andrew Shapiro (Harvard Law School),David Shenk (autor de Data Smog), Steve Silberman, MarkStahlman e Stefanie Syman (Feed). O movimento foi criadoa partir de um documento proposto por Shapiro, Shenk e

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Johnson.7 Hoje o movimento tem um site na Internet(www.technorealism.org), uma lista de discussão (getreal-l)8 emais de 1.500 assinantes.

O movimento tecno-realista, através do seu manifesto,expõe sua visão sobre a cultura tecnológica contemporâneae define sua posição:

“The heart of the technorealist approach involves acontinuous critical examination of how technologies —whether cutting-edge or mundane — might help or hinderus in the struggle to improve the quality of our personal lives,our communities, and our economic, social, and politicalstructures. In this heady age of rapid technological change,we all struggle to maintain our bearings. The developmentsthat unfold each day in communications and computing canbe thrilling and disorienting. One understandable reactionis to wonder: Are these changes good or bad? Should wewelcome or fear them? The answer is both. Technology ismaking life more convenient and enjoyable, and many of ushealthier, wealthier, and wiser. But it is also affecting work,family, and the economy in unpredictable ways, introducingnew forms of tension and distraction, and posing new threatsto the cohesion of our physical communities.” 9

O manifesto tem oito pontos assim explicitados:10

- a tecnologia não é neutra. “Uma grande incompreensão denosso tempo é a idéia de que as tecnologias estão completa-mente livres de influências – porque são artefatos inanima-dos, elas não promovem certos tipos de comportamentos emdetrimento de outros. Na verdade, as tecnologias seguem demaneira intencional ou não as inclinações sociais, políticase econômicas. Toda ferramenta proporciona para seus usuá-rios uma maneira particular de ver o mundo e caminhos es-pecíficos de interação com o outro. É importante para cadaum de nós considerar as influências das várias tecnologias eprocurar aquelas que refletem nossos valores e aspirações”;

- a Internet é revolucionária, mas não utópica. “A rede é umaferramenta de comunicação extraordinária que provê opor-tunidades novas para pessoas, comunidades, negócios e go-verno. Como o ciberespaço se torna mais povoado a cadadia, ele assemelha-se a uma grande sociedade em toda suacomplexidade. Para todo aspecto potencializador e ilumi-nador da rede, haverá também dimensões que são malicio-sas, perversas, ou bastante ordinárias”;

- o governo tem um papel importante na fronteira eletrôni-ca. “Ao contrário de algumas reivindicações, o ciber-espaço não é formalmente um lugar ou jurisdição separadada Terra. Os governos deveriam respeitar as regras que sur-giram no ciberespaço, e não abafar este mundo novo comregulamentos ineficientes ou censura; é tolo dizer que o pú-blico não tem nenhuma soberania em relação ao que um ci-dadão errante ou uma corporação fraudulenta faz on line.Como representante das pessoas e o guardião de valores

democráticos, o Estado tem o direito e a responsabilidadede ajudar a integrar o ciberespaço à sociedade convencio-nal. As inovações tecnológicas e as questões de privacida-de, por exemplo, são muito importantes para serem regidasapenas pelas forças do mercado. As empresas de softwaretêm pouco interesse em preservar padrões abertos que sãoessenciais para que uma rede interativa funcione. Os merca-dos encorajam a inovação, mas eles não necessariamenteasseguram o interesse público”;

- informação não é conhecimento. “Ao redor de nós, a in-formação está se movendo mais rapidamente e está ficandomais barato adquiri-la; e os benefícios são manifestos. Issodito, a proliferação de dados também é um sério desafio erequer novas medidas de disciplina humana e ceticismo. Nãodevemos confundir a excitação em adquirir ou distribuir ra-pidamente a informação com a tarefa mais assustadora deconverter isto em conhecimento e sabedoria. Embora com oavanço dos nossos computadores, nunca deveríamos usá-loscomo substituto das nossas próprias habilidades cognitivas bá-sicas de consciência, percepção, argumentação e julgamento”;

- interligar as escolas não as salvarão. “Os problemas comas escolas públicas da América – fundos disparatados, pro-moção social, classes inchadas, infra-estrutura defi-ciente, falta de padrões – não têm quase nada a ver com atecnologia. Por conseguinte, nenhum aporte de tecnologiaconduzirá à revolução educacional profetizada pelo presi-dente Clinton e outros. A arte de ensino não pode ser repro-duzida por computadores, pela rede ou por ‘educação a dis-tância’”. Estas ferramentas já podem, é claro, potencializarexperiências educacionais de alta qualidade. Mas confiarnelas como qualquer tipo de panacéia seria um engano”;

- a informação quer ser protegida. “É verdade que o cibe-respaço e outros recentes desenvolvimentos estão desafian-do nossas leis de proteção aos direitos autorais e à proprie-dade intelectual. A resposta, entretanto, é não esmagar osestatutos e princípios existentes. Ao invés disso, temos deatualizar leis e interpretações antigas de modo que a infor-mação receba a mesma proteção que existe no contexto dasvelhas mídias. A meta é a mesma: dar aos autores controlesuficiente sobre seu trabalho para incentivá-los a criar, man-tendo o direito do público para fazer livre uso daquela infor-mação. Em nenhum contexto a informação quer ‘ser livre’.Ela precisa ser protegida”;

- o público dispõe das ondas aéreas. “O público deveriabeneficiar-se do seu uso. A recente abertura do espectrodigital deu margem ao abuso corrupto e ineficiente dosrecursos públicos na arena da tecnologia. O cidadão, deforma coletiva, deveria beneficiar-se do uso de freqüên-cias públicas e uma parcela deveria ser destinada ao acessopúblico para fins educacionais e culturais. Deveríamosexigir mais uso privado da propriedade pública”;

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- compreender a tecnologia deveria ser um componenteessencial de cidadania global. “Em um mundo dirigidopelo fluxo de informação, as interfaces – e o código sub-jacente – que tornam a informação visível estão se tor-nando uma enorme e poderosa força social. Entender asforças e limitações e até mesmo participar na criação deferramentas melhores deveria ser uma parte importanteda constituição de um cidadão envolvido. Estas ferramen-tas afetam nossas vidas tanto quanto as leis e deveríamossujeitá-las a um mesmo escrutínio democrático”.

REALISTAS?

A partir desses oito pontos, várias reações surgiram nociberespaço como o site do “tecno-sentimentalismo”,11 quefaz uma paródia do movimento clamando não por umtecno-realismo mas por tecno-sentimentalismo, ou o arti-go “Tecno-surrealismo” de R. U. Sirius, editor da revistacaliforniana (cyberpunk) Mondo 2000, que tenta mostraro delírio da imposição do realismo. Vamos voltar maistarde a esse ponto.

O que se pretende aqui é fazer uma análise crítica domovimento a partir de suas premissas básicas e dos oitopontos explicitados no seu manifesto.12 O que alguns crí-ticos vão reter dessa proposta é algo próximo do que dizGunn: “The real battle – to bring the Net to its rightful,humble, ubiquitous place in the world’s social, political,and economic life – has little to do with manifestopronouncements such as ‘we are technology critics in thesame way, and for the same reasons, that others are foodcritics, art critics, or literary critics”’ (Gunn, 1998).

Poderíamos começar nossa análise explorando o próprionome do movimento: tecno-realismo. Várias questões emer-gem: em meio à falência das ideologias (os meta-relatos damodernidade) será possível sustentar mais um “ismo”? Numaépoca de profundas transformações e incertezas será possí-vel atingir a “realidade” das coisas, ainda mais levando emconta as rápidas metamorfoses do fenômeno técnico? Ostecno-realistas parecem dizer que sim ao querer instaurar um“racionalismo realista” com a pretensão de criar o consen-so, na herança do pensamento crítico frankfurtiano. A ques-tão aqui é epistemológica: será possível instaurar um novoprojeto racionalista em meio a uma contemporaneidade emque o real há muito deixou de ser uma evidência em várioscampos – da física à biologia, das mídias de massa à realida-de virtual? Será possível instaurar o consenso? Nesse senti-do, não seria o movimento tecno-realista um resgate da pers-pectiva moderna (“crítica”), tentando colocar um ponto finalnessa suposta infantilidade de ser simplesmente contra ou afavor?

Para responder a isto, o movimento tecno-realista ar-gumenta: “...the debate over technology has been dominated

by the louder voices at the extremes, a new, more balancedconsensus has quietly taken shape. This document seeksto articulate some of the shared beliefs behind thatconsensus, which we have come to call technorealism”.13

Vejamos então os oito pontos do manifesto.Em primeiro lugar, é bom deixar claro que embora o

movimento se pretenda planetário (e não é à toa que elese propaga via Internet) ele é nitidamente americano. Aquestão da educação (ponto 5) é uma resposta explícita àpolítica americana de interligar todas as escolas e biblio-tecas à Internet. Os oito princípios também revelam ape-nas o óbvio, e tanto utópicos como luddites poderiam es-tar de acordo com quase todos eles.

Que a tecnologia não é neutra todos sabemos. Esse aler-ta foi dado há algumas décadas por pensadores como Ellul,Mumford, Elias, Habermas, entre outros. Tanto utópicoscomo pessimistas estão de acordo sobre esse princípio,embora as conclusões daí derivadas sejam divergentes.Para uns a apropriação social resolve essa não neutrali-dade, para outros ela é fonte de poder e controle.

Ao afirmar que “a Internet é revolucionária mas nãoutópica”, os tecno-realistas querem dizer que as novastecnologias estão mudando nossa maneira de ver e estarno mundo, mas que em si elas não são utópicas. Ora, orevolucionário é a essência mesma da utopia. A utopiadepois de Thomas More é o “não lugar” inalcançável,imprevisto, ou “o” lugar, o destino último. Fundamental-mente, a Internet é utópica justamente por ser revolucio-nária. Mas parece evidente que os realistas estão chamandoa atenção para o fato de não ser possível insistir que ape-nas uma mudança de cunho tecnológico (o ciberespaço)possa resolver problemas crônicos da sociedade.

A questão da técnica é desde sempre uma questão so-cial. Que os governos tenham um papel importante nafronteira eletrônica, parece o mais óbvio e o mais unâni-me dos argumentos. Tanto utópicos como pessimistas têmplena consciência deste fato. Uns lutam por regulamen-tações (censura, controle, normas, leis), outros pela nãointervenção total e pela regulação socialmente sustenta-da, além da garantia de acesso amplo e irrestrito às tec-nologias da cibercultura.

O quarto ponto do manifesto chama a atenção para quenão se confunda informação com conhecimento. Mais umavez, esse argumento faz unanimidade. Os pessimistasparecem saber disto ao afirmar que o que existe no cibe-respaço é a mera circulação de informações, sem neces-sariamente trazer um conhecimento articulado sobre umdeterminado assunto. Os otimistas diriam que no ciber-espaço estão as informações, antes privilégios de poucos,disponíveis a todos que, de agora em diante, teriam a pos-sibilidade de reuni-las a partir de caminhos próprios(hiperlinks), construindo um conhecimento autônomo.

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O IMAGINÁRIO DA CIBERCULTURA

Tanto na crítica como na exaltação do excesso de infor-mação o que está explícito é o reconhecimento de que ainformação não é conhecimento.

Da mesma maneira que a informação não é conhecimen-to, a simples ampliação do fluxo informativo não garantemelhoria na educação. Esse é o argumento do quinto ponto,que parece também não ser muito divergente entre apoca-lípticos e integrados. Os pessimistas vêem com razão a in-formatização da educação apenas como uma investida demarketing que atinge hoje várias escolas e universidades.Essas, na maioria das vezes, contentam-se em dispor equi-pamentos de acesso à Internet como forma de moderniza-ção, sem necessariamente levar a alguma melhoria das con-dições de ensino, não se preocupando com aspectospedagógicos ou treinamentos de professores. Por outro lado,os otimistas têm consciência de que interligar escolas nãovai salvá-las, mas que é fundamental que uma escola apro-veite o manancial disponível hoje na Internet.

O sexto ponto do manifesto é o mais polêmico e aomesmo tempo o mais conservador. Diferente da atitudecyberpunk (Lemos, 1993), que marcou o início damicroinformática e do ciberespaço, pregando que “todainformação deve ser livre”, os tecno-realistas buscam pro-teger a informação (“a informação deve ser controlada”).A máxima cyberpunk nos parece muito mais arrojada,projetiva e crítica do que a máxima tecno-realista. Os re-alistas estão preocupados, não sem razão, com questõescomo copyright, privacidade e segurança das trocas deinformação. Os pessimistas igualmente. O que torna ociberespaço um fenômeno social é a disponibilidade dosinternautas de fornecer livremente as informações maisdiversas, seja em listas, e-mail, grupos de discussão oupáginas Web. O que mantém vivo o ciberespaço é a in-formação que circula livremente e não a informação con-trolada. A generalidade da argumentação a torna inócua (éclaro que devem existir informações livres e controladas).

O sétimo ponto também não traz discórdias entre utópi-cos ou pessimistas. Ele afirma que o público dispõe das on-das aéreas e que pode utilizá-las em seu benefício com ativi-dades educacionais, culturais e afins. Em Technologies offreedom, Ithel de Sola Pool (1983) mostra como a utilizaçãode emissões por ondas aéreas ou terrestre depende da tecno-logia e da estrutura social que a organiza. Não há nada deradical ou inovador nesse ponto. O mesmo poderia ser ditodo último ponto do manifesto que afirma que “entender atecnologia é um componente essencial da cidadania global”.Quem poderia negar essa afirmação?

Tanto neoluddites como tecno-utópicos fazem coronesse ponto. Os primeiros afirmam que a tecnologia éimportante, mas que pode estar atrofiando a dimensãopública e política ao isolar cidadãos que, de agora em dian-te, apenas comutam informações binárias entre si. Já os

tecno-utópicos vão afirmar que o ciberespaço pode pro-porcionar aos cidadãos uma nova espécie de “ágora-ele-trônica”, um espaço para formação comunitária e criaçãode coletivos inteligentes, distribuindo e potencializandonovas formas de organização social. Vemos assim que nãoé nenhuma novidade (ou radicalidade) reconhecer que arelação entre as novas tecnologias e a vida social é fun-damental para o exercício da cidadania.

Pode-se dizer que o movimento tecno-realista afirmaem seus oito princípios apenas obviedades que não ne-cessariamente o diferenciam de utópicos ou pessimistas.Ele tenta chamar atenção para si mesmo, criando mais um“ismo” e buscando resolver a dualidade dos que achamtudo bom ou tudo ruim (não teríamos o direito de amarou odiar a tecnologia?), numa perspectiva meramenteelitista. Como mostra Katz (1998), “when writers startdeclaring the essential components of global citizenship,new boundaries of technopomposity have been reached.This is as elitist as it is heavy-handed. It isn’t the responsibilityof utopians, luddites, or technorealists to lecture the worldon the responsibilities of global citizenry. People shouldbe as free to ignore or reject technology as to embrace it.The moral dilemma is to make this equipment equallyaccessible, not to presume it’s good for everyone”.

O tecno-realismo parece ser assim uma ideologia de tipomoderno que desacredita seus opostos (rapidamente tacha-dos de otimistas ou pessimistas) como excessivos, forçan-do-os a entrar na “realidade” das coisas, a perceber o “real”impacto da tecnologia digital na cultura contemporânea.Como mostra Gunn, os tecno-realistas querem dirigir osdebates, aparar arestas e instaurar a hegemonia: “The publicis best brought onto the battlefield by careful, informed,comprehensible discourse; these ‘critics’ haven’t even drawnup a readable map of the countryside. Don’t let this single-mast ship of fools sail away with the discussion. They haveno authority (intellectual, moral, or otherwise) to dictate theterms of debate, especially since their manifesto makes sucha mess of it. That debate belongs to you and me and the restof the industry – and your mom’s bridge club – at least asmuch as it does to these Siskel-and-Ebert-come-latelies”(Gunn, 1998).

O tecno-realismo rejeita assim o visionário e a desme-sura, desabonando opiniões divergentes, neutralizando-as nosuposto excesso retórico. Como mostram alguns autores, otecno-realismo é um movimento próximo do legal realismde 1900 nos EUA, que pretendeu desenvolver um pensa-mento crítico em relação ao mercado. A máxima parece ser:“Minha argumentação é realista, logo ela é racional, neutra,objetiva, diferente dessas outras excessivamente utópicas oupessimistas.” É interessante notar ainda que autores comoShapiro, Borsook ou Sparkman, criadores do “movimento”,parecem em seus textos muito próximos dos neoluddites.

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Shapiro sustenta o caráter não necessariamente demo-crático da rede e insiste em dizer que esquecemos a ri-queza do face a face; Paulina Borsook mostra os proble-mas do copyright e afirma que a arte eletrônica é “plagia-rismo”; e R. Sparkman questiona o papel do computadorna escola dizendo que com ele não há revolução na edu-cação. Assim, parece que o movimento tecno-realista foiformado por “neoluddites reformados” que, sem quereraderir à crítica radical, mas reconhecendo certos benefí-cios das novas tecnologias, pretendem-se hoje realistas.Isso beira o tecno-surrealismo.

TECNO-SURREALISMO

Contrapondo-se à euforia tecno-realista, R.U. Sirius(que se pronuncia “are you sirius”, ou “você é sério”),editor da revista Mondo 2000 e cyberpunk convicto, dizque a cibercultura já passou por quatro fases, chegandoagora à tecno-surrealista. A primeira fase é conhecidacomo “nerdismo puro”, que durou de 1976 a 1988, e ca-racterizou-se por uma subcultura da informática que pre-gava que toda informação deve ser livre, que o ciberespaçoé de todos e que os computadores devem ser acessíveis ede fácil utilização. A segunda é a “tecno-anarquista”, de1989 a 1992, fase do amadurecimento do ciberespaço eda celebração do caráter rizomático e anárquico da rede.É a época do apogeu da revista Mondo 2000.14 A terceirafase caracteriza-se pelo “tecnoliberalismo”, tendo comoexpoente a revista Wired,15 mostrando a força dos con-glomerados do capitalismo pós-industrial e a entrada daInternet na era do comércio eletrônico (e-commerce, e-business, e-money).

Usando da sagacidade e ironia que lhe são particula-res, Sirius sustenta que a quarta fase da cibercultura é ado tecno-realismo, já superada (durou apenas uma sema-na: de 12 a 19 de março de 1998). Para Sirius, todo rea-lismo sem imaginação é mero reducionismo. E é precisomuita imaginação para viver num fluxo de informaçãocaótico que supera em muito nossa capacidade de enten-dimento. Não existe assim tecno-realismo, já que não épossível, em meio a essa explosão da informação, a exis-tência de um consenso sobre qual o método “real, objeti-vo, imparcial” de conhecermos nossa realidade socio-técnica. O tecno-realismo nasceu e morreu (ou já nasceumorto?) pelo desejo impossível de um pequeno grupo dainteligência norte-americana de encontrar, no entendimen-to dos impactos tecnológicos, um norte em uma épocahiperbólica, uma linearidade em uma época hipertextual.

Fundam uma espécie de “tecnopomposidade”, comomostra Katz (1998): “The principles of technorealism,though they tend toward the self-important, are quitesensible. But they are not exactly stirring, nor likely to

send the masses out into the streets. It isn’t clear why suchmoderate, even tepid, philosophical and political standsrequire a manifesto in need of fearless co-signers, let alonea conference at Harvard.” No fundo, o problema, comoafirma Sirius, não está na escolha legítima entre ser umotimista ou um pessimista. O real problema da ciberculturaestá no tecno-surrealismo dos que acreditam em tudo edos que não acreditam em nada.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

Esse ensaio foi tema de uma conferência no X Ciclo de Estudos sobre o Imagi-nário: Cibercultura e Imaginário, promovido pelo curso de pós-graduação emAntropologia da UFPe. Recife, novembro, 1998.

1. Sobre o conceito de poièses e sua relação com a tekhnè, ver Heidegger (1958).

2. Para uma visão geral da filosofia da técnica, ver Goffi (1988).

3. Podemos ilustrar com a polêmica em torno da clonagem que nos coloca emmeio à questão da violação do sagrado: podemos brincar de Deus e criar, mani-pulando a vida?

4. Ver texto The luddite movement in http://www.webpointers.com/luddites.html.

5. Sobre os luddites na Internet, ver sites em anexo.

6. Ver Life was better before sliced bread em www.ludittes.com

7. Para uma visão geral, ver a FAQ em www.technorealism.org

8. Para assinar a lista, basta mandar um e-mail para [email protected] no corpo do e-mail escrever “subscribe getreal-l” (sem aspas).

9. Ver o manifesto em http://www.technorealism.org

10. Sobre o tecnosentimentalismo, ver Technofeelism. An overview inwww.onlinepress.com

11. Manifestos na grande rede são freqüentes: a ética dos hackers do CCC, aindependência do ciberespaço de Barlow, o manifesto dos cypherpunks, etc.

12. Manifesto em www.technorealism.org

13. Ver www.mondo2000.com

14. Ver www.wired.com

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O

FONTES ELETRÔNICAS DE INFORMAÇÃOnovas formas de comunicação e de

produção do conhecimento

SOLANGE PUNTEL MOSTAFA

Professora de Biblioteconomia da PUC-Campinas

MARISA TERRA

Bibliotecária da Faculdade Guarujá-SP

s novos procedimentos automatizados para o tratoda informação deixaram visíveis a criatividadehumana na construção de novas estratégias de

ensino e de material didático. Essa visibilidade dos cole-tivos humanos e de seus agenciamentos sociotécnicosredireciona os processos de avaliação, que então passama fazer parte da construção do real. A avaliação vai sedando como uma das etapas da fabricação de produtos eprocessos, fugindo um pouco da noção de feedback quealimentou tanto nossas representações nessas últimas dé-cadas.

Trata-se de tomar a noção de feedback não como acon-tecimento de fim de linha que viria retroalimentar os iní-cios dos procedimentos. A metáfora popularizada pelaInternet “Em permanente construção” está aí nas páginasdos novos livros, quiçá para mostrar que essa construçãoé de uma outra ordem.

A ordem mencionada pelos pós-estruturalistas: umaordem não linear, uma seqüência diferente daquela quetem começo, meio e fim – a rigor é a noção mesma de fimque está sendo desconstruída e junto com ela questiona-se também a noção de verdade, de totalidade, de ciênciacomo caminho seguro para se chegar a um final feliz. Nãohá mais necessidade de se pensar no todo orgânico atéporque não há mais todo; não há mais currículo pleno ouverdadeiro.

Escolas, currículos, conhecimentos, programas de en-sino, bibliografias ou webiografias são recortes possíveis.Nem verdadeiros, nem falsos. Trabalha-se mais com anoção de aproximação. Dos referenciais marxistas, valo-riza-se hoje o nome de L. Goldman (1970) com a noçãode consciência possível.

Dos pós-marxistas, apesar das diferenças entre eles,valorizam-se nomes como J.F. Lyotard, M. Foucault, R.

Rorty, P. Levy, autores que não estão mais falando emconsciência ou em “conscientização” por estarem já ins-critos no programa do sujeito discursivo coletivo e fun-dado. Fundado não numa suposta consciência trans-cendental. À rede de atores de Latour (1997), vêm se so-mar os “coletivos humanos” de Levy (1993): é assim queLevy vai trabalhar o conceito de ecologia cognitiva cons-truída a partir não de um sujeito transcendental, indivi-dual e psicológico, mas sim grupal, coletivo e concreto,apontando para o aspecto coletivo do pensamento e daspráticas que, desde a década de 70, Lyotard já advertiaque mudariam o estatuto do saber.

AS FONTES ELETRÔNICAS DE INFORMAÇÃO

Nesta nova configuração, inserem-se as fontes eletrô-nicas de informação, verdadeiros “coletivos inteligentes”ou “ híbridos” como quer Latour (1997). Híbridos naquelesentido apontado por Mostafa e Oliveira (1997:32-33):“a natureza volátil do documento eletrônico e a multipli-cidade de formas nas quais ele aparece desesta-bilizam a Biblioteconomia por inteiro em todas as suasfunções: biblioteca não é mais aquilo que pensávamos queera; coleção de biblioteca agora inclui conversas e cente-nas de outros catálogos; biblioteca pode também ser mu-seu; hospital também é biblioteca; mensagens pessoaissão também mensagens científicas; conversa é livro ecatálogo vira documento. O ‘paper’ tradicional se apro-xima da conferência e os trabalhos em progresso aproxi-mam-se do artigo publicado. A convergência de proces-sos, formatos, instituições e serviços revoluciona a biblio-teconomia por inteiro.”

Cada endereço eletrônico é um link de hipertexto. Sabe-se que “hipertexto” não equivale a “texto”. Não seria cor-

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FONTES ELETRÔNICAS DE INFORMAÇÃO: NOVAS FORMAS DE COMUNICAÇÃO...

reto comparar links eletrônicos com fontes impressas (porexemplo, livros ou revistas). Cada link de hipertexto podeser desdobrado em várias outras páginas. A questão teó-rica mais importante aqui é aquela desenvolvida porMostafa e Oliveira (1997:141-142) ao tratar links comorelacionamentos. Aliás, na catalogação internacional, onome de Barbara Tillet surge por oposição ao nome deMartha Yee justamente porque a primeira afasta-se docatálogo na concepção de inventário, ressaltando a im-portância do catálogo pelo que ele representa em termosde relações. As relações que sempre estiveram no cora-ção da Biblioteconomia.

“A investigação sobre a natureza dos relacionamentose links de uma área de conhecimento pode revelar formassociais de construção do conhecimento. Um programacurricular será sempre a demonstração didática de cons-trução e transmissão de áreas temáticas específicas. Sen-do a Biblioteconomia e a Ciência da Informação áreas deendereçamento por excelência, a análise dos seus linksrevela-se de especial interesse para a sua didática de en-sino e pesquisa. Os links sempre estiveram no coração daBiblioteconomia e da Ciência da Informação, uma vez quea Biblioteconomia já tinha, no registro bibliográfico, des-crito relações catalográficas ou classificatórias. Links são,pois, pistas ou rastros por onde flui a construção e trans-missão do conhecimento. O desenvolvimento das novastecnologias e da linguagem em hipertexto evidenciou aimportância dos links como construtores sociais na orga-nização do conhecimento” (Mostafa e Oliveira, 1997).

A AVALIAÇÃO DE PÁGINAS WEB

A avaliação das páginas web tem sido praticada atépelos próprios serviços on line, como “Magell’s StarRatings Systems ou o Point Communications’Top 5%”.Sem contar com os próprios metaíndices como Lycos,Webcrawler, Hotbot e Excite, os quais já percentualizamo grau de adequação dos resultados da busca. Porém, aliteratura mais séria sobre o assunto é assinada pelosconteudistas como bibliotecários e educadores, em geralpor serem eles os profissionais tradicionalmente voltadospara seleção e transferência de fontes informacionais. Hámuita literatura impressa sobre avaliação de fontes ele-trônicas, sejam artigos de revistas especializadas, sejamlivros. Porém, há também muita literatura na própria rede.

Os textos variam em escopo e formato, indo desde re-pertórios organizados em diretórios (webiografias) atécursos de treinamento na avaliação de fontes direciona-dos para públicos especializados, como o de Kovacs vol-tado para treinar bibliotecários, ou o do Cyberguides, quedisponibiliza instruções acerca da avaliação de fontes,voltado para professores e estudantes de 1o e 2o graus.

Os textos também variam em profundidade, englobandodesde receitas pontuais, como as preparadas por Alexandere Tate (1996), até as mais teóricas, como as reflexões deTillman (1997), teórico e experiente bibliotecário ameri-cano. Não faltam também instrumentos de coleta de da-dos para essas avaliações assinados por especialistas demídia ou por tecnólogos educacionais. Há relatos até depesquisa para a construção dos instrumentos, como aqueladescrita por Wilkinson et alii (1997), do Departamentode Tecnologia Educacional da Universidade da Georgia(USA), uma extensa pesquisa para levantar indicadores ecritérios de avaliação.

Bem ou mal, essa enorme massa de literatura de ava-liação de fontes eletrônicas abrange em maior ou menorgrau os cinco critérios de avaliação de fontes impressastão conhecidos dos bibliotecários: acuidade, autoridade,objetividade, atualização e cobertura. Claro que adapta-dos para o meio eletrônico. Com esses critérios, quer-seassegurar a confiabilidade da fonte em termos das cre-denciais de autor e editor; somam-se, aos elementospretextuais como autor, título, editora e data de edição,outros elementos agora propriamente eletrônicos como ní-vel de interatividade da página (ou fonte) – já que a Interneté um ambiente interativo – e o nível de metainformaçãoda mesma (já que uma das peculiaridades da informaçãovirtual é a diluição das fronteiras entre informação e ca-tálogo ou índice; o catálogo também é um documento).

OS DESAFIOS

A Internet, apesar de funcionar como um granderepositório de informação através de uma multiplicidadede documentos, apresenta-se marcadamente também comomeio de comunicação. Não apenas como conseqüênciado uso de ferramentas específicas de comunicação, comocorreio, salas de chat e “seus comentários para melhorarnossa página”, mas principalmente porque esses meca-nismos ajudam a desestabilizar o repositório que entãoestá sempre em “permanente construção”.

A informação na Internet não está catalogada ou clas-sificada da forma como os bibliotecários entendem essesprocessos, apesar de muitos projetos de organização doconhecimento estarem absorvendo princípios bibliotecá-rios tradicionais, como o Cyberstack e o Intercat (http://www.lcweb.loc.gov/catdir/orgd12/intercat.html) .

Os catálogos e as catalogações da Biblioteconomia sãomais e mais substituídos pelos sistemas de recuperaçãopor palavras da linguagem natural ou brausing nos me-nus hierárquicos. É certo que muitos princípios daBiblioteconomia pensados para o documento impressovigem no mundo virtual da rede: quem não reconheceriano Yahoo, o Dewey do cyberespaço? Porém as estruturas

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hierárquicas de organização do conhecimento cedem es-paço às estruturas matriciais de busca orientada a obje-tos.

No desenvolvimento de coleções eletrônicas é precisoconsiderar que as coleções não são mais apenas biblio-gráficas e nem mais apenas coleções; o seu desenvolvi-mento deve permitir a participação aqui e agora da co-munidade para discuti-la. Não no sentido de enquetesbibliotecárias sobre satisfação do usuário. A comunidadenão precisa mais ser consultada nas enquetes da pós-gra-duação ou nos relatórios das bibliotecas. A comunidadeprecisa discutir a sua especialidade porque é através des-ta discussão que a coleção pode ser desenvolvida. Desen-volver coleções significa desenvolver grupos de discus-são para elas, em que um dos papéis do bibliotecário seráo de disponibilizar as salas dos chats e a promoção daslistas de discussão.

DAS CARTAS ILUMINISTASÀS LISTAS DE DISCUSSÃO

As primeiras revistas científicas nasceram como umprolongamento das cartas científicas do século XVII, queeram enviadas para as sociedades científicas que as im-primiam, divulgando-as para a comunidade, como foi ocaso da Royal Society of London. Já nessa época a super-produção de livros levava Barnaby Rich a afirmar em1613: “Uma das doenças desta época é a multiplicidadede livros; sobrecarregam o mundo de tal maneira que nãoé possível digerir a imensa quantidade de matéria inútilque cada dia desabrocha e é lançada ao público” (Price,1963).

Há relatos da irritação e resistência do próprio IsacNewton com relação à publicação rápida e periódica dosseus escritos antes que eles tivessem adquirido maturida-de e formato completo para ser exibido na forma de li-vro. As primeiras revistas nasceram assim para repertoriaros livros, resenhando-os e permitindo aos europeus a “na-vegação” às livrarias européias através das revistas deresumo e/ou comentários dos livros. Era uma forma dopesquisador manter-se atualizado, prescindindo dos con-tatos pessoais e das viagens. Foi só numa segunda fase, apartir de 1850, que as revistas científicas começaram aassumir a funcionalidade que elas têm hoje, a de seremveículos para contribuições originais que denotam a no-ção de rede na estrutura cumulativa da ciência: isso im-plica um texto baseado em contribuições anteriores, dasquais a nova contribuição se distingue por sua originali-dade. Intertextualidade essa que marca a noção mesmade método científico clássico: se a verificação está no co-ração do método científico, a publicação do artigo cientí-fico é a base para a verificação na ciência. É assim que

Ziman (1979) redefine o conhecimento: como “conheci-mento público” porque publicado. Quase na mesma épo-ca, Price (1963) teve uma outra compreensão para a pu-blicação científica periódica: o cientista publica artigosnão como meio de comunicação, mas sim para reivindi-car prioridade intelectual. Baseia-se Price nas estatísticasmertonianas decrescentes de descobertas científicas si-multâneas: hoje ocorrem muito menos coincidências nacorrida pelo ouro da descoberta científica do que em sé-culos anteriores. A publicação orienta os cientistas no de-senvolvimento dos seus temas. Seja como for, o fato éque este reducionismo bibliométrico de Price ou Zimanna compreensão de que ciência é igual a documento cien-tífico não deixa de ser útil para a compreensão da comu-nicação em ciência. Igualmente útil é o laboratório deLatour (1997:40), em que a comunicação formal (o arti-go de ciência ) desponta no lado A do laboratório: “O quediferencia esses rascunhos do rascunho de um romance éque eles estão cheios de remissões a outros artigos, es-quemas, quadros ou documentos (‘como mostra a figu-ra... o quadro...’, ‘pode-se ver que...’). Um estudo maisatento revela que o número da Science aberto sobre a mesaestá citado no rascunho. Considera-se, nele, que uma partedas experiências descritas no artigo da Science não podeser repetida, afirmação fundada sobre os documentos si-tuados à direita da mesa, também citados no rascunho. Amesa surge como o eixo central de nossa unidade de pro-dução, uma vez que é sobre ela que se fabricam novosesboços de artigos, por justaposição dos dois tipos de li-teratura: a que vem do exterior e a produzida no labora-tório (...) uma grande quantidade de literatura emana dolaboratório.”

Apesar do livro de Latour estar chegando agora noBrasil, a sua teorização faz parte de uma compreensão,digamos, kuhniana da ciência datada dos anos 70, ao res-saltar usos e costumes na ciência, especialmente o costu-me de se produzir em equipe, noção que já estava presen-te em Price (aliás uma das características da Big Sciencedefinida por Price era a equipe e não a autoria isolada).Mas em Latour há uma novidade: a equipe extrapola acomunidade científica apregoada por Kuhn, entrando anoção do pesquisador negociador, do cientista-executi-vo, do homem de ciência que tem que ir atrás de finan-ciamento para a sua pesquisa – a rede de atores é muitomais ampla do que pensávamos! Mesmo assim, ainda épreciso reconhecer certo conservacionismo nas “escritu-ras literárias” em que se constitui o laboratório de Latour:nele não há muito lugar para a escrita oralizada ou aoralidade escrita das comunicações informais. Nem es-pera-se de Latour discussões eletrônicas, já que o labora-tório que ele descreve é da década de 70! Mas mesmo asconversas de corredor, para ele, só têm valor porque irão

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ajudar os pesquisadores a fazer “inscrições literárias”, istoé, a escrever artigos de ciência.

A questão é perguntar se a ciência continuará a ser arepresentação privilegiada do real e, mais que isso, emque medida as páginas web do tipo comerciais são menosnobres que as páginas ditas informacionais (acadêmicas).Em que medida as páginas pessoais (as home pages) sãomais ou menos arbitrárias do que as páginas que passa-ram pelo processo do peer review.

No fundo e no raso da questão está a velha estória dogeral e do particular (faz-se ciência de um caso só?), doconsenso e do dissenso? Fazer ciência é buscar consen-so? Ou importa mais o dissenso, como quer a ciência pós-moderna de Lyotard? Páginas pessoais (home pages) sãoconfiáveis como casos particularíssimos de ação comu-nicativa? Quem avaliou essas páginas pessoais? Houverevisão de pares? Aí é que está: os pares do atual colégioinvisível chamado Internet são numerosos demais para quese destaque um grupo avaliador privilegiado. A ausênciade controle ou de centro controlador faz a novidade daInternet.

A ciência que sempre foi ciosa de seu afastamento dosenso comum agora ficou muito perto dos discursos co-muns, podendo ser confundida com eles e com o meioque a veicula. Se houve reducionismo nos clássicos dapolítica científica dos anos 70, como em Merton, Price,Ziman, e um certo alargamento em Kuhn e Latour, nãocusta reconhecer com Levy (1997) a abrangência das co-munidades virtuais e o poder de comunicação on line. Ascartas científicas do século XVII transformaram-se naslistas de discussão do século XXI. Mas as listas atuaisnão são mais assinadas apenas por Newton, Laplace ouVoltaire, como eram as cartas científicas do iluminismo.Nem referem-se apenas à física, astronomia ou filosofia.Todos discutem sobre tudo.

Ultimamente, quase não se tem escrito sobre o correioeletrônico: its too mundane, too proletarian... (Ladner,1997:25). A atenção está na world wide web, muito em-bora o correio eletrônico seja o aplicativo da Internet queas pessoas utilizam com mais freqüência segundo a FIND/SVP American Internet User Survey (http://www.etrg.findsvp.com/features/newinet.html).

Os últimos cinco anos têm presenciado os estudos dainfluência e/ou efeito da comunicação mediada por com-putador (CMC) nas várias práticas sociais: no processoensino-aprendizagem; na comunicação social em geral;na comunicação empresarial; e no comércio propriamen-te dito. Vale o acronismo de Goddard (1996:1): “E forEngagement, E for E-mail”.

De fato, em quase todos os autores que escrevem so-bre o tema aparecem pombos-correio anunciando as fun-ções do correio eletrônico como fundamentalmente rela-

cionados ao engagement, à ligação entre pessoas. Oengagement apresenta-se modulado em vários passos: ocorreio eletrônico abre a conversa, promove o diálogoreflexivo, é um convite à união ou à associação (umaadesão). (http:www.hub.terc.edu/terc/LabNet/Guide/07-Fostering Reflexive Dialogues Methods.html, p.1-7, 27/01/98, 9:17).

Resta encontrar, nas listas de discussão, uma das maio-res novidades da Internet, os pontos comuns com as car-tas iluministas da ciência: aqui também as listas funcio-nam como quadro de avisos, serviços de alerta ou dis-cussão propriamente dita. Da mesma forma como as car-tas nunca foram exclusividade da ciência, as listas tam-bém são assinadas por mensageiros diversos. Nas listaspode-se optar por ser um ouvinte, um participante silen-cioso. Assim como nos clips de jornais eletrônicos pro-movidos pelas sociedades científicas atuais somos ape-nas leitores. Tão silenciosos quando da leitura de jornaisimpressos.

O MEIO É A MENSAGEM?

Nos clips eletrônicos, nas listas de discussão, emnewsletters eletrônicas evidencia-se a máxima de MacLuhan:o meio é a mensagem.

Não é de menor importância analisar as relações entreo canal de comunicação e o conteúdo veiculado por ele.Tudo indica que são relações interdependentes, pois, de-pendendo do canal, a mensagem é tal ou qual e vice-ver-sa: um comentário ou uma discussão realizado num canalsemi-informal como as dissertações e teses acadêmicas,ou em canais formais como os artigos de revistas espe-cializadas assume uma estrutura e um conteúdo diferen-tes do que se estivesse sendo veiculado em canais infor-mais como as conversações orais ou mesmo nesta vertentedas listas de discussão.

LISTAS DE DISCUSSÃO: NEM PURAORALIDADE NEM PURA FORMALIDADE

As listas de discussão não são nem pura oralidade, comoas conversações, nem pura formalidade, como os artigosde revistas especializadas.

Tudo indica que o comportamento das mensagens e deseus autores esteja ligado à especificidade dos canais decomunicação.

Escrever é um ato formal de comunicação quando seestá diante de leitores abstratos, potenciais. Nas listas dediscussão os processos de leitura e escrita acontecem quaseno mesmo movimento: os leitores da lista são também seusautores, de forma que aí nada é abstrato; conhece-se quemé quem, o que torna a comunicação a um só tempo direta

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e indireta. Direta no sentido em que um clique do mousecoloca todos os participantes da lista em contato com amensagem; por isso mesmo, não se diz tudo o que é per-tinente ao tema, especialmente se se têm pontos de vistadiscordantes: comunicação indireta, portanto.

Isso explica talvez a pergunta levantada por Araújo eFreire (1996:53), a qual problematizamos: “Seria a Internetum canal formal de comunicação informal?”

Lista de discussão é a expressão usada universalmentepara a comunicação semiformal da Internet. Em sentidolatu, discussão, no caso das listas, tem sido tomada comosinônimo de conversa, comunicação, interação.

A diferença é que essa conversa ou comunicação ouinteração, no caso das listas de discussão, é sempre refe-rente a um tema específico que dá inclusive nome à lista.

A especificidade de as listas versarem sempre sobreum tema particular que as coloca como “discussão” teó-rica ou técnica não destipifica a discussão.

“Nas perspectivas dos canais de comunicação de infor-mação a Internet tem dupla função: permite ligação entrepessoas, de forma livre ou em relação a temas de interesse,ao mesmo tempo em que oferece acesso a documentos comoum serviço de informação [como] uma biblioteca faria. Se-ria a Internet um canal formal de comunicação informal?”(Araújo e Freire, 1996:53). A pergunta explorada pelas au-toras, que entendem que um colégio invisível começa a sedelinear no ciberespaço, traz uma observação importante:os canais informais teriam sido sempre “relegados” a umsegundo plano, devido ao volume assustador crescente depublicações técnico-científicas.

O advento da Internet muda esse caráter de irrelevânciada comunicação informal. Se esta comunicação já foi umdos primeiros resgates da Ciência da Informação, hojeestudar este processo de comunicação torna-se, segundoas autoras, “um problema relevante para a pesquisa na áreada Ciência da Informação“ (Araújo e Freire 1996:52). Háautores, inclusive, que são radicais entendendo a Internetcomo um “caso” ou “problema” de comunicação entrepessoas (Steingenbeg apud Weinberg, 1996).

Entende-se que o aspecto de comunicação da rede éfundamental; porém, ele não deve ser desvinculado doaspecto de repositório ou de referência no qual se tornoua Internet: a rede é um imenso repositório de informação.

Aqui preferiu-se dialetizar a relação entre repositórioe comunicação informal ou entre pessoas. Como obser-vam Mostafa e Oliveira (1997:34), “as coleções biblio-gráficas são vozes vivas de corpo presente”. Significa quedesenvolver coleções é desenvolver grupos de discussãopara elas (nota-se que a expressão “desenvolvimento decoleções” já é consagrada na literatura internacional deBiblioteconomia de Ciência da Informação, sendo títulode disciplina curricular).

