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ESPIRITISMO: UMA REFLEXÃO SOBRE OS FUNDAMENTOS (Gilberto Campista Guarino) ‘‘A oposição cartesiana à concepção newtoniana do mundo fornece-nos um bom exemplo do dilema do “mecanicismo”, que, além de questionar a nova ciência, sente-se haver empurrado o pensamento científico para trás, até a um nível que o próprio mecanicismo alcançara. Para Descartes, o problema está em que o movimento só é possível se existir contato e força de impulsão. Como diria Fontenelle, ação a distância só pode significar regressão a uma física dos movimentos simpáticos e dos atributos ocultos. Assim, Newton não desperta nenhuma controvérsia científica; é desqualificado como obscurantismo.’’ (Benveniste, J., in “Understanding Digital Biology’’) A PROPOSTA. O conhecimento só é um continuum se e enquanto, por impositivo de concessões diversas, mesmo políticas --e, talvez, principalmente políticas--, é visto como útil para a manutenção do poder, pelo tempo em que este não tem como lidar com o novo. E entra em cena um baile de máscaras, na medida em que os institutos da dominação melhor se apropriam desse novo, para garantir a continuidade do próprio poder. A seguir, dominada a idéia, lança-se sobre ela a pecha do ridículo, consagrando-se a pretensão à hegemonia do poder. A Codificação Espírita foi um esforço de síntese empreendido num caldo de cultura composto, dentre outros, por quatro ingredientes aparentemente inconciliáveis: o dualismo cartesiano, o positivismo mecanicista e triunfalista, filho de uma sensação de domínio definitivo sobre a natureza, o fiscalizacionismo cristão, advertindo sobre a culpa acerca do conhecimento (em deturpação do emblema da expulsão do Paraíso), e o romantismo exacerbado, especialmente no campo das Artes.

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ESPIRITISMO: UMA REFLEXÃO SOBRE OS FUNDAMENTOS

(Gilberto Campista Guar ino)

‘‘ A oposição cartesiana à concepção newtoniana do mundo fornece-nos um bom exemplo do dilema do “ mecanicismo” , que, além de questionar a nova ciência, sente-se haver empur rado o pensamento científico para trás, até a um nível que o própr io mecanicismo já alcançara. Para Descartes, o problema está em que o movimento só é possível se existir contato e força de impulsão. Como dir ia Fontenelle, ação a distância só pode significar regressão a uma física dos movimentos simpáticos e dos atr ibutos ocultos. Assim, Newton não desperta

nenhuma controvérsia científica; é desquali ficado como obscurantismo.’ ’ (Benveniste, J., in “ Understanding Digital Biology’’)

A PROPOSTA. O conhecimento só é um continuum se e enquanto, por impositi vo de concessões diversas, mesmo políticas --e, talvez, principalmente políticas--, é visto como útil para a manutenção do poder, pelo tempo em que este não tem como lidar com o novo. E entra em cena um baile de máscaras, na medida em que os institutos da dominação melhor se apropriam desse novo, para garantir a continuidade do próprio poder. A seguir, dominada a idéia, lança-se sobre ela a pecha do ridículo, consagrando-se a pretensão à hegemonia do poder. A Codificação Espírita foi um esforço de síntese empreendido num caldo de cultura composto, dentre outros, por quatro ingredientes aparentemente inconciliáveis: o dualismo cartesiano, o positi vismo mecanicista e triunfalista, filho de uma sensação de domínio definitivo sobre a natureza, o fiscalizacionismo cristão, advertindo sobre a culpa acerca do conhecimento (em deturpação do emblema da expulsão do Paraíso), e o romantismo exacerbado, especialmente no campo das Artes.

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Foi nesse contexto que o trabalho do codificador desenvolveu-se, quando ainda reinava, inconteste, o modelo cartesiano-newtoniano, inexistentes os trabalhos de Albert Einstein (Relatividade Restrita e Relatividade Geral) e o importante pensamento de Bohr, Heinsenberg e Schroedinger, dentre outros, responsáveis pela sistematização da Física Quântica. Esses notáveis paradigmas transformaram a Mecânica newtoniana em teoria limite, dando curso à dinâmica da evolução do pensamento científico. Assim, entre a exaltação ex cathedra da certeza emanada das leis do genial e polivalente físico inglês1, o temor do ‘ ‘olho divino’ ’—de prontidão para o abate do chamado ‘ ‘orgulho intelectualista’ ’ -- e o saudosismo das elucubrações poéticas, na Música e na Literatura, Allan Kardec surge como epígono das filosofias imortalistas e prógono de autêntica revolução de fundamentos, tudo tratado como revelação divina. Ninguém ignora que, tal como a chamada “Revolução Copernicana” , aqueles novos sistemas produziram uma dramática alteração em nosso modo de perceber o contorno, introduzindo poderosos instrumentos de equacionamento e interpretação da realidade, o que gerou importante alteração das reflexões e considerações acerca do homem e da vida. Precisaremos, por isso, abordar alguns pontos vitais desse verdadeiro corte epistemológico procedido, que em nada alterou o núcleo da teoria espírita. O Espiriti smo tem ar o suficiente para ocupar, na cultura contemporânea, o espaço em que se definirá tanto mais como uma grande e crucial vertente do conhecimento, quanto mais a Ciência aprofundar seu mergulho na matéria. Se é verdadeiro que, como escreveu Erwin Schroedinger, ‘ ‘não devemos nos sentir desencorajados pela dificuldade de interpretar a vida a par tir das leis comuns da Física’ ’ , menos verdadeiro não é que este só esforço bastará para lançar-nos, dramática e decisivamente, nos domínios das leis do Espírito. Este opúsculo, que reconheço bastante denso, não é, visto isso e imediatamente, uma introdução ao Espiritismo,

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enquanto guia para se lhe compreender os princípios. Leva, porém, a tanto, na medida em que é, seguramente, uma leitura filosófica dos fundamentos dessa grande teoria, tal como –quero crê-lo— foi pensada por Hippolyte-Léon Denizard Rivail, o de há muito famoso e mal compreendido Allan Kardec.

* * * ALT ERAÇÕES NO CALDO DE CULTURA. A indagação científica pode, como um todo, ser concebida como uma função superior do espírito, caracterizada pela origem racional, e consistindo no refinamento do pensar cotidiano. Seu objetivo é um segmento, ou conjunto de segmentos da realidade. Para apreendê-los, estabelece regras gerais que organizam o conjunto de nossas intuições sensíveis, preservando a necessária correspondência com os fatos e utilizando-se