Essas colocações confirmam o questionamento propos-to por Araújo e Freire, 1996: se a Internet é um canal for-mal de comunicação informal, ela condensa, talvez, os doisimportantes aspectos da rede – repositório e comunica-ção. Esta dupla função da Internet permite ligação entrepessoas de forma livre (nos chamados chats ou bate-papo)ou em relação a temas de interesse, ao mesmo tempo emque se torna um repositório de informações documentaisacessíveis como uma biblioteca ou um sistema de infor-mação. Também no âmbito internacional, as conferên-cias eletrônicas ou lista de discussão têm sido compara-das a uma biblioteca onde se vai buscar informação, ler epensar; um seminário conferência ou salão onde há umdebate informal de idéias com colegas (Gresham, 1994).

No serviço de correio eletrônico como canal de comu-nicação informal entre pesquisadores, originando o “co-légio invisível” no ciberespaço, a transferência da infor-mação se coloca como um processo de troca de mensagens.O espaço perde seus limites geográficos e possibilita acomunicação simultânea, tornando-se mais dinâmico, poisnão se restringe ao local de trabalho. Como Harnard(1993:85) bem argumenta, as listas de discussão “prome-tem restabelecer a velocidade da comunicação acadêmi-ca na razão da velocidade do pensamento”. Dessa manei-ra, as despesas com viagem e a limitação de tempo e espaçopoderão ser resolvidas pela comunicação mediada porcomputador.

A comunicação acadêmica está no meio de uma revo-lução tecnológica. Muito tem sido publicado visando amudança da comunicação formal da rede seguida à mu-dança do impresso para a revista eletrônica (Robinson,1993). O impacto da tecnologia em rede informal de co-municação acadêmica ou “colégio invisível” merece aten-ção pelo fato de estas mudanças na comunicação acadê-mica estarem ocorrendo mais rapidamente ao longo destecanal informal. A comunidade acadêmica e a indústria depublicações têm sido lentas ao repor revistas impressascom publicações eletrônicas como uma mídia de comu-nicação acadêmica formal; no entanto com o uso do cor-reio eletrônico e discussões de grupos em linha, a comu-nicação informal de acadêmicos cresce com rapidez. Atransformação de comunicações acadêmicas informais jácomeçou e a academia é o estágio inicial da transferênciado colégio invisível em colégio do ciberespaço como umanova forma de pesquisa informal na rede.

Desde Price, a colaboração informal e comunicaçãoatravés de colégios invisíveis é comumente aceita comopré-requisito essencial para a publicação formal e disse-minação de avanços nos conhecimentos científicos.

Esta rede informal de comunicação proporciona umfórum para compartilhar e testar novas idéias através defeedbacks e discussões, em que a troca interdisciplinar de

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idéias emerge ao longo de periféricos e interconecçõesdo colégio invisível. Cronin apud Gresham (1994) apon-ta, para esta geração, a explosão de novas idéias comochave de contribuição do colégio invisível na expansãodo conhecimento, especialmente nas ciências sociais. Atra-vés desta rede informal também são trocadas informaçõespráticas sobre pesquisa.

Cronin (1982) também considera as seguintes vanta-gens no colégio invisível em contraste com o canal for-mal de comunicação acadêmica: há uma especializaçãode informação; oportunidade para feedback e idéias emdesenvolvimento; e possível transmissão interdisciplinarde idéias. Já as desvantagens do colégio invisível comomeio de comunicação acadêmica incluem o elitismo res-tritivo natural da rede. Deste colégio emergem os maio-res núcleos de pesquisadores, deixando institucional e geo-graficamente distante deste significante canal de comu-nicação alguns acadêmicos em suas especializações. Umcolégio invisível é uma rede social geralmente compostapor 100 ou mais indivíduos (Gresham, 1994), em que oacesso é fechado e a seleção dos membros é rigorosa como número de trabalhos publicados em periódicos nacio-nais e estrangeiros. Muitas das significantes pesquisasdentro dessas áreas são usualmente produzidas por mem-bros de um colégio invisível e estas pesquisas são facili-tadas por uma troca informal de informações através decontatos dentro dessa rede social, conferências e outrosfóruns.

Na conclusão de sua pesquisa, Cronin (1982) observao potencial existente para conferências computadorizadassurgirem como um novo meio de comunicação acadêmi-ca informal, mas não prevê nenhuma drástica mudançano colégio invisível, além da introdução de comunicaçãomediada por computadores. Já Hiltz e Turoff apudGresham (1994) sugerem que as redes eletrônicas podemlevar o colégio invisível a ter uma forma mais aberta, comampla participação na permuta de informação e mais rá-pido desenvolvimento de paradigmas entre especialistas,aumentando a comunicação interdisciplinar entre estes.

No Brasil, é de se notar a exigência das agências ava-liadoras da produção científica no apelo à maior intera-tividade com a comunidade internacional: há que se pu-blicar mais em revistas internacionais e há que se recebera visita dos colégios invisíveis internacionais nas univer-sidades e nos centros de pesquisa brasileiros. Do contrá-rio não é ciência. Cosmopolitismo interpretado no méto-do científico clássico como a ida para o geral, para acomunidade internacional. Recomendação que só pode-ria vir agora, após 30 anos de domesticismo e após a no-ção de rede ter se difundido conceitual e concretamente

através de uma tecnologia e uma ideologia de acesso ecomunicação.

NOTA

E-mail das autoras: [email protected][email protected]

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S

COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA

ISAAC EPSTEIN

Professor da Umesp, Pesquisador da Cátedra Unesco de Comunicação

dido em oposição ao senso comum e a visão concreta dosobjetos e fatos (Bachelard, 1996:29-68). A abstração ne-cessária para esta apreensão é inseparável do aprendiza-do da linguagem na qual os conceitos e as teorias são for-mulados.

Os autores engajados na popularização da ciência uti-lizam recursos lingüísticos, retóricos e de imagem parasuperar este obstáculo. O sucesso ou o fracasso destesprocedimentos depende do tipo do conhecimento cientí-fico a ser popularizado, da habilidade dos autores, etc.

O objetivo deste artigo é propor uma perspectiva e umquadro de referência específicos para examinar a proble-mática da comunicação da ciência e a relação entre cien-tistas e divulgadores. Trata-se de fazer com que as ques-tões possam emergir e ser interpretadas mais como inade-quações e incongruências entre diversas “formas de vida”ou “estilos profissionais” (Honderich, 1995) do que ape-nas como disfunções éticas ou pressões conjunturais so-bre os agentes envolvidos na comunicação da ciência.

Uma forma extremamente reduzida de se representaro “sistema da ciência” é ilustrada na Figura 1, em que“sistema” significa um conjunto de partes que interageme “ciência”, a atividade teórico prática exercida por aque-las pessoas designadas e legitimadas pela sociedade como“cientistas”.

Estas definições são, obviamente, contingentes. A pri-meira contingência se origina da própria escolha das par-tes com as quais se quer montar o sistema, uma vez queum “sistema”, conceitualmente, não é dado mas construí-do, tendo em vista certos propósitos (Bertalanffy, 1968).Há, pois, inúmeras maneiras de escolher as partes com asquais montamos ou construímos um “sistema”. A conve-niência da escolha será verificada na sua adequação aospropósitos almejados.

abe-se que algumas dificuldades constituem obs-táculos à popularização da ciência. Alguns cien-tistas, médicos e engenheiros condenam a mídia e

lhe atribuem as atitudes e crenças ingênuas ou negativasque muitas pessoas têm sobre a ciência e a tecnologia.

Na realidade, a ignorância do público sobre fatos ele-mentares de ciência, mesmo em países do primeiro mun-do, é surpreendente. Uma pesquisa recente da NationalScience Foundation mostrou que menos da metade dosamericanos adultos compreendem que a terra gira anual-mente em torno do sol, que apenas 21% podem definir oDNA e que só 9% sabem o que é uma molécula. Outrapesquisa mostrou que apenas um em cada sete cidadãosadultos – cerca de 25 milhões – consegue localizar os Es-tados Unidos num mapa mundial sem nomes (Augustine,1998).

Para a maior parte da população, a realidade da ciên-cia é aquela apresentada pelos meios de comunicação demassa. O público, em geral, conhece a ciência menos pelaexperiência direta ou a educação prévia do que atravésdo filtro da linguagem e das imagens do jornalista.

Muitos cientistas desconfiam dos jornalistas e criticamsuas reportagens por infidelidade, simplificação exagera-da ou eventual sensacionalismo. Os próprios jornalistascriticam, muitas vezes, a maneira pela qual a ciência éapresentada pela mídia. No entanto, tendem a responsa-bilizar suas fontes – cientistas, universidades e institui-ções técnicas – por fornecer informação muito intricadaou inadequada. O próprio público costuma reclamar por-que a informação científica disponível nos meios de co-municação de massa é incompleta ou incompreensível.

A transmissão intencional e formal do conhecimentocientífico para o leigo é uma tarefa dificultada por váriosobstáculos. Freqüentemente, este conhecimento é apreen-

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA

A segunda contingência ocorre na conceituação da“ciência”. É uma definição circular, mas que permite dis-tinguir em uma determinada sociedade – é claro, com umacerta margem de indefinição – os cientistas dos que nãosão cientistas e o produto de sua atividade.

Uma terceira contingência é constituída por nossospropósitos em assim designar o objeto de estudo. Estastrês opções devem ser congruentes para que o tripé assimmontado se mantenha ereto. No entanto, mesmo corretosintaticamente, o tripé poderá ser considerado semanti-camente irrelevante, ou inútil. Tentaremos mostrar aquique este não é o caso (Figura 1).

A comunidade científica, enquanto tal, se relacionaconsigo mesma, em cada segmento especializado, e como resto da sociedade, por meio de dois processos comuni-cacionais distintos, que são chamados, respectivamente,de primário e secundário. O aprimoramento da comuni-cação primária é um dos fatores que contribuem para ocrescimento quantitativo e qualitativo da produção cien-tífica e, conseqüentemente, para o desenvolvimento cul-tural, social, econômico e tecnológico do país.

A compreensão da natureza de determinados obstácu-los da comunicação secundária e sua eventual superaçãopermitirão que se elimine gradualmente o hiato entre asduas culturas (Snow, 1993).

De forma geral, a cultura científica da população faci-lita um exercício mais consciente da cidadania, tanto no

sentido mais corriqueiro, como no de justificar a forma-ção de um juízo sobre as macroopções ambientais e tec-nológicas. Como pode um cidadão comum opinar e,até mesmo, influir em decisões sobre a política nacionalde construção de usinas nucleares, como pode interpretaro Tratado de Kyoto sobre a emissão de gases queincrementam o “efeito estufa”? (Novaes, 1998). Sabe-seque um plebiscito ocorrido na Suíça, em junho de 1998,após amplo esclarecimento da população pelos cientis-tas, conseguiu reverter a tendência majoritária de proibira realização de pesquisas em engenharia genética no país,o que acarretaria um enorme prejuízo econômico e cien-tífico (Klaffke, 1998).

A comunicação primária e a secundária são dois pro-cessos que, em determinados casos, se interpenetram e semesclam. Na verdade, as publicações correlatas a estesprocessos formam um contínuo desde as mais “puras”,nas duas pontas, destinadas respectivamente a especialis-tas e a um público jejuno em ciência, até as “mestiças” nomeio de campo.

Designando os três atores paradigmáticos como produ-tores (da informação científica), divulgadores e público, suacomunicação ocorre por meio de duas interfaces: I

1e I

2 (Fi-

gura 2).A comunicação primária e a secundária são processos

que configuram um campo de estudos, teorias e práticasonde se desdobram, sob a circunscrição das ciências da

FIGURA 1

Comunicação Primária

Produtor2 . n (Contexto da Justificação)Recursos Produtor1 Processo de Produção Produto(Públicos e (Contexto da Descoberta)Privados)

Comunicação Secundária

Público Divulgador

FIGURA 2

Produtores I1 Divulgadores I2 Público

Comunicação Primária

Comunicação Secundária

Contexto Histórico, Econômico, Político e Social

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comunicação, dimensões lingüísticas e semânticas, cul-turais (antropológicas), sociológicas, epistemológicas,deontológicas e de comunicação de massa.

A comunicação secundária ou a popularização do co-nhecimento científico tanto pode ser efetuada através dafigura do divulgador, mediador entre o cientista e o pú-blico, como pelo próprio cientista, que assume também opapel do divulgador. Alguns autores (Brockman, 1995)falam daqueles cientistas que, evitando o “terceiro ho-mem”, expressam e divulgam o conhecimento científicoe expressam seus mais profundos pensamentos de modoacessível ao público leigo inteligente. A eficácia do ape-lo dos pensadores da “terceira cultura” como Gould(1997), Dawkins (1996), Sagan (1995) e Gardner (1996),entre outros, deve-se não só a sua competência profissio-nal como a sua habilidade de escrever para o público emgeral. Entre nós, um jovem físico, Marcelo Gleiser (1998)parece encarnar este papel com sucesso.

Os agentes referidos podem ser descritos como segue:

Produtores – São os pesquisadores, cientistas e suas co-munidades. Estas comunidades têm suas regras explíci-tas ou implícitas, seus códigos de comportamento e ética,suas definições de condutas “impróprias”, sua organiza-ção, seus “colégios invisíveis”, valores, hierarquia cor-porativa própria, etc.

Processo de Produção – Pode ser estudado em dois re-gistros: o contexto da descoberta e o contexto da justifi-cação. A distinção entre estes dois contextos foi formali-zada pelo filósofo da ciência Reichenbach: “... introduzireios termos contexto da descoberta e contexto da justifica-ção para marcar a bem conhecida diferença entre o modocomo o pensador descobre seu teorema e a sua maneirade apresentá-lo ao público...” (Reichenbach, 1961).

O contexto da justificação (normativo) corresponde auma lógica interna da pesquisa científica, sua metodolo-gia, seus procedimentos de verificação ou falsificação dashipóteses, teorias, etc. O contexto da descoberta (des-critivo) corresponde às apreciações da história da ciên-cia, da sociologia da ciência (estudo das comunidadesde cientistas, seu etos, organização, controle ético, va-lores, etc.), do contexto político, social, econômico ecultural, da psicologia (motivações, habilidades, cria-ção científica, etc.).

A própria separação destes contextos, como normati-vo o primeiro e descritivo o segundo, era a pedra angularda epistemologia do empirismo lógico, hegemônica até adécada de 60 (Epstein, 1988).

Produtos – São: a) softwares como sistemas simbólicos(hipóteses, axiomas, teorias, relatos de observações e ex-perimentos, etc.). Em geral, são ferramentas intelectuais,

esquemas conceituais e cognitivos ou programas de pes-quisa (Lakatos, 1970). Os produtos são estudados, ava-liados e retificados ou ratificados sintática e semantica-mente, segundo procedimentos aceitos pela comunidadede cientistas e podem diferir para cada especialidade; b)hardwares como protótipos de laboratórios, instrumen-tos, equipamentos, etc.

Comunicação Primária – É aquela que se dirige aoscolegas da mesma especialidade. Utiliza conceitos e lin-guagens específicas.

Comunicação Secundária – É aquela que se dirige aopúblico leigo. É o campo da divulgação ou populariza-ção da ciência.

Além destas categorias, podem-se considerar aindavários tipos híbridos de comunicação primária e secun-dária, além de um terceiro tipo, a comunicação didática.No dizer um tanto pitoresco, a comunicação primária é ados que sabem para os que sabem, a didática dos que sa-bem para os que não sabem mas que vão saber; e a secun-dária, a dos que sabem para os que não sabem e nuncavão saber (Jacobi e Schiele, 1988).

Contexto Histórico, Político, Econômico e Social – Todoo “sistema da ciência”, tal como foi descrito, está imersonum contexto que tem dimensões históricas, políticas,econômicas e sociais.

A comunicação primária e a secundária são processosque configuram um campo de estudos teóricos e práticasem que se desdobram, como já mencionado, dimensõessemióticas, culturais, sociológicas, deontológicas e decomunicação de massa. Um dos propósitos da esque-matização proposta é derivar estas dimensões de umamatriz de comunicação (Figura 3).

No trânsito da comunicação primária para a secundá-ria podem ser detectados elementos retóricos que desve-lam fragmentos ideológicos correlatos. Se se utiliza anotação inaugurada por Hjelmslev (1975:185-219) e re-tomada por Barthes (1971) podemos considerar o discur-so científico, objeto da comunicação primária, como umasemiótica denotativa em que a expressão ou o significanteé dado pelos enunciados das leis científicas, fórmulasmatemáticas, enunciados teóricos ou resultados experi-mentais das pesquisas e o conteúdo ou significado, dadopelas constrições da realidade codificadas pelas lingua-gens científicas correlatas. Utilizando-se a notação SE=Significante e SO=Significado, pode-se situar a comuni-cação primária e a secundária (Figura 4).

Este procedimento de superelevação dos códigos cor-responde a possibilidades preexistentes nos universos sim-bólicos dos intervenientes nos processos comunicacionais.Todo este conjunto configura, num sentido amplo, o ter-

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mo código (Epstein, 1993:83-91) como o próprio universosimbólico dos participantes. A retórica, suas figuras e pro-cedimentos vistos como significantes, correspondem,como significado, ao termo ideologia, em seu sentido fra-co (Bobbio, 1986:585). A noção de que os significadosideológicos são transmitidos por conotação também é deVeron (1971).

Veja-se um exemplo extremamente simplificado e re-duzido. O nome “Viagra “ é o significante a cujo signifi-cado correspondem (além de ser uma pílula azul e suacorrespondente composição química) os efeitos, indica-ções e contra-indicações anunciados na bula.

Supondo-se correta e comprovada cientificamente adescrição da bula (em certos casos questionável), tem-se

o primeiro sistema denotado. Sobre este discurso é cons-truído um segundo discurso metalingüístico, o da divul-gação. Ora, o significante deste discurso contém figurasde retórica que, como “a pílula da libertação” ou “pílulada morte”, podem abrigar ideários diversos. A passagemdo discurso da comunicação primária para a secundáriapode permitir detectar, a partir de seus significantes retó-ricos, alguns fragmentos do ideário do divulgador.

Esta conceituação proveniente da lingüística estrutu-ral permite efetuar interessantes e proveitosos exercíciosde análise semiótica.

As características mencionadas da comunicação pri-mária e da secundária configuram “tipos ideais”, mas suaaproximação maior com os existentes ocorre nos limites,

FIGURA 3

Comunicação Primária Comunicação SecundáriaFunções da Linguagem Referencial (Referencial, Fática,(Jakobson, 1969:129) Emotiva, Estética)

Signos Unívocos Plurívocos(Eco, 1974) (Marcus, 1974:83/96)

Língua Idioleto >Tradução Intersemiótica >Natural(Barthes,1971:23) (Jakobson,1969)

(Jacobi e Schiele, 1988)

Juízo Apodíctico (Ciência Normal) De Valor, Problemático(Kuhn,1978)

Etos Da Comunidade de Cientistas Dos Jornalistas(Merton,1967)

Conceito de Novidade Sujeita a Corroboração Como Evento Inesperado(“Cultura Científica”) (Popper, 1965) (“Cultura Jornalística”) (Wolf,1996)

Tempo Normal da Pesquisa Do Fechamento das Edições

Semiótica Denotativa Conotativa(Hjelmslev, 1975: 212-219)

Discurso Competente Legitimador Obstáculo na Interface I1 (?)

Controle de Qualidade Pela Revisão pelos Pares Pela Editoria e pelo Mercado

Mídia Segmentada Massiva

Deontologia Tendência a Normalização Flexível, Influenciadapor Critérios Internos pelo Público

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Neste esquema, SE2 seria o significante do discurso da divulgação científica, equivalente a uma metalinguagemdo discurso da ciência. A retórica sobreposta a este metalinguagem seria a conotação

Conotação SE3=Retórica SO3= Fragmento de Ideologia (Barthes, 1971)

Metalinguagem SE2 SO2

SE1 SO2

ComunicaçãoSecundária

de cada lado, da comunicação primária e secundária. Es-ses tipos servem, portanto, como recursos didáticos parase estudar e compreender os fenômenos, os obstáculos eos impedimentos correlatos a estes processos comunica-cionais. O quadro, na sua globalidade, atua como umaprovocação heurística para a matrização e questionamentode alguns tópicos.

Estes dois processos comunicacionais não ocorrem emespaços distintos e estanques, mas se interpenetram, for-mando um contínuo através do qual se distribuem os su-portes das mensagens: os periódicos especializados – osmistos para um público mais cultivado e os de divulga-ção para o grande público. A mídia eletrônica, progra-mas de rádio e TV, vídeos e também os museus de ciên-cia, na sua maior parte, apenas dedicam espaços para acomunicação secundária.

A comunicação primária é aquela que, como já foimencionado, ocorre entre os cientistas, e seu suporte podeser constituído pelos “pré-prints”, comunicações em con-gressos, artigos, entrevistas especializadas, teses e, atual-mente, um amplo uso dos meios telemáticos (Taubes, 1996e Hafner, 1998), o que já configura a utilização de umamídia massiva.

Esta comunicação tem suas características próprias, quese manifestam em algumas das dimensões mencionadasanteriormente: as linguagens utilizadas em cada uma dasrubricas que designam as diversas especializações esubespecializações científicas servem-se de notações quenomeiam conceitos e inter-relações de maneira unívoca eprecisa. São códigos essencialmente monossêmicos pró-prios para comunicar não só teorias, mas experimentosque precisam ser retificados ou ratificados pelos demaisespecialistas do ramo. Seus códigos devem ser isentos deambigüidade, ao contrário das mensagens artísticas e poé-ticas, cuja riqueza está justamente na plurivocidade dossentidos e interpretações, no limite, o conceito de “obraaberta” (Eco, 1969).

A obra científica, ao revés, deve ser uma obra fechada.Esta característica semiótica das linguagens científicas de-manda de seus usuários um período relativamente longo deaprendizado e prática, o que acaba por ser um dos fatoresque vai legitimar o famoso “saber competente”.

Esta figura, cuja análise e crítica cabe à sociologia daciência, opera como um aval nas relações entre os cien-tistas, inclusive sancionando a comunicação primária atra-vés da chamada revisão pelos pares a que esta comunica-

FIGURA 4

Semiótica SE1=Discurso científico, fórmulas, SO1=Fenômenos e suas ComunicaçãoDenotativa enunciados, teorias. inter-relações Primária

(Sistema Real)

Podemos considerar esta semiótica denotativa como conteúdo SO2 de um segundo discurso metalingüístico, correspondente à comunicação secundária

Metalinguagem: SE2 SO2 (Hjelmslev, 1975)

SE1 SO1

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA

ção está sujeita. Já na comunicação secundária através domediador, a imagem do saber competente pode introdu-zir obstáculos nas relações entre cientistas e divul-gadores, sensíveis os segundos à hegemonia sobre o sa-ber dos primeiros.

Outra característica da comunicação primária, associa-da a sua monossemia, é que esta comunicação ocorre ge-ralmente com um mínimo apelo a recursos retóricos oupersuasivos, uma vez que sua audiência é cativa. O cien-tista não pode optar, ao contrário do público, por comu-nicar ou não comunicar, em receber ou não a comunica-ção de seus colegas. A relativa ausência de recursosretóricos e a especificidade das linguagens especializa-das as tornam pouco palatáveis ao público leigo. A co-municação secundária, com uma audiência não cativa,deve utilizar funções da linguagem e recursos de retóricapróprios para superar estes obstáculos.

Jakobson discriminou seis funções básicas da comu-nicação verbal: referencial, que é correlata ao significa-do denotativo da mensagem; emotiva, centrada nas emo-ções da pessoa em conexão com as coisas que a pessoaestá dizendo; poética, significando que a mensagem estácentrada mais no significante do que no significado;conativa, que encontra sua expressão gramatical mais purano vocativo e no imperativo; fática, designando a falausada mais para expressar sociabilidade do que fornecerinformação; e metalingüística, quando a mensagem se re-fere a outro código ou linguagem (Jakobson, 1969:129).

Como a comunicação primária demanda códigos es-pecíficos e unívocos, a função que mais utiliza é a refe-rencial. Já a comunicação secundária necessita utilizartambém outras funções: a fática para prender a atençãode uma audiência não cativa, a emotiva e a poética paraassegurar o interesse pela mensagem. As mensagens dadivulgação científica necessitam todos os recursos de re-tórica próprios de uma comunicação persuasiva.

A função referencial, predominante na comunicaçãoprimária, articula-se a uma qualidade atribuída ao discursocientífico: seu caráter apodíctico.1 O discurso científico,de acordo com certas vertentes epistemológicas, enunciaverdades evidentes a qualquer sujeito racional. A comu-nicação primária necessita ser transmitida numa lingua-gem unívoca, e este discurso é visto, geralmente, comonão contaminado por uma retórica persuasiva. Esta no-ção pertence à ideologia que informa uma particular tra-dição epistemológica, o empirismo lógico, hegemônicoaté o final da década de 50.

Com Thomas Kuhn (1978) e outras respostas filosófi-cas ao empirismo lógico, como as análises sociológicas(Barnes; Bloor e Henry, 1996), a situação mudou e a re-tórica foi reconhecida como um fator importante no dis-curso científico, notadamente em situações de controvér-

sias e de mudanças de paradigmas quando fatores perten-centes ao contexto da descoberta podem exercer um pa-pel relevante no conflito entre teorias (Lakatos, 1970).

Não obstante, muitos cientistas que trabalham em ciên-cias naturais acreditam que o discurso científico necessi-ta ser estritamente referencial e apodíctico. Mesmo as-sim, poder-se-ia adicionar que um sutil recurso retóricode persuasão do discurso científico é sua alegada ausên-cia de retórica. Um dos mais utilizados recursos retóricosdos discursos das pseudociências é dizer que eles são “ci-entíficos” (isto é, não persuasivos).

Como se pode aferir pela Figura 3, a problemáticadas estratégias comunicacionais da comunidade cien-tífica intercepta vários domínios e, apenas recentemen-te, tornou-se objeto acadêmico de pesquisa (Gregory eMiller, 1998). Na verdade, a própria essência da popu-larização da ciência é considerada por certos autores(Roqueplo, 1974) como uma empreitada bastante pro-blemática.

Utilizando-se o termo “jogos de linguagem” no senti-do que lhe foi atribuído por Wittgenstein, isto é, “ressal-tando o fato de que falar uma linguagem é parte de umaatividade ou uma forma de vida” (Wittgenstein, 1958),pode-se verificar que algumas das inadequações, princi-palmente entre cientistas e divulgadores ou jornalistas,podem proceder da incompatibilidade entre os “jogos delinguagem” ou das culturas profissionais dos atores in-tervenientes no processo comunicacional.

Assim, o conceito de “novidade”, importante tanto paraa evolução do conhecimento científico como para a cons-trução da “notícia” jornalística (Wolf, 1996:214-232),pode ter conotações diferentes nestas duas culturas pro-fissionais, fato que repercute nas respectivas atitudes ecomportamentos dos cientistas e jornalistas.

O que é uma notícia de jornal? O que faz com queum dos miríades de fatos cotidianos se transforme emnotícia? Como já foi dito várias vezes, e desde váriasdécadas, a notícia jornalística enquanto forma de co-nhecimento não concerne primariamente nem ao pas-sado nem ao futuro, mas exclusivamente ao presente.É esta qualidade transitória e efêmera da notícia quejustifica o dito que “não há nada mais velho do que ojornal de ontem”.

A notícia concerne principalmente ao inusual e ao ines-perado. Mesmo um evento insignificante, desde que re-presente um desvio do que é habitual e rotineiro, podeser transformado em notícia da mídia. Este atributo de“novidade” ou de “evento inesperado” da notícia jor-nalística guarda um paralelismo com o conceito de “quan-tidade de informação”, definida pela teoria da informa-ção (Reza, 1961) e mesmo com a epistemologia popperianae seu “falsificacionismo” (Popper, 1965).

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Um critério diverso consigna a importância para a ciên-cia, da verificação e confirmação continuadas das teoriaspropostas. A “novidade”, portanto, o inesperado em ciên-cia, necessita do aval da confirmação e da repetição dosexperimentos para sua aceitação (Putnam, 1992).

Tratamos desta incongruência entre estes dois concei-tos de “novidade” em outro lugar, mostrando como emmedicina a publicação prematura de notícia inesperadaou “novidade” pode ter um efeito negativo sobre o públi-co (Epstein, 1998). A questão do embargo, isto é, de man-ter as descobertas científicas fora da comunicação massi-va até que seja publicada em periódicos científicos cre-denciados e com trabalhos sujeitos à revisão pelos pares,tem sido objeto de ampla polêmica (Bloom, 1998).

As práticas diárias da “ciência normal” freqüentemen-te se baseiam no “esperado”, pois têm como fundamentoteorias e procedimentos axiomaticamente aceitos peloparadigma vigente (Kuhn, 1978). A prática de tentar re-futar as teorias bastante comprovadas (ou com alto graude corroboração, segundo Popper), buscando resultadosinesperados e pouco prováveis (portadores de grandequantidade de informação, segundo a teoria da informa-ção), quando bem-sucedida, tem o atributo do ineditismo,um dos ingredientes básicos da notícia. A incongruênciaentre o peso dado ao ineditismo em “ciência normal” eno jornalismo pode acarretar uma inadequação entre as“formas de vida” profissionais dos cientistas e dos jorna-listas.

Outro aspecto desta incongruência é o fato de que amídia massiva, em geral, não tem interesse em publicarconclusões equívocas baseadas em dados preliminares. Ouignora estas conclusões ou as transforma em indicaçõesverossímeis (Ashby, 1996).

No procedimento científico, quando as observações ouexperimentos contradizem uma hipótese ou a “falsificam”,como diria Popper, elas devem ser publicadas com o mes-mo empenho que acompanha o anúncio dos resultadosconfirmadores. Na verdade, as hipóteses não confirma-das morrem no limbo da comunidade científica e rara-mente chegam ao conhecimento do público. Por outrolado, em temas ligados a saúde, resultados preliminaresainda não comprovados são freqüentemente publicadosna imprensa diária.2 Dada a reconhecida necessidade decomunicar dados preliminares ao público, e também o fatode que esta comunicação pode não obedecer aos cânonesda pesquisa científica, gera-se a idéia da incompetênciaou sensacionalismo da mídia.

Este conflito entre a necessidade de informar o públi-co sobre potenciais riscos ou benefícios a saúde, entre abusca de manchetes e a veracidade das informações, temsua raiz nos diferentes etos da cultura dos cientistas e dosjornalistas. É uma problemática que intercepta os dife-

rentes conceitos, valorizações das “novidades” e os dife-rentes tempos operacionais dos cientistas e dos jornalis-tas, mais longos os primeiros e mais curtos os segundos.

As instâncias mencionadas ilustram as possibilidadesheurísticas da Figura 3, para retirar da referência de umaética pueril da “incompetência” ou “sensacionalismo” dosjornalistas e do preconceito não menos pueril da“prepotência” ou “distanciamento” dos cientistas e colo-car determinadas questões no âmbito das contradições ouinadequações entre os diferentes etos (ou, como mencio-namos, “jogos de linguagem” ou estilos profissionais dosatores das comunicações primária e secundária).

Poderemos compreender certos mal-entendidos entrecientistas e jornalistas se os observarmos como jogado-res jogando jogos diferentes regidos por regras diferen-tes (Gitlin, 1980). A pressa dos jornalistas em dar “fu-ros” pode ser interpretada no seu “jogo” diferente do“jogo” do cientista. Os cientistas valorizam ou deveriamvalorizar mais a precisão na confirmação de seus resulta-dos do que a pressa. A menor exatidão dos jornalistas pode,pelo menos em parte, ser atribuída ao seu emprego da lin-guagem natural ao invés de um código específico de umaespecialidade.

Quanto ao etos da ciência, uma referência históricanecessária é a de Robert Merton (1967) que definiu hámais de 50 anos os quatro imperativos institucionais daciência: universalismo, comunismo, desinteresse e ceti-cismo organizado. Poderíamos atribuir estes imperativosao jornalismo?

O universalismo significa que as pretensões ao conhe-cimento científico, não importando a sua fonte, devemser sujeitos a critérios preestabelecidos e impessoais. Suaconfirmação ou rejeição não devem depender dos atribu-tos pessoais ou sociais do seu protagonista: sua raça, na-cionalidade, religião, classe ou qualidades pessoais que,como tais, são irrelevantes. Merton formulou estes im-perativos quando a epistemologia científica hegemônicaera a do empirismo lógico, que implicava a separaçãoradical entre os mencionados contextos da justificação eda descoberta. A independência utópica do contexto dajustificação poderia até justificar o imperativo universa-lista. Mas mesmo se o universalismo for circunscrito à“ciência normal” no sentido kuhniano, poderíamos esten-dê-lo ao jornalismo? Os jornalistas não têm seus pró-prios critérios para avaliar o conhecimento científico.Sua avaliação das notícias sobre a ciência dadas porinstituições ou cientistas, individualmente, é baseadana notoriedade e idoneidade das fontes. Contrariamenteao imperativo universalista da ciência, os jornalistasdevem basear a confiabilidade que atribuem às notí-cias sobre ciência nos atributos individuais ou sociaisde suas fontes.

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA

Comunismo no sentido mertoniano significa que os acha-dos substantivos da ciência são o produto da colaboraçãosocial e pertencem à comunidade. Já a popularização cientí-fica efetiva-se mais como uma produção literária ou mesmoartística do que científica.

O desinteresse é garantido pelo fato de que o conheci-mento científico é conferido publicamente e esta circuns-tância tem contribuído para a pequena quantidade de frau-des nos anais da ciência em comparação a outras esferas daatividade humana. Os cientistas são constrangidos pela evi-dência produzida pelos pares e os critérios para confirma-ção ou refutação das teorias são ou devem ser universais.

A competição profissional entre os jornalistas é diferen-te. Eles não têm uma instância ou mesmo critérios institu-cionais aceitos por consenso para julgar sua honestidade ecompetência.

O ceticismo organizado é, como disse Merton, um man-dato institucional e metodológico. Os cientistas devem sus-pender o julgamento “até que os fatos estejam disponíveis”.Como já foi mencionado, a escala de tempo do cientista édiferente da escala do jornalista. Esta é determinada pelofechamento da edição. O cientista conta com mais elastici-dade no seu “fechamento” da pesquisa. Neste sentido, tal-vez se possa comparar metaforicamente as “formas de vida”dos cientistas e dos jornalistas com as dos maratonistas edos corredores de curta distância. Embora a tarefa de ambosseja correr (também jornalistas científicos e cientistas escre-vem sobre ciência), o corredor de curta distância (o jornalis-ta) deve despender o máximo de energia num curto espaçode tempo, enquanto o maratonista (o cientista) deve admi-nistrar seu ritmo para otimizar o resultado. As regras destesjogos são estabelecidas pela comunidade. Aplicar as regrasde um jogo a outro significa ser profissionalmente inade-quado.

Retomando as dimensões da situação apresentada ante-riormente, pode-se verificar algumas questões articuladas àsimbricações entre a comunicação primária e a secundária.Assim, os novos meios de comunicação, sobretudo os de-senvolvidos pela telemática (Nora e Mine, 1978), introdu-zem ou acentuam determinadas problemáticas. A comuni-cação primária, seja nos contatos informais, nos “pré-prints”,nos anais de congressos ou nas publicações especializadas,tem sido sempre uma comunicação exclusiva das comuni-dades segmentadas de cientistas.

A Internet, inicialmente projetada como um canal decomunicação destinado exclusivamente aos cientistas,tornou-se um canal de comunicação de massa. O conges-tionamento derivado deste fluxo heteróclito e multiface-tado tornou necessário um novo sistema, a Internet II,destinada exclusivamente aos cientistas. As preocupaçõescom a Internet vão desde os atrasos derivados da sobre-carga a que pode estar submetido seu hardware até o pro-

blemático e caótico rotulamento e classificação da infor-mação disponível.

Contudo, a comunicação via rede eletrônica está revolu-cionando a natureza da comunicação científica: as revistason line apresentam várias vantagens, não só nas funções debusca, como nos fóruns de discussão, como também nas li-gações com artigos conexos e na notificação automática(Taubes, 1996).

Um exemplo é do físico Ginsparg, que começou seus ar-quivos eletrônicos em 1991 (Hafner, 1998), e atualmente éfreqüentado por dezenas de milhares de físicos que procu-ram seu site, mantido pelo Laboratório Nacional de Los Ala-mos, no Novo México. Muitos destes físicos não consultammais os periódicos impressos de sua especialidade.

O sistema de Ginsparg é um desafio à prática bicentenáriado procedimento pela revisão pelos pares. Este procedimentorepresenta quase um dogma na difusão do conhecimentocientífico e autoriza a publicação de um trabalho científicosomente após um escrutínio cuidadoso feito por especialis-tas que devem atestar sua importância e valor. O arquivo deGinsparg substitui a revisão pelos pares por uma crítica eavaliação direta dos colegas. Alguns pesquisadores achamque sistemas deste tipo mudarão todo o processo da disse-minação do conhecimento científico. Outros são críticos emrelação à quantidade e à qualidade de muitos dos artigos assimdistribuídos pela rede eletrônica.

Este é um exemplo de como uma mudança da mídia uti-lizada na comunicação primária, decorrente do desenvolvi-mento de uma nova tecnologia, acaba por influenciar fenô-menos do registro da sociologia do conhecimento científicocomo a revisão pelos pares, articulada à polêmica noção de“saber competente”.

NOTAS

1. Emprega-se o termo “apodíctico” no sentido utilizado por Aristóteles quandose refere à ciência como “hábito demonstrativo”.

2. “A nicotina ajuda a memória, mostra estudo” é o título de uma notícia da Fo-lha de S.Paulo , de 24/10/96, 1o caderno, p.14. A informação diz: “Os pesquisa-dores norte-americanos explicaram por que a nicotina melhora a memória e oaprendizado. A nicotina presente nas folhas de fumo, aumenta a transmissão deimpulsos nervosos no hipocampo, região do cérebro responsável por aquelas fun-ções”. Segue a citação da origem da notícia, a revista Nature, sem mencionar onúmero ou a data. No sentido jornalístico, trata-se de algo “novo”, aparentemen-te referendado por uma revista de prestígio, merecendo o espaço ocupado. Nosentido técnico, trata-se de algo possivelmente inédito, mas que certamente de-verá ser confirmado por outros pesquisadores antes de ser aceito pela comunida-de científica. E o efeito de tal mensagem sobre o público saturado de mensagensmédicas e institucionais quanto aos efeitos maléficos do fumo? Certamente, umeficaz reforço para reduzir a dissonância cognitiva dos fumantes inveterados e,quem sabe, incentivo para alguns se iniciarem no hábito.

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O RUMOR DO CONHECIMENTO

A

O RUMOR DO CONHECIMENTO

ALDO DE ALBUQUERQUE BARRETO

Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação, Pesquisador do CNPq

O rumor é o ruído daquilo que funciona bem.Daqui deriva este paradoxo: o rumor denota um ruído limite,

um ruído impossível, o ruído daquilo que, funcionando naperfeição, não tem ruído; rumorejar é fazer ouvir a própria

evaporação do ruído; o tênue, o confuso, o fremente sãorecebidos como os sinais de uma anulação sonora.

Roland Barthes, 1987

informação modificou seu status científico quan-do seu destino vinculou-se ao conhecimentocomo fato cognitivo do sujeito e ao desenvolvi-

mento como decorrência social natural da acumulação des-te conhecimento. A essência (ação com vigor de propósi-tos) do fenômeno da informação passou a ser esta condi-ção de intencionalidade para gerar conhecimento noindivíduo e em sua realidade.

Contudo, as modificações na esfera de influência da in-formação não foram acompanhadas de uma explanação teó-rica em que possíveis evidências do processo de transfor-mação fossem esclarecidas. Com a qualificação de rumor(sussurro, ruído tênue ou brando, ocultamento, informação,boato) para o conhecimento procuramos indicar esta e ou-tras condições específicas da manifestação da informaçãocomo participante deste processo. Assim, dividimos este ar-tigo em duas partes: a primeira para mostrar as possíveisevidências conceituais da existência da relação entre infor-mação e conhecimento; e a segunda para apresentar os re-sultados iniciais de pesquisa1 ainda em andamento, em quese procura qualificar os mecanismos de elaboração do pen-samento nesta relação de transformação, com dados empíri-cos de três áreas do conhecimento ou comunidades lingüís-ticas ou grupos informacionais diferenciados.

Considera-se que a viabilidade e o valor dos produtosde informação orientam para uma reflexão da manifesta-ção do fenômeno da informação, aqui limitado à percep-ção de seu conteúdo semântico pela consciência. A es-sência deste fenômeno, muitas vezes raro e sempre sur-preendente, se mostra pela transformação de estruturassimbólicas em realizações de uma consciência individualou coletiva. É neste sentido que a informação sintoniza omundo (Barreto, 1994), pois referencia o homem ao seusemelhante e ao seu espaço vivencial.

Qualquer análise de viabilidade política, econômica ousocial de um produto de informação está condicionada aesta premissa básica que envolve a relação entre infor-mação e geração do conhecimento.

Assim colocada, a informação se qualifica como uminstrumento modificador da consciência do homem e deseu grupo social. Estabelece-se uma relação entre infor-mação e conhecimento que só se realiza se a informaçãofor percebida e aceita como tal, colocando o indivíduoem um estágio melhor, consciente de si mesmo e inseri-do no mundo onde se realiza sua aventura individual.

Como agente mediador da produção de conhecimen-to, introduz-se o conceito de assimilação da informaçãocomo um processo de interação entre o indivíduo e umadeterminada estrutura de informação. Esta gera uma mo-dificação em seu estado cognitivo, produzindo um conhe-cimento que se relaciona corretamente com a informaçãorecebida. Trata-se de um estágio qualitativamente supe-rior ao de acesso e uso da informação. Não se pretendeaqui levantar grandes questões filosóficas sobre a teoriado conhecimento. Aceita-se que o conhecimento é a alte-ração provocada no estado cognitivo do indivíduo. É or-ganizado em estruturas mentais por meio das quais o su-jeito assimila o meio. Conhecer é um ato de interpretação,

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uma assimilação do objeto (informação) pelas estruturasmentais do sujeito. Estruturas mentais não são pré-for-matadas no sentido de serem programadas nos genes. Asestruturas mentais são construídas pelo sujeito que per-cebe o meio. A produção ou geração de conhecimento éuma reconstrução das estruturas mentais do indivíduo atra-vés de sua competência cognitiva, ou seja, uma modifi-cação em seu estoque mental de saber acumulado, resul-tante de uma interação com uma informação percebida eaceita. Esta modificação pode alterar o estado de conhe-cimento do indivíduo, ou porque aumenta seu estoque desaber acumulado, ou porque o sedimenta, ou porque oreformula.

Em nossa argumentação, conhecimento é um proces-so, um fluxo de informação que se potencializa. Estrutu-ras de informação formalizam um processo de transferên-cia em que o fluxo de conhecimento se completa ou serealiza com a assimilação da informação pelo receptorcomo um destino final.

Como definição instrumental deste trabalho, a infor-mação é pensada como “estruturas simbolicamente sig-nificantes com a competência de gerar conhecimento noindivíduo, em seu grupo, ou a sociedade.”

Dentro de um código simbólico convencionado, umaestrutura de informação é o conjunto de elementos sim-bólicos que formam um todo ordenado. Como limitamosnosso estudo à informação com condições semânticas,nosso código simbólico será o sistema da língua portu-guesa. Contudo, o caráter geral do conceito de informa-ção deve ser sempre mantido no pensamento para facili-tar a compreensão de analogias elaboradas no presenteartigo.

Sem qualquer perda de substância ou qualidade doconceito de informação, o foco de nossa atenção passa aser a relação entre a informação e suas estruturas, quepodem ser pensadas como um texto escrito, seu resumo,seu título ou suas indicações de referência bibliográfica,entre outras.

A SOLIDÃO FUNDAMENTAL

As relações da comunicação com a lingüística foram in-dicadas por Jakobson (1993) de maneira clara e acessível.

É importante ter-se uma idéia geral das funções da lin-guagem e de sua relação com os atos de comunicação.Um ato de comunicação se efetiva quando um emissor ouremetente envia uma mensagem a um destinatário ou re-ceptor. Para realizar-se de forma eficaz, a mensagem ne-cessita de um contexto de referência que precisa ser aces-sível ao receptor. Este contexto deve ser verbal ou passívelde ser verbalizado. É necessário ainda um código, totalou parcialmente comum ao emissor e ao receptor, e, fi-

nalmente, um contato, isto é, um canal físico e uma cone-xão psicológica entre o emissor e o receptor que os capa-citem a entrar e a permanecer em contato. Cada um dosseis fatores indicados determina uma diferente função dalinguagem em relação à comunicação, com as necessá-rias adaptações aos casos específicos. O físico, por exem-plo, cria suas construções teóricas, aplicando seu própriosistema hipotético de novos símbolos que traduzam os jáexistentes para uma metalinguagem específica da comu-nidade lingüística e comunicacional. A linguagem nuncaé monolítica e seu código total inclui um conjunto de sub-códigos (Jakobson, 1993).

Entretanto, o que para o lingüista e para o comunicadorpode parecer tecnicamente explicável – o ritual de passa-gem de uma estrutura de informação, um texto, de seuemissor para o seu receptor, leitor – em termos existen-ciais é um acontecimento admirável, pois se relaciona àsolidão fundamental do ser humano. Por solidão funda-mental (Ricoeur, 1976) não se quer expressar o estar soli-tário nos espaços de convivência, mas a condição do su-jeito em relação a sua experiência vivenciada. A expe-riência vivenciada por mim é só minha e de mais ninguém.“Não podes ouvir Deus a falar com outrem, só o podesouvir se fores tu a pessoa a quem a palavra é dirigida.Isto é uma observação gramatical” (Wittgenstein, 1981).

O viver da minha vida pensante se projeta na minhamais recôndita privacidade. Esta é a solidão fundamentalde todos aqueles que criam uma informação. Através dainformação produzida, com a ajuda de um sistema sim-bólico, procura-se relatar sua experiência vivenciada paraoutras pessoas, transferir a experiência experimentada daesfera privada da criação individual para a esfera públicada significação coletiva.

O texto, enquanto estrutura de informação, é um eventoprivado em sua produção, que se completa em um tempofinito. Sua significação ocorre, no espaço público, paraum número indefinido de leitores, possui autonomia se-mântica e é indeterminada em relação ao tempo.

Neste artigo, o foco de interesse está colocado nasignificação do conteúdo de estruturas de informação,referenciadas, também como textos escritos. Todo atode interpretação do conteúdo simbólico de uma estru-tura de informação é também um ritual de solidão fun-damental.

ATRIBUTOS DO CONHECIMENTO

Apesar de não haver dúvida maior que o processo deelaboração do pensamento e a geração de conhecimentoocorrem no cérebro humano, os neurofisiologistas nãodescobriram ainda os mecanismos biológicos que o qua-lificam.

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O RUMOR DO CONHECIMENTO

A ciência cognitiva indica que a compreensão da mentehumana pode ser explicada pela analogia com a compu-tação eletrônica e pela modelagem no computador domodo de funcionamento da mente humana A ciênciacognitiva reúne em uma reflexão interdisciplinar elemen-tos da ciência da computação, da psicologia cognitiva, dossistemas de informação, da lingüística, das neurociências,da inteligência artificial, da antropologia, e é definida co-mo um esforço contemporâneo para responder as ques-tões relacionadas com a geração do conhecimento, suanatureza, componentes, fontes e desenvolvimento.

Em suas colocações, não questiona o fato de o proces-so de pensamento realizar-se na mente humana. Contu-do, sem pretender imitar estes mecanismos fisiológicos,acredita poder programar computadores para simular opensamento humano através do processamento simbóli-co da informação. É a chamada hipótese do sistema sim-bólico físico. Esta não supõe substituir chips por neurôniosou comparar circuitos integrados com a mente humana.Supõe que, de maneira fisicamente diferente, símbolospodem ser representados por padrões eletromagnéticos deum computador. Neste nível simbólico, o computadorpode simular os símbolos armazenados e processados namente. Os processos básicos que um computador podeexecutar com a informação simbólica, tais como enviar earmazenar símbolos na memória, combiná-los e reor-ganizá-los em novas estruturas simbólicas, compará-lospara qualificação de acordo com regras programadas, uti-lizar uma memória de longo prazo e uma memória opera-cional de curto prazo, justificam as condições necessá-rias e suficientes para a aceitação da hipótese de que,possuindo estes atributos, o computador pode ter a ha-bilidade de simular o pensamento humano.

A base conceitual da ciência cognitiva tem sido utili-zada também para analisar o processo de significação doconteúdo de textos, como conseqüência de procedimen-tos de elaboração do pensamento que podem levar aoconhecimento (Simon, 1995).

Desta forma, a interpretação do significado do conteúdode uma estrutura de informação enquanto texto pode serpensada como um fluxo de intenções (propriedade quedireciona para o ato de entendimento, vigor que dirige aação, implica causalidade, mas não necessariamente von-tade deliberada ou premeditação consciente) do receptorao interagir com uma estrutura de informação.

Assim, quando um receptor (leitor) interage com umtexto, significados são evocados (evocar: chamar de al-gum lugar, transferir de um local para outro, trazer à lem-brança) em um fluxo de intenção para o entendimentodeste texto; ou seja, determinados símbolos ou estruturasde símbolos que estão armazenados na memória vêm àconsciência. Evocar representa aqui um conjunto de pro-

cessos psicológicos para a transferência de significadosda memória de longo prazo para a memória de curto pra-zo, para atenção do leitor que interpreta o texto.

O mecanismo que realiza esta transferência é chama-do de recognição (reconhecimento, acessa o significadoe toda a informação a ele associada); assim, um conceito(menor unidade com que se labora o pensamento; unida-des simbólicas de menor complexidade e que possuempropriedades causais e representacionais) que é evocadopara a atenção do leitor pela recognição pode estar asso-ciado a uma considerável quantidade de informação (con-ceitos associados), dependendo da qualidade da memóriaacessada e do contexto do texto. A qualidade da memóriae o contexto do texto implicam direta ou indiretamente adiversidade de associações que podem ser feitas a partirdo conceito acessado no texto. A evocação do conceito“casa”, por exemplo, pode trazer por recognição concei-tos como habitação, morada, edifícios, cidade, lar, famí-lia, pais, filhos, casamento, proteção, felicidade, etc.

Esta associação de conceitos está geralmente conectadaa elementos como:- contexto do texto, enquanto estrutura de informação;

- contexto particular do sujeito, no tempo e no espaço deinteração com o texto; desvio cognitivo da privacidadedo receptor;

- estoque de informação do sujeito; qualidade da memó-ria do leitor no contexto do texto;

- competência simbólica do receptor em relação aosubcódigo lingüístico no qual o texto se insere;

- contexto físico e cultural do sujeito que interpreta o texto.

A evocação simbólica é operada por associações, liga-ções, combinações, referências do passado e projeções dofuturo. É limitada unicamente pela riqueza das estruturasde memória que são ativadas. O significado do texto estáconectado à relação entre a informação e o estado da me-mória do receptor, seu conteúdo e os seus contextos. Nainterpretação da informação, o receptor fica liberado daintenção do emissor. Uma mesma informação pode terdiferentes significados para diferentes pessoas e para amesma pessoa em diferentes tempos. Uma subestruturade uma mesma informação pode ter múltiplos significa-dos até mesmo para a mesma pessoa.

“Assim se recicla o ser total da escrita: um texto é feitode escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entramumas com as outras em diálogo, em paródia e em contesta-ção; mas há um lugar em que esta multiplicidade se reúne, eesse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o lei-tor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem quenenhuma se perca todas as citações de que uma escrita é fei-ta; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seudestino, mas este destino não pode ser pessoal: o leitor é um

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homem sem história, sem biografia, sem psicologia (...) paradevolver à escrita o seu devir é preciso inverter o seu mito.O nascimento do leitor tem que pagar-se com a morte doautor” (Barthes, 1987).

Acreditamos que a elaboração da informação comosugerida pela ciência cognitiva pode trazer um maior en-tendimento de como se processa a transformação da in-formação em conhecimento. Talvez um rumor de comooperacionalizar a transformação.

EM BUSCA DE EVIDÊNCIAS

Foi com a intenção de lançar um olhar especulativosobre a informação como matéria-prima do conhecimen-to que conduzimos a pesquisa, ainda em desenvolvimen-to, em que procuramos estudar a interação de um recep-tor com uma estrutura de informação.

Procuramos investigar como diferentes indivíduos, comcondições lingüísticas, culturais e competências cogniti-vas semelhantes, realizavam a assimilação da informação.Trabalhamos com pesquisadores seniores das áreas decomunicação, física e informação tecnológica, que foramcolocados em interação com artigos de periódicos, em lín-gua portuguesa, de volume semelhante e com publicaçãoposterior a 1984.

Como resultado desta aproximação, foi solicitado aostrês grupos de pesquisadores que indicassem, para cadatexto, três produtos de conhecimento, expressos por meiode conceitos simples (unitermos) e conceitos compostos(reunião de conceitos simples para exprimir uma inter-pretação do texto). Possuindo assim uma fonte de infor-mação e indicadores de conhecimento relacionados a estafonte, poderíamos proceder a diversas análises que nosenvolvessem com o objeto da pesquisa: qual o processoque levou à interpretação de um determinado conteúdo,como os produtos do conhecimento se manifestaram paradiferentes pesquisadores atuando em áreas distintas, comoqualificar estes conceitos e suas relações em termos derecognição e evocação.

O material coletado corresponde, portanto, a três conjun-tos de dez textos nas áreas de comunicação, física, e infor-mação tecnológica. Evitamos os textos de física em lingua-gem matemática, preferindo adotar textos discursivos.

Cada texto foi considerado como uma macroestruturade informação e apresentado em três microestruturas deinformação correspondentes ao título do artigo, ao seuresumo e ao texto completo do artigo. Para a seleção des-tes artigos, contamos com a assessoria de um especialistade cada área.

Os textos foram examinados por cinco pesquisadorespara cada área estudada, que analisaram para cada um dosdez textos as suas três microestruturas de informação. A

fim de obtermos uma ação do tempo de memória e dovolume de informação, analisamos separadamente as in-terações2 do usuário com a microestrutura de informação(primeiro o título, depois o resumo e, finalmente, o textocompleto). Cada microestrutura foi levada ao pesquisa-dor com um intervalo de pelo menos oito dias. Assim,cada texto gerou três interações, para cada microestruturade informação – título do texto, seu resumo e o texto com-pleto. Cada microestrutura (título, resumo, texto) foi le-vada ao pesquisador de cada área, fora de seu contexto,isto é, o título não continha qualquer elemento que o iden-tificasse com o artigo, o resumo também e assim o textocompleto, com a intenção de se observar, em um ambien-te controlado, como o acréscimo de informação e o tem-po possam ter influído nas condições de recognição eevocação dos conceitos.

Cada uma destas interações gerou como resultadosprodutos do conhecimento, elaborados a partir da infor-mação recebida pelo pesquisador da área, conforme indi-cado abaixo:- conceitos simples, atribuídos por cada pesquisador paracada microestrutura de informação (título, resumo e tex-to completo). Exemplo: mídia, televisão, eletrônica;

- conceitos compostos, com uma ou mais palavras, atri-buídos por cada pesquisador, também para cada micro-estrutura de informação. Exemplo: mídia eletrônica ou aimportância da televisão como mídia eletrônica no Bra-sil.

Em anexo, mostramos para um texto de comunicação,um de física e um de informação tecnológica, os concei-tos simples e os conceitos compostos com sua freqüên-cia, em uma contagem geral para as três microestruturasconsideradas. A base de dados que temos para análise eque sustenta nossas primeiras conclusões é bastante ex-tensa. As três áreas produziram cerca de 450 interaçõesdo leitor com cada uma das estruturas de informação. Cadainteração gerou em média 14 produtos do conhecimentoem forma de conceitos simples ou compostos.

Comunicação

Ivana Bentes (1995) investiga quatro momentos deci-sivos da estética da violência no cinema, na literatura enas artes plásticas no Brasil:- o relato da barbárie do positivismo brasileiro por Euclidesda Cunha em Os Sertões;

- a violência transformadora de Glauber Rocha, com suaênfase no martírio revolucionário;

- a romantização da violência da marginalidade urbana;

- a violência niilista e implacável de personagens des-territorializados a partir dos anos 80 (Quadros 1 e 2).

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O RUMOR DO CONHECIMENTO

QUADRO 1

Comunicação – Conceitos Simples(título+resumo+texto)

Comunicação – Texto 1Conceitos Simples Freqüência

Violência 9Cinema 7Estética 6Literatura 5Brasil 4Marginalidade 3Artes 2Agressão 1Antonio Conselheiro 1Arte 1Canudos 1Contemporâneo 1Cultura 1Dominação 1Espetáculo 1Estéticas 1Ética 1Fanatismo 1Glauber 1Glauber Rocha 1História 1Intolerância 1Masoquismo 1Miséria 1Moral 1Plástica 1Política 1Positivismo 1Resistência 1Revolta 1Sadismo 1Sertanejo 1Tribos 1Urbano 1

Fonte: Elaboração do autor.

Física

As explicações dadas na maioria dos textos de físicapara justificar o aparecimento da tensão superficial noslíquidos, são, na opinião de Ferreira (1981), insatisfató-rias, tanto porque focalizam exclusivamente as interaçõesnormais à superfície dos líquidos, como também porquemisturam em uma mesma situação considerações de for-ça e energia. Relembra, usando a teoria de Laplace co-mentada por Lord Rayleigh, que a tensão superficial ad-vém de um déficit da força de coesão, tangente à super-fície, devido à ausência de líquido (acima da superfície)(Quadros 3 e 4).

QUADRO 2

Comunicação – Conceitos Compostos (título+resumo+texto)

Comunicação – Texto 1Conceitos Compostos/T01 Freqüência

Estética da violência 5Cinema brasileiro 3Cinema novo 2Literatura brasileira 2A arte e a violência 1A violência como estrutura estética 1Abordagem estética da violência 1Arte e revolta 1Artes no Brasil 1Artes plásticas 1Artes plásticas brasileiras 1Artes plásticas no Brasil 1Blade Runner 1Brasil século XX 1Canudos – história 1Cinema – Glauber Rocha 1Cinema arte-americana desde Bonnie & Claide 1Cinema violência 1Civilização brasileira 1Estética e revolta 1Estética, violência e marginalidade 1Estética, violência e positivismo 1Estética, violência e revolução 1Estéticas da dominação 1Estéticas da violência 1Estudos da violência 1Fanatismo no Brasil 1Hércules – Quasímodo 1História do Brasil 1Identidade cultural 1Incompatibilidade cultural 1Literatura – violência 1Literatura da violência 1Marginais romantizados 1Marginalidade humana 1Marginalidade urbana 1Martírio revolucionário 1Moral e ética 1Pedagogia da violência 1Pertencimento & Exclusão 1Quentin Tarantino 1Resistência estética 1Retóricas da violência 1Romantização da miséria 1Violência – cinema e literatura 1Violência como estética 1Violência cultural 1Violência e arte 1Violência estrutural 1Violência nas artes brasileiras 1Violência política 1Violência urbana 1Violência, estética e exclusão 1

Fonte: Elaboração do autor.

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QUADRO 3

Física – Conceitos Simples(título+resumo+texto)

FísicaPesquisados: FU01A+FU02A+FU01B+FU02B+FU03A

Conceitos Simples/F06 Freqüência

Líquidos 9Tensão 9Superfície 7Superficial 4Física 3Laplace 3Moléculas 3Atração 2Elasticidade 2Forças 2Líquido 2Rayleigh 2Superfícies 2Capilaridade 1Coesão 1Conceitos 1Crítica 1Densidade 1Didática 1Elementos 1Ensino 1Fluidos 1Força 1Interações 1Modelo 1Sinergias 1Temperatura 1Viscosidade 1

Fonte: Elaboração do autor.

Informação Tecnológica

Segundo Goodrich (1987), vários sinais evidentes nomundo de hoje indicam que a organização moderna, funcio-nando na fronteira da tecnologia, não pode mais confiar emmétodos intuitivos e não sistemáticos de agrupar e analisarinformação necessária para o gerenciamento estratégico desuas operações. Enquanto os padrões de sinais que levam aesta conclusão estão se tornando mais evidentes todos os dias,a resposta organizacional a este desafio ainda é altamenteirregular e freqüentemente irracional. A grande maioria dasorganizações só pratica a forma não estruturada de observa-ção (Monitoração Parforâmica Informal) para monitorar seuambiente externo. A recente onda de atividades em empre-sas tecnológicas, institutos de P&D e órgãos governamen-tais, para melhor acompanhar as mudanças bruscas e rápi-das em seu ambiente externo, é indicativa da crescentetendência à prática de formas mais sofisticadas de MA. O

objetivo deste trabalho foi desenvolver a conceituação doprocesso de MA dentro do contexto de planejamento estra-tégico e indicar, com base em uma revisão da literatura e naexperiência do autor, como esta atividade pode ser estrutu-rada dentro da organização. Devido à ampla gama de variá-veis organizacionais que influenciam o desenvolvimento deum sistema de MA, apenas diretrizes gerais puderam serapresentadas. Entretanto, espera-se que este material venhaa ajudar organizações interessadas a entenderem as opçõesdisponíveis e encontrarem uma solução compatível com suasatividades e recursos (Quadros 5 e 6).

QUADRO 4

Física – Conceitos Compostos(título+resumo+texto)

Física - Texto 6Pesquisados: FU01A+FU02A+FU01B+FU02B+FU03A

Conceitos Compostos/F06 Freqüência

Tensão superficial 13Física de fluidos 2Coesão molecular 1Comentários de Lord Rayleigh 1Críticas das descrições usuais 1Déficit de força de coesão na superfície do líquido 1Déficit de pressão 1Descrição didática 1Ensino de física 1Estação térmica 1Estado líquido da matéria 1Estudo introdutório sobre tensão superficial 1Física de fluidos 1Força atrativa 1Força coesiva 1Força de coesão 1Força gravitacional 1Força normal à superfície 1Força paralela à superfície 1Forças intermoleculares 1Forças moleculares 1Forças superficiais 1Forças superficiais atrativas 1Forças tangenciais à superfície 1Interações normais à superfície nos líquidos 1Interações normais e tangenciais à superfície 1Mecânica clássica 1Mecânica dos fluidos 1Mecânica newtoniana 1Pressão atmosférica 1Superfície plana líquida 1Tensão superficial 1Tensão superficial em líquidos 1Teoria cinética da matéria 1Teoria de Laplace 1Teoria de Laplace para líquidos 1Teoria de Lord Rayleigh 1Textos introdutórios de física 1

Fonte: Elaboração do autor.

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O RUMOR DO CONHECIMENTO

QUADRO 5

Informação Tecnológica – Conceitos Simples(título+resumo+texto)

Informação TecnológicaPesquisados: TU01A+TU02A+TU01B+TU02B+TU03B

Conceitos Simples/T07 Freqüência

Planejamento 10Monitoração 8Tecnologia 8Informação 8Estratégia 7Monitoramento 6Gestão 5Ambiente 4Análise 3Mudanças 3Pesquisa 3Organizações 3Desenvolvimento 2Conceitos 2Contexto 2Diretrizes 2Ambientação 1Ambiental 1Cenários 1Centro 1Coleta 1Competitividade 1Concorrência 1Evolução 1Gerência 1Gerenciamento 1Getkeeper 1Incerteza 1Investimentos 1Mudança 1Política 1Previsão 1Prospecção 1Tendências 1Variáveis 1

Fonte: Elaboração do autor.

UMA PRIMEIRA ANÁLISE DOMATERIAL COLETADO

A interpretação do significado de um texto (no senti-do de uma estrutura de informação), que interatua com oleitor (enquanto receptor) para gerar conhecimento, mos-trou ter características muito próximas ao modelo de pen-samento cognitivo com que elaboramos nossas suposiçõesteóricas. O fato é que, nas três áreas estudadas, os pes-quisados agiram através da recognição para evocar damemória unidades de pensamento sensíveis ao conteúdode informação do texto. Constatou-se em todos os textosdas três áreas a existência de um modelo de pensamento

QUADRO 6

Informação Tecnológica – Conceitos Compostos(título+resumo+texto)

Informação TecnológicaPesquisados: TU01A+TU02A+TU01B+TU02B+TU03B

Conceitos Compostos/T07 Freqüência

Planejamento estratégico 11Monitoração ambiental 8Monitoramento ambiental 4Pesquisa e desenvolvimento 4Ambiente externo 3Organizações tecnológicas 3Previsão tecnológica 3Tomada de decisão 3Administração de ciência e tecnologia 2Análise de informação 2Empresas tecnológicas 2Gestão de tecnologia 2Gestão estratégica 2Gestão tecnológica 2Incerteza ambiental 2Informação estratégica 2Monitoração panorâmica ambiental 2Acompanhamento tecnológico 1Aquisição de informação 1Atualização tecnológica 1Cenários econômicos 1Cenários tecnológicos 1Centro de PGO 1Coleta de informação 1Competitividade industrial 1Desempenho tecnológico 1Desenvolvimento tecnológico 1Gestão da informação 1Gestão empresarial 1Informação com valor agregado 1Informação e mudança organizacional 1Informação tecnológica 1Meio ambiente organizacional 1Meio concorrencial 1Monitoração de ambiente 1Monitoração do ambiente organizacional 1Monitoração panorâmica informal 1Monitoração tecnológica 1Monitoramento tecnológico 1Mudança contextual 1Mudança de contexto e sua influência na organização 1Mudança organizacional 1Nichos de mercado 1Organização moderna 1Pesquisa de mercado 1Pesquisa tecnológica 1Política de investimentos 1Programa de implantação de monitoração ambientale previsão tecnológica 1Prospecção tecnológica 1Rede de getkeepers 1Revisão da literatura 1Sistema de informação 1Sistema de monitoração ambiental 1Tecnologia emergente 1Tendências tecnológicas 1Variáveis organizacionais 1

Fonte: Elaboração do autor.

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convergente – aquele no qual a recognição se direcionapara uma cadeia de conceitos pontuais, convencionalmenteligados ao conteúdo explícito do texto. Em nosso exem-plo, este procedimento corresponde aos conceitos simplese compostos, com uma freqüência de indicação dos leito-res maior que 1, informando que dois ou mais leitoresindicaram aqueles conceitos como relevantes para expri-mir o conteúdo de conhecimento do texto considerado.

Contudo, convivendo com este modelo convergente depensar, identificamos ainda, operando na interação tex-to-leitor, um fluxo de pensamento divergente, em que osmeandros do pensamento se orientam para uma associa-ção que é referenciada à aventura individual e simbólicade cada receptor. Suas vivências e projeções, suas condi-ções de individualidade e competências simbólicas e cog-nitivas. Em nosso estudo experimental, os conceitos comfreqüência igual a 1 (indicados só uma vez), particularespara apenas um leitor, representaram um desvio cognitivodeste receptor da informação.

Verificamos, então, como uma manifestação constan-te para todos nossos dados, tanto para os conceitos sim-ples como para os conceitos compostos, a existência deum grupo de conceitos convergentes com freqüência deindicação maior que 1. E um número bem maior dos con-ceitos que representariam um fluxo de pensamento diver-gente com freqüência de indicação igual a 1, resultado doque chamamos desvio cognitivo do leitor, embora paraos conceitos compostos, que denotam já uma elaboraçãodo pensamento, esta convergência de tenha sido menor.

As Tabelas 1 e 2 mostram a distribuição dos conceitos sim-ples e compostos e a qualificação de sua freqüência de indica-ção pela média de todos os documentos de cada área estudada.

Apesar de ser conceitualmente esperado, foi uma sur-presa encontrarmos nos dados coletados um desviocognitivo do receptor com tanta força de manifestação.Este desvio é apresentado aqui como freqüências de evo-cação de conceitos igual a 1, com só uma indicação. Estarevelação mostrou-se com mais vigor nos conceitos com-postos ou relacionados, quando existe também uma ela-boração do pensamento. Nota-se ainda que quanto maislivre ou menos formal o subcódigo da comunidade lin-güística considerada, maior foi a fluência de conceitos oua atuação de um pensar divergente. Quanto mais formalo subcódigo, maior será a concordância nos atributos ex-plícitos de um pensamento convergente.

Neste estágio, acreditamos que se poderia indicar que, aorelacionar-se com uma estrutura de informação, um recep-tor realiza reflexões e interações que lhe permitem evocarconceitos que se relacionam explicitamente com a informa-ção recebida; mas mostra também aspectos de um pensa-mento que é seduzido por condições quase ocultas, silen-ciosas de um meditar próprio de sua privacidade.

Estes rumores na elaboração do pensamento nos levama colocar a hipótese de que o conhecimento é função deum fluxo de processos explícitos do pensamento e de umconjunto de manifestações tácitas que se relacionam àsolidão fundamental de cada indivíduo. Esta proposição,que acreditamos seja válida para todas as estruturas deinformação, poderá influir na compreensão da transfor-mação da informação em conhecimento.

Seria válido ainda considerar, como nosso modelo doprocesso de transformação, uma adaptação do modelousado por Guilford (1959) para o pensamento. Trata-sede um cubo de três faces no qual suas células interatuam:os processos do pensamento e os conteúdos de informa-ção, para gerar cada produto do conhecimento.

Consideramos, então, que no processo de conhecer li-damos com condições explícitas e condições tácitas paraa interpretação de uma estrutura de informação. As con-dições tácitas possuem vigor em sua manifestação, de-vendo ser consideradas particularmente nas questões dagestão da informação e, principalmente, nas suas estraté-gias de transferência e nos procedimentos e instrumentosda organização da informação.

As circunstâncias de elaboração e reflexão de indica-dores de metaconhecimento ou núcleos de metadados, aonão considerarem este tipo de manifestação do receptorda informação deixam de revelar todas as qualidades da

TABELA 1

Conceitos Simples

Média das Número Médio de Conceitos por Documento

Freqüências (1)Comunicação Física

InformaçãoTecnológica

Freqüência > 1 (A) 4 5 7Freqüência = 1 (B) 10 8 11Percentagem A/B 40 63 64

Fonte: Elaboração do autor.(1) Freqüência média de indicação para os dez documentos de cada área, nos três momen-tos: título, resumo e texto. (A) = conceitos indicados mais de uma vez; (B) conceitos indicadossó uma vez, por uma única pessoa.

TABELA 2

Conceitos Compostos

Média das Número Médio de Conceitos por Documento

Freqüências (1)Comunicação Física

InformaçãoTecnológica

Freqüência > 1 (A) 8 29 44Freqüência = 1 (B) 192 115 191Percentagem A/B 4 25 23

Fonte: Elaboração do autor.(1) Freqüência média de indicação para os dez documentos de cada área, nos três momen-tos: título, resumo e texto. (A) = conceitos indicados mais de uma vez; (B) conceitos indicadossó uma vez, por uma única pessoa.

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O RUMOR DO CONHECIMENTO

realidade de uma atuação do usuário com uma estruturade informação.

A construção de estruturas de informação em hipertextonão devem ser formalizadas em esquemas rígidos, que nãoconsiderem as particularidades da comunidade lingüísti-ca e informacional e os desvios de um pensamento diver-gente dos habitantes deste grupo específico. Estas são asaplicações mais diretas que vislumbramos em uma apro-ximação inicial das nossas colocações neste artigo.

Finalmente, é notável que, como um sussurro, a infor-mação possa estar buscando suas explicações conceituaisem elementos da própria tecnologia, que tanto modificouas suas práticas.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

1. A pesquisa está sendo realizada com o apoio do CNPq.

2. Cada interação do pesquisador com uma microestrutura foi realizada com umaentrevista estruturada, registrada em um formulário apropriado e padronizadopara as três áreas.

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A

INFORMAÇÃO E SOCIEDADEnovos parâmetros teórico-práticos de gestão e

transferência informacional

REGINA MARIA MARTELETO

Pesquisadora Titular do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, CNPq/IBICT-UFRJ/ECO

ráter privado e atuação na esfera pública, com ênfase nasOrganizações Não-Governamentais de Assessoria e Apoioaos Movimentos Populares – ONGs/AMP. Sua relaçãocom os movimentos sociais e com outras entidades quetêm atuado no “terceiro setor” permite perceber as dispu-tas simbólicas e os embates discursivos presentes em suaspráticas e, por meio destes, as questões que envolvem ainformação, o conhecimento e a comunicação em nossassociedades.

Aponta-se, a partir daí, para a possibilidade de cria-ção e/ou ampliação de práticas, políticas e gestões dacomunicação e informação.

“TERCEIRO SETOR”.LUGAR DA INFORMAÇÃO?

O “terceiro setor” é uma idéia polêmica, ainda em cons-trução. Costuma estar relacionado às expressões “orga-nizações sem fins lucrativos” ou “organizações voluntá-rias”. É hoje o segmento de uma esfera pública não estatal,marcado pela lógica da sociedade civil, composto por umavariedade de atores sociais e formas de organização queexperimentam modos de pensar e de agir inovadores(Fernandes,1994). Este setor busca, estrategicamente,mecanismos de fortalecimento da participação popularjunto às esferas governamentais, redimensionando as prá-ticas políticas dos agentes internos e externos dos movi-mentos populares, agregando novos parâmetros de inter-locução e participação popular na gestão pública, deprodução de conhecimentos de forma compartilhada, ede promoção de espaços de comunicação e transferênciainformacional.

É composto por uma variedade de agentes e organiza-ções que, historicamente, e por diferentes óticas políticas

temática Informação e Sociedade organiza umcampo discursivo fundado seja nos atributos fun-cionalistas do fenômeno informacional, que res-

saltam sua capacidade resolutiva dos males e questõessociais, ou normativos, que entendem que a informação ea comunicação adequadas promoveriam a transparênciado Estado em relação à sociedade, ou ainda produtivos,que colocam a ênfase nas tecnologias de comunicação einformação como motores das transformações mercado-lógicas, institucionais ou culturais.

De fato, tanto o senso comum quanto o pensamentocientífico costumam associar a informação ao conheci-mento e à comunicação, indicando uma sucessão ininter-rupta e articulada entre os três termos, ou quase automá-tica. Ou seja, a passagem de uma informação ao estadode conhecimento e a comunicação adequada deste conhe-cimento como matéria informacional. Este modelo arti-culado, pedagógico, orienta nossas práticas de conhecer,informar, comunicar e constitui o solo de formação docampo discursivo da informação, como indicado anterior-mente. Nele estão representadas nossas crenças e refle-xões a respeito do fluxo social das informações: se nadasabemos do que acontece, é por falta de informações, oupor falta de transparência, porque as informações estariamretidas na fonte: ou, por retenção de informações, quandoo conhecimento não pode ser democraticamente partilha-do por todos e, por isso, a comunicação não funciona comodeveria (Sfez, 1996:5).

Neste artigo, pretende-se levantar algumas questões querevelem os conflitos e as contradições existentes na tríadeinformação-conhecimento-comunicação e no crédito à sualinearidade contínua. O contexto utilizado é a ação infor-macional de entidades que atuam no “terceiro setor”, comoultimamente se designa um conjunto de iniciativas de ca-

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INFORMAÇÃO E SOCIEDADE: NOVOS PARÂMETROS TEÓRICO-PRÁTICOS...

e ideológicas, orientam suas práticas no sentido da de-mocratização da sociedade: pastorais da Igreja, partidospolíticos, sindicatos, movimentos sociais locais (associa-ções de moradores, grupos de ajuda mútua, rádios e jor-nais comunitários), nacionais e transnacionais (negros,mulheres, homossexuais, direitos humanos, ecológicos),os urbanos e os do campo. O perfil deste (novo) setor re-flete-se nas tentativas de afirmação institucional de umconjunto diversificado de entidades que se autodeno-minam “organizações não-governamentais” – ONGs, queatuam no espaço da sociedade civil com o objetivo deassessoria aos movimentos populares, com mediaçõespolíticas, pedagógicas e informacionais.

A promoção de espaços de interlocução entre diferen-tes esferas do conjunto social – o Estado, o mercado e asociedade –, relacionados aos valores da solidariedade,direito à igualdade e diferença, cria situações de confron-to simbólico, nas quais se afirmam as condições de cons-trução de uma “democracia cultural”, expressão políticae imaginária de agentes diferentemente posicionados noespaço social. Nesses foros comunicacionais de naturezapública, fluem informações e constroem-se significadosque levam a uma leitura das potencialidades gerenciaisdos conhecimentos produzidos pelos coletivos sociais,além das esferas do Estado e do mercado.

ONGS: UM CAMPO EM PROCESSODE (RE) CONSTRUÇÃO

Ao longo da sua recente história, as organizações não-governamentais têm baseado suas ações no pressupostode que seu espaço de atuação corresponde, entre outrosfatores, ao vazio criado por uma dupla omissão: do Esta-do, no atendimento às necessidades básicas da populaçãomarginalizada, e dos meios acadêmicos, produtores deconhecimentos técnico-científicos capazes de atender asociedade com soluções técnicas, mas ainda críticas eemancipatórias para o desenvolvimento social. As ONGsestabelecem, dessa forma, seu espaço de atuação nessevácuo criado pelo Estado e pelas instâncias produtorasdo conhecimento. Seu escopo de formação e atuação pos-sui assim interseções simbólicas com os campos estatal ecientífico. Considerando-se entidades alternativas em re-lação ao quadro social e institucional, suas relações sãode aproximação e ruptura com campos já institucionali-zados e práticas sociais: a Igreja, os partidos e organiza-ções de militância política de esquerda, as universidades.Esses três pólos formam o espectro dentro do qual asONGs recortaram seu espaço próprio de atuação, articu-lando um modo de fazer alternativo que conserva critica-mente os valores característicos dessas três instituições;“(...) pela ‘competência’ universitária e contra o seu ‘iso-

lamento’; pelo ideal de ‘serviço ao próximo’, sobretudoaos mais necessitados, característica da tradição cristã, mascontra a sacralização das hierarquias eclesiásticas; peloideário ‘político’ veiculado pelas esquerdas, mas contrao ‘dogmatismo’ e a ‘manipulação’ partidária que aspermeiam”(Fernandes apud Landim, 1988:10-11). Outrotraço relacional importante para a conformação de seu es-paço próprio refere-se à polaridade entre Estado e povo(ou sociedade civil). As ONGs, desde os anos 70, bus-cam uma autonomia institucional que as diferencie dospartidos e das Igrejas por estimularem uma gama de ini-ciativas dirigidas às bases da sociedade, com o objetivoexplícito de torná-las mais independentes em relação aoEstado. Sua originalidade foi justamente a de dedicar-se,por definição institucional, aos movimentos que ocorremnos níveis intermediários e inferiores do corpo político esocial (Fernandes apud Landim, 1988:11). Não sendo en-tidades representativas, não operam por delegação, masa favor das camadas populares da sociedade.

Este modo específico de construir sua autonomia estárelacionado ao contexto social e político do seu surgimen-to. Muito embora o termo ONG seja recente (é emprega-do para nomear tal conjunto de entidades e suas práticasdesde meados dos anos 80), o fenômeno social que eledesigna tem suas raízes nos “Centros de Educação Popu-lar”, “Centros de Promoção Social”, “Centros de Asses-soria”. Tais centros formaram, desde os anos 70, um con-junto de entidades e de agentes especializados, organi-zando um campo de práticas, discursos e ações voltadospara finalidades comuns ou semelhantes, com uma rela-ção simbiótica com a Igreja (Landim,1988:31). Tanto suaorigem religiosa quanto a conjuntura política de entãoconferem às ONGs e às práticas de seus especialistas umcaráter de voluntariado e de militância nesse período pre-liminar da sua formação.1 Quanto ao perfil socioedu-cacional desses agentes, todos, de modo geral, haviampassado pela universidade, e muitos continuavam a man-ter vínculos com o campo acadêmico. Entretanto, as con-cepções dominantes no universo das ONGs em relação àuniversidade referiam-se ao seu total distanciamento emrelação aos movimentos sociais. Nesse caso, caberia aosprofissionais universitários e estudantes engajados colo-car seu conhecimento a serviço das classes populares,transformando-as, por uma ação educacional, em sujei-tos ativos dos movimentos sociais (Landim, 1988:32). Onúcleo tradicional de formação das ONGs no Brasil si-tua-se assim nos centros voltados para a educação popu-lar, que marcam uma linha de atuação política própria aesse campo.

Nos anos 80, paralelamente ao processo de democrati-zação, o número dessas entidades se multiplica e váriastransformações irão reorientar seu discurso e suas práti-

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cas, tais como: maior politização no modo de pensar aeducação popular; os esforços de institucionalização e deprofissionalização dos seus quadros; a secularização e asarticulações com um leque mais amplo de atores sociais,além dos circuitos religiosos, partidários e universitários(Landim,1988:38). A entrada nos anos 90 é caracteriza-da por uma maior visibilidade pública das ONGs. É enfa-tizada a participação dessas entidades nos eventos queantecederam a ECO/92 – conferência de dimensão pla-netária sobre meio ambiente. Esse movimento de legiti-mação “de fora para dentro”, sob o impulso de sua parti-cipação nas conferências promovidas pelas Nações Uni-das, tenderá a manter-se nos anos 90 (Durão, 1994).

Firma-se, desse modo, um processo de institucionali-zação e reconhecimento pela sociedade da existência dessenovo campo, em um contexto social, político e econômi-co diverso daquele em que essas organizações se forma-ram. Nos estudos mais recentes realizados pelas ONGs,estão presentes em seu discurso certos elementos que re-afirmam tanto a sua vocação política e de ação através doconhecimento, quanto a necessidade de ampliação e di-versificação das suas parcerias. Por outro lado, no mo-mento em que ganham visibilidade, agora em contextopolítico neoliberal, emergem em meio a entidades juridi-camente enquadradas no “terceiro setor” ou entidades semfins lucrativos, em relação às quais as ONGs empenham-se em marcar suas diferenças políticas, históricas e insti-tucionais. Landim (1993b), em estudo realizado sobre osetor “sem fins lucrativos não-governamental” – fenômenoque, segundo a autora, “(...) tende a se expandir nessestempos de transnacionalismo, transformações do papel doEstado, neoliberalismo, crise de partidos e de valores,afirmações étnicas e religiosas, reconstrução de socieda-des civis, apartheid social e aprofundamento da pobre-za” –, afirma que no processo de construção da identida-de das ONGs brasileiras como um campo específico depráticas e instituições, “foi fundamental a distinção – oumesmo oposição – com relação ao campo da assistênciasocial”. A autora sustenta ainda que “a história dessasúltimas entidades no Brasil, marcada pela religião e porrelações clientelistas e de dependência, é uma das expli-cações para serem rejeitadas pelo universo que se dedicaà implantação dos valores da modernidade na sociedadebrasileira” (Landim, 1993b:6 e 34).

INFORMAÇÃO, CONHECIMENTO ECOMUNICAÇÃO NO UNIVERSO DISCURSIVO EPRÁTICO DAS ONGS

ONGs são “entidades privadas sem fins lucrativos”.Entretanto seus objetivos e o modo de encaminhar suasações demonstram sua face de entidades que têm atuação

na esfera pública. Essas características peculiares dese-nham o perfil contraditório dos seus agentes: voluntá-rios, especialistas, profissionais, intelectuais, ativistas, sãodiferentes facetas dos agentes do campo “onguiano”.Apesar dessa dispersão, têm histórias institucionais e po-líticas muito próximas. São oriundos ou ainda integradosa espaços institucionais, nos quais não encontram meiose condições de afirmação de vontade e ação política detransformação social.2 Dissidentes ou agentes críticosdesses espaços, seus habitus – ou biografia cultural e so-cial –, formados no interior de suas instituições de ori-gem, reúnem elementos contraditórios de aproximação edistanciamento com as esferas institucionais tradicionaisda sociedade. As afinidades práticas e discursivas dessesagentes têm como foco comum ações de intervenção po-lítico-pedagógica na sociedade, mais especificamente naparcela da população desprovida de meios materiais eintelectuais de acesso aos equipamentos coletivos e departicipação social. Se os fins estão delineados, os meiospara atingi-los preenchem a pauta de discussão sobre ametodologia de ação dessas entidades.

O termo assessoria é uma palavra-chave definidora doseu ethos e objetivos, estando relacionada a ações de co-nhecimento/informação junto às bases da sociedade. Éapontada como a atividade principal das ONGs. Possuium sentido genérico, expressando menos uma atividadeespecífica do que um tipo de vínculo que se estabeleceentre “assessores” e “assessorados”. Trata-se de “umarelação contratual, associada à transmissão de algumacompetência de conhecimento, que envolve confiançamútua e uma certa afinidade de propósitos. ‘Assessoria’,neste caso, é com freqüência uma forma de relacionarintelectuais, de um lado, e organizações ou movimentossociais, de outro, sem que este relacionamento impliqueum vínculo hierárquico entre as partes” (Fernandes eCarneiro, 1991:8).

Além da assessoria, são ainda indicadas como relevan-tes as seguintes atividades: pesquisa, educação popular,formação de agentes, comunicação. Este conjunto de ati-vidades caracteriza suas ações como de “apoio intelec-tual aos movimentos populares”.

A tarefa de prestar assessoria aos setores populares emovimentos sociais cria, para essas entidades, uma situa-ção paradoxal. De um lado, a crença no valor que o co-nhecimento/informação poderá agregar às práticas polí-ticas e de transformação da realidade vivida pela popu-lação excluída do processo de desenvolvimento social. Deoutro, as limitações do conhecimento especializado, da-das as suas formas elitistas e excludentes de aquisição edistribuição na sociedade e o resultante despreparo dosespecialistas ao lidar com questões que afetam o cotidia-no vivido da população.3 Ao fazer a opção de estar a ser-

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INFORMAÇÃO E SOCIEDADE: NOVOS PARÂMETROS TEÓRICO-PRÁTICOS...

viço das camadas populares e movimentos sociais, asONGs e seus especialistas – ainda que não o façam demaneira explícita ou como um objetivo em si mesmo –elaboram novas práticas e concepções do conhecimento-informação-comunicação.

Os agentes “onguianos” são portadores de discursos,formas de conhecimento e meios comunicacionais espe-cializados (ou científicos, técnicos, eruditos), por oposi-ção ao modo de conhecimento do senso comum dos agen-tes dos movimentos populares com os quais interagem.Nesse quadro, a linguagem é um elemento a ser trabalha-do, de modo que a comunicação se estabeleça entre agentescom treinamento e competência lingüística diferenciados.Na transformação tanto do discurso formal e especializa-do quanto do discurso do senso comum em informaçõesrelevantes e de qualidade para o movimento popular, éexigido um esforço de compreensão da perspectiva dooutro, das formas de representação do seu mundo vividoe, a partir dele, das maneiras próprias de representar osistema social, político e econômico no qual se inserem.Assim, a comunicação entre agentes posicionados dife-rencialmente no espaço social é complexa, estabelecen-do-se uma relação discursiva desigual, baseada em obje-tivos e propósitos comuns relacionados a uma ação sobrea realidade. O paradoxo da comunicação (ou das práticaslingüísticas) “é que ela supõe um meio comum que so-mente se realiza suscitando e ressuscitando experiênciassingulares, isto é, socialmente demarcadas” (Bourdieu,1991:16).

Nesses processos de interação entre os mediadores(agentes externos) e os integrantes dos movimentos po-pulares (agentes internos), são constantemente expostase redefinidas as contradições da tríade informação-conhe-cimento-comunicação, o que requer, entre as partes, o re-conhecimento da desigualdade de suas posições, especial-mente quanto ao saber, tomando essa desigualdade comoponto de partida para a construção de um conhecimentonovo (Valla,1991). Este “terceiro conhecimento” é pro-duzido em redor de temas e questões que em dados mo-mentos são adotados como relevantes pelos agentes, deforma compartilhada, pelo entrecruzamento de diferen-tes formas de saber. Não é um conhecimento de outra or-dem, ou diferente daqueles que lhe deram expressão – opopular e o científico. Nem mesmo é uma nova “infor-mação”. É um construto de ordem prática e simbólica, quepermite aos agentes populares desenvolverem uma des-treza técnica para lidar com questões práticas do seu co-tidiano vivido, e meio de valorização e fortalecimento doselos de apoio social e das suas capacidades inventivas.Tem apontado ainda para a construção de uma “nova epis-temologia,” que revela o lugar ético-político do conheci-mento científico.

REDES, ONGS E “TERCEIRO SETOR”

As ONGs de assessoria e apoio aos movimentos popu-lares têm enfrentado ultimamente novas questões rela-cionadas a sua identidade e permanência como um con-junto distinto de entidades no ambiente do “terceiro se-tor”. No novo cenário político e econômico que se apre-senta, de transformações do papel do Estado e retraçãode suas políticas sociais, as mudanças nos regimes socia-listas, o avanço do neoliberalismo e suas políticas econô-micas recessivas, outros elementos passam a compor essenovo quadro: a (re)organização da sociedade civil comoespaço de expressão de valores culturais em contraposi-ção aos modos históricos de conflito associados à esferada produção e do trabalho; a centralidade cada vez maisevidente do conhecimento/informação nos processos dedesenvolvimento social.

Em face dessas mudanças, e ressaltando-se a capaci-dade de transformação dessas entidades em relação a di-ferentes conjunturas, seu discurso vem incorporando maisrecentemente os termos “rede” e “solidariedade” comoindicadores das suas novas formas de ação na sociedade.Se, nos seus primórdios, as ONGs vinham tecendo os pri-meiros elos da sua estrutura em rede, de modo a conduzirações clandestinas junto aos grupos populares durante oregime autoritário, no atual contexto neoliberal busca-sea consolidação de uma rede como forma de expansão dassuas práticas nos planos local, nacional ou transnacional.4

Essa forma peculiar de organização, construída ao longoda sua história política, é atestada por algumas caracte-rísticas próprias ao ambiente “onguiano”: a informalida-de nas relações, para dentro e para fora do campo; o pla-nejamento das atividades orientado por objetivos alinhadoscom as necessidades dos movimentos populares e maleá-vel às mudanças de conjuntura; os elos estabelecidos nopróprio campo e fora dele, com campos conexos, para alémde fronteiras institucionais e/ou nacionais. São modos deser e de operar que podem favorecer a ampliação e o fortale-cimento das suas ações políticas, informacionais e pedagó-gicas, em que pese a ênfase que ultimamente se coloca nopapel das “organizações sem fins lucrativos” no desenvol-vimento social, além dos circuitos do mercado e do Estado.

“Rede” e “solidariedade” parecem indicar ainda anecessidade de superação de antigos ideários e práticas,o que se vê, mais recentemente, no processo ainda incer-to e amplamente discutido no campo das ONGs, de alar-gamento do leque de relações e alianças com áreas insti-tucionais da sociedade civil e entidades do “terceiro setor”,antes distanciadas do universo "onguiano" e mesmo co-locadas como campos opostos pelos interesses em jogo,como o da ação social empresarial e até mesmo o das obrassociais filantrópicas tradicionais (Landim, 1993b).

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Um dos modos de aproximação do universo do “ter-ceiro setor” , no qual se inserem as ONGs, é entendê-locomo uma vasta e indefinida teia, ou um campo compósito,amalgamado, tecido pelos elos e distensões entre diferen-tes agentes e organizações, posicionados de formas dife-rentes no espaço social: as comunidades, os movimentos,os campos religioso, acadêmico, político, o estatal, asONGs. A diversidade de status social dos agentes e orga-nizações que formam elos em rede tem como contrapon-to objetivos e interesses comuns de melhoria das condi-ções de vida e de participação social e política, compresença de cidadania, da parcela da população não con-templada pelas políticas e serviços públicos e pelas “be-nesses” do mercado. As ações assim desenvolvidas “sãointervenções sociais: buscam modificar modos de pensare/ou modos de atuar e/ou modos de sentir. Esse conjuntode modificações vai construindo uma pedagogia social(uma ‘paidéia’) que forma culturas ante as mudanças, se-gundo o enfoque que a referida intervenção tenha”. Alémdesses propósitos de “fortalecimento de poder” dos seto-res populares, melhorando os níveis de vida, aumentan-do os investimentos, fomentando a participação, “uma dasprincipais funções do Terceiro Setor é tornar possível acompetência cultural, ou seja, criar condições para queas diferentes formas de ver, produzir e entender o mundodos setores populares possam circular e competir, emigualdade de condições, assim como circulam os senti-dos e símbolos dos setores dominantes” (Toro, 1997:36-39).

Estes parecem ser os recursos e as energias do “tercei-ro setor”, espaço de embates discursivos e de disputa desentidos entre uma multiplicidade de grupos, indivíduose organizações, que revalorizam os ambientes locais defuncionamento de “comunidades interpretativas”, quepodem concorrer para a formação de novas práticas, ges-tões ou políticas de comunicação e informação.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

1. Nesses primeiros tempos, seu corpo de agentes era formado pela “esquerdacatólica” que vinha crescendo, antes do movimento militar de 1964, tanto poruma polarização ideológica dentro da própria Igreja, quanto política no terrenoda sociedade civil. Os militantes cristãos dessas tendências, oriundos das clas-ses médias, abrigavam-se na JUC – Juventude Universitária Católica – e no MEB –

Movimento de Educação de Base. Com a crescente repressão do regime ditatori-al ao movimento popular, tais entidades se desintegram, e seus agentes rumarampara as ONGs, que começavam a se organizar. Além desse grupo tradicional daesquerda católica, surgem os novos agentes cristãos voltados para uma práticasocial junto a setores dominados da população no âmbito da nova pastoral popu-lar da Igreja. Outra vertente que se engaja no trabalho das ONGs era formadapor militantes oriundos da esquerda tradicional, que revendo seus princípios depensamento e ação, encontraram nessas organizações novas formas de atuação eaproximação dos setores populares (Landim, 1988:31 e segs.).

2. A ambigüidade das relações entre as ONGs e as universidades, por exemplo,em parte se entende pela prática de uma “vocação política” pelas primeiras, depar com uma “vocação cognitiva e pedagógica”. O exercício conjunto dessasvocações quase nunca se faz presente nos meios acadêmicos. Pode-se ainda in-dagar, quanto à tensão existente entre essas duas esferas institucionais, se asONGs vêm realizando iniciativas de “extensão” (com toda a dimensão políticacontida no termo, nesse caso) do conhecimento produzido na universidade, quese efetua por mediações políticas e técnico-informacionais.

3. Valla (1991) demonstra a dificuldade em articular a ação de especialistas docampo acadêmico, profissionais e lideranças populares em torno das questõesque afetam as condições de vida das comunidades. “(...) Se, de um lado, os re-presentantes de organizações populares vinham buscando informações que nãopossuíam, por sua vez os profissionais demonstravam uma preocupação seme-lhante. Na realidade, suas formações universitárias revelam lacunas justamentenas áreas de conhecimento que se relacionam com os problemas agudos da po-pulação trabalhadora (...). Neste sentido, a ótica elitista dos currículos universi-tários faz com que assuntos tratados nas universidades passem ao largo de ques-tões de educação e saúde ligadas às necessidades da população.”

4. Ver a esse respeito, Aguiar (1996).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VALLA, V.V. A construção desigual do conhecimento e o controle social dosserviços públicos de educação e saúde. Texto apresentado no GT de Edu-cação Popular, Anped, 1991, mimeo.

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SOCIEDADE CIVIL, ESTADO ETERCEIRO SETOR

MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO

Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na PUC-SP

este artigo, pretende-se refletir sobre a forteexpressão da sociedade civil pela via do tercei-ro setor, procurando compreender sua signifi-

cativa expansão e importância, e, ao mesmo tempo, iden-tificar suas ambivalências, contradições e possibilidadesno cenário contemporâneo, marcado pela turbulência,complexidade, perplexidade e perda de referências utó-picas no fluxo de um capitalismo planetário e, o que émais importante, atravessado por compressões para reali-zar a maior aposta deste século: a conquista da eqüidade,a erradicação da pobreza e a redução das desigualdadesentre os cidadãos do mundo.

A ênfase aqui é colocada no discurso presente entre osatores, militantes e teóricos adeptos do recente terceiro se-tor. É a partir da compreensão do que revelam que pretende-se analisar os nexos entre sociedade civil e as apostas con-temporâneas nas organizações solidárias, suas tendências econtradições no bojo de uma reforma do Estado, em curso, enovos padrões de governabilidade em escala global e local.

É necessário ressaltar que não há consenso sobre o termoterceiro setor. Este é também recentemente utilizado no Brasil.

“Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essaquestão sobre a falta de precisão conceitual do nome quedefine o conjunto dessas organizações não é uma polêmi-ca vazia e de interesse exclusivamente acadêmico. Ob-servando o comportamento das próprias entidades verifi-ca-se a não existência de identificação com o termo e demanifestação clara e unânime de pertencer ao TerceiroSetor. Algumas organizações, principalmente aquelas comfortes raízes ideológicas de cunho político ou religioso,preferem ressaltar sua identidade própria, como se temes-sem que a agregação com outras provocasse uma espéciede diluição dos valores e preceitos norteadores de sua atua-ção. Outras, como as entidades representativas, parecem

hesitar entre dois tipos de identificação: aquele que justi-fica sua origem, isto é, o segmento ou o grupo social querepresenta; e aquele que lhe oferece a guarida de perten-cer a um setor mais diversificado, porém mais amplo evisível” (Fischer e Falconer, 1998:13).

Mesmo considerando essa ausência de consenso e deadesão plena, o fato é que o termo terceiro setor vem sen-do utilizado para designar o conjunto de organizações semfins lucrativos que operam no campo social. É uma de-signação que, ao mesmo tempo, contém uma consigna:ou seja, a reapropriação das organizações solidárias quesão sociedade civil por ela própria, a sociedade civil.

Mas antes é preciso se perguntar por que terceiro setor?Quando analisado do ponto de vista do âmbito de suas

ações, o terceiro setor presta os mais variados serviços(saúde, educação, assistência social, etc.), produz estu-dos e pesquisas, atua na defesa dos direitos humanos emonitoramento do comportamento das políticas públicas.Deste ponto de vista, o terceiro setor oscila entre merca-do e Estado; ora quase mercado, ora quase Estado.

Se for analisado pela sua composição e dinâmica, estesetor articula uma heterogeneidade de organizações vo-luntárias ou sem fins lucrativos, incluindo desde as asso-ciações comunitárias e microlocais de entre-ajuda, atéorganizações articuladas em redes globais atuantes noplano dos direitos humanos, na defesa do meio ambiente,na cooperação para o desenvolvimento, entre outras. Desteponto de vista, significa um termômetro da vida pública,sinalizando demandas societárias e igualmente tendên-cias e déficits nos processos de regulação social ancora-dos nos princípios do Estado, do mercado e da comuni-dade presentes na regulação na modernidade (Santos,1998). Numa outra direção reflexiva, pode-se dizer queenfatiza a esfera pública não estatal.

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Já ao analisá-lo do ponto de vista da sua finalidademaior – a solidariedade –, seu passaporte básico é a açãovoluntária. Significa um velho/novo modo de expressarcompaixão para com o próximo e/ou de engajamento cí-vico, pela ação solidária, em sociedades complexas e pla-netárias. Sob esta perspectiva, pode significar igualmen-te oferta de “plena atividade” para os cidadãos em temposde retração do pleno emprego.

De toda forma, o terceiro setor é um termo que enco-bre ou recobre o próprio significado da ação política dasociedade civil contemporânea.

A ação política é transmutada em ação solidária. Ou me-lhor, a solidariedade é a nova expressão da ação política.

Com estas colocações pretende-se debater o terceirosetor e, mais do que isso, refletir sobre a mutação dossujeitos protagônicos na sociedade contemporânea.

Pode-se afirmar que, até os anos 60, as classes sociaisforam os sujeitos coletivos protagonistas por excelência,depositando-se, inclusive na classe operária, as expecta-tivas utópicas de transformação societária. O “abaixo aordem” dos anos 60 pré-anunciavam uma deslegitimaçãodos “roteiros de classe”.

O movimento jovem daquela década marcou a intro-dução de novos sujeitos/atores com capacidade de voca-lização e legitimação política. Os movimentos sociaisseguintes – étnicos, de gênero, ecológicos, etc. – deslo-caram para a sociedade civil um papel protagônico narevolução cultural que ocorreu nas últimas décadas.

As organizações não-governamentais (ONGs) são umdesdobramento deste processo. Segmentos da classe mé-dia sem espaço nas estruturas tradicionais de poder – par-tidos, governos, empresas, sindicatos – encontram nasONGs um novo espaço de articulação e protagonismopolítico. E, nesta via, a identidade de classe vai sendosubstituída por outras: a feminista, a étnica e outras,referenciadas em projetos microidentitários fora dos “ro-teiros de classe”.

Desloca-se assim o conflito, tornando opaca a contradi-ção básica capital/trabalho coincidentemente com um mo-mento histórico em que o capitalismo torna-se o modo úni-co planetário de produção. Centra-se o conflito num sujeitojá debilitado politicamente: os estados-nações. A sociedadecivil passa a ser o espaço/sujeito que movimenta uma multi-plicidade e heterogeneidade de projetos parcelares.

AS APOSTAS NAS ORGANIZAÇÕESSOLIDÁRIAS DA SOCIEDADE CIVIL

“A condição política pós-moderna se baseia na aceita-ção da pluralidade de culturas e discursos. O pluralismo(de vários tipos) está implícito na pós-modernidade comoprojeto. O colapso da grande narrativa é um convite dire-

to à coabitação entre várias pequenas narrativas (locais,culturais, étnicas, religiosas, ideológicas).

O desaparecimento ou drástica transformação do co-munismo do leste europeu (que existe apenas em nome)deve-se em grande parte ao enfraquecimento dos roteirosde classe e suas conseqüências teóricas. A mudança dasproporções de significado político dos partidos para osmovimentos (processo que em geral equivale à assimila-ção pelos europeus dos hábitos políticos americanos, umnovo padrão em cujo os termos os movimentos, mais queos partidos, forjam as opções políticas) também resultoudo reduzido papel das classes e estratégias de classe oupelo menos foi bastante facilitada por isso”(Heller e Fehér,1998:16-19).

A sociedade civil, por meio de suas organizações soli-dárias, vem se apresentando como a principal defensorados interesses dos cidadãos, capaz de oferecer respostasem tempos de retração do Estado e da perda do status dotrabalho como vetor de inclusão social.

É interessante notar que a sociedade, da forma como éidealizada, sugere um distanciamento e secundarizaçãodos clássicos atores de defesa de direitos neste século: ossindicatos de trabalhadores, os partidos, o Estado.

Coloca-se esta sociedade civil como ator principal ca-paz de portar novas utopias e restabelecer a res públicaancorada em valores de ética na política, e solidariedadena defesa e atendimento às necessidades dos grupossocietários. Aliás esta busca não é nova; em vários perío-dos da história participou nas lutas por conquista de di-reitos, cumprindo uma função processante da políticapública.

O novo, neste tempo histórico, é que, por meio de or-ganizações solidárias, promete-se reinventar o engajamen-to cívico no interior de sociedades complexas e globais.

Estas organizações da sociedade civil eram mobiliza-das e articuladas por outros atores principais nesta busca:trabalhadores, empresários, partidos, etc.

A diferença na contemporaneidade é que as organiza-ções da sociedade civil postam-se como autônomas e maisbem capacitadas para assegurar antigas e novas conquis-tas. E, nesta direção, invertem relações de complementa-ridade: organizações não-governamentais substituem go-vernos ou se comportam como governos; centrais sindicaise partidos incorporam as lutas das organizações não-go-vernamentais (e, em geral, não o inverso).

Com o ressurgimento do conceito de sociedade civil,suas organizações também ganham maior plasticidade,visibilidade e um novo reconhecimento.

A expressão sociedade civil guarda inúmeras ambigüi-dades e ressurge na atualidade apoiada em referencial teó-rico absolutamente eclético. Reivindica diferenciação emrelação ao Estado e ao mercado, considerando a socieda-

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de política – representada pelos partidos, parlamentos –envolvida diretamente com o poder do Estado e as orga-nizações dos empregadores e de trabalhadores ligadas di-retamente ao poder econômico (Vieira, 1996).

Portanto, a sociedade civil entende-se como autôno-ma a ambos. Centra sua ação na esfera pública tendo comointerlocutor privilegiado o Estado, seja para confrontar,negociar ou complementar.

Os aportes teóricos que buscam explicar ou justificareste modo de conceber as ONGs e o papel da sociedadecivil são, como já dito, ecléticos.

Uma das referências básicas “é a divisão gramscianatripartite entre sociedade civil, Estado e mercado ao mes-mo tempo que preserva aspectos-chaves da crítica mar-xista à sociedade burguesa”. Inclui “ainda a defesa libe-ral dos direitos civis, a pluralidade societária enfatizadapor Hegel, Tocqueville e outros, a solidariedade socialtão cara a Durkheim, e a defesa da esfera pública e daparticipação política acentuada por Habermas e HannaArendt. Desta perspectiva, o fim último das revoluçõesnão é mais a reestruturação do Estado a partir de um novoprincípio, mas a redefinição das relações entre Estado esociedade, do ponto de vista desta última” (Vieira,1996:109).

“O conceito de sociedade civil implica o reconheci-mento de instituições intermediárias entre o indivíduo, porum lado, e o mercado e o Estado, por outro. Estas insti-tuições mediadoras cumprem o papel de ‘institucionali-zação’ de princípios éticos que não podem ser produzi-dos nem pela ação estratégica do mercado, nem peloexercício do poder do Estado. Nesse sentido, a reconstru-ção da solidariedade social na modernidade estaria asso-ciada à idéia de autonomia social” (Avritzer apud Vieira,1996:109).

É, portanto, a esta noção de solidariedade – civil e laica– que as organizações solidárias da sociedade se vincu-lam e encontram legitimidade para reivindicar autonomia:nem Estado, nem mercado.

Esta nova sociedade civil parece encarnar um pragma-tismo utópico não mais ancorado na “grande narrativa”,mas sim nos muitos microdiscursos. Nesta direção é pos-sível observar propósitos na busca de reinstalar valoresessenciais a um salto qualitativo na vida dos cidadãos, taiscomo a solidariedade, a ética, a democratização da políti-ca, a defesa de direitos das minorias e o estabelecimentode condições que desafiam a humanidade, como o meioambiente e o desenvolvimento sustentável.

Este novo modo de pensar e agir da sociedade con-temporânea é resultado e resposta possível no contextoatual marcado por processos de globalização da econo-mia, da informação, da política, da cultura, assim comodos avanços tecnológicos e transformação produtiva que

vêm produzindo uma sociedade complexa e multifaceta-da. Uma sociedade global que mantém seus cidadãos, deum lado, fortemente interconectados e, de outro, extre-mamente vulnerabilizados em seus vínculos relacionaisde inclusão e pertencimento. Integram este cenário a cri-se do Estado de Bem-Estar Social e, com ele, a oferta depolíticas públicas universalistas enquanto reconhecimentode direitos sociais dos cidadãos.

Neste cenário é compreensível a emergência de umasociedade civil tecida por um conjunto aparentementecaótico de organizações autodeterminadas a produzirem,elas próprias, respostas às demandas dos grupos que re-presentam, ou a serem os canais de vocalização destasmesmas demandas na esfera pública.

Esta sociedade fragmentada, multifacetada, buscandoela própria novos canais de vocalização de suas deman-das na esfera pública, secundariza os canais tradicionaisde representação e mediação dos interesses coletivos (par-tidos, parlamentos, sindicatos). E, nas novas condições,gesta novos modos de processar e fazer política.

Correndo em artérias globais, as organizações da so-ciedade civil pressionam (não sem contradições) institui-ções políticas mundiais, objetivando assegurar conquis-tas civilizatórias em nível planetário. É neste veio queemergem os movimentos/atores de defesa ecológica, dedefesa de minorias, de defesa dos consumidores, entreoutros, que expressam características pluralistas, porém,fragmentadas e particularistas, próprias da sociedade con-temporânea.

É com estas características que as organizações da so-ciedade civil articulam-se em redes locais, regionais, na-cionais e mundiais, assumindo papel fundamental na cons-tituição de solidariedades intermédias e mantendo o fluxoglobal/local e local/global (Santos, 1996).

Neste fluxo, à política é reivindicado assumir uma pers-pectiva cada vez mais global – a perspectiva da Humani-dade –, exercendo-se, entretanto, num espaço cada vezmais local (Franco, 1995).

“O espaço onde se exerce a política da Contempora-neidade é um espaço local, regido porém por uma pers-pectiva global – não internacional mas planetária, comoé hoje a perspectiva da Humanidade. Este espaço de co-munidade é um espaço ético-político; quer dizer, um es-paço local onde as relações políticas são reguladas poridéias-valores que decorrem da perspectiva global de cons-tituição de humanidade. Isso só se torna possível quandose atribui finalidade tópica à política. Ou, seja, quando sepode dizer: ‘fazer política para...’(que um determinadoconjunto de seres humanos concretos, de pessoas, tenhamais vida, mais liberdade e menos sofrimento). Ora, quan-do a perspectiva de constituição da Humanidade (futura)se traduz na construção de mais humanidade (no presen-

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te), totalidade e finalidade coincidem e a política torna-se permeável à ética, torna-se eticizável. A HumanidadeGlobal vai, assim, sendo construída pelo desenvolvimen-to das relações ético-políticas que só podem se exercernos espaços de Ação Local. Planeta e Pessoa constituemelementos necessários nessa combinação que gera a rela-ção ético-política.

Sem a dimensão planetária que universaliza os parti-cularismos ampliando o sujeito político do grupo socialou do Estado-Nação para o conjunto da humanidade e sema dimensão pessoal que foca o objeto político (ou da açãopolítica) na vida humana de indivíduos concretos, que sópodem ser encontrados como tais num local determina-do, não pode haver política” (Franco, 1995:119-120).

Há nesta direção uma aposta com tons mitificados so-bre o papel das organizações da sociedade civil.

“A proliferação das organizações da sociedade civilpode chegar a ser, ultrapassando as suas velhas origens, amaior inovação do século XXI” (Thompson, 1997:41).

“O resultado é uma verdadeira ‘revolução associacionalglobal’, a multiplicação da atividade organizada, privadae voluntária que, segundo acredito, poderá revelar-se umaspecto tão importante do final do século XX quanto oadvento do Estado-Nação o foi do final do século XIX”(Salamon, 1997:91).

“...as fundações nos parecem uma das maiores reser-vas de liberdade, de pluralidade e de diversidade porquesão uma das mais fecundas possibilidades de equilíbrioentre as iniciativas sociais e as necessárias limitações doEstado. É da minha opinião, o tema mais apaixonante denossos dias: a nova concepção das relações entre o Esta-do e a Sociedade” (Miera, 1997:62).

“O terceiro setor não se caracteriza, evidentemente, porinvestimentos intensivos de capital. Distingue-se ao con-trário pelo uso intensivo do trabalho, apelando para a suacriatividade e para a sua dimensão voluntária” (Fernandes,1997:32).

“É função do terceiro setor contribuir criando condi-ções para tornar possível a democracia cultural. Isso sig-nifica criar condições para que todos os diferentes senti-dos e símbolos da diversidade social possam competir ecircular em igualdade de condições” (Toro, 1997:36).

“É a expansão da esfera pública pela atividade cida-dã” (Fernandes apud Wanderley, 1997:100).

“...a emergência das organizações não governamentais,dotadas de uma diversidade notável, que vem ganhandoimportância não só por articularem iniciativas múltiplasem vários planos da sociedade civil, como também porcombinarem formas relevantes de associação com o Es-tado nas gestões de governos municipais, estaduais e fe-deral, inclusive participando de redes continentais e mun-diais, e que constituem grupos de pressão de grande

alcance. Não isentas também de muitas ambigüidades es-tão trazendo subsídios preciosos para a esperada publici-zação ao prestarem serviços públicos relevantes e porgestarem formas inovadoras de parceria com os poderespúblicos” (Wanderley, 1997:101).

Esta última afirmação de Wanderley sinaliza para aque-les atributos mais valorizados no comportamento destasorganizações:- capacidade de articularem iniciativas múltiplas revita-lizando o envolvimento militante de setores da sociedadecivil;

- capacidade de estabelecerem parceria com o Estado nagestão de programas e políticas públicas;

- capacidade de estabelecerem redes locais, nacionais oumundiais e, por meio delas, não apenas constituírem gru-pos de pressão, mas também manterem dessa forma vi-vos os movimentos sociais e a reatualização de suas pau-tas de lutas.

A DIVERSIDADE E PLURALIDADE DEPROPÓSITOS DAS ORGANIZAÇÕESSOLIDÁRIAS

Independente das motivações atuais, é importante as-sinalar que a sociedade civil historicamente produziu for-mas associativas para atuar na esfera pública, seja em nomeda reciprocidade, filantropia, caridade ou compaixão paracom os pobres.

Assim, recobre latu sensu uma infinidade de associa-ções díspares que assumem propostas conservadoras ouprogressistas. São multifacetadas, pinçando problemas enecessidades específicas ou elegendo clientelas locais,nacionais, supranacionais. Algumas se mantêm como bra-ços doutrinários de Igrejas; outras, do empresariado; ou-tras, braços solidários da própria comunidade e, as maisrecentes, se reconhecem como braços das minorias ou dahumanidade. Congregam deste modo uma variedade deentidades sem fins lucrativos, valendo aqui destacar al-gumas de suas principais diferenças.

Entidades Comunitárias

Possuem uma relação tal de pertencimento com oshabitantes de seu microterritório, que as ações por elasdesenvolvidas tomam quase sempre a característica de umaproteção/desenvolvimento mutualista. Regem-se peloprincípio da reciprocidade.

Estas entidades têm pouca visibilidade, já que seuâmbito de ação é restrito ao microlocal. São múltiplas eespecíficas suas motivações, porém sua característicabásica é a de prestarem serviços de proximidade, condu-

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zidos, em geral, por grupos voluntários, sustentados compoucos recursos financeiros. São estas, por excelência, quemovimentam os espaços comunicativos primários e asredes espontâneas de sociabilidade.

“Os espaços de comunicação interpessoal ancoradosnos locais de moradia apresentam níveis variados de com-plexidade. (...) A estrutura organizacional mais elabora-da, contudo, corresponde àquela apresentada pelos gru-pos especializados funcionalmente e dotados de algumainstitucionalidade (encontros regulares com pauta prede-finida, etc.), que vão desde os clubes de mães e os gruposde jovens, abrigados no âmbito das atividades paro-quiais, até as associações de moradores e outros grupos,de emergência mais recente, dedicados ao tratamento dequestões temáticas específicas (grupos de mulheres, co-missões de saúde e de educação formadas nos bairros,etc.)” (Costa, 1997:129).

Este agrupamento de organizações é hoje revalorizadopelo potencial que apresenta na proteção social dos indi-víduos e na inclusão dos mesmos em redes de sociabili-dade primária. Cumprem papel importante no fortaleci-mento de vínculos relacionais e de pertencimento –problemáticas essas que estão na ordem do dia, resultan-tes seja do crescente individualismo produtor de isolamen-to social, seja da transformação produtiva redutora daspossibilidades de inserção no mundo do trabalho, via pri-vilegiada de integração social.

Entidades Filantrópicas

Em geral, atuam na prestação de serviços assistenciaisdestinados aos segmentos mais vulneráveis da população(idosos, pessoas portadoras de deficiência, famílias emextrema pobreza, etc.) ou ainda na prestação de serviçosde educação, saúde, cultura. Integram este conjunto asfundações empresariais como financiadoras ou promoto-ras diretas destes serviços. Este agrupamento de organi-zações rege-se pelo princípio da filantropia.

Entidades Ligadas a Diversas Igrejas

Com variadas ações progressistas ou conservadoras,estas entidades são orientadas pelo princípio da caridadee da compaixão. Também concentram-se na prestação deserviços assistenciais, de educação e saúde.

É importante assinalar que estes dois últimos agrupa-mentos de organizações guardam, no seu conjunto, hete-rogeneidades quanto ao seu fazer social. Uma parte sig-nificativa delas se constituem como verdadeiras empresasmuito próximas da produção de serviços via mercado.

Algumas destas (uma minoria) prestam serviços comvistas ao lucro, mantendo uma parte não lucrativa, o que

faz desconfiar da intenção do uso das vantagens do título“sem fins lucrativos” para obtenção de isenções fiscaisnão negligenciáveis.

Salamon (1997:94) afirma que, em termos de serviços,o setor sem fins lucrativos é uma presença significativa econstante, responsável por:- três em cada quatro matrículas universitárias no Japão;

- mais da metade dos serviços de residência em clínicasparticulares na França;

- metade dos leitos hospitalares nos Estados Unidos;

- um terço dos serviços de assistência diária na Alema-nha.

As organizações filantrópicas e as de cunho religiososão as que possuem maior tradição na realização de con-vênios ou contratos com agências governamentais paraprestação de serviços sociais públicos.

Entidades Voltadas ao Fortalecimento da Cidadaniae à Defesa das Minorias

São a estas últimas que stritu sensu se atribuem, emgeral, o nome de organizações não-governamentais(ONGs), marcando diferenças com as demais entidadessem fins lucrativos. Regem-se pelo princípio da solidarie-dade.

Este último agrupamento caracteriza-se por ações demultiple advocacy, e de empowerment voltadas, em ge-ral, para as minorias (étnicas, de gênero, ou faixa etária).Incluem-se aqui igualmente ações dirigidas à defesa domeio ambiente e do desenvolvimento sustentável. É este,em geral, um campo de ação fortemente articulado emredes locais, regionais, nacionais e supranacionais. Esteterceiro agrupamento opera com características quasegovernamentais ou mesmo substituindo os governos.Determinam significativamente a agenda pública das na-ções em estreita articulação com organizações das NaçõesUnidas/ONU.

Esta última afirmação é suficientemente exemplifica-da pelo desempenho/comportamento político dos fórunsde ONGs que acompanharam e acompanham as confe-rências das Nações Unidas na presente década.

O termo “ONG” foi cunhado pela Organização dasNações Unidas (ONU) já na década de 40 para designarentidades da sociedade executoras de projetos humanitá-rios ou de interesse público transnacional. As ONGs ex-pandem-se nas décadas de 60 e 70 nos países desenvolvi-dos para agirem no chamado Terceiro Mundo. Expressam,na sua origem, o compromisso humanitário dos paísesricos para com os países pobres. No seu desdobramento,geraram ONGs locais nos países onde atuavam, introdu-zindo o início das modernas redes de cunho global.

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Como analisa Santos (1995), o acirramento dos pro-cessos de globalização produz, em contrapartida, o acir-ramento dos processos de localização. As ONGs expres-sam nas suas novas dinâmicas este fluxo de dupla mão:local/global e global/local. Embora enraizadas no local,elas mantêm vínculos globais de tal sorte que uma pro-blemática local, como por exemplo, a chacina da Cande-lária/meninos de rua ou a morte de um “sem terra”, temimediata ressonância a nível mundial, articulando um fluxode pressões e solidariedades internacionais.

Neste fluxo de dupla mão local/global, as organizaçõesda sociedade civil se permitem desconsiderar leis e pa-drões culturais dos países onde atuam em nome da huma-nidade. É este comportamento que gera maior resistên-cia, seja por tensionar o instituído, seja por desrespeitar omulticulturalismo por elas valorizado.

AS BASES DE SUSTENTAÇÃO ELEGITIMAÇÃO DO TERCEIRO SETOR

Um dos pilares de sustentação e legitimidade das or-ganizações da sociedade civil encontra-se nas próprias mo-tivações do indivíduo enquanto sujeito social. Isto é, dese auto-objetivar por meio de ações voltadas ao bem co-mum e de engajamento cívico na esfera pública. O com-promisso ético político e a solidariedade são valoresenergizantes da vida do cidadão e também da vida públi-ca.

Outro pilar de sustentação e legitimidade dessas orga-nizações vem do próprio Estado. A concessão na presta-ção de serviços sociais de utilidade pública, ou a publici-zação de atividades não exclusivas do Estado, é motor semdúvida de expansão do terceiro setor. O Welfare State emmuitos países já combinava serviços estatais com servi-ços prestados por entidades sem fins lucrativos ouconfessionais, especialmente no campo da saúde, educa-ção e assistência social.

Mas há um outro motor/pilar presente nas últimas dé-cadas: o incentivo das organizações multilaterais e degovernos ou fundações dos países do norte na constitui-ção das novas organizações da sociedade civil. De fato,desde o final da década de 70, tanto organizações multi-laterais quanto governos dos países do norte já incentiva-vam a expansão e o fortalecimento de organizações soli-dárias da sociedade civil, desacreditando da competência/eficácia dos governos do chamado Terceiro Mundo, noenfrentamento da questão social. Estavam aí colocadosinteresses de, no plano da global governance, criar con-dições de governabilidade que passavam, algumas delas,pelo fortalecimento das organizações da sociedade civil.

A crise do Welfare State, o déficit público e os ajustesfiscais impulsionaram a chamada reforma do Estado e a

necessária parceria com a sociedade civil, para ofertarserviços de direito dos cidadãos. Assim, um dos fatoresrecentes na consolidação da presença política das organi-zações solidárias da sociedade civil é, sem dúvida, a mu-tação dos padrões de governança e governabilidade exis-tentes antes da crise.

Os processos de globalização e a intensificação da com-petitividade introduzem novas compressões para as na-ções (queda nas taxas de crescimento, desemprego, défi-cit público, pressões internacionais por ajustes fiscais,liberalização dos mercados, desregulamentação estatal,etc.), que desmontam/balançam os padrões na oferta debens e serviços assegurados nas chamadas décadas glo-riosas do pós-guerra.

Há uma nova interdependência que fragiliza o conhe-cido modelo institucional que é o do Estado-Nação, tor-nando quase compulsórios e consensuais um movimentoexterno, em direção à formação e à integração em blocoseconômicos, e um movimento interno, de descentraliza-ção, flexibilização e fortalecimento da sociedade civil paracompor um novo pacto e condições de governabilidade.

Neste novo cenário global, organizações supranacio-nais, como as Nações Unidas, Banco Mundial e FundoMonetário Internacional, ampliam seu poder na defini-ção da agenda de prioridades políticas dos diversos paí-ses.

Assim, estas organizações ganham maior visibilidadee, em certa medida, maior legitimidade a partir de víncu-los mais estreitos tecidos com as organizações da socie-dade civil. Por outro lado, para estas últimas, o apoio dasorganizações das Nações Unidas, por exemplo, tambémrepresenta sua legitimação política, tanto no âmbito glo-bal quanto no local.

“Hay áreas en las cuales, con conocimiento de losgobiernos, el BID actúa más directamente vinculado conlos actores sociales. Hemos venido logrando un mandatode los gobiernos para estrechar esta relación com losactores sociales. De a poco, en América Latina tiende areproducirse el fenómeno europeo de una granparticipación de las organizaciones no gubernamentalesen la administración y ejecuación del gasto social. No esfácil, claro, operar en la intersección de la sociedad civily los Estados” (Iglesias, 1996:9).

Vale lembrar as conferências1 protagonizadas pelaONU na presente década, com a expressiva participaçãodas chamadas organizações não-governamentais.

É ilustrativo descrever alguns processos que movi-mentam este círculo virtuoso de parceria entre ONGs eorganizações das Nações Unidas. Para ratificar e im-plementar, por exemplo, a Convenção das Nações Uni-das sobre os Direitos da Criança e do Adolescente(1989), ONGs com liderança em diversos países foram

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mobilizadas e sensibilizadas a partir de diversos encon-tros internacionais apoiados ou promovidos peloUnicef. Numa seqüência de processos e ações impul-sionadoras e convergentes, realizou-se em 1990 o En-contro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado nasede das Nações Unidas, quando 71 presidentes e che-fes de Estado, além de representantes de 80 países, as-sinaram a Declaração Mundial sobre Sobrevivência,Proteção e Desenvolvimento da Criança. Adotaram pla-no de ação para a década de 90, assumindo o compro-misso de implementar de imediato a Convenção dasNações Unidas sobre os Direitos da Criança. Coube àsONGs mobilizadas, de certo modo, sensibilizar gover-nos e sociedades, à qual pertenciam, para introduzir nocampo legal e político o novo paradigma de proteção aeste grupo etário, como ocorreu no Brasil, no mesmoperíodo.

ALGUMAS QUESTÕES FINAIS QUEPERMANECEM NA AGENDA

Fica Claro que o Chamado Terceiro Setor Ganha Enor-me Relevância no Novo Arranjo e Gestão da PolíticaSocial. Este Novo Arranjo Está Ancorado na ParceriaEstado, Sociedade Civil e Iniciativa Privada – Nestesentido, está na ordem do dia o que se denomina WelfareMix, que promove uma combinação de recursos e de meiosmobilizáveis junto ao Estado, mercado, iniciativas das or-ganizações da sociedade sem fins lucrativos e, ainda, aque-les derivados das micro-solidariedades originárias na fa-mília, nas Igrejas, no local (Martin, 1995 e Evers, 1993),de modo que as políticas sociais se apresentam hoje comoresponsabilidades partilhadas. É por isso que se indagaaté que ponto o protagonismo da sociedade civil é real ouinduzido.

A Reflexão sobre o Terceiro Setor Não Está Descola-da da Reflexão sobre os Projetos de Reforma do Esta-do – Tais projetos mantêm na pauta política a tensão en-tre eficiência e eqüidade. É que os processos de priva-tização e de publicização de atividades não exclusivas doEstado prometem maior eficiência no gasto público, po-rém não asseguram eqüidade. As empresas estatais pri-vatizadas lograram, na maioria dos casos (e na maio-ria dos países), maior eficiência operacional, porémmantém-se o desafio de garantir que essas vantagens che-guem com menor custo e maior qualidade ao cidadão con-sumidor. Na publicização de atividades não exclusivas doEstado – campo privilegiado de envolvimento do tercei-ro setor – também há riscos. O principal risco é exata-mente a privatização das atividades sociais do Estado.

“Em verdade, quando se trata de transferir a res públi-ca para a gestão da iniciativa privada, o controle tem queser constante, eficaz e, porque não dizer, formal, pelomenos até que se estruture outra forma de controle emsubstituição, especialmente quando a res pública vai serutilizada para o desempenho de atividades não lucrativas,como as da área social, já que aí o controle de resultado émuito mais difícil do que quando se trata de atividade denatureza econômica, passível de ser avaliada segundocritérios mais objetivos” (Di Pietro, 1998).

As Organizações que Compõem o Terceiro Setor Res-surgem na Esteira da Crise do Welfare State Mais ComoPreenchedoras de Vazios que Portadoras de Um NovoProjeto – “(...) é grande o risco de o terceiro setor serchamado a ressurgir, não pelo mérito próprio dos valoresque subjazem ao princípio da comunidade – cooperação,solidariedade, participação, eqüidade, transparência, de-mocracia interna –, mas para atuar como amortecedor dastensões produzidas pelos conflitos políticos decorrentesdo ataque neoliberal às conquistas políticas dos setoresprogressistas e populares obtidas no período anterior. Seeste for o caso, o terceiro setor converte-se rapidamentena ‘solução’ de um problema irresolúvel e o mito do ter-ceiro setor terá o mesmo destino que teve anteriormenteo mito do Estado e, antes deste, o mito do mercado. Estaadvertência, longe de minimizar as potencialidades doterceiro setor na construção de uma regulação social epolítica mais solidária e participativa, visa apenas signi-ficar que as oportunidades que se nos deparam neste do-mínio acontecem num contexto de grandes riscos” (San-tos, 1998).

As Organizações da Sociedade Civil Incorporaram emSeu Fazer Social e Político a Noção de Redes e Parce-rias, o Que as Tornam Fortemente Articuladas, Man-tendo Vínculos Locais, Regionais, Nacionais e Mundiais– A constituição de redes garante uma enorme visibilida-de ao chamado protagonismo da sociedade civil. Para alémda possibilidade de exercer pressão, elas criam um círcu-lo virtuoso: os movimentos sociais nascem, se fortalecem,cumprem sua função instituinte, desdobram-se em ONGsque, articuladas em redes, re-criam os movimentos sociaisem novas bases, isto é, com maior institucionalidade etransnacionais.

Estas observações deixam claro a impossibilidade derefletir sobre o terceiro setor desconectado da reflexão deum certo modo de conceber o comportamento e práticapolítica da sociedade civil contemporânea. E é esta cone-xão que precisa ser apreendida no discurso que referenciao protagonismo da sociedade civil pela via do terceirosetor.

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As Organizações sem Fins Lucrativos GanhamMaior Flexibilidade e São Pró-Ativas na Constru-ção de Parcerias com Governos, Iniciativa PrivadaMercantil, Movimentos Sociais, Além de Organiza-ções Multilaterais ou Supranacionais – Nesta dire-ção, o terceiro setor caminha para uma maior institu-cionalidade, reforçando suas duas grandes tendências:a primeira é a de ampliar e consolidar o espaço de pres-tação de serviços sociais “terceirizados ou publi-cizados” pelo Estado, operando, porém, num patamarmuito próximo às regras ditadas pelo mercado; a outratendência é a de ganhar e consolidar espaço na defesade direitos e ações de multiple advocacy, operando emescala local/global, articulado em redes ancoradas emprocessos de mobilização social tendo como pontos dereferência/confrontação/parceria as agências multila-terais e o Estado.

As fundações empresariais mais recentes apresentamestas duas tendências atuando, inclusive, menos como fi-nanciadoras de outras organizações e mais, elas próprias,na promoção direta de serviços ou na defesa de direitos.Buscam no terceiro setor marcar seu compromisso social,ao mesmo tempo em que o usam enquanto marketing deseus negócios. Também aqui há uma conexão a ser refle-tida: o mercado, as empresas e o social.

O social enquanto negócio tem para o mercado duplaimportância, pois é mercadoria lucrativa e o melhor ins-trumento de marketing para seduzir o atual consumidor.Os consumidores estão mais exigentes com a qualidadedos produtos e, ao mesmo tempo, mais sensíveis e pro-pensos a consumir produtos e marcas de empresas quedefendam o meio ambiente, a ecologia e os direitos hu-manos.

Por outro lado, as transformações produtivas induto-ras de desemprego e uma pobreza persistente podem de-sestabilizar o mercado, o que compele seus agentes a umcompromisso com o social pela mediação do terceiro se-tor. Esta mediação torna leve este compromisso, introdu-zindo o mercado (entidade abstrata) pelas mãos das fun-dações empresariais, via terceiro setor, em parceiro dasociedade civil e, mais que isso, o confundindo com aprópria sociedade civil.

Embora Cercada de Visibilidade, Legitimidade e Re-conhecimento, as Organizações Solidárias da SociedadeCivil não Deixam de Produzir Resistências – Reivindi-cam autonomia de expressão e ação, porém não assumemno geral o compromisso com a transparência e o deverético de prestação de contas de suas ações públicas. Pro-duzem ações inovadoras, porém com baixa capacidade dealteração da qualidade de vida daqueles para os quaisdestinam suas ações.

No fluxo de ações e relações local/global estas organi-zações “podem estar arrogantemente desautorizando asleis de seus próprios países” ou ainda, arrogantementeimpondo valores e projetos a outros países. Enfim abu-sam da prerrogativa de ingerência internacional; “sãojacobinas, pois julgam ter o direito de impor suas pró-prias concepções a sociedade que mal conhecem. Sãomonotemáticas e por isto têm dificuldades em admitiroutros pontos de vista ou outras dimensões de um pro-blema...” (Albuquerque, 1995). Podem ser também gru-pos de interesse. Apropriam-se privadamente de fundospúblicos. Além disso, mantêm uma permanente tensão:são uma nova força neoliberal ou um novo modo de en-gajamento cívico progressista.

As Organizações Solidárias da Sociedade Civil, Cha-madas de Terceiro Setor, Ganham Consenso Quantoao Que Representam na Busca de Enfrentamento daQuestão Social Contemporânea:- capacidade de mobilização social. “Entre 1975 e 1985,houve um aumento de 1.400% de assistência ao desen-volvimento canalizada para as ONGs (Fowler, 1991:55in Adams 5). No Nepal as ONGs aumentaram de 220 em1990 para 1.210 em 1993, enquanto na Tunísia cresce-ram de 1.886 em 1988 para 5.186 em 1991 (Hume eEdwards, 1997:4). No Quênia, as ONGs controlam entre30% e 40% das despesas de desenvolvimento e 40% dasdespesas de saúde (Ndegwa, 1994:23). Em Moçambique,os programas de emergência, a ajuda humanitária e ou-tras atividades de desenvolvimento estão em larguíssimamedida a cargo de ONGs internacionais que atuam emarticulação com ONGs nacionais, as quais em 1996 eramem número de 164 (Santos, 1998).

- possibilidade de oferta de postos de trabalho é igual-mente atividade solidária para os “fora” do trabalho. Umapesquisa em realização pelo Instituto de Políticas da Uni-versidade John Hopkings (Estados Unidos), que investi-ga o terceiro setor em vários países, concluiu que em setedeles (Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha,Itália, Hungria e Japão), o terceiro setor possuía em 1990um total de cerca de 12 milhões de empregados com pa-gamento equivalente a tempo integral, mais 5 milhões devoluntários. Isso significa que um em cada 20 emprega-dos e um em cada dez prestadores de serviços estão lotadosno setor sem fins lucrativos naqueles países. (...) Em com-paração com os 6,8% do emprego total nos Estados Uni-dos, o setor sem fins lucrativos representa nada menosque 4% na França, Alemanha e Reino Unido. Em termosabsolutos, o Japão possuía o segundo maior setor sem finslucrativos do mundo. Se for incluído o emprego voluntá-rio e não apenas o remunerado, a Suécia, exemplo clássi-co de vocação social, supera todos os outros países euro-

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peus (Salamon, 1997:94). A reflexão sobre estes dados ea expansão do terceiro setor nos últimos anos sinalizampara a importância do mesmo na geração de empregosassim como na geração da “plena” atividade;

- restabelecimento da res pública ancorada em valo-res de ética na política e solidariedade na defesa e aten-dimento às necessidades dos grupos societários. “Pode-se crit icar seriamente as estratégias de váriosmovimentos, e na verdade criticamos determinadosmovimentos pelo que julgamos suas ilusões políticas.Contudo, fechar os olhos para o papel constitutivo de-les nas mudanças sócio-políticas e culturais do pano-rama político no pós-Segunda Guerra Mundial é per-manecer indiferente ao ineditismo da condição políticapós-moderna” (Heller e Fehér, 1998:26).

Não há dúvida sobre o importante papel que vêm cum-prindo os movimentos sociais e organizações solidáriasda sociedade civil na constituição de canais de escuta evocalização de demandas societárias, assim como a con-dição que mantêm de inscrever na agenda pública estasmesmas demandas. Mesmo que movimentando-se de for-ma fragmentada, estas organizações apoiadas emmicrodiscursos e em microinteresses, repõem um olharsobre a humanidade.

É preciso observar, no entanto, que esta sociedade ci-vil e, em particular, as ONGs parecem representar maisas minorias organizadas e menos as maiorias desorgani-zadas que se mantêm como desafio nas sociedades atuais.

As questões aqui arroladas continuam em pauta noestudo e monitoramento das tendências quanto ao papel/comportamento do terceiro setor e sua condição de me-diação no protagonismo da sociedade civil.

NOTA

1. Entre outras, Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Tailândia,1990); Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente/ECO 92 (Rio de Janeiro);Ano Internacional da Família e Conferência Mundial sobre População e Desen-volvimento (Cairo, 1994); Conferência de Cúpula sobre Desenvolvimento So-cial (Copenhague, 1995); IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995)e Habitat II (Istambul, 1996).

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A

A COORDENAÇÃO, A ARGUMENTAÇÃO E ACOMUNICAÇÃO DAS ESTATÍSTICAS

vértices de um mesmo triângulo

Querer persuadir um auditor [ouvinte] significa, antes de mais,reconhecer-lhe as capacidades e as qualidades de um ser com o

qual a comunicação é possível e, em seguida, renunciar a dar-lheordens que exprimam uma simples relação de força, mas sim

procurar ganhar a sua adesão intelectual.

Perelman, 1987:235

recuperar e valorizar a idéia de razoável que emerge daargumentação.

Ora, comunicar as estatísticas, apresentando-as comoconstruções que se dão tanto no plano da demonstra-ção quanto no da argumentação, seria relativizá-las emsua importância, uma vez que se estaria apresentando-as em suas limitações, o que pontualmente enfraque-ceria suas muitas possibilidades. Contudo, escondersuas limitações indefinidamente seria, mais cedo oumais tarde, desacreditar suas possibilidades, seria fazê-las passar pelo que não são, seria deificá-las. Assim, énecessário pensar na comunicação das estatísticas sem-pre em dois tempos, ou seja, de alguma forma, em al-gum contexto especial, para além da comunicação deresultados, deve-se comunicar também a significaçãoverdadeira das estatísticas, despindo-as de fantasias, oque implica recuperar a importância da argumentaçãoque se faz presente em seus laboriosos processos pro-dutivos.

A solução poderia estar na implantação de uma efe-tiva coordenação, pela qual procurar-se-ia superar otemor mesmo à mais tênue dependência sociopolíticae o desejo a uma sempre maior independência técnico-científica, empenhando-se em promover uma interde-pendência entre essas que são as duas faces das esta-tísticas. Segundo, além de se valorizar o plano dademonstração, certamente importante na produção dasestatísticas, dar-se-ia crescente dignificação ao planoda argumentação, completando, dessa forma, o processode comunicação das estatísticas. Em outras palavras,estar-se-ia revelando não apenas o contexto da justifi-cação, mas também o da descoberta, mostrando-se porinteiro, no tempo certo, a natureza construtivista ine-rente às estatísticas.

NELSON DE CASTRO SENRA

Pesquisador e Professor no IBGE, Professor na Universidade Santa Úrsula

s estatísticas expressam, na linguagem univer-sal dos números, múltiplos organizados, contri-buindo distintamente para tornar o mundo

ausente e distante, desconhecido, pensável et pour causegovernável, portanto as estatísticas apresentam-se, ao mes-mo tempo, como instrumentos de saber e de poder.

Ao poder, as estatísticas interessam enquanto promes-sa de tornar racionais as tomadas de decisão, na razão exataem que se releva sua dimensão técnico-científica; aos espí-ritos sagazes fica a certeza de que a força das estatísticas resideexatamente em reforçar-lhes a dimensão técnico-científi-ca, protegendo-as de influências indevidas. Porém, nadefinição da demanda das estatísticas, um destaque à suadimensão sociopolítica é absolutamente legítimo, caben-do ajustá-la à oferta sem contudo invadir-lhe o espaçopróprio.

Entretanto, mesmo que se fixe a atenção na dimensãotécnico-científica das estatísticas, não há como ignorar queelas resultam de laboriosos processos de construção, acomeçar pela realidade de não serem os números intrín-secos aos objetos. Não é possível dizer que os processosde produção das estatísticas se revelam apenas no planoda demonstração, muito se dando no plano da argumen-tação, o que de certa forma reduz sua força racional comodesejada pelas diferentes instâncias de poder, restando

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A COORDENAÇÃO, A ARGUMENTAÇÃO E A COMUNICAÇÃO...

A NATUREZA DAS ESTATÍSTICAS

Em termos de demanda, as estatísticas interessam atodos que transitam no e/ou sobre o múltiplo, não fossemas estatísticas exatamente expressões numéricas de múl-tiplos organizados. Assim, as estatísticas se oferecem àação dos que governam, entendendo-se por governar acapacidade que alguns têm de agir sobre outros, o que decerta forma todos temos, ainda que diferentemente. Ogovernar dos Estados constitui-se na mais marcante for-ma de governo, razão pela qual os Estados são os maio-res consumidores e mesmo os maiores produtores de es-tatísticas. Enfim, com as estatísticas procura-se fazer comque as ações públicas sejam racionais, basicamente im-pessoais. Poder-se-ia dizer que com as estatísticas procu-ra-se despolitizar a política, razão pela qual elas devemestar o mais possível ancoradas no plano técnico-cientí-fico; deseja-se, numa palavra, objetividade.

Em termos de oferta, as estatísticas resultam de laborio-sos processos de objetivação, o que pode ser entendido comoa objetividade possível, transpondo-se sucessivamente asinscrições e as descrições de primeira ordem (os registrosindividuais, propriamente ditos) até alcançar as inscrições eas descrições de enésima ordem (as estatísticas, propriamenteditas), pautando-se em alguma equivalência prede-finida e ancorando-se em alguma teoria cuidadosamente es-colhida. Então, os múltiplos organizados não revelam omundo, mas sim o constroem, ou seja, a comensurabilidadenão é intrínseca aos objetos, sendo uma qualidade atribuídaa eles pelo observador, vale dizer, as escolhas feitas influemnos resultados finais. Assim, sobre todo o processo de obje-tivação paira uma incômoda qualidade, por melhor que se-jam os métodos disponíveis, razão pela qual se valoriza tan-to o plano técnico-científico.

Então, de um lado, operando no plano técnico-cientí-fico como uma arte de calcular, as estatísticas superam asindividualidades, sendo natural que os ofertantes esfor-cem-se por diminuir a importância da sua dimensão so-ciopolítica, de outro lado, operando-se no plano sócio-político como uma arte de governar, as estatísticaspromovem as individualizações, sendo natural que osdemandantes esforcem-se por aumentar a importância dasua dimensão técnico-científica. Destarte, a dimensãosociopolítica será a perdedora e a dimensão técnico-cien-tífica será a ganhadora, resultando num desequilíbrio pre-judicial ao correto entendimento das estatísticas, sem fa-lar que, no que tange à dimensão técnico-científica,maximiza-se o plano da demonstração e minimiza-se oplano da argumentação nos quais ela opera, perdendo-sede vista o fato de que suas possibilidades vicejam em meioa limitações, ensejando-se desnecessários descontenta-mentos e desentendimentos.

A ORGANIZAÇÃO DAS ESTATÍSTICAS

Entre a demanda desejável e a oferta possível de esta-tísticas públicas, referidas tanto ao espaço nacional quantoaos intranacionais, há uma patente distância a ser vencidacuidadosamente, o que desde sempre exigiu um processode coordenação, sob pena de não se poder dispô-las comoum conjunto organizado.

A esse conjunto de estatísticas habituou-se a chamarde Sistema Estatístico Nacional, cuja possibilidade deconcretização costuma ser objeto de muitas controvér-sias acadêmicas, com a maioria dos estudiosos afirman-do que o mesmo, na falta de uma teoria geral da socieda-de, não passaria de uma virtualidade. Afiança-se que sóseria possível realizar algumas de suas partes, aquelas quepudessem contar com esquemas teóricos amplamente co-nhecidos e reconhecidos, sendo o caso das estatísticas eco-nômicas o exemplo mais completo, pois estariam ampa-radas no marco referencial da economia política e/ou dateoria econômica (e mais, as estatísticas sociais, na faltade um esquema teórico abrangente, seriam as menos aca-badas.

O pleno entendimento do Sistema Estatístico Nacio-nal implica lançar-lhe um duplo olhar: de um lado, sobresua vertente social, referindo-se às relações sociais entreas agências públicas, as agências privadas, os especialis-tas e os informantes, as organizações internacionais, en-fim, todos os atores envolvidos nas diferentes etapas doprocesso de pesquisa estatística; de outro lado, sobre suavertente cognitiva, referindo-se às informações propria-mente ditas, incluindo a escolha de cuidadosos princípiosde equivalência, os pressupostos acerca da realidade, asfronteiras do conhecimento, os sistemas de classificação,os métodos de investigação, as regras de mensuração ede interpretação de resultados.

Assim sendo, tratando-se em conjunto as duas ver-tentes referidas, subverte-se a prática dos cientistassociais que costumam utilizar as estatísticas como meiode análise e raramente como objeto de análise. Quan-do o fazem, querem saber se, ou em mostrar como, osprocessos técnico-científicos sofreram influências denatureza sociopolítica afetando os resultados finais,querem saber se eventuais distorções podem ser igno-radas ou como devem ser compensadas. Raramente sepreocupam em contribuir para a melhoria das estatísti-cas; se o fazem, costumam centrar atenção sobre umou outro aspecto particular do processo de pesquisasegundo a sua área de atuação – por exemplo, os aca-dêmicos voltam-se apenas à análise dos métodos depesquisa, quando não mesmo apenas dos métodos deuma ou outra pesquisa temática, jamais preocupando-se com o todo.

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Então, claro, há que se estudar todos esses elementos,pondo-se em conjunção as estatísticas nacionais (aí in-clusas as estatísticas intranacionais). Contudo, não pare-ce necessário declarar o resultado final como um siste-ma; na verdade, no que tange às estatísticas, falar emsistema costuma trazer mais desvantagens do que vanta-gens, pois acaba esvaziando aspectos muito mais relevan-tes. Dessa forma, é melhor simplesmente falar em Esta-tística Nacional, tomando a expressão como uma cole-tividade submetida a uma ordem não fortuita de elemen-tos que se quer necessariamente solidários, coletividadeessa construída não no sentido sistêmico, norteado por umateoria geral da sociedade, mas antes como o resultado deintensa argumentação no âmbito de um auditório adequa-do, pautando-se sempre em algum esquema classificató-rio cuidadosamente desenvolvido através de ajustes e re-ajustes mais e mais afinados e refinados no tempo e noespaço.

Isso posto, deve-se entender a coordenação como aatividade necessária e suficiente ao ordenar das ações ine-rentes às vertentes social e cognitiva anteriormente refe-ridas; por demais, entende-se que coordenar ações signi-fica promover em si mesma uma ação coordenada, ou seja,integrando-se as muitas ações num plano de ação. Só as-sim poderão ser obtidas estatísticas como uma produçãocognitiva informacional, configurando-se declaradamenteum conhecimento no âmbito de uma diuturna argumen-tação, para o quê faz-se necessário estabelecer um sabercoordenar, ele próprio como uma produção cognitiva in-formacional, fazendo-se conhecimento igualmente noplano da argumentação. Em suma, a coordenação se fazpela argumentação que, por sua vez, participa da elabo-ração das estatísticas, podendo-se daí, em conjunto, pro-mover sua correta e adequada comunicação.

A ORGANIZAÇÃO DA COORDENAÇÃO

A coordenação emergiu historicamente como neces-sária ao colocar em ordem os elementos que configurama demanda e a oferta de estatísticas, pretendendo-se fazê-las convergir a um equilíbrio para se alcançar estatísticascomparáveis internacionalmente. Logo percebeu-se queprecisaria haver em cada país uma agência nacional deestatística de modo que a coordenação pudesse funcionara contento, de pronto sendo pugnada ao longo do séculoXIX por homens públicos notáveis, como AdolpheQuetelet, astrônomo belga, e de Ernst Engel, economistaalemão.

Entretanto, em que pese a força das idéias apresenta-das, as agências nacionais de estatística criadas ou recria-das padeceram de intensa fragilidade, não se conseguin-do o descortinar de uma efetiva coordenação. Na verda-

de, percebia-se muito pouco dos meandros do processoprodutivo das estatísticas, considerando-se os fatos comoalgo já existente e precisando apenas ser colhidos, o quenão só significava que se poderia produzir estatísticassobre tudo, como também que isto seria uma tarefa extre-mamente simples. Desconhecia-se que as estatísticas sãoconstruções, pressupondo sistemática acumulação de co-nhecimento, o que exige crescente continuidade institu-cional.

Esse estado das artes só mudaria na segunda metadedo presente século, quando as agências nacionais de es-tatística ganharam continuidade e consistência, contan-do-se com a conjugação de três fatores sobremodo favo-ráveis: primeiro, a idéia de Planejamento Nacional comoum ordenador da demanda de estatísticas; segundo, a idéiade Contabilidade Nacional como um ordenador da ofertade estatísticas; e terceiro, a intensa utilização das técni-cas amostrais que passam a viabilizar fortemente a cons-tituição de registros individuais de natureza estatística.Com efeito, as agências nacionais que foram pensadas paraserem coordenadoras acabaram por se tornar essencial-mente produtoras.

Pela primeira vez, a produção de estatísticas pôde abrirmão dos registros administrativos, criando-se intensamen-te os registros individuais de natureza estatística, o queautonomizou fortemente as agências nacionais de esta-tística no papel de produtoras, afastando-se da proposi-ção primeira de serem coordenadoras. Como nunca emsua trajetória histórica, as estatísticas ganharam consis-tência e substância, com as grandes sínteses estatísticas(à frente a Contabilidade Nacional) usadas sutilmentecomo sucedâneas da coordenação. Desse modo, realça-va-se a dimensão técnico-científica das estatísticas, fazen-do repousar sua dimensão sociopolítica no regaço do Pla-nejamento Nacional, que parecia ser para sempre.

Assim, bastou que a demanda perdesse o acolhedorregaço do Planejamento Nacional para que a compreen-são da demanda deixasse de ser simples e imediata, pro-vocando o inevitável repensar da Contabilidade Nacio-nal e dos Indicadores Sociais como bastantes ordenadoresda oferta, fazendo assim com que a explicação da ofertapassasse a ser essencial, ao que as agências nacionais deestatística não estavam afeitas. Ademais, o tempo neoli-beral dominante descentralizou como nunca a tomada dedecisões, relegando o planejamento aos espaços locais.Dessa forma, amplia-se em muito a demanda de estatísti-cas, sem contudo reorganizá-las, ao mesmo tempo em queas novas tecnologias (de informação e de comunicação)viabilizam a ampliação da oferta de estatísticas. Poten-cializa-se, assim, o tradicional desencontro entre a deman-da desejada e a oferta possível, fazendo renascer a neces-sidade de uma efetiva coordenação.

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A COORDENAÇÃO, A ARGUMENTAÇÃO E A COMUNICAÇÃO...

Ora, se as agências nacionais de estatística, ao se con-solidarem como produtoras, descuidaram da coordenação,paradoxalmente, ao consolidarem um saber produzir,dominando os processos de pesquisa estatística, acaba-ram acumulando um conhecimento que viabiliza a coor-denação. Entretanto, há que se considerar que duas ativi-dades absorventes, como são a produção e a coordenação,não podem ocupar o mesmo espaço no tempo, pelo queserá preciso pensar se a coordenação seria mais bem im-plementada dentro da agência nacional, através de algu-ma unidade especializada inerente à sua estrutura, ou sefora da agência nacional através de alguma agência espe-cializada; mas isso, em que pese ser importante, não oserá tanto quanto a definição do que deve ser entendidocomo o praticar de uma coordenação, o que passa pelaconcepção e formulação de políticas.

A NATUREZA DA COORDENAÇÃO

Nessa linha, entende-se que a coordenação irá se ma-terializar na compreensão do desejável e na explicaçãodo possível, redigindo-se a difícil dialética da interpreta-ção dos resultados. Primeiro, no sentido da compreensãodo desejável, será preciso desenvolver as políticas de re-presentatividade, adequabilidade e responsabilidade;1

segundo, no sentido da explicação do possível, será ne-cessário desenvolver as políticas de acurácia, privacida-de e ética;2 terceiro, no sentido da interpretação dos re-sultados, deverão ser desenvolvidas as políticas de visi-bilidade, acessibilidade e aceitabilidade;3 todas se arti-culando na política mestra de accountability (entendidacomo transparência e responsabilização), praticando-seuma permanente prestação de contas à sociedade, comocondição básica de sua vitalidade.

Isso posto, convém enfatizar que a coordenação, paraalém de ser um ato de vontade, mesmo que de boa vonta-de, configurando um querer, devidamente argumentadoacerca do coletivo que se quer construir – a EstatísticaNacional antes referida, de modo a ser implementada –pressupõe um poder manifesto no sentido de sua realiza-ção, atuando-se na linha do saber e na linha do poder. Esseponto de vista, claramente presente na obra de sir WilliamPetty, na época em que elaborou sua Aritmética Política,foi-se perdendo pouco a pouco em função do fato de quemais e mais se sobrevalorizava a dimensão técnico-cien-tífica e se descurava a dimensão sociopolítica das estatís-ticas. Esse desequilíbrio se fez tanto por vontade explíci-ta, algumas vezes, quanto, na maioria das vezes, porvontade implícita, de um lado, dos demandantes envoltosna arte de governar e, de outro, dos ofertantes envoltosna arte de calcular, a ambos interessando sublinhar a di-mensão técnico-científica das estatísticas.

De fato, o fugir do irracional e o buscar do racionalmarcaram, desde sempre, o surgir de uma confiança im-pessoal entendida como essencial à consolidação da eco-nomia e ao avanço dos negócios, em franca mundializa-ção desde o mercantilismo. Nesse contexto, é natural quese desprezasse a retórica e se esquecesse a argumentação,pois buscava-se a certeza, abominava-se a dúvida, dese-javam-se resultados sempre indiscutíveis; ignorava-se,desejava-se ignorar, que se pudesse estar de alguma for-ma diante de escolhas razoáveis, que exigiram cuidado-sas qualificações, como uma terceira via entre o racionale o irracional.

Entretanto, como já foi dito, as estatísticas resultam delaboriosos processos de objetivação, vale dizer, assentam-se em escolhas razoáveis, em cada uma de suas etapas(conceituação, organização, observação, processamen-to e exploração), por melhor que sejam os métodos dis-poníveis. As estatísticas, vale repetir, antes que fruto deinsofismáveis demonstrações, amparam-se em delicadasargumentações. Entretanto, ignorando essa verdade,demandantes e ofertantes preferem revestir-se da dimen-são técnico-científica, artificialmente aumentando as pos-sibilidades e diminuindo as limitações das estatísticas.Assim sendo, não há comunicação que se sustente ao longodo tempo, uma vez que se estará passando sempre umainformação incompleta sobre as estatísticas, ou seja, paraalém de mostrá-las será preciso mostrá-las em sua intei-reza.

A NATUREZA DA ARGUMENTAÇÃO

Destarte, precipuamente, a coordenação cumpriria opapel de resolver esse imbroglio, buscando o equilíbrioentre as dimensões sociopolítica e técnico-científica dasestatísticas, ou seja, o equilíbrio entre a demanda desejá-vel e a oferta possível. Ademais, a coordenação daria re-levo à argumentação, seja de modo a se constituir, a siprópria, como atividade, seja de modo a recuperar suadistinta presença no engendrar das estatísticas.

Pela argumentação, propõe-se uma concepção alargadade razão, abrindo-se uma terceira via à clássica dicoto-mia do racional e do irracional, vale dizer, propõe-se avia do razoável. Conforme Chaïm Perelman, pensadorbelga contemporâneo, a atividade racional não pode e nãodeve reduzir-se ao cálculo, mas sim ligar-se à arte da per-suasão, buscando a adesão de um auditório, promoven-do, assim, a conjunção da razão e do diálogo de modo aencaminhar a construção de um pluralismo democrático.

“Entre os lógicos formalistas, há a tendência para re-duzir todo o raciocínio dedutivo a uma demonstração, queserá correcta se as operações estiverem de acordo comum esquema preestabelecido e incorreta no caso contrá-

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rio. Efetuando-se toda a demonstração no seio de um sis-tema, cuja coerência se prova ou pressupõe e cujos axio-mas são tidos como verdadeiros, a verdade da conclusãodemonstrada, ou pelo menos a sua probabilidade calculá-vel, impõe-se sem discussão” (Perelman, 1993:67).

De fato, numa demonstração, estabelece-se uma relaçãoentre a verdade das premissas e a verdade da conclusão. Alémdisso, sendo a verdade uma propriedade das premissas in-dependente da opinião das pessoas, os raciocínios analíticossão impessoais. Numa demonstração, as premissas não es-tão em discussão, independente de serem verdadeiras ouhipotéticas, de modo que não há a mais tênue preocupaçãoem saber se são ou não aceitas por algum auditório. Ora,esse, por mais que se queira, não é o caso das estatísticas,que sempre se pautam em escolhas razoáveis, humanamen-te hesitantes, ainda que freqüentemente exitosas em face dasexperiências humanas acumuladas.

“Mas todos os que crêem na existência de escolhasrazoáveis, precedidas por uma deliberação ou por discus-sões, nas quais as diferentes soluções são confrontadasumas com as outras, não poderão dispensar, se desejamadquirir uma consciência clara dos métodos intelectuaisutilizados, uma teoria da argumentação tal como a novaretórica a apresenta. Esta não se limitará, aliás, ao domí-nio prático, mas estará no âmago dos problemas teóricospara aqueles que têm consciência do papel que a escolhadas definições, de modelos e de analogias e, de forma maisgeral, a elaboração duma linguagem adequada, adaptadaao campo das nossas investigações, desempenham nasnossas teorias. É neste sentido que se poderia ligar o pa-pel da argumentação à razão prática, papel que será fun-damental em todos os domínios onde se vê operar a razãoprática, mesmo quando se trate da resolução de proble-mas teóricos” (Perelman, 1993:27).

Assim, a coordenação faria emergir o raciocíniodialético que faz par com o raciocínio analítico inegavel-mente presente ao engendrar das estatísticas. Isso posto,tenha-se presente que, ao contrário do que se passa como raciocínio analítico, o raciocínio dialético não é impes-soal, uma vez que é apreciado pela ação que promovesobre um espírito. Assim, o argumento sobre algumamatéria será considerado persuasivo quando se mostrarcapaz de persuadir um certo auditório. Presentes, os pla-nos da demonstração e da argumentação se completa-riam e se complementariam.

“Como o fim de uma argumentação não é deduzir con-seqüências de certas premissas, mas provocar ou aumen-tar a adesão de um auditório às teses que se apresentamao seu assentimento, ela não se desenvolve nunca no va-zio. Pressupõe, com efeito, um contato de espíritos entreo orador e o seu auditório: é preciso que um discurso sejaescutado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua ação

seria nula. Mesmo quando se trata de uma deliberaçãoíntima, quando aquele que avança razões e aquele a quemelas se destinam são uma e a mesma pessoa (Perelman,1993:29).

Quanto ao contato dos espíritos, convém ter presenteque as instituições sociais e políticas podem favorecê-loou dificultá-lo ou mesmo impedi-lo, o que nos remete àcomplexa questão da liberdade necessária a uma adequa-da comunicação, sem o qual não se poderia caracterizarum ambiente democrático. Por outro lado, quanto a pro-vocar ou aumentar a adesão de um auditório, a finalidadejamais poderá ser puramente intelectual, por mais tenta-dor que seja. Na verdade, a finalidade será basicamenteincitar ou dispor à ação, o que implicará discursos dife-rentes conforme as circunstâncias.

“Como a argumentação se propõe agir sobre um audi-tório, modificar as suas convicções ou as suas disposi-ções por meio de um discurso que se lhe dirige e que visaganhar a adesão dos espíritos, em vez de impor a sua von-tade pela constrição ou pela domesticação, ser-se umapessoa a cuja opinião se atribui algum valor é já uma qua-lidade não negligenciável. Da mesma forma, é importan-te poder tomar a palavra em certas circunstâncias, ser oporta-voz de um grupo, de uma instituição, de um Estadoe ser escutado” (Perelman, 1993:30).

Isso posto, entende-se um auditório como o conjuntodaqueles que o orador quer influenciar pela sua argumen-tação. Esse conjunto é altamente variável, podendo pas-sar de uma só pessoa, no caso de uma deliberação íntima,a todas as pessoas, no caso de se querer atingir a humani-dade, perpassando um número muito grande, infinitomesmo, de auditórios particulares. Dentre as muitas va-riantes possíveis, Chaïm Perelman destaca o auditório es-pecializado e o auditório universal, nos quais pode-seenquandrar a elaboração das políticas antes enumeradas(a coordenação em sua essência), no limite, desenhando-se uma política de informação estatística.

Primeiro, entenda-se o auditório especializado comoum conjunto de pessoas com uma ou várias especialida-des, tendo cada disciplina envolvida suas teses e seusmétodos previamente admitidos, de modo que, contestá-los arbitrariamente, contrariando a estabilidade das cren-ças científicas, será visto como uma manifestação de in-competência.

Segundo, entenda-se o auditório universal como umconjunto de pessoas dispostas e capazes de ouvir um cer-to orador, seguindo sua argumentação; pessoas que nãotêm teses e métodos previamente admitidos, o que libertao orador em sua argumentação, deixando-o livre para tra-balhar com o senso comum.

A essa altura, importa perceber que é em função deum auditório que toda argumentação será organizada, de

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modo que se torna essencial que o orador tenha de seuauditório um profundo conhecimento, sendo que enga-nos e desenganos poderão ser fatais ao efeito que se querproduzir. Assim, definido o auditório, tendo-se dele umadequado conhecimento, deve-se aplicar alguma técnicade persuasão, de modo a conquistar-lhe a adesão, caben-do destacar a técnica das questões e respostas, pela qual,à medida que o diálogo vai se desenrolando, mais e me-lhor se conseguir argumentar.

“A distinção entre os discursos que se dirigem a al-guns e os que seriam válidos para todos permite fazercompreender melhor o que opõe o discurso persuasivo aoque se pretende convincente. Em vez de considerar que apersuasão se dirige à imaginação, ao sentimento, numapalavra, ao autômato, e que o discurso convincente fazapelo à razão, em vez de as opor uma à outra, como osubjetivo ao objetivo, pode-se caracterizá-las, de umaforma mais técnica, e também mais exata, dizendo que odiscurso dirigido a um auditório particular visa persua-dir, enquanto o que se dirige ao auditório universal visaconvencer” (Perelman, 1993:37).

A ARGUMENTAÇÃO E A COORDENAÇÃO

Na compreensão do desejável, a coordenação estariaatenta à leitura sociopolítica da realidade feita por umauditório universal, mais exatamente, por um auditóriocom foro de universalidade, formado por todos aquelesque demandam estatísticas com capacidade bastante paraserem atendidos pela atividade pública, dando-lhe a maiorrepresentatividade possível. Depois, a coordenação esta-ria atenta em confrontar essa leitura sociopolítica feita peloauditório universal especialmente estruturado com umaleitura técnico-científica da realidade feita por um audi-tório especializado, formado pelos produtores de estatís-ticas, nas esferas federal, estadual e municipal, com vis-tas à definição das responsabilidades pela oferta dasestatísticas. Enfim, a coordenação teria o papel distintode zelar pela passagem pacífica da demanda desejável àoferta possível, garantindo a adequabilidade da estatísti-ca nacional.

Na explicação do possível, a coordenação estariaagindo essencialmente sobre um auditório especializa-do, formado pelos produtores de estatísticas, nas esfe-ras federal, estadual e municipal, de modo a garantir aaplicação uniforme (num movimento pendular entre aintegração que sugere centralização e a harmonizaçãoque sugere descentralização) do saber acumulado his-toricamente sobre a geração de estatísticas. Dessa for-ma, levando todos os produtores envolvidos a viveremas mesmas noções de acurácia, privacidade e ética, acoordenação estaria agindo no sentido de viabilizar um

amplo entendimento da realidade que se sabe mais emais complexa, permitindo assim que as estatísticas(aquelas geradas por registros administrativos e aque-las geradas por registros estatísticos) possam ser com-paradas e combinadas facilmente. Na realização dessatarefa, a coordenação deve estimular e alimentar diá-logos entre produtores e pesquisadores temáticos, a seuturno formando auditórios especializados, bem comofazer com que estejam presentes, o tempo todo, os di-tames do auditório universal, onde tudo começou.

Na interpretação dos resultados, a coordenação es-taria agindo sobre diversos auditórios especializados,formados por diferentes pesquisadores temáticos, emgrande medida absorvendo os demandantes que com-puseram o auditório universal que serviu como pontode partida, aquele auditório que se tomou com foro deuniversalidade. Contudo um auditório realmente uni-versal deverá ser objeto de atenção da coordenação,aquele formado por um público absolutamente comum,apenas interessado em estatísticas e nada mais. Em cadasituação, a coordenação estaria ajustando a múltiplosinteresses e necessidades as noções de visibilidade,acessibilidade e aceitabilidade, cuidando para que nãohaja uma concentração de diálogo apenas entre pares,ou seja, entre os auditórios especializados formados porprodutores e aqueles outros formados por pesquisado-res temáticos; ainda que seja naturalmente difícil, éessencial que se volte a atenção também ao auditóriouniversal, se não por outras razões, pela razão mesmade que neles estão os informantes junto aos quais sefazem os registros individuais, ato fundador das esta-tísticas.

CONCLUSÃO

Em síntese, a argumentação seria vital ao desenvolvere ao consolidar da coordenação, promovendo-se o maispossível a edificação de uma solidariedade entre diferen-tes, empenhando-se em estabelecer um equilíbrio entreos valores antinômicos da igualdade e da liberdade. Acoordenação assim constituída estaria sendo capaz demostrar as estatísticas, a seu turno também ancorada naargumentação, em suas possibilidades e em suas limita-ções, ademais, capacitando-se a revelar oportunidades ea antecipar ameaças que cercam as atividades, a cada tem-po. A coordenação, no limite, estaria mostrando com na-turalidade os campos de visão e de ocultação das estatís-ticas... Uma intensa e extensa comunicação estaria sefazendo, ora comunicando as estatísticas em seus resul-tados, destacando o plano da demonstração, ora comuni-cando as estatísticas em suas especificidades, ressaltandoo plano da argumentação.

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NOTAS

Este texto apóia-se, em parte, na tese de doutoramento do autor: A coordenaçãoda estatística nacional. O equilíbrio entre o desejável e o possível. Rio de Janei-ro, UFRJ/ECO e CNPq/IBICT, fev. 1998.

As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor,podendo não significar a opinião das instituições com as quais mantém vínculoprofissional.

1. Por representatividade procura-se caracterizar a definição democrática dasdemandas que serão atendidas na esfera pública, deixando-se as demais ao en-cargo da atividade privada. Por adequabilidade procura-se caracterizar a passa-gem do plano do desejável ao plano do possível, bem aplicando e bem explican-do as limitações técnico-científicas. Por responsabilidade procura-se caracteri-zar os encargos de se produzir cada estatística, como que promovendo um pactoestatístico, através do estabelecimento de uma estrutura social.

2. Por acurácia procura-se dar garantias de se ter trilhado o melhor do sabertécnico-científico em todas as etapas de pesquisa, destacando portanto o planoda demonstração. Por privacidade procura-se dar garantias de que os registrosindividuais foram mantidos em total reserva, tendo tido uso apenas estatístico.Por ética procura-se dar garantias de que os produtores trilharam os melhoresprincípios éticos inerentes às suas formações, dado que se opera também no pla-no da argumentação.

3. Por visibilidade procura-se entender o esforço de se tornar público não apenaso contexto da justificação, mas sobremodo o contexto da descoberta. Por acessi-bilidade procura-se entender o esforço de tornar pública a existência das estatís-ticas, empenhando-se na constituição de uma metainformação sobre as mesmas.Por aceitabilidade procura-se entender o esforço de se acrescentar valor às esta-tísticas, oferecendo-se aos demandantes um atendimento com rosto, a se concre-tizar em diferentes níveis.

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A ARQUITETURA DE SISTEMAS DE INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS NA INTERNET

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A ARQUITETURA DE SISTEMAS DEINFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS NA INTERNET

MARILDA LOPES GINEZ DE LARA

Professora da Escola de Comunicações e Artes - USP, Consultora da Fundação Seade

plicitada, pois desloca-se o eixo da mediação usuário/in-térprete/instituição para a mediação linguagem do usuá-rio/linguagem da instituição.

Essa perspectiva confirma o que já se enunciava naspropostas da Análise Documentária (no âmbito da Ciên-cia da Informação), relativas às metodologias de repre-sentação da informação: o reconhecimento de que a ati-vidade documentária não prescinde do universo dalinguagem e que o modo de organização da informaçãoenvolve, simultaneamente, um problema de comunicação(Cintra et alii, 1994 e 1996). A natureza essencial do tra-balho documentário com a informação é, portanto, co-municacional, sendo que, contrariamente à visão ingênuaque predominou durante muito tempo, a atividade de re-presentação da informação não se reduz a operações deseleção e padronização de designações. “A opção pelapadronização da informação não encobriu de maneiraefetiva aquela que seria a índole natural do processodocumentário de tratamento – tornar institucionalmentedisponível a informação para circular e ser transferida”(Tálamo, 1997).

Conceber a atividade documentária de representaçãoda informação como uma atividade desenvolvida no uni-verso da linguagem, e por isso mesmo comunicacional,supõe que a organização de informações para transferên-cia não prescinde do enfrentamento dos problemas rela-tivos à interação entre sistemas de informação e seu pú-blico e, como decorrência, da utilização de noçõeslingüísticas como meio de estabelecer linguagens docu-mentárias que garantam a comunicação dessas informa-ções.

A natureza da atividade de organização e transferên-cia da informação tem suas especificidades, já que, de fato,todos temos um domínio parcial de nosso trabalho: espe-

disponibilização de dados estatísticos de insti-tuições públicas na Internet objetiva promoverseu uso, estendendo as possibilidades de consulta

aos cidadãos. A realização desses objetivos deve consi-derar que a “vulgarização se desenvolve, primeiramente,não segundo uma lógica de difusão dos saberes, mas se-gundo uma lógica da apropriação dos saberes, em funçãoda cultura daqueles aos quais ela se endereça (…) Não setrata de oferecer um texto acessível, mas de diversificaros modos de integração dos saberes concernentes, comotambém das denominações utilizadas. Com efeito, ‘só sãoreinvestidas as informações formuladas de maneira com-preensível nos sistemas de representação dos destinatá-rios’” (Albertine e Delisle apud Gaudin, 1993).

De fato, a informação só adquire sentido quando é apro-priada pelos indivíduos: sua estocagem e disponibiliza-ção não são suficientes para produzir alterações de co-nhecimento. As informações podem ser potencialmenteúteis, porém só o são verdadeiramente se seu significadofor construído através de sua incorporação cognitiva pe-los indivíduos. É fundamental, pois, que os objetivos detransferência estejam associados aos de organização, con-siderando as condições necessárias para que se efetue acomunicação.

Durante muito tempo, a organização das informaçõesera realizada supondo a presença do usuário. As consul-tas aos acervos informacionais eram feitas preponderan-temente através de mediadores, ou seja, profissionais querespondiam por eventuais carências relacionadas à repre-sentação da informação com base no seu conhecimentoparticular das coleções. Hoje, entretanto, os serviços deinformação não requerem a presença física do usuário, jáque eles podem estar disponíveis na web. Com efeito, aatividade de representação documentária passa a ser ex-

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cialistas nas várias áreas de atividade ou saber dominam,mais do que os documentalistas, a linguagem de sua es-pecialidade; por seu lado, documentalistas dominam, maisdo que os especialistas, a especificidade do trabalho coma informação. Profissionais que trabalham como media-dores de informação – entendendo aqui a mediação comoum processo cuja meta é promover a apropriação das in-formações –, os documentalistas têm diferenças indivi-duais resultantes das suas diversas formações, experiên-cias profissionais e socioculturais, porém, no desempenhode atividades documentárias habilitam-se, continuamen-te, a conhecer as várias informações produzidas pelas dis-tintas áreas de atividade ou saber. Não as conhecem, po-rém, como as conhecem os especialistas, já que existemlinguagens, níveis de saber e habilidades distintos. Essesprofissionais da informação, entretanto, dominam (oudeveriam dominar), mais do que os especialistas nas vá-rias áreas temáticas, a especificidade do trabalho com ainformação. Dominar uma área de especialidade é dife-rente de saber construir uma ponte: a habilidade dos pro-fissionais da área de organização, tratamento e transfe-rência de informação é, antes de tudo, a de “construirpontes” (Sager, 1993).

A partir do enfrentamento das várias linguagens – ados especialistas, a dos utilizadores de informação –, sãomodelizadas as linguagens documentárias, instrumentosque permitem a materialização da representação de infor-mações, de forma a garantir a comunicação. As lingua-gens documentárias funcionam, assim, como meio de es-tabelecer as pontes que viabilizam o acesso e uso dainformação.

À observação das várias modalidades de linguagemassocia-se a identificação das especificidades dos distin-tos universos de informação, bem como as característi-cas das mídias em que as informações deverão ser veicu-ladas. Distinguem-se, entre outras, a representação deinformações estatísticas das informações textuais e a re-presentação em meio impresso (ou linear) das represen-tações hipertextuais. A atividade de mediação que carac-teriza a função documentária modeliza-se, portanto, porum conjunto de fatores que determinam os modos de re-presentação.

A INTERNET E A DIVULGAÇÃO DEINFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS

Analisada como nova modalidade de mídia, a Internetexplicita e enfatiza a necessidade de adoção de parâme-tros de trabalho com a informação, que considerem a na-tureza lingüístico-comunicacional da atividade de repre-sentação. Aliada às possibilidades de ampliação daexploração das bases de dados, a Internet torna patente a

necessidade de adotar procedimentos metodológicos paraa organização e recuperação de informações.

Teoricamente, a utilização da web para veiculação dainformação otimiza sua recuperação. Porém, para que ascaracterísticas desse veículo sejam exploradas na sua po-tencialidade, é necessário desenvolver mecanismos pró-prios de organização.

Não raras vezes, ao procurarmos informações naInternet, vivenciamos as dificuldades decorrentes da re-cuperação de informações não pertinentes aos nossosobjetivos, tanto quando utilizamos as “ferramentas deacesso” – as search engines – como quando procuramosinformações dentro de sites específicos. Os principaisproblemas referem-se, no primeiro caso, aos resultadosde buscas por “palavras”, que trazem referências em quan-tidade, porém não necessariamente em qualidade; e, nosegundo, à ausência de estruturação dos sites, já que, aonão serem observadas a especificidade da mídia e a ne-cessidade de contar com uma arquitetura conceitual dasinformações, não se oferecem meios adequados à nave-gação e, conseqüentemente, agilidade para a localizaçãode informações.

Além disso, a divulgação de informações na web fica,muitas vezes, restrita à reprodução de publicações impres-sas, não se utilizando os recursos oferecidos por esse veí-culo para ampliar as possibilidades de acesso à informa-ção. No caso da divulgação de informações estatísticas,restringir a divulgação à veiculação de tabelas significareduzir as possibilidades de recuperação a cruzamentosde dados e agregações predeterminadas. As tabelas esta-tísticas refletem o modo institucional de conceber infor-mações, porém representam, apenas, determinados pon-tos de vista privilegiados de organização de informações.

Na realidade, os sites de informação estatística divul-gam apenas pequena parcela do seu acervo institucional.Viabilizar também a divulgação de informação mais de-sagregada, por exemplo, representa um esforço adicionalem direção à democratização de informações, uma vezque promove, além de maior transparência, aumento daspossibilidades de uso da informação. Através desse pro-cedimento, confere-se ao usuário maior liberdade de es-colha e maiores possibilidades de construir novas infor-mações. A partir de dados mais desagregados, fica faci-litada, também, a produção de “cenários” de informaçãoelaborados pela instituição em face de perfis coletivos dedemanda. Contemplam-se, através desses cenários, con-juntos sistematizados de dados estatísticos relativos àssolicitações muito freqüentes, aumentando, assim, a pos-sibilidade de uso da informação.

Para ampliar o universo de informações oferecidas epromover a possibilidade de distintas formas de acesso, énecessário que se crie uma interface organizando estru-

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A ARQUITETURA DE SISTEMAS DE INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS NA INTERNET

turalmente o conjunto dos dados institucionais disponí-veis. De fato, as instituições estatísticas armazenam seusdados em bases distintas, em razão dos diferentes proje-tos e áreas de atuação. A organização estrutural desseconjunto permite que informações que integrem bases dedados diferentes possam ser reunidas e referenciadas apartir de um único banco. Uma organização estruturalsemelhante constitui uma linguagem documentária paraa representação de informações, cujos critérios de cons-trução estão assentados em níveis de desagregação dosdados estatísticos que permitam otimizar sua exploração.É evidente que, enquanto arranjo estrutural, uma lingua-gem documentária modeliza a informação, uma vez queutiliza uma hipótese de organização. Do ponto de vistadocumentário, a hipótese privilegiada, embora represen-te um determinado modo de ordenação das informações,tem como objetivo minimizar os problemas relativos àlocalização das informações. Experiência nesse sentidovem sendo desenvolvida pela Fundação Seade, cujos re-sultados são divulgados em seu site – www.seade.gov.br– através da página São Paulo em Dados.1

SÃO PAULO EM DADOS: A REPRESENTAÇÃODE INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS E ASCONTRIBUIÇÕES DA TERMINOLOGIA

“Sucessivamente, promovem-se inscrições e descriçõesde até ene-ésima ordem, pautando-se em equivalênciaspreviamente estabelecidas, baseadas em ordenamentos jáexistentes na ordem jurídica, na ordem social, na ordemeconômica, bem assim, à falta dos mesmos, em ordena-mentos criados na ordem estatística (tais como as classi-ficações de ocupação e de atividades, dentre outros). En-fim, as estatísticas resultam de um ingente esforço deconceituação, de organização, de observação, de explo-ração, caracterizando um laborioso exercício de objeti-vação, construindo-se assim a desejada objetividade dasestatísticas” (Senra, 1998).

De fato, as informações estatísticas nascem de regis-tros (ou dados primários) que são, por sua vez, combina-dos segundo determinados critérios, universos geográfi-cos e períodos. Um dado estatístico constitui, portanto, oresultado de uma ordenação. As ordenações mais primá-rias são resultantes de mensurações que consideram, pelomenos, duas variáveis. Quanto mais variáveis são combi-nadas, maiores são os níveis de ordenação. Metodologiasde coleta determinam o modo básico da mensuração einfluem, conseqüentemente, nas ordenações.

Um banco de dados estatísticos a partir do qual se possaestabelecer o maior número de ordenações entre os da-dos deve, conseqüentemente, ser organizado a partir deníveis bem desagregados de informação. Para tanto, é

necessário distinguir os eventos básicos a serem conside-rados – por exemplo, o óbito, o nascimento, a matrículaescolar, o produto agrícola, o depósito em poupança, oinvestimento em educação, etc. –, o modo de observaçãodesses eventos – instituição onde se verifica o evento,natureza do evento considerado, modalidade de manifes-tação, etc. – e sua distribuição espaço-temporal.

Variáveis como tempo e espaço não apresentam gran-des dificuldades de tratamento, já que gozam de maiorestabilidade e universalidade, o que não ocorre necessa-riamente em relação aos eventos, em face das questõesde recortes de observação, categorização e designação.Sob esses aspectos, as contribuições da Terminologia,aliadas às da Ciência da Informação são relevantes.

A Linguagem Documentária construída para a repre-sentação de dados estatísticos que sustenta a apresenta-ção da página São Paulo em Dados caracteriza-se comometalinguagem e pretende funcionar como código inteli-gível. Apóia-se em procedimentos da Terminologia (con-creta e teórica), da Socioterminologia (vertente da Ter-minologia que enfatiza o uso social dos termos) e daLingüística Documentária (que enfatiza as condições paraa mediação documentária).

O ponto de partida principal para a construção dessalinguagem de intermediação está na distinção entre “pa-lavra” e “termo”. A palavra é característica do léxico; jáo termo é uma unidade da Terminologia, cujo significadoestá assentado em definições. Essa distinção apóia-se naproposição de Le Guern, para quem é imprescindível dis-tinguir as palavras no léxico daquelas no discurso.

O problema em trabalhar com as palavras é sua inde-terminação. As palavras têm inúmeros significados – comoem estado de dicionário –, uma vez que não se localizamem extratos discursivos, domínios ou áreas de atividade.O léxico é um estoque de palavras independentes das coi-sas: elas têm significado, porém não têm referência e ex-primem apenas um conjunto de propriedades (é por issoque falham as search engines). Já no discurso – ou loca-lizadas nas áreas de atividade – as palavras estão ligadasàs coisas e representam uma singularidade. Têm conexãofísica com o objeto que indicam e representam seu objetoe suas características (Peirce, 1975:100-102).

Se o signo de uma propriedade (no léxico) é umpredicado, o signo de um objeto (no discurso) é o termo;e os termos são substantivos porque estão posicionadosdentro dos discursos. Para designar objetos, o discursonão lança mão só do léxico, mas também da sintaxe, ge-rando uma unidade mínima de significação que é osintagma nominal. Os termos, então, não fazem parte doléxico, porque são construídos no discurso. Além disso,as palavras no discurso configuram sua associação a umaclasse, constituindo, assim, predicados vinculados, dife-

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rentemente do que ocorre com as palavras do léxico, quesão caracterizadas como predicados livres. “O léxico con-sidera as palavras, a terminologia considera as coisas” (LeGuern, 1989); e é por isso que só sob a perspectiva daterminologia pode-se pensar na tradutibilidade, baseadana equivalência entre objetos situados nas mesmas clas-ses dentro de universos determinados.

A tradução de palavras do léxico (predicados livres) éimpossível porque, numa perspectiva cognitiva, “os ob-jetos e as classes de objetos se opõem por traços de subs-tância, em número variável segundo os indivíduos, por-que isso depende do saber, da experiência e da cultura decada pessoa. As palavras na língua são analisadas emsemas ou predicados elementares. O significado de umapalavra dada não é constituído da totalidade dos traçosde substância associados ao objeto que essa palavra de-signa habitualmente, mas é resultado de uma escolha co-letiva, ligada à história da língua e à sua estrutura. Cadalíngua faz sua escolha (...) Enquanto só os semas são per-tinentes para o léxico, os empregos em predicados vincu-lados podem mudar por um efeito de contexto e dos tra-ços de substância das classes de objetos que eles designam,mesmo se eles não forem retidos pela língua para consti-tuir os significantes lexicais (...) São os traços de subs-tância que são pertinentes em terminologia, não os semas”(Le Guern, 1989:342).

Ao assumir a perspectiva da Terminologia, passa-se atrabalhar com o termo como veículo do conceito, buscan-do, assim, ampliar as possibilidades de comunicação. Talcomo acontece na língua, o termo é uma unidade que sig-nifica na sua relação com outros termos (ou conceitos). Épossível, pois, sob esta perspectiva, estabelecer um siste-ma (ou uma estrutura) para um conjunto de dados estatís-ticos. O significado de cada termo nessa estrutura depen-de de sua posição relativa.

No caso da linguagem de representação das informa-ções do São Paulo em Dados, essa organização estruturalé elaborada a partir de temas – categorias de alta genera-lização definidas através da combinação das característi-cas dos domínios de especialidade ou áreas de trabalho,do consenso institucional e do uso.

A partir da categorização por temas, os dados estatís-ticos são sucessivamente organizados em níveis hierár-quicos, até o nível de maior especificação. A delimitaçãodos temas, contudo, é um recurso operacional, já que nãose pode afirmar que os domínios tenham existência isola-da. Ao contrário, eles são definidos na sua interconexãocom outros domínios: não é possível, por exemplo, falarem saúde sem falar em saneamento, educação, trabalho,etc. Além disso, um mesmo dado estatístico pode ser clas-sificado sob mais de um tema, permitindo contemplar maisde um ponto de vista sobre a informação. Os recursos de

hierarquização, entretanto, não podem ser utilizados ri-gidamente, sob pena de não se considerar o uso efetivodos termos como determinante para o estabelecimento deassociações.

A forma de organização estrutural de um banco de da-dos para abrigar a linguagem de representação constitui,todavia, recurso fundamental para o controle vocabular,porque reproduz, a seu modo, um gênero de definição atra-vés de conjunções e disjunções. Tal estrutura organiza-cional é concretizada em um banco de dados específico,cujo desenho permite registrar, também, variantes de de-signação, termos em outros idiomas, termos associadosatravés de relações não-hierárquicas e definições (formaisou não). A introdução de termos não relacionados hierar-quicamente pretende flexibilizar a estrutura constituída desucessivas conjunções e disjunções, de tal forma que o ban-co configure um sistema baseado numa rede de relações.

A vantagem da utilização da rede – e não exclusiva-mente da cadeia constituída pelas sucessivas disjunções –está na possibilidade de ampliar as condições de leitura,ou seja, produzir índices, veicular a equivalência sino-nímica (ou os diversos usos do termo), identificar os ter-mos em outras línguas e sugerir aos usuários determina-

QUADRO 1

Modelo de Hierarquia do Banco de Dadosda Linguagem de Representação dos Dados Estatísticos

1o nível do tema DemografiaCasamentos

ÓbitosEvasão de óbitos

Nascidos vivosPopulação

Taxas

2o nível do tema Demografia, item ÓbitosGeraisInfantis

Mulheres em idade fértilPerinatais

Nascidos mortos

3o nível do tema Demografia, item Óbitos/InfantisTotal

NeonataisNeonatais precoces

Pós-neonatais

4o nível do tema Demografia, item Óbitos/Infantis/NeonataisTotal

Taxa de mortalidade neonatal

5o nível do tema Demografia, item Óbitos/Infantis/Neonatais/TotalA partir deste nível, são disponibilizadas opções para a definição da agregação

geográfica e temporal, a partir das quais os dados são mostrados.

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das associações (termos relacionados ou remissivas do tipover também).2

Se a estruturação hierárquica básica é um recurso es-sencial para o controle vocabular, não é, necessariamen-te, a melhor solução para a consulta. De fato, a utilizaçãode muitos níveis hierárquicos combinada à seleção devariáveis espaço-temporais implica, na web, a necessida-de de vários “cliques”, o que significa acréscimo de tem-po para visualização das informações. A estrutura do bancode dados não se reflete totalmente na apresentação dasinformações, uma vez que visualiza-se, na página, umaredução dos níveis de hierarquização.

A estruturação lógico-semântica da linguagem de re-presentação dos dados não prescinde de um trabalho decoleta terminológica, até porque a elaboração de uma hie-rarquia é, a seu modo, um processo de definição. Esse tra-balho contempla, também, a harmonização terminológica,já que as instituições, ao longo de sua existência, nemsempre conferem designações homogêneas para os mes-mos dados, ou nem sempre fornecem parâmetros clarospara a interpretação dos conceitos utilizados. O trabalhode coleta terminológica engendra, gradativamente, umbanco terminológico, fonte para a veiculação das defini-ções utilizadas pela instituição.

As definições são, entretanto, construções, o que sig-nifica que a criação de um banco terminológico requerum extenso trabalho de levantamento para a identificação

dos traços a serem privilegiados, os pressupostos e meto-dologias utilizadas, bem como as marcas de enunciação,ou seja, do uso dos termos. O processo de elaboração dedefinições inclui a consulta a dicionários técnicos, glos-sários e aos próprios “discursos” em que são utilizadosos termos, como meio de contemplar os contextos de suautilização.

A construção da base terminológica visa, também, re-gistrar vínculos de relacionamento entre os termos, comomeio de promover alternativas de acesso (um dado esta-tístico convencionalmente classificado pela instituição sobDemografia – por exemplo, óbitos por causas de morte –pode ser buscado, por um não especialista, sob Saúde).Do mesmo modo, variantes sinonímicas pretendem am-pliar as possibilidades de acesso (doenças de notificaçãocompulsória, sinônimo: doenças infectocontagiosas). Asinformações registradas em bases terminológicas são es-senciais, portanto, à construção de diversas modalidadesde acesso à informação.

A CRIAÇÃO DE FERRAMENTAS SEMÂNTICASPARA RECUPERAÇÃO DE INFORMAÇÕES

Conjugando-se as possibilidades de recuperaçãohipertextual oferecidas pela web ao tratamento conceitualdos dados, é possível desenvolver mecanismos de recu-peração mais potentes que as atuais search engines de

QUADRO 2

Modelo de Ficha Terminológica (1)

FICHA TERMINOLÓGICA No xxTERMO: Evasão de óbitos/Invasão de óbitos Status: OKSINÔNIMOS:

TERMO EM OUTRA LÍNGUA:DEFINIÇÃO: evasão e invasão de óbitos são variáveis opostas que se caracterizam pela ocorrência de óbitos fora da área geográfica de residência dosindivíduos. “Quando o evento relativo a uma pessoa residente em determinada localidade ‘A’ ocorre em ‘B’ dizemos que em ‘A’ houve a evasão ... e que em ‘B’ocorreu uma invasão” (CAMARGO, A.B.M. “Os fenômenos da invasão e evasão de óbitos em São Paulo, (1977/80)”. Informe Demográfico. São Paulo, FundaçãoSeade, n.12, 1984, p.4).

A evasão de óbitos, portanto, identifica a ocorrência de mortes de residentes de uma unidade geográfica fora dessa unidade. Contrariamente, a invasão de óbitosidentifica a ocorrência de mortes em uma unidade geográfica envolvendo indivíduos residentes fora dessa unidade.

OBS.: o fenômeno da evasão/invasão de óbitos se deve a várias causas: procura de tratamento médico fora do município de residência, acidentes, homicídiosou morte repentina fora do local de residência, etc. Altas taxas de evasão de óbitos indicam, geralmente, ausência de recursos médico-hospitalares na áreageográfica de residência dos indivíduos. Inversamente, localidades que contam com maiores condições de atendimento médico-hospitalar podem apresentartaxas mais elevadas de invasão de óbitos (CAMARGO, A.B.M. “Os fenômenos da invasão e evasão de óbitos em São Paulo (1977/80)”. Informe Demográfico.São Paulo, Fundação Seade, n.12, 1984, p.4).

RESPONSÁVEIS: Silvia Rocha; Antonio Marangone; Rute Godinho; Marilda de LaraData das discussões: 11/05/97; 28/08/97; 30/09/97 Revisão final: 26/11/97

(1) Antecedem a esta ficha as relacionadas à coleta terminológica propriamente dita.

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natureza sintática, como também criar condições para quese promovam a organização e a distribuição das informa-ções dos sites propriamente ditos. A possibilidade de umarecuperação semântica remete a uma decupagem que aliaforma e conteúdo relativamente a determinados contex-tos, permitindo identificar designações e significadosconceituais dentro de universos particulares. Já a estrutu-ração global dos sites solicita uma concepção integradadas páginas para otimizar a navegação.

De fato, as palavras não são etiquetas coladas às coisas esua interpretação é determinada relacionalmente, nunca deforma isolada. Para significar dependem de inserçãocontextual. Ao operar a partir de palavras independente-mente de contextos, os search engines falham porque re-metem, simultaneamente, a múltiplos significados. Na rea-lidade, a palavra é sempre fonte de significação, sendo queos meios para promover sua desambigüização remetem ànecessidade de controle, no que diz respeito tanto à pluris-significação como fenômeno geral, quanto à polissemia, fe-nômeno de natureza vocabular.

Ao trabalhar a partir do controle do significado, as fer-ramentas de natureza semântica permitem otimizar a re-cuperação, pois possibilitam assegurar interpretações vin-culadas a contextos.

Além disso, é preciso considerar que trabalha-se, naInternet, com um usuário relativamente indeterminado.Se a presença física do usuário permitia trabalhar com umanegociação de sentido, sua ausência concreta e presençavirtual solicitam a utilização de mecanismos mais amplosde disseminação de informações. As ferramentas semân-ticas constituem, sob esse ponto de vista, a possibilidadede veicular as condições de interpretação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito do fato de que a língua é uma forma de ati-vidade cooperativa (Putnam apud Gaudin, 1993), os mo-dos de apropriação não são homogêneos, como não sãohomogêneas as formas de designação das informações.Através da proposta de um modelo de representação deinformações estatísticas a partir da organização de variá-veis, complementar à disponibilização de tabelas estatís-ticas prontas, ora apresentado, pretende-se oferecer umahipótese alternativa de organização que permita a cons-trução de novas informações.

Acredita-se que o desenvolvimento de linguagens paraa organização e transferência de informação baseadas emprocedimentos documentários e terminológicos pode res-ponder de forma mais eficiente à função mediadora enfa-tizada por Sager. De fato, frente à multiplicidade de lin-guagens e saberes, é necessário construir pontes quemelhor viabilizem o acesso à informação.

Tais pontes, multiplicadas e agilizadas pelos recursosoferecidos pelas novas mídias para veiculação de infor-mações, não podem ser construídas sem que se enfrenteconvenientemente a questão da mediação. Trata-se, pois,de considerar as especificidades da Internet e explorar seusrecursos hipertextuais para garantir maior recuperação ecirculação de informações. Isso é verdadeiro não apenaspara a divulgação de informações estatísticas, mas paraquaisquer universos de informação.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

1. A organização das informações para a produção desta página – veiculada nosite da instituição – é um projeto de responsabilidade da Diretoria Adjunta deProdução de Dados, coordenada por Luiz Henrique Proença Soares, executadopela Geadi – Gerência de Disseminação de Informações, sob a coordenação deVivaldo Luiz Conti. Integram a equipe, Silvia G. Rocha, Joyce C. Camargo,Jussara Iunes e Isabel C. de Oliveira. Participamos do projeto como consultora.

2. Embora esses recursos estejam previstos na base, sua utilização para a produ-ção da página encontra-se em fase de construção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GAUDIN, F. Pour une socioterminologie: des problèmes semantiques aux pra-tiques institutionnelles. Rouen, Université de Rouen, 1993 (Publications deUniversité de Rouen, 182).

LE GUERN, M. “Sur les relations entre terminologie et lexique”. Meta, v.34,n.3, 1989, p.340-343.

PEIRCE, C.S. Semiótica e filosofia. São Paulo, Cultrix, Edusp, 1975.

SAGER, J.C. “Prólogo: la terminología, puente entre varios mundos”. In: CABRÉ,M.T. La terminología: teoría, metodologia, aplicaciones. Barcelona, Ed.Antártida, Empúries, 1993, p.11-17.

SENRA, N.C. A coordenação da estatística nacional: o equilíbrio entre o dese-jável e o possível. Tese de Doutorado – Ibict/UFRJ. Rio de Janeiro, 1998.

TÁLAMO, M.F.G.M. Linguagem documentária. São Paulo, APB, 1997 (En-saios APB, n.45).

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AS NOVAS E VELHAS DEMANDAS POR INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA

S

AS NOVAS E VELHAS DEMANDAS PORINFORMAÇÃO ESTATÍSTICA

resultados, a falta de aprofundamento ou irregularidadenos levantamentos de certas temáticas, os questionamen-tos com relação à qualidade das estatísticas produzidasou registros compilados, o cancelamento dos Censos Eco-nômicos, os problemas de cobertura territorial e adesagregabilidade espacial dos dados são críticas de lon-ga data dos usuários do Sistema Estatístico Nacional.

O encaminhamento de soluções para transformação, amédio prazo, deste quadro, promovendo um salto de qua-lidade na produção, compilação e disseminação das esta-tísticas públicas, exigiria, além do comprometimento deportentosas verbas públicas e de um grande esforço de co-ordenação e divisão de atribuições entre IBGE, Ministé-rios e agências estaduais (Senra, 1998), a legitimaçãopolítica das ações estratégicas formuladas junto a um seg-mento específico dos demandatários de informações pú-blicas: as prefeituras municipais. Enfatizar esta premissa,discutindo a necessidade de aprimorar o uso das fontesde dados já existentes e de disponibilizar outras informa-ções para fins de planejamento municipal, é o objetivocentral deste artigo. Ainda que não se trate de uma dis-cussão nova, talvez seja oportuno resgatá-la em algunsaspectos, contribuindo para repensar as práticas da pro-dução de estatísticas públicas em um novo contexto po-lítico-institucional do Planejamento Público e Formula-ção de Políticas Sociais no país.

A ANTIGA (E RENOVADA) DEMANDA PORINFORMAÇÕES MUNICIPAIS

A demanda por informações sociais e demográficas parafins de formulação de políticas públicas municipais, nopaís, tem sido crescente na última década, no contexto dadescentralização administrativa e tributária em favor dos

PAULO DE MARTINO JANNUZZI

Analista da Fundação Seade, Professor da PUC-Campinas

em que se fizesse muito alarde, o Sistema Estatís-tico Nacional (SEN) completou há pouco temposeu sexagésimo aniversário, se se considerar que

sua constituição ocorreu de fato com a promulgação delegislação específica em meados dos anos 30 e com a fun-dação do IBGE em 1938. Ainda que não se tenha logradoatingir vários dos objetivos para o qual o SEN foi e con-tinua sendo idealizado, é inegável que a produção brasi-leira de informações demográficas, sociais, econômicas egeográficas apresentou uma evolução qualitativa e quan-titativamente muito expressiva, acompanhada por poucospaíses em desenvolvimento ao longo destas décadas. Cen-sos demográficos regulares desde 1940, com escopotemático cada vez mais abrangente, sobretudo com a in-trodução da amostragem a partir de 1960, surveys domi-ciliares anuais – ou quase anuais – para monitoramentode tendências demográficas e características socioeconô-micas da população, pesquisas amostrais para acompanha-mento do mercado de trabalho e desempenho conjunturalda indústria, comércio, serviços e agropecuária, informa-ções do Registro Civil, registros administrativos dos Mi-nistérios e dados compilados pelos órgãos estaduais de es-tatística constituíram um rico – mas certamente parcial eincompleto – acervo de estatísticas públicas para diag-nóstico e monitoramento das transformações da realida-de brasileira nos últimos 50 anos.

Sem desmerecer os avanços obtidos, há, certamente,muitas deficiências a apontar, muitas lacunas a preencher,especialmente quando se toma como paradigma o siste-ma de produção de estatísticas presente em países desen-volvidos como o Canadá, ou ainda, sob certos aspectos,quando se tem em referência o SEN de alguns países dopróprio Terceiro Mundo, como Chile e México.1 A des-continuidade das pesquisas, os atrasos na publicação dos

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municípios e da institucionalização do processo de pla-nejamento público em âmbito local. Para fundamentar aelaboração de planos diretores de desenvolvimento urba-no e planos plurianuais de investimentos, para permitir aavaliação dos impactos ambientais decorrentes da implan-tação de grandes projetos, para justificar o repasse de ver-bas federais para implementação de programas sociais ouainda pela necessidade de disponibilizar equipamentosou serviços sociais para públicos específicos, por exigên-cia legal (para portadores de deficiência, por exemplo) oupor pressão política da sociedade local (melhoria dos ser-viços de transporte urbano, por exemplo), diversos muni-cípios de médio e grande portes passaram a demandar commaior freqüência uma série de indicadores sociode-mográficos às agências estatísticas, empresas de consultoriae outras instituições ligadas ao planejamento público.

Em que pese o interesse dos agentes envolvidos nesteprocesso, a demanda nem sempre tem encontrado o pro-duto com as características desejadas. Têm sido constan-tes as queixas de usuários do Sistema Estatístico Nacio-nal, com relação à disponibilização das estatísticasmunicipais, restritas quase exclusivamente às informa-ções levantadas de dez em dez anos nos Censos De-mográficos (Prosérpio, 1994; Jannuzzi, 1995). No do-cumento intitulado “Informação para uma SociedadeDemocrática: por uma política nacional de produção edisseminação de informações sociais, econômicas e ter-ritoriais”, elaborado por várias sociedades científicas naúltima Conferência Nacional de Estatística (Confest), rea-lizada no Rio de Janeiro, em 1996, o município e sua rea-lidade local foram apontados como as áreas mais caren-tes de dados do Sistema Estatístico.

“A ausência mais marcante é a que se dá para a esferamunicipal. Um ‘Sistema de Informações Municipais’ ésempre prometido e nunca implementado, ficando sem-pre um vazio inexplicável (...) Esta questão merece muitaatenção porquanto a federalização recente encaminha aelaboração de planos diretores municipais para municí-pios acima de determinada população, o que passa neces-sariamente pela disponibilização de estatística” (Infor-mação ..., 1996:11).

De fato, até pouco tempo atrás, como bem observouSenra (1994), os institutos de estatística trabalhavam nacrença da validade da Lei de Say, de que toda oferta aca-bava criando sua própria demanda. O importante era, pois,produzir dados através de pesquisas e disseminá-los atra-vés das publicações e planos tabulares definidos quandoda concepção das pesquisas. Imaginava-se que tais docu-mentos eram mais que suficientes para a grande maioriados usuários. Demandas específicas poderiam ser atendi-das, no seu devido tempo e importância. A disseminaçãodos dados era praticamente reativa, o atendimento lento

e não-democrático e a base de dados subutilizada. Naopinião do autor, vivia-se o paradoxo da escassez na abun-dância.

Em um ritmo que talvez não esteja sendo suficiente-mente rápido – por falta de recursos, dificuldades meto-dológicas ou mesmo desprestígio de suas funções –, asagências públicas responsáveis pela produção de estatís-ticas sociais, econômicas e demográficas vêm procuran-do responder a esta demanda por informações referidas aespaços microrregionais e municipais. De forma a permi-tir a atualização de parcela do quadro social delineadopelos Censos Demográficos2 e alguma percepção das ten-dências demográficas e socioeconômicas nos municípiose microrregiões no período intercensitário, as iniciativasdas agências têm se concentrado, em geral, no uso e dis-ponibilização dos registros administrativos que permitemdesagregação local como os dados sobre emprego formalda Rais ou Caged do Ministério do Trabalho, os cadas-tros escolares das Secretarias Estaduais da Educação, asestatísticas de eventos vitais coletados nos cartórios deRegistro Civil, as informações sobre morbidade e morta-lidade por causas do Ministério da Saúde, as estatísticasde arrecadação de impostos pelas Secretarias da Fazendae da Receita Federal, os cadastros eleitorais, entre outros.Ainda que úteis e insubstituíveis, estas fontes de dadospadecem de problemas de cobertura espacial e consistên-cia metodológica, limitando muito sua potencialidade deuso. Conhecer as deficiências dessas fontes é, pois, umacondição necessária para sua boa utilização e primeiropasso para auxiliar no aprimoramento das mesmas. Hácertamente muito o que fazer acerca destas questões, tantopor quem produz as informações, como por que as utiliza.

No caso do Estado de São Paulo, vale registrar, alémda produção de indicadores municipais derivados de re-gistros administrativos, a experiência de realização daPesquisa de Condições de Vida em Campinas (1994) e daPesquisa de Emprego e Desemprego em São José dos Cam-pos (1996), surveys que garantem não apenas uma atuali-zação mais consistente do quadro social delineado pelosCensos Demográficos, como aprofundamento de temáti-cas de especial interesse dos contratantes. Esta parece seruma experiência factível – seja em termos financeiros, sejaem termos operacionais – para um grande número demunicípios de médio e grande portes no país. Naturalmen-te, há que se comprometer recursos dos Tesouros estaduale municipal para que isso se viabilize.

PROJEÇÕES POPULACIONAIS EESTIMAÇÃO DE DEMANDAS SOCIAIS

Dentre as informações municipais a serem disponibi-lizadas, figuram, sem dúvida, as projeções populacionais

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AS NOVAS E VELHAS DEMANDAS POR INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA

e suas derivações. Não é novidade alguma, pelo menosnos círculos técnicos, que as projeções populacionais re-presentam um insumo básico para formulação de qualquerpolítica social. Afinal, cada política social tem um públi-co-alvo determinado, diferenciado em termos de volume,ritmo de crescimento, composição etária e distribuiçãoespacial pelo território (Cepal, 1992).

As projeções demográficas constituem-se em insumofundamental para estimação da necessidade de cria-ção de empregos, da expansão dos níveis de renda econsumo domiciliar, do nível de investimento públiconas áreas sociais e na construção de equipamentossociais (Nações Unidas, 1989). As projeções popula-cionais permitem estimar o quantitativo de pessoas emcada fase do ciclo vital e, por conseguinte, avaliar a de-manda potencial de cada tipo de serviço e a necessidadede oferta de recursos humanos e equipamentos (Greene,1987; Nações Unidas, 1978 e 1989). A demanda de vagase professores nas escolas está estreitamente relacionadaao tamanho da população em idade escolar, de 6 a 17 anos.O nível de expansão de serviços médicos ambulatoriaisbásicos é, em boa medida, determinado pelo volume denascimentos na população, dada a maior propensividadede utilização deste serviço nesta faixa etária. A demandapor trabalho segue o ritmo de crescimento da populaçãoem idade ativa, de 15 anos ou mais até os 65-70 anos. A

necessidade de expansão da infra-estrutura urbana estárelacionada ao movimento de constituição de domicíliosfamiliares, que, por sua vez, está condicionado ao ritmode crescimento da população adulta.

Em âmbito local, a estimação de demandas quantitati-vas de serviços sociais a serem atendidas no futuro é, pois,um recurso importante para orientar a alocação dos recur-sos públicos nos planos plurianuais de investimento, de-finir a natureza e conteúdo das políticas e estabelecer asdiretrizes de investimento em infra-estrutura, de equipa-mentos públicos nos projetos de planos diretores de de-senvolvimento urbano.

Em que pese o valor estratégico destas informações,persistem, contudo, deficiências e lacunas importantes noque diz respeito à produção, disseminação e uso de dadosdemográficos de natureza prospectiva para fins de formu-lação de políticas sociais. Projeções populacionais em âm-bito microrregional e municipal não têm sido produzidase disseminadas com a regularidade necessária, dificultandoa estimação de demandas de serviços públicos e de servi-ços sociais a serem colocados à disposição da sociedade(Jannuzzi, 1998).

Tal fato decorre, em grande parte, da falta de percep-ção dos próprios agentes encarregados da tomada de de-cisões públicas – em seus diversos níveis – sobre os con-

QUADRO 1

Principais Fontes de Estatísticas Públicas Municipais

Fonte Temas Investigados Periodicidade

Censo Demográfico Geral: características 10 em 10 anosdemográficas,habitação, escolaridade,mão-de-obra, rendas

Censo Populacional População, migração, No meio do períodoescolaridade intercensitário

Relação Anual de Empregos, salários, AnualInformações Sociais demissões

Registros do MEC/ Matrículas, evasão, AnualSecret. Educação repetência

Registros do Ministério Morbidade, mortalidade Anuale Secret. Saúde por causas

Registro Civil Nascimentos, óbitos Anual

Estatísticas de Impostos pagos, empresas, AnualArrecadação Tributária contribuintes

Fonte: Jannuzzi (1995).

QUADRO 2

Exemplos de Públicos-Alvo Normativos de Algumas Políticas Sociais

Política Setorial Público-Alvo

EducaçãoCreche 0 a 3 anosPré-Escolar 4 a 6 anosBásica 7 a 14 anosSecundária 15 a 17 anosSuperior 18 a 24 anos

SaúdeCombate à mortalidade infantil 0 a 1 anoMaterno-Infantil 0 a 4 anos

Mulheres de 15 a 44 anosOcupacional População ativa de 15 anos ou maisPopulação idosa População de 65 anos ou mais

Emprego 15 anos ou mais

Seguridade social 55 anos ou mais

Assistência social e Pessoas sós, de 55 anos e maiscombate à pobreza Famílias com chefia predominante-

mente feminina, com elevadonúmero de crianças

Fonte: Jannuzzi (1997).

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dicionantes demográficos das demandas sociais. Como jáassinalavam Bercovich e Madeira (1990:595), “É indis-cutível que o respaldo de informações a respeito do volu-me e da composição da população é essencial em qual-quer programação de políticas de intervenção de naturezapública ou não. De fato, não se pode pensar em planificarsem o conhecimento mínimo de quantas são e serão aspessoas para as quais se destinam determinados progra-mas a curto, médio e longo prazos. Embora esta afirma-ção seja absolutamente consensual, a verdade é que os pro-gramas de ação podem falhar, e freqüentemente falham,em seus diagnósticos e propostas, porque desconhecem ofenômeno das descontinuidades das pirâmides etárias naprojeção de suas demandas”.

Essas considerações sobre a importância da estimaçãoquantitativa dos públicos-alvo das políticas públicas ga-nham relevância adicional frente às profundas transfor-mações na dinâmica demográfica do país (Carvalho,1994). Dependendo do estágio em que a população se en-contra no processo de transição demográfica, a ênfase e oconteúdo das políticas sociais serão diferenciados (Cepal,1992). Assim, por exemplo, em regiões em situação pré-transicional, caracterizada por grande concentração de jo-vens e por um perfil epidemiológico de óbitos marcadopor doenças infecciosas e parasitárias, as políticas públi-cas deveriam priorizar a saúde materno-infantil e a edu-cação básica. Em regiões recém-iniciadas no processo detransição demográfica, com aumento da taxa de urbani-zação e do crescimento demográfico (pela redução damortalidade infantil), as políticas de emprego, habitaçãoe expansão dos serviços urbanos passam também a serrequeridas com maior intensidade pela população. Na fasede “plena transição”, com a redução dos níveis correntesde fecundidade e mudança do perfil epidemiológico dosóbitos, a saúde da população adulta passa a ser uma ques-tão cada vez mais importante, assim como o ensino supe-rior e a qualificação profissional. Em um contexto “pós-transicional”, a ênfase da política social passa a serdedicada à população idosa, seja na saúde, seja na assis-tência e previdência social.

No estágio de “plena transição” em que se encon-tra o Brasil, a necessidade de investimentos em ensi-no de primeiro grau e saúde materno-infantil tenderiaa ser menor a curto prazo, cedendo lugar para políti-cas voltadas, gradativamente, a jovens e adultos (em-prego, habitação, educação universitária e qualificaçãopara o trabalho). A médio prazo, gradualmente aumenta-riam as necessidades de atendimento a demandas especí-ficas da terceira idade, com serviços médicos de geriatriae previdência social. De fato, estas têm sido as recomen-dações de diversos pesquisadores que têm se dedicado aavaliar as oportunidades e desafios colocados pelas trans-

formações do regime demográfico brasileiro (Martine,Carvalho e Árias, 1994).

QUADRO 3

Estágios da Transição Demográfica e Ênfase das Políticas Sociais

Estágio Ênfase da Política Social

Pré-Transicional Atendimento materno-infantilAltas taxas de crescimento populacional Educação básica e secundáriaPopulação muito jovem Habitação/serviços urbanosBaixa taxa de urbanização Emprego

Transição Iniciada Atendimento materno-infantilDesacel. do cresc. populacional Habitação/serviços urbanosUrbanização intensa EmpregoPopulação jovem Educação básica e secundária

Transição Plena EmpregoDesacel. acentuada do cresc. populacional Educação Superior e

secundáriaAumento da população idade ativa Saúde de adultos e materno-

infantilAlta urbanização Habitação

Transição Completa Saúde de adultos e idososBaixa taxa de cresc. populacional Previdência socialEnvelhecimento Assistência socialElevada urbanização Emprego

Fonte: Cepal (1992).

PROJEÇÕES ECONÔMICO-DEMOGRÁFICAS E ODESENVOLVIMENTO REGIONAL

Se as projeções populacionais e a estimação de deman-das sociais permitem avaliar quantitativamente o públi-co-alvo a ser atendido pelas diversas políticas setoriais,são as projeções econômico-demográficas que possibili-tam estimar o volume de recursos (equipamentos, rendaou empregos) que podem ser disponibilizados a partir deuma determinada estrutura produtiva e dinâmica econô-mica regional. Em uma concepção ideal – embora fora demoda – de Planejamento Público, tão importante quantoquantificar as demandas sociais é realizar estudosprospectivos sobre a capacidade de oferta de bens, servi-ços e empregos dos agentes públicos e privados em umadada região ou país. Através da comparação entre a de-manda e a capacidade de oferta estimadas para um futuropróximo, pode-se conseguir tomar, a tempo, decisões po-líticas e econômicas que contribuam para reduzir deficiên-cias de cobertura das políticas ou aproveitar a disponibi-lidade de recursos para outras finalidades.

Estes eram os objetivos de numerosas iniciativas dasNações Unidas e seus organismos associados nos anos 70,

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AS NOVAS E VELHAS DEMANDAS POR INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA

na difusão de métodos e modelos de “Planificação do De-senvolvimento” para países do Terceiro Mundo (NaçõesUnidas, 1989; Greene, 1987). Hoje, com os avanços na pro-dução de estatísticas econômicas em nível subnacional, al-guns destes modelos – modelos input-output, derivados dasmatrizes de Leontief (Brauers, 1995) – podem ser emprega-dos em âmbito regional para simulação de políticas econô-micas setoriais, como as de criação de emprego, para ava-liação de impactos de políticas de investimento público ede decisões locacionais de capital privado sobre o desen-volvimento regional, para projeção de demanda de merca-do de bens e serviços, enfim, para entendimento da dinâmi-ca inter-setorial e de suas relações com as fontes potenciaisde estímulo econômico (o consumo privado, a formação bru-ta de capital, os gastos governamentais e exportações).

Mais recentemente, os modelos input-output vêm sendoaplicados em problemas de previsão econômico-demográ-fica, incorporando não apenas coeficientes de impacto in-ter-setorial, mas também relações entre agregados econômi-cos (renda, emprego, desemprego) e variáveis demográficas(migração, mobilidade pendular). Como observaram há al-gum tempo Madden e Trigg (1990:65), “Nos últimos dezanos, temos presenciado o desenvolvimento de diferentesabordagens na aplicação de modelos input-output. Talvezuma das abordagens mais interessantes sejam aquelas volta-

das na desagregação do consumo familiar para modelar ex-plicitamente diferentes características econômicas e demo-gráficas da força de trabalho dentro do marco geral das ma-trizes de Leontief”.

A incorporação das projeções econômico-demográfi-cas na agenda das agências estatísticas pode representarum passo bastante significativo no resgate do status doPlanejamento Público como instrumento técnico (e polí-tico) de orientação da ação estratégica do Estado na eco-nomia e nas diversas áreas sociais. Também é importanteno aprimoramento da capacidade regulatória do Estado,como ilustram Batey e Madden (1998a) na interessanteaplicação de modelos econômico-demográficos para ava-liação prospectiva dos impactos socioeconômicos da ins-talação de dois grandes projetos (aeroportos) na Inglater-ra, em cujos resultados as autoridades britânicas sebasearam para tomada de decisão.3 Enfim, juntamente comas estimativas de demandas sociais, as projeções econô-mico-demográficas podem servir como elementos estru-turadores de um Sistema de Produção de Estatísticas Pú-blicas orientado a fornecer informações não apenas paraacompanhamento de políticas públicas, mas para redimen-sionamento quantitativo e qualitativo contínuo das mes-mas, frente os distintos cenários que se configuram nohorizonte de planejamento.

FIGURA 1

Estimação de Demandas Sociais e Projeções Econômico-Demográficascomo Elementos Estruturantes do Sistema de Produção de Estatísticas Públicas

Subsistema de Estatísticas Sociais: Subsistema de Estatísticas Demográficas:- Registros Administrativos Secretarias/Ministérios - Estatísticas vitais- Pesquisas sobre Condições de Vida - Pesquisas sobre tendências migratórias- Pesquisas sobre Mercado de Trabalho - Pesquisas origem-destino

Estimativas de DemandasSociais: saúde, trabalho,educação, habitação, etc.

InformaçõesProspectivaspara Planejamento Público

Estimativas de Ofertas eRecursos: empregos,investimento público,renda agregada, etc.

Subsistema de Estatísticas Econômicas:- Pesquisas sobre desempenho conjuntural daIndústria, Comércio, Serviços e Agropecuária

- Contas Regionais- Registros Administrativos das Secretarias,

Ministérios e Associações Patronais

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FIGURA 2

Exemplo de uma Matriz de “Contabilização Social”

Indicadores Sociais

Segmentos Populacionais e Renda Proporção de Condições Taxa de Inserção Mortalidade ..........

Públicos-Alvo de Políticas Sociais Familiar Indigência Habitacionais Desemprego Ocupacional Infantil

Famílias com Chefe com Baixa Escolaridade ......... ......... .......... ......... ......... ......... ..........

Famílias Chefiadas por Mulheres ......... ......... ......... ......... ......... ......... ..........

Aposentados ......... ......... ......... ......... ......... ......... ..........

Famílias Residentes na Zona Rural do Nordeste ......... ......... ......... ......... ......... ........ ..........

.......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..........

INDICADORES PARA MONITORAMENTO DEPOLÍTICAS SOCIAIS

A agenda de atividades das agências estatísticas não in-clui apenas o redimensionamento da escala de referênciaespacial dos indicadores produzidos – no atendimento dasdemandas por dados municipais – ou a ampliação do hori-zonte temporal de referência das estatísticas – no provimen-to de séries prospectivas sobre população, emprego e eco-nomia regional, além da produção das séries históricas deindicadores. Há necessidade de ampliação do escopo temáticoinvestigado, em bases mais periódicas, no que se refere asegmentos populacionais específicos.

No contexto de crescente focalização das políticas so-ciais (Madeira, 1998), justificadas em função da crise fis-cal do Estado e da necessidade de redução das desigual-dades sociais seculares no país, é cada vez mais importantemonitorar, de forma abrangente, a realidade social viven-ciada pelos públicos-alvo específicos dos programas. Cer-tamente que continuam imprescindíveis a produção e adisseminação de indicadores referentes à totalidade dapopulação, como aqueles sobre mercado de trabalho,mortalidade, escolarização e renda. Entretano, as pes-quisas hoje produzidas nas agências só se legitimarãoperante a sociedade e os formuladores de políticas públi-cas se se prestarem a atender estas novas demandas deinformação, voltadas à identificação dos segmentos sociaisdesfavorecidos, de acompanhamento periódico da situaçãodos mesmos e dos efeitos dos programas sociais propostos.

O acompanhamento conjuntural do volume e das ca-racterísticas sociais (em termos demográficos, ocupacio-nais, educacionais, etc.) da população indigente – famí-lias sem recursos sequer para se alimentar adequadamente– é um dos exemplos, entre outros, de lacunas temáticasem nosso Sistema Estatístico Nacional. Há, certamente, ini-ciativas louváveis e heróicas neste sentido, como no casodos trabalhos no âmbito do Ipea,4 mas é preciso reconhe-cer que o tema da pobreza não foi ainda incorporado nasagências estatísticas com a mesma preocupação e status

que outras temáticas sociais históricas, como o desempre-go, a escolarização, a mortalidade infantil, etc. Os esfor-ços da Cepal e do Banco Mundial no financiamento desurveys específicos, no apoio técnico às agências na-cionais de estatística, na capacitação de pessoal e na rea-lização de análises sobre a evolução da pobreza em di-versos países latino-americanos, ao que parece, finalmenteestão mudando este quadro, colocando o monitoramentoda pobreza e indigência como temas de especial relevân-cia dentro do SEN.5

Naturalmente, é preciso ir além do levantamento dasestatísticas de pobreza em âmbito nacional; é necessárioidentificar e monitorar os bolsões regionais, os segmen-tos populacionais de risco, a condição de indigência, ospúblicos-alvo de políticas sociais correlatas. Em síntese,é necessário que as agências estatísticas se comprometamcom a atualização periódica da Matriz de “ContabilizaçãoSocial”, discriminando indicadores sociais por cada seg-mento populacional específico de interesse para osformuladores de políticas.6

É possível passar a levantar informações, para estes pro-pósitos, nas principais pesquisas correntes nas agências es-tatísticas, sem reformulações ou acréscimos muito expressi-vos nos questionários ou amostras. Em uma situação ideal,contudo, seria interessante definir uma pesquisa específica,com características de levantamentos retrospectivos ou,melhor ainda, de painel longitudinal, formato mais apro-priado para o monitoramento social de uma população sub-metida a políticas públicas específicas.

A AGENDA DAS AGÊNCIAS PRODUTORAS DEESTATÍSTICAS

Neste novo contexto de descentralização de recursos eda ação social do Estado, da focalização de políticas pú-blicas e das características do novo regime demográfico,as agências estatísticas defrontam-se com a necessidadecrescente de produção de informações espacialmente maisdesagregadas (em âmbito municipal, sobretudo), atuali-

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AS NOVAS E VELHAS DEMANDAS POR INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA

zadas mais freqüentemente e referidas a um escopotemático mais amplo. É uma situação muito distintadaquela da época em que os Sistemas Nacionais deEstatística foram idealizados, de maior prevalência dasestatísticas de produção econômica, de abrangêncianacional ou macrorregional (Senra, 1998). Tal desafio,o da produção de dados microespacializados, periodi-camente levantados, tematicamente abrangentes,tampouco é uma questão apenas brasileira, mas pare-ce orientar a agenda de discussão em outros países,como revelam os discursos de abertura na conferên-cia internacional Statistics for Economic and SocialDevelopment, patrocinada pela Associação Internacio-nal de Produtores Públicos de Dados (Iaos), entre ou-tras (Fellegi, 1998; Marques Jarque, 1998).

Neste conjunto de informações microespacializadasa serem disponibilizadas pelas agências estatísticas, in-cluem-se, sem dúvida, as projeções demográficas, oumelhor ainda, as estimativas de públicos-alvos especí-ficos das diversas políticas sociais na área da educação,saúde, assistência social, transportes, etc. A produçãode cenários socioeconômico-demográficos futuros, in-tegrando as projeções demográficas, as estatísticas so-ciais e econômicas em um só sistema de produção deinformações, deveria constituir-se em uma preocupaçãocrescente na agenda de atividades dos produtores pú-blicos de informações e outros centros de pesquisa eanálise no país. Tais cenários estabelecem referênciasimportantes para a tomada de decisões nas administra-ções locais, contribuindo para a programação das de-mandas de bens, equipamentos e serviços públicos aserem colocados à disposição da sociedade. Como bemassinalam Patarra et alii (1991:33), “Se refletirmos so-bre a evolução da ciência aplicada, a lógica do plane-jamento e da demografia (aqui expressa sob a forma detécnicas projetivas) coincidem; trata-se de antecipar osfatos para controlá-los mediante intervenção. Essaslógicas pressupõem o Estado moderno, responsável pelacriação das condições de cidadania e busca da socie-dade do bem-estar. O planejamento não pode caminharsem a projeção populacional, e seu afastamento podeser início de afastamento do poder público do compro-misso social”.

Naturalmente, qualquer exercício prospectivo encerraboa parcela de incerteza e está sujeito a imprecisões, tan-to maiores quanto mais específicos ou mais distantes domomento de sua formulação. Ainda assim, como assina-lam Graham Jr. e Hays (1994:259-260), “O planejamen-to dita as bases para acomodação a mudanças, e sem es-sas bases as mudanças teriam um impacto ainda maisdrástico (...) o planejamento é ainda indispensável, poispermite aos administradores tomarem decisões basea-

das no melhor conhecimento disponível. Parte deste co-nhecimento vem da maior apreciação do ambiente exter-no da organização, descoberto durante o processo de pla-nejamento”.

Por fim, vale observar que todas as considerações an-teriores pressupõem a revalorização da função Plane-jamento na Administração Pública e a natureza intrin-secamente pública e gratuita da Informação Estatística.Indicadores sociais, estatísticas econômicas, dados de-mográficos e projeções populacionais constituem-se embens públicos, para usufruto coletivo de agentes públi-cos, privados, universidades, sociedade civil organiza-da. Ela se presta a atender a necessidade coletiva de mo-nitoramento da situação social, econômica e demo-gráfica e a contribuir para garantir níveis crescentes debem-estar da sociedade. Naturalmente, seja para produ-zir dados estatísticos de forma mais periódica e espa-cialmente mais desagregados, seja para disponibilizá-los rapidamente e a baixo custo, as agências estatísticasprecisam ter garantidos recursos orçamentários sufi-cientes e regulares, recursos estes que são, pela nature-za de suas atividades, predominantemente públicos.Receitas próprias advindas de venda de projetos ouprodutos podem e devem compor parte do orçamento,mas na forma e volume que não comprometam a missãoinstitucional e pública que estas agências desempenhamdentro do Sistema Estatístico nacional (Thygesen,1994; Fellegi, 1998).

NOTAS

1. O sistema de estatísticas do Canadá é tido como uma referência mesmo dentrodo Primeiro Mundo, pela qualidade dos levantamentos, diversidade metodológi-ca e temática das pesquisas, periodicidade e regularidade das séries estatísticas,etc. No caso do Chile vale destacar a existência de séries históricas de dadossocioeconômicos de longa data, assim como as inovações metodológicas paraacompanhamento de políticas sociais, gasto público e pobreza (Casen). No casodo México, há que se destacar a continuidade e regularidade na produção de umasérie de pesquisas sociodemográficas e econômicas em meio a toda a instabilida-de econômica das duas décadas passadas.

2. Os Censos continuam sendo as fontes mais abrangentes e quase exclusivas deinformações em âmbito municipal no país. Daí porque os questionários – básicoe da amostra – são comparativamente extensos em relação ao adotado em outrospaíses.

3. Uma versão em português deste texto está sendo publicado em Cadernos daFaceca (Batey e Madden, 1998b).

4. Neste sentido, é importante destacar a contribuição de Alfonso Árias e SoniaRocha, entre outros pesquisadores da instituição, com diversos trabalhos volta-dos à quantificação e qualificação da pobreza.

5. Vale destacar, entre as iniciativas da Cepal, a promoção de diversos cursos decapacitação no Inegi (México) sobre pobreza e metodologia estatística voltadospara técnicos da América Latina, dos workshops do programa Mecovi, junto comoutras instituições internacionais, além da preocupação, de longa data, com aprodução de estatísticas de pobreza nos países da região. Além dos seus estudossobre a questão, o Banco Mundial tem financiado a realização da LSMS – LivingStandards Mesurement Survey – em diversos países, inclusive no Brasil.

6. Vale assinalar que, já existe o compromisso por parte do IBGE em seguir asrecomendações da Comissão de Estatística das Nações Unidas no sentido deproduzir – periodicamente, a partir dos censos demográficos e suas pesquisasamostrais – um conjunto mínimo de indicadores sociais, discriminando-os porregião, sexo, cor e outros atributos sociodemográficos.

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O SISTEMA BANCÁRIO E O APARECIMENTO DA MOEDA ELETRÔNICA

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O SISTEMA BANCÁRIO E OAPARECIMENTO DA MOEDA ELETRÔNICA

MARIA CRISTINA PENIDO DE FREITAS

Pesquisadora da Área de Política Econômica e Estudos Financeiros da Fundap

esde o final dos anos 60, os sistemas financei-ros de diversos países industrializados passampor transformações profundas em suas estru-

turas e em seu funcionamento. Todavia, no início dosanos 80, esse processo assumiu novas configurações,marcadas pelo ritmo intenso de desenvolvimento e in-trodução de inovações financeiras, viabilizadas peladifusão dos grandes avanços tecnológicos nas áreas deinformática e comunicações e pelo aumento das pres-sões competitivas associadas à entrada de novos con-correntes nos mercados financeiros no contexto das po-líticas de desregulamentação e liberalização financeira.Entre as inovações financeiras, destacam-se as novasformas de moeda ou “quase-moedas” e, em particular,a moeda eletrônica.

Vários fatores estão na origem das modificações es-truturais dos sistemas financeiros. A identificação dopapel desempenhado por cada um dos fatores explica-tivos internos e externos ao sistema financeiro é, con-tudo, extremamente difícil, dado que esses se intera-gem. Mas, para os propósitos desse artigo, os fatoresligados às forças da concorrência é que serão privile-giados como elemento essencial das mutações finan-ceiras recentes.

É objeto deste artigo analisar os efeitos do surgimen-to de novas formas de moeda, particularmente as moe-das eletrônicas, no sistema bancário, inclusive os ban-cos centrais. Essas são as instituições-chave dossistemas de pagamentos baseados na moeda de crédi-to, que está na base de todas as transações econômicasrelevantes das economias capitalistas. Essa moeda éemitida por agentes privados, os bancos, como um re-conhecimento de dívida, enquanto membros de um sis-tema complexo e hierarquizado, organizado em torno

de um banco central. Responsável pela estabilidade dosistema de pagamento e de crédito, o banco centralemite uma moeda que lhe é própria, a moeda de cursolegal, utilizada pelos bancos para compensar todos ossaldos não-nulos das operações interbancárias, origi-nárias das transações realizadas entre credores de di-ferentes bancos.

Assim, na primeira seção, discute-se brevemente aemergência de novos competidores em mercados até en-tão privativos das instituições bancárias, no contexto domovimento de liberalização financeira. Na segunda se-ção, examinam-se as inovações introduzidas na esfera dagestão dos pagamentos. Na terceira seção, analisam-se asimplicações para o sistema bancário e para os organis-mos de supervisão do desenvolvimento da moeda eletrô-nica. Na quarta seção, à guisa de conclusão, avançam-sealgumas hipóteses relativas à evolução da moeda eletrô-nica.

A EMERGÊNCIA DE NOVOS ATORES

Nas últimas décadas, os bancos passaram a sofrer, emvários países, fortes pressões concorrenciais advindas daentrada de novos competidores em áreas de atuação nasquais eram os atores predominantes. Isso ocorreu em vir-tude do processo de liberalização financeira que se ca-racterizou, entre outras medidas, pela extinção dos limi-tes às atividades das instituições financeiras. No mesmosentido, contribuiu o fenômeno de institucionalização dapoupança financeira a partir do crescimento considerá-vel do número de investidores institucionais, tais comoos fundos de pensão, as seguradoras e os fundos mútuosde investimento. Os bancos passaram a concorrer comnovos rivais, seja na intermediação da poupança finan-

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ceira sob a forma de capital-dinheiro concentrado nas mãosdas famílias e empresas dos países industrializados, sejana gestão dos meios de pagamento em razão do desen-volvimento de novas formas de moedas ou de “quase-moedas”.

O monopólio dos bancos sobre os meios de pagamen-to começou a ser ameaçado quando do lançamento dosfundos mútuos de investimentos no mercado monetáriopor instituições financeiras não-bancárias. Tendo surgi-do nos Estados Unidos, nos anos 70, e se difundido rapi-damente nos outros países industrializados, esse novo ins-trumento conta com mecanismos de compensação quepermitem a utilização de cheques pelos clientes. Os ban-cos reagiram a essa nova pressão competitiva através daoferta aos seus clientes de contas de depósitos remunera-dos, de transferência automática de recursos entre os di-ferentes tipos de conta e de distribuidores automáticos dedinheiro (automatic teller machine ou automatic cashdispenser).

Os bancos também passaram a enfrentar a concor-rência de instituições não-bancárias na esfera institu-cional da gestão dos meios de pagamento. Os avançostecnológicos consideráveis nas áreas de informática ede telecomunicação tornaram possível o desenvolvi-mento por grupos privados não financeiros de meca-nismos eletrônicos de transferência e compensação defundos, bem como a oferta de centros eletrônicos deserviços e de software de processamentos de dados decartão de crédito.

A GESTÃO DOS MEIOS DE PAGAMENTO E ODESENVOLVIMENTO DA MOEDAELETRÔNICA

A aplicação cada vez mais difundida do progresso tec-nológico nos mercados financeiros tem sido um fator pro-pulsor de importantes mudanças estruturais do sistemafinanceiro em geral e do sistema de pagamentos em par-ticular, tanto em âmbito nacional como internacional.Sobretudo, esses avanços permitiram um significativoaumento de qualidade e maior rapidez no processamentoe na transmissão dos fluxos de informação. Os sistemasde intercâmbio eletrônico de dados (electronic dateinterchange) viabilizaram a substituição de uma vastadocumentação pela transmissão e registro eletrônico dasinformações. Na esfera das atividades financeiras, a uti-lização de tais sistemas se traduziu na eliminação de vá-rias procedimentos manuais, tais como o envio de infor-mações pelo correio e a coleta e verificação de cheques,entre outros.

A disseminação dos equipamentos e das técnicas deinformação nos mercados financeiros propiciou igual-

mente uma brutal redução nos custos das transações.Esses caíram em mais de 90% em 20 anos, de acordocom estimativas do BIS (1986:4). Os menores custos,aliados ao grande alcance das telecomunicações, trans-formaram o mercado financeiro internacional em ummercado global. Os bancos foram os pioneiros no de-senvolvimento de extensas redes eletrônicas de paga-mentos, como os terminais de ponto de venda, os sis-temas de transferência eletrônica de recursos e osdistribuidores automáticos de bilhetes, acessíveis atra-vés de cartas magnéticas, etc. Em 1973, por exemplo,pelo investimento conjunto de 239 bancos de 15 paí-ses, foi criada a Society for Worldwide InterstateFinancial Telecommunication (SWIFT), uma amplarede de telecomunicação interbancária para a transmis-são de informações e recursos a tempo real em âmbitomundial. Atualmente, com 3.070 membros e 2.621submembros, a SWIFT é responsável pela transmissãoe compensação de transações financeiras intercontinen-tais e intrapaíses, envolvendo vários milhões de men-sagens (Gandy, 1998a:94-95).

Nos Estados Unidos, também há sistemas de trans-ferência eletrônica de grandes volumes de dólares. Osdois serviços mais importantes são o sistema de trans-ferência de recursos do banco central americano, oFedwire, e o sistema privado CHIPS (Clearing houseinterbank payment system), que congrega 11 bancos deNova Iorque e é utilizado para pagamentos internacio-nais em dólares. As operações de transferência de fun-dos através do Fedwire são garantidas pelo Federal Re-serve, de modo que uma transferência não pode seranulada até que o banco beneficiário receba um avisodo banco central confirmando o crédito efetuado emsua conta. No caso do sistema CHIPS, os bancos for-necem colaterais para assegurar a compensação dastransferências efetuadas. As transações são concluídasno final do dia, quando os bancos membros do CHIPSefetuam o pagamento de seus saldos líquidos, utilizan-do as transferências do Fedwire.

Como pode ser observado na Tabela 1, as transferên-cias eletrônicas de grandes montantes de dólares corres-pondiam, em 1993, a uma pequena parcela do volume depagamentos em moeda escritural (noncash). Todavia, emtermos de valores, as transações através dos sistemas ele-trônicos representavam quase 86% do valor total dos pa-gamentos realizados. O movimento diário do Fedwire si-tuava-se em torno de 900 milhões de dólares, enquanto oCHIPS compensava perto de um bilhão de dólares numajornada normal. A maior parte dessas transferências cor-respondem ao pagamento de transações financeiras, ilus-trando a expansão espetacular do capital financeiro aolongo dos anos 80 (Guttmann, 1994:214).

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O SISTEMA BANCÁRIO E O APARECIMENTO DA MOEDA ELETRÔNICA

TABELA 1

Pagamentos NoncashEstados Unidos – 1993

Meios de Volume % Volume Valor % ValorPagamento (1) Total (1) Total

Total 61.712,1 100,0 547,5 100,0Cheques2 59.400,0 96,3 68,3 12,5Fedwire3 69,7 0,1 207,6 37,9CHIPS3 42,4 0,1 262,3 47,9Operadores Privados (ACH)4 2.220,0 3,6 9,3 1,7

Fonte: Knudson, Walton & Young (1994:271).(1) Em bilhões de dólares(2) As estimativas do total de cheques emitidos foram realizadas por funcionários do FederalReserve Board.(3) Pagamentos interbancários efetuados, segundo informações do Fedwire e do CHIPS.(4) Transferências e pagamentos interbancários realizados por operadores privados de com-pensação eletrônica, segundo o Nacional Automated Clearing House Association (NACHA).

Várias inovações financeiras estão sendo introduzidasna esfera do sistema de pagamentos. A própria moeda temsido objeto de inovações, como é o caso da moeda eletrô-nica, utilizada para os pagamentos de pequenos montan-tes (retail payments). Essas inovações ainda estão numestágio inicial de desenvolvimento, mas já colocam umasérie de questões para os bancos centrais. De fato, repre-sentam uma ameaça potencial para o papel predominanteda moeda-papel como dinheiro corrente e, por conseqüên-cia, para os lucros dos bancos centrais advindos das re-ceitas de senhoriagem.1

A expressão moeda eletrônica é freqüentemente utili-zada para designar um conjunto muito variado de meca-nismos de pagamentos e tecnologias. De acordo com adefinição estabelecida pelo BIS (1996a:2), a expressãomoeda eletrônica (e-money) refere-se aos valores pré-pa-gos, que são utilizados como meios de pagamento parafins diversos. Essa expressão se aplica, igualmente, aodinheiro de plástico (electronic purses), cartão com mi-croprocessador em que são registradas quantias variadas,e os produtos de software pagos previamente que utili-zam redes eletrônicas de telecomunicações, como aInternet.2

A definição de moeda eletrônica sugerida pelo BISexclui todos os chamados produtos de acesso que permi-tem aos consumidores utilizarem, através dos meios decomunicação eletrônica, os serviços de pagamentos tra-dicionais. Esses produtos viabilizam a realização de pa-gamentos com cartão de crédito ou a transferência de re-cursos entre contas bancárias pelo computador e/outelefone. Programas de home banking cada vez mais so-fisticados que liberam os clientes da necessidade de sedeslocarem até as agências bancárias constituem uma im-portante arma na dinâmica concorrencial dos bancos.

Vários instrumentos atualmente disponíveis possuemao mesmo tempo elementos típicos de valores pagos an-

tecipadamente bem como de produtos de acesso. Mas osmétodos de acesso não possuem o mesmo tipo de impli-cação que os esquemas de moeda eletrônica, no sensoestrito da definição do BIS. Estes interessam diretamenteaos bancos centrais, pois interferem em suas funções deadministrador do sistema de pagamentos e de executorda política monetária. Além dos seus efeitos potenciais,como já assinalado, sobre as receitas de senhoriagem, amoeda eletrônica pode também exigir a extensão das fun-ções de supervisão e de prestamista de última instânciados bancos centrais, dados os possíveis riscos financei-ros de seus emissores, tais como risco de crédito, risco deiliquidez, risco de flutuação dos preços nos diferentesmercados, etc.3

Como assinala corretamente Guttmann (1996:69-70):“A proliferação de formas de moeda e de serviços de pa-gamentos relativamente pouco regulamentados reforça-ram a dimensão da moeda enquanto mercadoria privada.Nos dias de hoje, não somente a criação mundial da moe-da está muito mais submetida aos motivos de lucros dosbancos e de seus clientes, escapando do controle dos ban-cos centrais, como a própria moeda tornou-se em si mes-ma um objeto de inovação de produto e de progresso tec-nológico. Estamos diante da emergência da moedaeletrônica, que tem uma importância particular. Suasmanifestações correntes, tais quais os guichês automáti-cos, os smarts cards, as transações bancárias administra-das em domicílio através de redes informatizadas ou mes-mo de sistemas de cheque eletrônico atualmente realizadospor servidores (e-mail) são todos, de um modo ou de ou-tro, sempre conectados ao mecanismo gerido pelo bancocentral. Até o momento, não representam ameaça fatal àcapacidade de gestão monetária dos Estados-Nação. To-davia, essa situação deverá se modificar com o surgimentoeminente dos primeiros mecanismos de transferência defundos e de compensação de dívidas na Internet” (tradu-ção livre).

Existem, atualmente, vários esquemas de moeda ele-trônica em funcionamento, cujas características operacio-nais e institucionais diferem significativamente. Em pri-meiro lugar, a base de instalação técnica é bastante distinta.Os sistemas de cartão de crédito pré-pago utilizam ummicroprocessador nos cartões de plásticos, enquanto ossistemas eletrônicos utilizam programas especializadosinstalados em computadores pessoais. Nesse caso, os va-lores eletrônicos são registrados no disco rígido dos com-putadores e os pagamentos são efetuados por comunica-ção eletrônica.

Em segundo lugar, os esquemas institucionais tambémvariam muito. Em geral, quatro tipos de provedores de ser-viços (service provider) participam de uma transação commoeda eletrônica: o emissor do valor em moeda eletrônica,

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os operadores das redes de telemática, os fornecedores deequipamento e de software e o liquidante (clearer) das tran-sações em moeda eletrônica. Do ponto de vista da políticamonetária e da regulamentação financeira, interessa apenasaos agentes emissores da moeda eletrônica, dado que essamoeda representa uma obrigação no passivo de quem a emite.Os operadores das redes e os fornecedores só oferecem ser-viços técnicos enquanto os liquidantes são, em geral, ban-cos ou filiais bancárias especializadas na prestação de servi-ços de compensação eletrônica.

Em terceiro lugar, os produtos disponíveis diferemquanto à forma de transferência dos valores. Alguns dosesquemas de moeda eletrônica permitem a transferênciadireta de saldos de um usuário a outro, sem o comprome-timento do emissor da moeda eletrônica. Habitualmente,a única forma de pagamento permitida é a transferênciade recursos de consumidores ao vendedor de um produtoou serviço. Estes últimos, no final do dia, depositam osvalores registrados recebidos em suas contas bancárias.

Um outro aspecto relativo à transferência de valoresdiz respeito à forma de registro das transações. A maioriados esquemas de moeda eletrônica registram certos deta-lhes das transações entre consumidores e comerciantes emuma central de dados que pode ser fiscalizada. Emboranão seja freqüente, os dados podem ficar guardados parasempre. Todavia, no caso da transferência direta entreconsumidores e comerciantes, as transações são registra-das no microprocessador do cartão de crédito do consu-midor. Os dados só podem ser fiscalizados no momentoem que este entra em contato com o operador do esque-ma de moeda eletrônica para recarregar o cartão.

Finalmente, na maior parte dos esquemas de moeda ele-trônica que estão sendo desenvolvidos ou em teste, o valorregistrado nos diferentes meios utilizados é denominadoexclusivamente em moeda nacional. É possível, contudo, que,no futuro próximo, saldos possam ser mantidos e pagamen-tos possam ser efetuados em diferentes moedas nacionais.

O ponto comum a todos os esquemas de moeda eletrô-nica em desenvolvimento é que estes exigem, sem exce-ção, mecanismos institucionais de compensação e liqui-dação das transferências. Vários esquemas utilizam oupretendem utilizar as redes interbancárias privadas já exis-tentes. O grande desafio é que os sistemas precisam serseguros e aptos para efetuar a necessária gestão dos ris-cos e os procedimentos de compensação. Exemplos deesquemas de moeda eletrônica em funcionamento ou emdesenvolvimento são apresentados no diagrama.

IMPACTOS DA MOEDA ELETRÔNICA

Os esquemas de moeda eletrônica trazem para as au-toridades governamentais uma série de questões para as

quais ainda não existem respostas inequívocas. São inda-gações associadas à segurança desses esquemas, às rela-ções legais e/ou contratuais entre os consumidores, ope-radores e os emissores, ao espaço de atuação dos órgãosde regulamentação, entre outras. Uma questão importan-te refere-se à necessidade de introduzir regulamentaçõesbancárias que se apliquem aos esquemas de moeda ele-trônica. Contudo, se tais esquemas incluem transaçõesentre países (cross countries) é difícil definir com preci-são sob qual jurisdição particular recaem os esquemas demoeda eletrônica. Há um outro conjunto de questões le-gais importantes, sobretudo para os bancos centrais, dadoque os esquemas de moeda eletrônica podem violar seusmonopólios de emissão de papel-moeda e de moeda me-tálica, protegidos por lei na maior parte dos países. Restasaber se os bancos centrais terão igualmente o direito deemitir a moeda eletrônica.

Um outro conjunto de questões diz respeito às respon-sabilidades dos bancos centrais quanto aos sistemas in-ternacionais de pagamentos dado que, na maioria dos paí-ses, os bancos centrais são também responsáveis pelasupervisão prudencial do sistema bancário. Tal atribui-ção exige da autoridade monetária um acompanhamentocontínuo dos desenvolvimentos da moeda eletrônica, poisos bancos deverão ter um papel importante como emisso-res. Como todos os demais produtos bancários e finan-ceiros, a moeda eletrônica vai gerar riscos, que precisamser monitorados e bem administrados, seja internamentepelas próprias instituições emissoras, seja externamentepelo banco central, guardião da estabilidade do sistemade pagamento. Uma questão-chave para os bancos cen-trais refere-se ao nível de risco aceitável para as institui-ções bancárias individualmente, admitindo-se que é fun-damental evitar os efeitos deletérios sobre a viabilidade ea reputação dos sistemas de pagamentos eletrônicos emgeral advindos de uma eventual falência de um dos es-quemas de moeda eletrônica.4

A introdução da moeda eletrônica pode afetar osagregados monetários e a formulação da política mo-netária. Esse tipo de moeda pode reduzir ainda mais afunção dos agregados, sobretudo em seus conceitosestreitos, para os países que os utilizam como indica-dores ou como intervalo de referência para a variaçãodo volume da moeda. Como ressalta o BIS (1996b:7),as conseqüências da introdução da moeda eletrônica naexecução da política monetária dependerão, sobretu-do, de seus impactos sobre a demanda de reservas ban-cárias ou sobre a capacidade do banco central de cor-responder a essa demanda. Esse desenvolvimento podeter como desdobramento a substituição de depósitosbancários, submetidos à exigência de reservas obriga-tórias, pela moeda eletrônica, ou a diminuição da de-

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O SISTEMA BANCÁRIO E O APARECIMENTO DA MOEDA ELETRÔNICA

DIAGRAMA 1

Fonte: Sendrovic et alii, 1996.

Esfera de Compensação e Liquidação

Esfera de Compensação e Liquidação

Operador do Sistema

Emissor Adquirente

EsferaEmissão/Aquisição

TransferênciaInterbancária

TransferênciaInterbancáriaacordo de acordo de

carregamento carregamentodepósito depósito

crédito

depósito

Usuário npagamentos pagamentos Esfera do Varejo

Fluxo de moeda eletrônica

Outros fluxos

Emissor Único com Transferência Livre entre Cosumidores

emissãoEmissor/Operador do Sistema

InstituiçãoParticipante

pagamentos

pagamento pagamento

carregamento carregamentodepósito depósito depósito

emissão emissãocrédito crédito

crédito

InstituiçãoParticipante

InstituiçãoParticipante

Esfera de OperaçãoEmissão/Aquisição

Esfera do Varejo

ComercianteConsumidor Consumidor

Sistema de Emissores Múltiplos com Transações Limitadas a um Único Pagamento

Domínio de Compensação e Liquidação

Operador do Sistema

pagamentosEsfera de OperaçãoEmissão/Aquisiçãocrédito

crédito

créditoEa+Eb

créditoEa+Eb

carregamentoEa

carregamentoEb

depósitoEa

depósitoEb

Emissor A Emissor B Adquirente YAdquirente X

Esfera do VarejoPagamento Ea

Pagamento Ebdepósito Ea+Eb depósito Ea+Eb

Comerciante ComercianteConsumidor ConsumidorPagamento Eb

Pagamento Ea

Ea: moeda eletrônica emitida por AEb: moeda eletrônica emitida por B

Estrutura da Internet

Intercâmbio Comercial via Internet"NSFnet"

Chicago NAP, AmeritechNew York NAP, Sprint

São Fancisco NAP, Pacific Bell

Intercâmbio Comercial via Internet

Provedores da Internet nos Estados Unidos: ANS, Sprint, MCI, etc. Estados Unidos

Europa Pacífico

Eunet Ebone, Europanet Kreonet, Aarnet

Usuário 1 Usuário 2

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manda dos bancos por saldos compensatórios do ban-co central. Contudo, a moeda eletrônica não deverá sig-nificar a supressão da necessidade de compensaçãodefinitiva das transações, que só pode ser realizada pelamoeda bancária emitida pelo banco central, como umamoeda de crédito, dado que só essa moeda possui opoder liberatório completo. Por essa razão, espera-seque a moeda eletrônica seja muito mais um substitutodo numerário, sem afetar os depósitos bancários e asreservas que esses mantêm junto ao banco central.

Na maioria dos países industrializados, o numeráriorepresenta uma parte importante das obrigações do ban-co central (Tabela 2). Por essa razão, um aumento ex-pressivo da participação da moeda eletrônica comomeio de pagamento pode se traduzir na retração dosbalanços dos bancos centrais. No que se refere ao im-pacto da moeda eletrônica sobre a senhoriagem, as es-timativas feitas pelo BIS revelam que se ocorrer a pre-dominância dessa forma de moeda como meio depagamento, vários bancos centrais serão obrigados aprocurar novas fontes de receitas. Para os países comgrandes déficits orçamentários, mesmo uma pequenaredução nas receitas de senhoriagem pode ter conse-qüências negativas, dado que os lucros dos bancos cen-trais são, pelo menos em parte, transferidos aos tesou-ros, na maioria dos países.

TABELA 2

Papel-Moeda e Moeda Metálica em CirculaçãoPaíses Selecionados – 1994

PaísesEm % Em % do Passivo Em % dos Senhoriagem Para Memória:do PIB dos Bancos Centrais Depósitos (1) em % do PIB Depósitos (1)

(2) em % do PIB

Bélgica 5,2 42,0 37,1 0,44 14,0Canadá 3,5 86,7 78,9 0,31 4,4França 3,4 37,7 17,8 0,28 19,2Alemanha 6,8 63,4 42,0 0,52 16,2Itália 5,9 27,9 19,1 0,65 30,7Japão 8,8 84,5 37,0 0,42 23,6Holanda 6,3 43,0 33,4 0,46 18,8Suécia 4,5 25,2 ... 0,48 ...Suíça 7,8 42,9 44,1 0,45 17,9Reino Unido 2,8 69,8 4,8 0,28 58,8Est. Unidos 5,2 84,1 44,7 0,43 11,6

Fonte: BIS (1996a:5 e 8).(1) São considerados como depósitos: os depósitos à vista e/ou os depósitos transferíveisincluídos nos agregados monetários em conceito restrito (geralmente M1; M2 para o Reino Unido).(2) A receita de senhoriagem é estimada mediante a multiplicação do papel-moeda e das moedasmetálicas pela taxa de juros de longo prazo das obrigações do Tesouro.

O desenvolvimento da moeda eletrônica pode causarimpactos também para os bancos individualmente e parao conjunto do sistema bancário em termos de perda dereceita, uma vez que pode significar o desaparecimento

de uma expressiva fonte de ganho dos bancos representa-da pelo float. Isto é, os bancos obtêm ganhos em virtudeda existência de um intervalo temporal, em vários paísesdefinidos em lei, entre o desconto de um cheque e o lan-çamento do crédito correspondente na conta do cliente.Nos esquemas de moeda eletrônica, os débitos e créditossão efetuados simultaneamente em tempo real. Todavia,a principal conseqüência do desenvolvimento dos meiosde pagamento eletrônicos parece ser o fato de ameaçarseriamente o monopólio dos bancos no sistema de paga-mentos. Os novos concorrentes podem surgir não apenasentre as instituições financeiras não-bancárias, como tam-bém entre as empresas de software que oferecem servi-ços bancários através da Internet.

De acordo com a revista The Banker, em uma confe-rência sobre os sistemas de pagamentos realizada em 1996na Suíça, a principal questão se referia exatamente sobreo papel prospectivo dos bancos nos circuitos de pagamen-tos (Talmor, 1996). As respostas, porém, permaneceramevasivas dado que um quadro completo ainda não estátraçado. E isso, sem considerar o fato de as tecnologiasde informação utilizadas nos serviços bancários eletrôni-cos e nos esquemas de moeda eletrônica mudam rapida-mente, fazendo com que os serviços e produtos ofereci-dos no futuro sejam completamente diferentes daqueleshoje disponíveis (Basle Committe on Banking Supervision,1998:2).

De acordo com os analistas, nos sistemas de pagamen-tos voltados para as transações de varejo, cujos volumese valores tendem a crescer, as receitas não deverão au-mentar no mesmo ritmo e, em alguns casos, poderão atémesmo cair, em decorrência da entrada de novos compe-tidores nesse mercado de pagamento de varejo, seja pelaredução dos preços dos equipamentos necessários para amontagem de uma rede de pagamentos eletrônicos, comoos smarts cards, cuja utilização aumenta rapidamente naEuropa Ocidental, seja pelo potencial de expansão damoeda eletrônica na Internet, como o Digiscash ouCybercah, sobretudo nos Estados Unidos, onde o comér-cio eletrônico vem se propagando consideravelmente, emparticular entre as famílias com renda anual superior aUS$ 50 mil (Kennickell e Kwast, 1997).

Nos Estados Unidos, os esquemas-piloto de implanta-ção do smart card não obtiveram sucesso. Um ambiciosoprojeto lançado em outubro de 1997 por um grupo for-mado pelo Citi, o Chase e as principais emissoras de car-tões de crédito, Visa e Mastercard, que deveria ser con-cluído até o final de 1998, foi abandonado. Cerca de 100mil smarts cards foram colocados em circulação em umplano-piloto, com elevados gastos com publicidade, doqual participaram 600 comerciantes de uma área deManhattan, bairro de Nova Iorque. Porém, o esquema não

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O SISTEMA BANCÁRIO E O APARECIMENTO DA MOEDA ELETRÔNICA

correspondeu às expectativas dos comerciantes que pres-sionaram pelo fim da experiência (Authers, 1998).5

Entretanto, uma nova geração de cartões inteligentescapaz de oferecer múltiplos usos, além do simples paga-mento de compras, está surgindo e poderá reverter essequadro. Duas novas principais tecnologias estão sendointroduzidas nesse segmento dominado pelas companhiasde cartões de crédito.6 Uma delas é a JavaCard, patroci-nada pelo Visa em conjunto com o banco inglês StandardChartered, lançada experimentalmente no mercado deCingapura em julho de 1998. A outra, denominada,MultOS card foi desenvolvida sob a égide da Mastercarde de um consórcio de outras companhias como o AmericaExpress. Porém, os especialistas duvidam da possibilida-de de esse meio de pagamento tornar-se popular nos Es-tados Unidos, onde o baixo custo das ligações telefôni-cas favorece a utilização dos meios eletrônicos, via Internet(Gandy, 1998b:82 e 84).

Em relação ao sistema de pagamentos nos mercadosde atacado, onde são transacionados montantes vultososde recursos, os estudos indicam, contudo, o predomínioduradouro e incontestável dos bancos (Talmor, 1996:24-27). Nesse mercado, o cenário mais provável será o do-mínio de alguns grandes bancos internacionais, possivel-mente os americanos Citigroup, Chase Manhattan eBankAmerica e os europeus HSBC Holding, UBS,Deutsche Bank e ABN Amro Bank. O poder dessas insti-tuições está alicerçado em suas vastas redes de agência,espalhadas pelos cinco continentes, em suas capacitaçõesoperacionais, na excelência dos serviços que oferecem eem suas estratégias agressivas de ação global.

A emissão de moeda eletrônica pelas instituições fi-nanceiras não-bancárias, e mesmo pelas empresas não-financeiras, significa o fim definitivo do monopólio dosbancos sobre os meios de pagamento. Todavia, não de-corre daí que as transferências monetárias por meio daInternet possam ser executadas sem a transferência sub-seqüente de reservas bancárias. De fato, os próprios ban-cos já se preparam para operar a transferência de fundose as compensações das relações de débito e crédito reali-zadas via Internet. Em 1996, por exemplo, ocorreu o anún-cio da criação de um consórcio, denominado Integrion,entre a IBM e um grupo de 15 grandes bancos america-nos para ofertar serviços bancários on line, ou seja, a pres-tação de serviços a domicílio pela Internet (Authers, 1996).Por essa iniciativa, os bancos procuravam se defender deuma potencial concorrência da Microsoft no mercado deserviços bancários on line. A cooperação é, ademais, ummodo de dividir os altos custos dos investimentos em te-lemática.

Com propósito semelhante, aconteceu a criação doOpen Banking Consortium pela Unisys, outra importante

empresa do setor de software, em aliança com um amploconjunto de bancos, empresas de telecomunicações eprovedores de Internet em diversos países. Desse consór-cio, participa também o Banking Industry TechnologySecretariat (BITS), cujos membros estão entre os 125maiores bancos americanos (Talmor, 1996:26).

Dois dos principais bancos americanos, o Citi e oChase, não aderiram a nenhum desses dois consórcios,preferindo manter seus próprios sistemas independentesde transações bancárias on line, que foram patenteados.O Citi realizou investimentos expressivos no desenvol-vimento e na instalação de um software uniforme em to-dos os países onde atua, de modo a oferecer a seus clien-tes, sobretudo às grandes empresas, todos os serviços etécnicas de gestão da liquidez a partir de um único pontode venda.

Os bancos podem desempenhar inúmeras funções nosesquemas de moeda eletrônica. Além de atuar como emis-sores dessa nova forma de moeda, podem assumir outrasatribuições, entre as quais, distribuir moeda eletrônicacriada por outras entidades, oferecer procedimentos derecompra das transações em moeda eletrônica às empre-sas do setor de comércio, efetuar o processamento, a con-ferência e compensação das transações em moeda eletrô-nica e manter registros das operações. Porém, ao assumiresses papéis, as instituições bancárias podem incorrer emuma série de riscos: operacionais, legais, de crédito, deliquidez, de taxa de juros, de mercado, de transaçãointrafronteiras, etc. Embora tais riscos não sejam novosnem diferentes daqueles que tradicionalmente são ineren-tes à atividade bancária, podem surgir de modo e em in-tensidade distintos, surpreendendo os bancos e as autori-dades de supervisão. Nesse sentido, é necessário efetuarum processo contínuo de avaliação e monitoramento dosriscos, mediante a adoção de sistemas internos e exter-nos de controle e, sobretudo, de segurança. Esses últimosdevem combinar instrumentos de hardware e de softwarede modo a viabilizar a construção de sistemas seguros,que previnam fraudes e má utilização, seja por parte defuncionários ou de hackers (Basle Committee..., 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo procurou mostrar as repercussões do de-senvolvimento da moeda eletrônica sobre o sistema ban-cário e sobre a gestão do sistema de pagamentos na eco-nomia capitalista moderna, fundado na moeda de crédito.

Os sistemas privados de pagamento fora do controledos bancos centrais, e em concorrência com os seus pró-prios sistemas, levantam questões cruciais no que se re-fere às transformações em curso na atividade bancária ena própria noção de moeda. Porém, o desenvolvimento

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das transferências de recursos e das relações de débito ecrédito por meio eletrônico, como a Internet, e dadesmaterialização progressiva dos instrumentos de com-pensação dessas transações não deverá modificar a fun-ção essencial dos bancos na gestão dos meios de paga-mento. Como já ressaltado, a moeda eletrônica nãosignifica de modo algum a supressão da necessidade decompensação definitiva das transações, que só pode serrealizada pela moeda bancária emitida pelo banco cen-tral, como uma moeda de crédito, dado que só essa moe-da possui o poder liberatório completo.

Igualmente, a generalização do uso da moeda eletrô-nica esbarra na praticidade dos principais meios de paga-mento hoje: o papel-moeda, cuja utilização é quase uni-versal, e o cheque bancário, menos freqüente nos paísesperiféricos, onde grande parte da população não tem aces-so ao sistema bancário. O mais provável é que a moedaeletrônica ganhe importância nos segmentos de varejo queatendem às camadas de renda mais alta, tanto nos paísesindustrializados como nos periféricos. Quanto às transa-ções de atacado, efetuadas por grandes corporações e ins-tituições financeiras bancárias e não-bancárias, a impor-tância da moeda eletrônica deverá ser crescente.

A transição em direção a uma nova moeda constitui,entretanto, “uma ameaça à eficácia do controle do bancocentral sobre o sistema de pagamento, aspecto-chave desua capacidade de gestão monetária. (...) a moeda é umainstituição social, cuja gestão não pode ser relegada ex-clusivamente aos agentes privados e aos seus objetivosde lucro. Seus aspectos de bem público __ em matéria decriação corretamente instituída, de circulação ininterrup-ta e de valor estável __ necessitam de uma boa dose degestão estatal. Dada a natureza evolutiva do dinheiro e desuas repercussões sobre as relações entre o capital finan-ceiro e o capital industrial, uma tal administração estatalserá melhor organizada se estiver fundada em um novosistema mundial de pagamentos” (Guttmann, 1996:94-96).

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

Este artigo é uma versão modificada de parte do terceiro capítulo da tese de dou-toramento Concurrence bancaire, spéculation et instabilité financière: une lecturehétérodoxe de l’évolution récente du système financier international, defendidaem maio de 1997, na Université de Paris XIII – França, sob a orientação do pro-fessor Dominique Plihon.

A autora agradece os comentários e sugestões de Daniela Prates e se responsabi-liza pelos erros e omissões remanescentes.

1. No contexto histórico, o termo senhoriagem se aplicava ao imposto ou taxaque o soberano recebia pelo direito de cunhar a moeda metálica. Com o surgi-mento do papel-moeda, grandes lucros puderam ser obtidos pelos institutos emis-

sores, pois o valor de face dos bilhetes é largamente inferior ao seu custo deemissão.

2. Alguns autores não fazem essa distinção sugerida pelo BIS entre os produtos deacesso e os produtos com valores pré-pagos. Ver, por exemplo, Guttmann (1996).

3. Adicionalmente, várias características dos esquemas de moeda eletrônica po-dem transformá-los em meios atraentes para as práticas criminais, em particulara “lavagem” de dinheiro. As formas de moeda eletrônica que permitem a reali-zação de pagamentos entre usuários de diferentes países através das redestelemáticas são um grande atrativo para “máfias” de toda espécie, sobretudo seas transferências de recursos obtidos em atividades ilegais são efetuadas paraum país onde as leis contra a “lavagem” de dinheiro são fracas ou inexistentes.

4. O risco de forte opinião pública negativa sobre os esquemas de moeda eletrô-nica, em virtude de erros, malfuncionamento da rede de comunicação, fraudesefetuadas por terceiros, pode afetar não só o banco envolvido, mas todos os ban-cos que oferecem esquemas de moeda eletrônica e de serviços bancários eletrô-nicos semelhantes, assim como todo o sistema bancário como um todo (BasleCommitte..., 1998:7).

5. No Brasil, o primeiro projeto-piloto de cartões inteligentes foi lançado há doisanos pela Visa em Campinas. Atualmente, o projeto está em fase de consolida-ção com 60 mil cartões lançados e 1,2 mil terminais de venda espalhados pelacidade. Já a Mastercard planeja para o primeiro semestre de 1999 o lançamentono Brasil de seu smart card multiuso (Guedes, 1998).

6. Para maiores detalhes sobre as diferenças entre as duas tecnologias utilizadasnesses novos esquemas-piloto de smart card, ver Gandy (1998b).

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APOSENTADOS E PENSIONISTAS: QUANTOS SÃO E COMO VIVEM

O

APOSENTADOS E PENSIONISTASquantos são e como vivem

MARIANA BATICH

Socióloga, Analista da Fundação Seade

ROSA MARIA MARQUES

Economista, Professora do Departamento de Economia da PUC-SP

s programas de política social voltados a ampa-rar a população adulta impossibilitada de obterrecursos para sua sobrevivência e/ou de seus

dependentes devido à idade avançada, ao tempo de servi-ço e à doença foram objeto de um longo processo de dis-cussão pela sociedade brasileira nos últimos anos. Na lei-tura do governo federal, reformulações se faziam abso-lutamente necessárias, tendo em vista a situação finan-ceira do sistema de proteção social.

Sem esperar o resultado das discussões no CongressoNacional, o Ministério da Previdência e Assistência So-cial – MPAS implementou várias medidas, quer raciona-lizando a fiscalização, quer reduzindo despesas de todanatureza. A atenção centrou-se principalmente no esfor-ço de adequar o orçamento do Instituto Nacional do Se-guro Social – INSS às despesas com os segurados. Algu-mas medidas foram adotadas nesta direção, tendo sidoabolidos alguns benefícios como abono de permanência,pecúlio, auxílio-natalidade e auxílio-funeral. Essas inicia-tivas puderam ser realizadas porque não dependem dealterações constitucionais, tal como acontece com o di-reito à aposentadoria por tempo de serviço. Por isto, oPoder Executivo propôs ao Legislativo que reformulassea Constituição substituindo o critério de tempo de servi-ço pelo tempo de contribuição e idade. Saliente-se que asmanifestações de resistência às mudanças da política pre-videnciária concentraram-se neste ponto.

No palco dos debates, pouco se ouviu falar sobre a situa-ção dos assistidos pela previdência social. Tem-se apenasum saber difuso sobre as precárias condições de vida daclientela que vive dos benefícios previdenciários, uma vezque, na sociedade brasileira, não são poucas as famíliasobrigadas a cuidar do sustento dos membros mais velhos,cuja renda provém da aposentadoria. São raras as avalia-

ções sobre o tipo de amparo social que o INSS provê àque-les que dele dependem para sobreviver. Entretanto, isto épossível de ser realizado graças ao rol de informaçõesdisponíveis no sistema estatístico nacional a respeito.

O presente artigo analisa a situação dos aposentados epensionistas do Estado de São Paulo, no período com-preendido entre 1992 e 1996, levando em conta, de umlado, os registros administrativos do MPAS publicadosno Anuário Estatístico da Previdência Social. Este infor-ma sobre a situação no mês de dezembro quanto ao nú-mero de beneficiários e seus ganhos mensais, excluído oabono natalino.

Para completar o quadro de informações sobre a si-tuação das categorias em análise, lançou-se mão dos re-sultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-lios – PNAD, realizada pela Fundação Instituto Brasileirode Geografia e Estatística – IBGE. Essa base de dadospermite conhecer a composição dos aposentados e pensio-nistas por gênero e, principalmente, saber se eles conti-nuam a participar ou não da população economicamenteativa. Todos os sistemas previdenciários são abrangidos,uma vez que se trata de uma pesquisa domiciliar.1

Tendo em vista as características do levantamento rea-lizado pela PNAD, entre as informações levantadas en-contra-se um percentual de casos – ao redor dos 3,5% –sobre os quais não foi possível determinar se o entrevis-tado estava na situação de aposentado ou de pensionista.Por isto, todas as considerações a respeito desta popula-ção, apresentadas neste trabalho, centraram-se somentenos dados para os quais há uma definição precisa sobre acategoria em que se enquadra.

O último suplemento especial da PNAD, de 1983, so-bre mão-de-obra e previdência, mostrou que, nesse ano,87% da população paulista era filiada a algum tipo de sis-

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tema previdenciário, e deste universo, 93% era vinculadaao Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social– Sinpas; e 79% era formada pelo contingente de empre-gados formais (apud Soares e Marques, 1994). Assim,embora os dados deste trabalho refiram-se aos anos de1992 a 1996, é bem provável que a quase totalidade douniverso levantado pela PNAD, sobre a condição de ati-vidade de aposentados e pensionistas por sexo, no perío-do, refira-se aos assistidos do INSS.

Deve-se destacar que são improcedentes quaisquerconsiderações comparativas entre as informações estatís-ticas provenientes das duas fontes de dados aqui analisa-das. São dois sistemas de levantamentos completamentediferentes, cada qual com suas peculiaridades. Os dadosdo MPAS resultam de determinações institucionais, le-gais e administrativas do órgão público encarregado deadministrar o seguro social no âmbito federal, o INSS.As informações da PNAD são obtidas através de um le-vantamento amostral domiciliar, abrangendo aposentadose pensionistas de todos os tipos de sistemas previdenciá-rios, realizado quase sempre anualmente. São duas fon-tes de dados que podem ser usadas de forma comple-mentar, permitindo que se obtenha o conhecimento defacetas diversas sobre a realidade social focalizada poreste estudo.

A leitura dos dados estatísticos sobre a condição doaposentado e do pensionista a ser apresentada não consti-tui um exercício analítico com pretensões de apenas de-monstrar, de forma consistente, o conhecimento do quese sabe mas não se prova. O objetivo principal deste tra-balho é disseminar as informações estatísticas existentessobre a situação dos assistidos por sistemas previdenciá-rios, no Estado de São Paulo, vis-à-vis o país, a fim deincorporá-las no saber necessário para a tomada de deci-sões no campo previdenciário. Mesmo porque, “... o dadosó se tornará informação na medida em que provoque al-guma ação por parte de quem o recebe” (Senra, 1994).

Além disso, mesmo considerando-se a baixa idade doaposentado brasileiro no momento da concessão da apo-sentadoria,2 é fora de dúvida que as informações destetrabalho retratam também a situação da velhice brasilei-ra, pois a média de permanência nos sistemas é significa-tivamente elevada.

Quanto aos aposentados e pensionistas, é preciso lem-brar que, até o início dos anos 80, o dinamismo da econo-mia brasileira estava fundado basicamente no aparato pro-dutivo do Estado de São Paulo, principalmente no seubraço industrial. O investimento nele realizado, além deinduzir o crescimento de outras regiões, provocou umsubstantivo aumento do assalariamento formal e do nívelde renda em níveis bastantes superiores ao do resto dopaís. Um dos resultados desse processo foi a crescente

incorporação da força de trabalho paulista ao sistema deproteção social existente.

Quando se analisa a evolução recente de seus aposen-tados e pensionistas, está-se, na verdade, apreendendo oreflexo do ocorrido, há décadas, no mercado de trabalhode São Paulo. Naquele momento, o crescente assalaria-mento no mercado formal propiciava a base financeiraadequada para os gastos da previdência pública, especial-mente para cobrir a demanda dos aposentados. Além dis-so, os trabalhadores integrados aos setores mais dinâmi-cos da economia tinham aposentadoria de valor bastantesuperior ao atual. Até então não havia sido instituído opiso correspondente a um salário mínimo.

Atualmente, quando a economia brasileira encontra-se enredada na armadilha juros/câmbio, sendo incapaz decriar empregos junto ao mercado formal de trabalho, comofica o financiamento da previdência pública? Como via-bilizar um valor de aposentadoria que permita garantir umavelhice tranqüila e segura? Seria a reformulação do siste-ma de benefícios a solução? Ao retratar a situação dosaposentados e pensionistas, este trabalho espera estar tra-zendo elementos que permitam a reflexão sobre essasquestões.

CRESCIMENTO DAS APOSENTADORIAS

Em 1996, o MPAS pagava aposentadorias a 2.099.286pessoas no Estado de São Paulo, o que representava 21,6%do total do Brasil (9.738.959 pessoas). Esta participaçãonão sofreu grandes oscilações, no período de 1992 a 1996,sendo que o menor percentual ocorreu nos anos de 1993e 1994 (em torno de 20%), devido ao crescimento maiorde aposentados no território nacional.

Aliás, entre 1992 e 1996, o percentual de aumento deaposentados no Estado e no Brasil foi quase igual, 33% e34%, respectivamente. Todavia, no período, a taxa mé-dia de crescimento do total de aposentados em São Paulo(9,9%) foi inferior à do Brasil (10,2%), especialmenteporque a taxa média nacional de crescimento das aposen-tadorias rurais foi bem mais elevada: 15,7% a.a. contraapenas 6,6% a.a. no Estado.

Ao se considerar apenas a taxa média de crescimentoanual dos aposentados ligados às atividades urbanas, ve-rifica-se que foi mais elevada no Estado (10,4%) que nopaís (9,3%). Contudo, essas taxas não são tão contrastantesquanto à taxa média de crescimento anual da clientela ruralapontada acima.

Entre as aposentadorias registradas pelo INSS no Es-tado, cerca de 13% são da clientela rural. No Brasil, estaparticipação gira ao redor dos 45%. Não são estas pro-porções que explicam as diferenças entre as taxas médiasde crescimento entre aposentados urbanos e rurais do

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Estado e do país, mas sim o grau de procura pela inativi-dade. Enquanto a aposentadoria urbana cresceu quase namesma proporção no Estado e no país, a aposentadoriarural registrou uma procura menor em São Paulo.

Quanto à evolução da participação dos segurados pau-listas no total do país, verifica-se que a clientela urbanaaumentou seu peso, passando de 32,5%, em 1992, para33,6%, em 1996. Já a clientela rural diminuiu de 6,8%para 6%, no mesmo período.

O crescimento do número de aposentados no Estadode São Paulo pode ser explicado basicamente por doisfatores. O primeiro refere-se ao processo de industriali-zação ocorrido nas décadas de 60 e 70, que propiciou aampliação substantiva do mercado formal de trabalho. Pas-sados 30 e/ou 35 anos, os trabalhadores de ontem torna-ram-se os aposentados de hoje. O segundo diz respeito àprocura crescente por aposentadoria decorrente da amea-ça de perda de direitos associada às propostas de reformada Previdência Social, particularmente aquelas encami-nhadas pelo governo federal.

Entre as aposentadorias em manutenção pelo INSS, omaior crescimento foi registrado entre as aposentadoriaspor tempo de serviço. Na clientela urbana do Estado deSão Paulo, em 1996, entre os vários tipos de aposentado-rias, estas representavam 43% do total e no Brasil, 37%.No Estado, em 1992, havia 489.530 aposentados destacategoria e, em 1996, 794.433, representando 62% de au-mento. No Brasil, o crescimento foi menor, mas mesmoassim muito elevado, de 58%, passando de 1.289.684 para2.040.012.

Depois das aposentadorias por tempo de serviço, as demaior peso na clientela urbana são as aposentadorias porinvalidez. Em 1996, representavam, no Estado de SãoPaulo, 24% do total das aposentadorias e, no Brasil, 28%.Destaque-se que, entre 1992 e 1996, o número de apo-sentados por invalidez manteve-se estável no Estado, tendocrescido somente 3% no país. Este comportamento mos-tra, certamente, que o INSS tem exercido maior controlesobre a concessão deste benefício, impedindo a ocorrên-cia de fraudes por parte dos serviços médicos responsá-veis pela sua autorização.

Quanto à aposentadoria por idade, que tem menor pesoentre as demais categorias de aposentados da clientelaurbana – ao redor dos 22% no Estado e 24% no Brasil –,entre 1992 e 1996 cresceu, respectivamente, 40,8% e 35%.Este comportamento, certamente, foi provocado pela cor-rida para a obtenção da aposentadoria, pois quem aindanão completara o tempo de serviço exigido para a apo-sentadoria integral, pelo menos tinha direito de obter aproporcional.

Os dados estatísticos publicados pelo MPAS não in-formam a composição por gênero dos aposentados em

manutenção no Estado de São Paulo. Todavia, graças àpesquisa feita junto à população pela PNAD, pode-se iden-tificar as características da população aposentada no Es-tado e compará-la com a do Brasil. Na Tabela 1 podemser encontradas, em detalhe, informações sobre o mon-tante da população aposentada e sobre a parcela que semantém economicamente ativa, segundo sexo. Estas in-formações serviram de base para as reflexões que se se-guem.

Em 1996, a distribuição dos aposentados por gêne-ro mostrava que, no Estado de São Paulo, a participa-ção dos homens era superior à encontrada no Brasil(64,1% e 57,2%, respectivamente); no caso das mulhe-res ocorria o inverso (35,9% e 42,8%, respectivamen-te). Em números absolutos, a maior presença dos ho-mens no total dos aposentados – tanto no Estado comono país – reflete a distribuição do mercado formal detrabalho de 30 a 35 anos atrás. Em particular, o maiorpeso dos homens em São Paulo explica-se pela presen-ça marcante da indústria no Estado, posto que essa ati-vidade era tipicamente masculina.

Verifica-se, portanto, que no Estado mais desenvolvi-do da nação, onde há mais oportunidades para as mulhe-res se inserirem no mercado de trabalho e, por conseqüên-cia, poderem um dia desfrutar de uma aposentadoriaproporcionada por sistemas previdenciários, a participa-ção de aposentadas em relação aos homens é quase sem-pre duas vezes menor. No Brasil, segundo a PNAD, a re-lação entre os dois sexos não é tão acentuada. Assim éque, em 1992, o número de mulheres aposentadas no paísera 1,5 menor que o de homens, diminuindo através dosanos, para chegar a 1,3, em 1996. Tendo em vista o pro-cesso de feminização do mercado de trabalho observadono meio urbano, é de se esperar que a proporção de mu-lheres no total de aposentados tenda a aumentar nos pró-ximos anos.

Observe-se que a participação do gênero no total deaposentados em manutenção resulta da interação de doisdeterminantes: o peso relativo dos homens e das mulhe-res no total das aposentadorias concedidas a cada ano e otempo médio que permanecem recebendo o benefício. Em1994, 80,9% das aposentadorias concedidas foram desti-nadas a homens; na clientela rural, as mulheres represen-tavam 64,6%.3 Como a quantidade de aposentadorias ur-banas concedidas é muito superior às rurais, a presençados homens é mais marcante que a das mulheres. Contu-do, na medida em que a participação dos gêneros vai sealterando no mercado de trabalho, começa a ter maior pesoo fato de as mulheres permanecerem mais tempo no sis-tema previdenciário. Em uma determinada idade, estas ten-dem a ter uma expectativa de vida maior do que os ho-mens.4

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Analisando-se a evolução do número de aposentadosno período 1992-96, em São Paulo, verifica-se que parao sexo masculino houve um aumento de 32% e para osexo feminino, de 51%. No Brasil, esses percentuais fo-ram, respectivamente, de 22% e 43%. O crescimento su-perior da demanda por aposentadoria por parte das mu-lheres pode ser atribuído aos seguintes fatores: elas podemrequerer a aposentadoria integral (30 anos) e proporcio-nal (25 anos) em tempo menor do que os homens (35 e 30anos, respectivamente) e têm presença significativa nasatividades que concedem aposentadoria aos 25 anos detrabalho (ligadas ao magistério). Além disso, a permanên-cia de atitudes tradicionais em determinados segmentosda população, que valorizam mais o trabalho masculino,pode levar a que a mulher requeira a aposentadoria assimque completar o período de carência. De acordo com es-ses valores, a inatividade é vista de maneira distinta parahomens e mulheres. No caso destas, o fato de passarem ase dedicar a atividades domésticas, ou mesmo ao lazer, éaceitável. Tal perspectiva para os homens é entendidacomo expressão do fim de seu período produtivo.

Evolução do Valor dasAposentadorias

A evolução do valor médio das aposentadorias, segundoo MPAS, sejam elas relativas à clientela urbana ou rural,leva a pensar que houve uma melhoria no período anali-sado para São Paulo. Em 1996, a aposentadoria urbanaseria 52,2% maior do que a recebida em 1992 e, a rural,42,7%. Esse crescimento não seria restrito ao Estado. Omesmo desempenho poderia ser verificado no país (48,4%e 41,9%, respectivamente), embora a elevação ocorridaem São Paulo tenha sido um pouco maior (Tabela 2).

No entanto, ao se considerar as aposentadorias emnúmero de salários mínimos, verifica-se que pouco se ele-vou o valor deste benefício. Em São Paulo, a aposenta-doria urbana, de 2,9 salários mínimos, em 1992, passoupara apenas 3,1, em 1996. No Brasil, o valor desse bene-fício aumentou ainda menos, de 2,6 para 2,7 salários mí-nimos. No caso da clientela rural, o valor é constante paratodo o período e igual a 1 salário mínimo para as duasáreas. A única exceção fica por conta do ano de 1996,

TABELA 1

População Aposentada e Pensionista, por Condição de Atividade e SexoEstado de São Paulo e Brasil – 1992-96

Economicamente Ativa Econômica e NãoSão Paulo Brasil Economicamente AtivaPopulação

Ocupada OcupadaAposentada e São Paulo BrasilPensionista

Homens MulheresTotal (1)

Homens MulheresTotal (1)

1992Total 427.562 252.047 714.692 2.158.017 1.667.325 3.945.666 2.697.602 12.029.745Aposentada 395.667 62.225 469.853 2.051.119 697.971 2.801.324 1.842.651 8.690.659Pensionista 31.096 182.647 236.066 100.255 921.169 1.087.789 752.064 3.009.040Aposentada e Pensionista 799 7.175 8.773 6.643 48.185 56.553 102.887 330.046

1993Total 442.913 284.069 757.947 2.354.170 1.974.185 4.434.599 2.884.173 13.184.949Aposentada 421.507 96.727 535.688 2.265.304 1.004.019 3.317.128 2.045.548 9.732.756Pensionista 19.820 177.826 211.157 81.476 888.001 1.027.161 741.039 3.026.351Aposentada e Pensionista 1.586 9.516 11.102 7.390 82.165 90.310 97.586 425.842

1995Total 591.440 346.521 971.986 2.675.573 2.318.962 5.122.332 3.296.892 14.649.073Aposentada 564.657 98.934 683.797 2.564.455 1.139.464 3.769.029 2.273.213 10.611.213Pensionista 25.985 233.824 273.628 98.141 1.067.529 1.226.256 896.255 3.452.217Aposentada e Pensionista 798 13.763 14.561 12.977 111.969 127.047 127.424 585.643

1996Total 587.603 369.379 1.010.079 2.679.781 2.248.670 5.118.383 3.515.600 (2)15.525.436Aposentada 558.941 138.855 734.426 2.517.691 1.133.990 3.752.952 2.543.156 11.320.986Pensionista 26.926 215.843 259.236 142.332 994.452 1.220.704 850.621 3.538.839Aposentada e Pensionista 1.736 14.681 16.417 19.758 120.228 144.727 121.823 665.611

Fonte: Fundação IBGE – PNAD.(1) Inclui a população economicamente ativa não ocupada.(2) Inclui 211 casos de aposentados sem declaração sobre a condição de atividade.

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APOSENTADOS E PENSIONISTAS: QUANTOS SÃO E COMO VIVEM

quando o Estado de São Paulo registrou 1,1 salário míni-mo (Tabela 3).

Como é sabido, o valor pago ao aposentado rural deve-se basicamente à legislação que introduziu o piso corres-pondente a 1 salário mínimo. Em outras palavras, se fos-se levada em consideração apenas a capacidade contri-butiva do trabalhador rural no momento da realização docálculo atuarial, certamente isso o levaria a ter uma apo-sentadoria de valor inferior ao do salário mínimo. Alémdisso, é preciso lembrar que a imensa maioria dos atuaisaposentados do meio rural, em momento algum de suavida ativa contribuíram para a Previdência Social. Dessemodo, o registro de 1,1 salário mínimo, para São Paulo,pode ser uma indicação de que o trabalhador rural estácomeçando a contribuir para a Previdência Social, o quetenderá a mudar o valor desse benefício.

O baixo valor médio dos benefícios pagos aos aposen-tados certamente é o responsável pela realidade retratadapelos dados divulgados pelo Censo de 1991. Nesse ano,

52,5% da população masculina de 65 anos ou mais daRegião Metropolitana de São Paulo encontrava-se moran-do com um filho; e na população feminina, eram 53,9%(Mulheres em Dados, 1997).

Aposentados no Mercado de Trabalho

A obtenção da aposentadoria deveria significar a pas-sagem das pessoas para a inatividade. Dessa forma, elasse classificariam como não economicamente ativas, comotodos aqueles que não estão inseridos no mercado do tra-balho e não desejam fazê-lo. Aliás, quando o legisladorpromoveu a extinção do abono e do pecúlio, através dasleis no 8.213/91 e 8.870/94, tinha a intenção de reforçaressa idéia, isto é, de que os trabalhadores, com tempo pararequerer a aposentadoria o fizessem e não mais partici-passem do mercado de trabalho.5 Note-se que esses bene-fícios previdenciários eram concedidos somente àquelesaposentados que continuavam economicamente ativos.

Entretanto, em 1996, de acordo com a PNAD, no Estadode São Paulo, 36,0% dos aposentados do sexo masculino e16,2% do sexo feminino permaneciam economicamente ati-vos, isto é, trabalhavam ou estavam a procura de emprego.Esses percentuais são inferiores aos encontrados no Brasil,especialmente no que se refere às mulheres. Do total de apo-sentadas, as economicamente ativas representavam 24%; en-tre os homens, a proporção era de 40%.

As PNADs de 1992, 1993, 1995 e 1996 mostram queo percentual de aposentados que trabalham ou estão àprocura de trabalho no Estado de São Paulo foi sempremenor que o apresentado pelo Brasil. Em 1992, as dife-renças entre o Estado e o país eram, inclusive, mais acen-tuadas que em 1996: os aposentados naquela situação re-presentavam, respectivamente, 33% e 39% e as aposen-tadas, 11% e 21%.

A menor presença dos aposentados no mercado de tra-balho paulista em relação ao país deve-se, certamente, aofato de o valor médio do benefício recebido ser superior,dado o diferencial de salário da época em que eram con-tribuintes da previdência social. Em outras palavras, sa-lários maiores no período ativo significam maior valordo benefício quando da aposentadoria.

Contudo, quando se compara 1996 a 1992, verifica-se queo crescimento do número de aposentados economicamenteativos foi mais acentuado no Estado de São Paulo que noBrasil. Entre as mulheres, o aumento no país foi de 128% e63%, respectivamente, e entre os homens, 45% e 24%. Alémdisso, nos dois últimos anos para os quais há informaçãodisponível – 1995 e 1996 –, o número de mulheres que con-tinuavam trabalhando ou procurando trabalho no Estadocresceu consideravelmente (46%), enquanto no Brasil per-maneceu praticamente inalterado (1%). Isto indica que, apesar

TABELA 2

Valor Real (1) Médio das Aposentadorias em Manutenção pelo INSSEstado de São Paulo e Brasil – 1992-96 (2)

Em R$

Estado de São Paulo BrasilAnos

Urbano Rural Total Urbano Rural Total

1992 247 89 226 223 86 166

1993 323 113 294 289 110 206

1994 266 98 243 238 95 171

1995 342 122 314 303 118 219

1996 376 127 346 331 122 240

Fonte: Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS.(1) Valores a preços constantes de dezembro de 1997, corrigidos pelo Índice Geral de Preços– Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas.(2) Posição em dezembro.

TABELA 3

Valor Real (1) Médio em Salário Mínimo dasAposentadorias em Manutenção pelo INSSEstado de São Paulo e Brasil – 1992-96 (2)

Em salário mínimo

Estado de São Paulo BrasilAnos

Urbano Rural Total Urbano Rural Total

1992 2,9 1,0 2,6 2,6 1,0 1,9

1993 2,9 1,0 2,7 2,6 1,0 1,9

1994 2,8 1,0 2,6 2,5 1,0 1,8

1995 2,9 1,0 2,7 2,6 1,0 1,9

1996 3,1 1,1 2,9 2,7 1,0 2,0

Fonte: Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS.(1) Valores a preços constantes de dezembro de 1997, corrigidos pelo Índice Geral de Preços– Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas.(2) Posição em dezembro.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(4) 1998

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de o valor da aposentadoria ser superior no Estado, o altocusto de vida dessa região, em comparação ao resto do país,leva o aposentado a continuar na vida ativa. Talvez a exis-tência de maiores oportunidades de trabalho, mesmo que nomercado informal, também facilite essa reinserção do apo-sentado paulista.

Segundo a publicação Mulheres em Dados (1998), oaumento significativo da presença das mulheres aposen-tadas no mercado de trabalho deve-se: à incapacidade dovalor da aposentadoria de garantir o sustento; ao cresci-mento do número de mulheres chefes de famílias; e àfeminização da força de trabalho. Entre esses fatores,destaca-se o último por sua importância. A despeito dastaxas crescentes de desemprego, de acordo com a mesmapublicação, nota-se o aumento da participação das mu-lheres no mercado de trabalho. “Evidentemente, tal fenô-meno não se iniciou nesse período, mas poderia se espe-rar seu arrefecimento diante dos problemas manifestados.No entanto, ocorreu exatamente o contrário: isto é, veri-fica-se sua intensificação, inclusive com o ingresso demulheres em ocupações que, até a pouco tempo, erammonopólio dos homens.” O fato de muitas vezes as mu-lheres serem obrigadas a aceitar trabalhos de baixa remu-neração e de natureza precária é um incentivo a sua con-tratação por parte dos empresários interessados apenas emreduzir o custo com a mão-de-obra.

CRESCIMENTO DAS PENSÕES

A pensão é um benefício previdenciário que visa as-sistir financeiramente os dependentes do segurado apóssua morte. No caso dos filhos, a pensão estende-se atécompletarem 21 anos de idade, enquanto dependentesinválidos, esposa ou marido de ex-segurados têm direitode recebê-la até o fim da vida.

Em 1996, no Estado de São Paulo, estavam registra-dos 1.049.168 pensionistas (excluindo-se os decorrentesde acidente de trabalho), um número quase duas vezesmenor que o de aposentados (2.099.286). Todavia, entreos benefícios previdenciários em manutenção, as pensõespor motivo de morte de segurados têm o segundo maiorpeso. Nesse ano, representavam 31,5% do total contra os64% dos aposentados.

A maior parte dos pensionistas do Estado são da áreaurbana, ao redor dos 86%, o que se explica pelo alto graude industrialização e urbanização. No Brasil, esse percen-tual é bem inferior, cerca de 67%, tendo em vista a gran-de presença de pensionistas da área rural (33%). Estespercentuais de participação mantiveram-se praticamenteestáveis entre os anos de 1992 e 1996, embora o númerode pensionistas tenha aumentado mais no Estado que nopaís (21% e 17%, respectivamente). Como a mortalidade

dos segurados em São Paulo não é maior que no resto dopaís, essas taxas de crescimento podem ser uma indica-ção de que os dependentes dos segurados no Estado sãomais reivindicativos de seus direitos.

Como já foi mencionado, os dados estatísticos publi-cados pelo MPAS não informam a composição por gêne-ro dos pensionistas em manutenção em São Paulo. Toda-via, graças à PNAD, pode-se saber que a quase totalidadedos pensionistas (91,1%) é constituída por mulheres, tantoem São Paulo, como no Brasil (Tabela 1).

Destaque-se, porém, que, entre 1992 e 1996, os pon-tos extremos para os quais conta-se com as informaçõesda PNAD, houve aumento de participação dos pensionis-tas do sexo masculino. No Estado de São Paulo cresce-ram 34% e, no Brasil, 50%. Entre as mulheres, houve au-mento de apenas 11% e 15%, respectivamente.

No mesmo período, a taxa média anual de crescimen-to dos pensionistas do sexo masculino foi de 10,2% noEstado e 14,5% no país. O crescimento médio anual donúmero de mulheres pensionistas foi bem menor: 3,7% e4,9%, respectivamente. A alteração da legislação previ-denciária, que estendeu ao homem o direito à pensão, foia principal responsável pela ampliação de sua participa-ção no total dos pensionistas.

Evolução do Valor das Pensões

Em 1992, os pensionistas mantidos pelo INSS em SãoPaulo recebiam em média R$ 91,00 e em 1996 passarama receber R$ 147,00. No Brasil, a variação foi de R$ 81,00a R$ 125,00.

Os valores médios reais das pensões pagas à clientelaurbana em 1996, no Estado, eram 63,2% maior do que osrecebidos em 1992 (R$ 95,00 e R$ 155,00). Na clientelarural, o aumento foi de 42,9% (R$ 63,00 e R$ 90,00). NoBrasil, esse crescimento foi inferior, de 58,9% e 39,7%,respectivamente (Tabela 4).

TABELA 4

Valor Real (1) Médio das Pensões em Manutenção pelo INSSEstado de São Paulo e Brasil – 1992-96 (2)

Em R$

Estado de São Paulo BrasilAnos

Urbano Rural Total Urbano Rural Total

1992 95 63 91 90 63 81

1993 130 81 123 121 80 107

1994 112 70 106 106 69 93

1995 143 87 135 132 86 117

1996 155 90 147 143 88 125

Fonte: Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS.(1) Valores a preços constantes de dezembro de 1997, corrigidos pelo Índice Geral de Preços– Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas.(2) Posição em dezembro.

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APOSENTADOS E PENSIONISTAS: QUANTOS SÃO E COMO VIVEM

Tomando-se por base o valor médio das pensões rece-bidas pela clientela do INSS, chega-se à conclusão queos pensionistas, ao longo do tempo, passaram a recebermais. Entretanto, tal como aconteceu em relação às apo-sentadorias, ao se considerar as pensões em número desalários mínimos, verifica-se que o aumento foi extrema-mente irrisório e ficou restrito à esfera urbana. Assim éque no Estado de São Paulo, em 1992, estes recebiam emmédia 1,1 salário mínimo e, em 1996, 1,3. No Brasil, ospensionistas recebiam 1,0 e 1,2, respectivamente (Tabela 5).

TABELA 5

Valor Real (1) Médio em Salário Mínimo dasPensões em Manutenção pelo INSS

Estado de São Paulo e Brasil – 1992-96 (2)

Em salário mínimo

Estado de São Paulo BrasilAnos

Urbano Rural Total Urbano Rural Total

1992 1,1 0,7 1,1 1,0 0,7 0,9

1993 1,2 0,7 1,1 1,1 0,7 1,0

1994 1,2 0,7 1,1 1,1 0,7 1,0

1995 1,2 0,7 1,1 1,1 0,7 1,0

1996 1,3 0,7 1,2 1,2 0,7 1,0

Fonte: Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS.(1) Valores a preços constantes de dezembro de 1997, corrigidos pelo Índice Geral de Preços,Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas.(2) Posição em dezembro.

Os valores pagos pelo INSS à clientela urbana é sem-pre superior ao que é pago à clientela rural, uma vez queesta, como já foi observado anteriormente, tende a rece-ber benefício igual ao piso. Enquanto o valor médio dasaposentadorias urbanas pagas pelo INSS gira em tornode 3 salários mínimos, as pensões equivalem-se a 1 salá-rio mínimo. O baixo valor das pensões se explica pelalegislação que determina que este deve corresponder a80% do valor da aposentadoria, mais tantas parcelas de10% sobre este valor quantos forem os dependentes, atéo máximo de dois. No caso destes existirem, a pensão écompartilhada, e no máximo por três pessoas. Dessa for-ma, o valor médio da pensão pode ser inferior ao do salá-rio mínimo, como acontece com a clientela rural.

Pensionistas no Mercado de Trabalho

Com tais rendimentos, não é de estranhar que os le-vantamentos da PNAD revelem que nem todos os pensio-nistas encontrados na população vivam somente dessesrendimentos. Em 1996, no Estado de São Paulo, 30% es-tavam trabalhando ou procurando emprego. No Brasil, estepercentual era mais elevado, 34%.

Deve-se destacar, ainda, que entre 1992 e 1996, segun-do a PNAD, o número de pensionistas economicamenteativos aumentou 10% no Estado e 12% no Brasil. Em SãoPaulo, o crescimento recaiu somente sobre as mulheres(14%); entre os homens, houve redução na mesma pro-porção. No Brasil, houve aumento para ambos os sexos,sendo maior na população masculina (44%) do que nafeminina (9%).

As porcentagens de crescimento das pensionistas eco-nomicamente ativas permitiriam pensar que, no Estadode São Paulo, estas encontram um mercado de trabalhomais favorável para a sua inserção do que os homens,acontecendo o inverso no país. Saliente-se que, na verda-de, tanto em São Paulo como no Brasil, as pensionistastrabalham mais que os homens. Em 1996, entre os pensio-nistas economicamente ativos, o percentual de mulheresocupadas era de 88,9% e 87,5%, respectivamente. Asexplicações dadas a respeito da participação crescente demulheres aposentadas no mercado de trabalho aplicam-se da mesma forma às mulheres pensionistas, por isto,torna-se desnecessário repeti-las.

CONCLUSÃO

Os principais pontos levantados por este trabalho são:

- houve um grande aumento do número de aposentado-rias em manutenção por tempo de serviço e idade, enquan-to o de aposentadorias por invalidez, concedidas somen-te após a realização de um laudo médico oficial, man-teve-se estável;

- a taxa média anual de crescimento dos três tipos de apo-sentadorias no Estado de São Paulo foi menor que noBrasil, onde foi maior a procura por parte da clientela rural;

- embora os aposentados do sexo masculino conti-nuem sendo a maioria, o maior crescimento foi registra-do entre as mulheres, tanto no Estado como no Brasil;

- os pensionistas são constituídos, em sua grande maio-ria, por mulheres, mas vem aumentando a participaçãodo sexo masculino;

- o valor médio real dos benefícios, quer de aposentadosou de pensionistas, revela que ele teria aumentado; po-rém, calculado em número de salários mínimos, a eleva-ção foi muito pequena e restringiu-se à clientela urbana;

- é considerável a porcentagem dos aposentados e pensi-onistas que trabalham ou estão a procura de emprego, tantono país como no Estado de São Paulo. Contudo, os per-centuais de participação dos aposentados economicamenteativos desse Estado são menores que no país;

- a maioria dos aposentados são do sexo masculino, maso percentual de mulheres que vem se inserindo no merca-do de trabalho é muito mais elevado;

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- a maioria dos pensionistas são mulheres, mas vem au-mentando o número de homens assistidos por este bene-fício previdenciário. E assim como no caso das aposenta-das, é elevada a participação das pensionistas no mercadode trabalho, tanto no Estado de São Paulo como no Bra-sil.

NOTAS

1. Informações estatísticas e detalhadas, quer do MPAS como da PNAD, refe-rentes ao Estado de São Paulo, utilizadas neste trabalho, encontram-se reunidasno Anuário Estatístico da Fundação Seade e também estão disponíveis em suapágina na Internet (http://www.seade.gov.br).

2. Em 1993, 53,45% dos homens que passaram a receber a aposentadoria portempo de serviço tinham entre 45 e 54 anos na data do início dos benefícios(DIB); 25,17% tinham entre 55 e 59 anos; e 13,8%, entre 60 e 64 anos. No casodas mulheres, 72,77% tinham entre 40 e 54 anos. Vale lembrar que, para 1990,um homem com 54 anos tinha, em média, uma sobrevida correspondente a 17,6anos, enquanto uma mulher de 53 anos, de 22,4 anos (Marques, 1997).

3. De acordo com as informações do MPAS, a participação das mulheres no to-tal das aposentadorias concedidas à clientela rural apresentaram abrupta quedanos anos de 1995 e 1996.

4. Segundo o MPAS, a mulher que se aposenta aos 50 anos de idade permaneceno sistema, em média, 26,8 anos; já o homem, 24,7 (MPAS, 1995).

5. A legislação anterior permitia que o trabalhador com tempo de serviço neces-sário para se aposentar permanecesse em atividade, recebendo um abono corres-pondente a 20% ou 25% do valor de sua aposentadoria. O pecúlio derivava dofato de ser exigida contribuição sobre o salário do aposentado que permanecesseem atividade laborativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FUNDAÇÃO SEADE. Anuário Estatístico de 1992, 1993, 1994, 1995, 1996 e1997. São Paulo, 1993, 1994, 1995 e 1997.

__________ . Mulheres em Dados. São Paulo, n.04, junho de 1997.

__________ . Mulheres em Dados. São Paulo, n.11, janeiro de 1998.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pes-quisa Nacional por Amostra de Domicílios, 1992, 1993, 1995 e 1996. Riode Janeiro, 1997.

MARQUES, R.M. A proteção social e o mundo do trabalho. São Paulo, Bienal,1997.

MPAS. Anuários Estatísticos da Previdência Social, 1993 e 1996. Brasília, 1994e 1997.

__________ . Reforma da Previdência. Brasília, 1995.

SENRA, N. de C. “Por uma disseminação democrática de informações”. SãoPaulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.8, n.4, out.-dez. 1994,p.40-50.

SOARES, L.T. e MARQUES, R.M. “Previdência Social: São Paulo e Brasil na dé-cada dos 80”. Textos para Discussão. São Paulo, Fundap/Iesp, n.17, abril 1994.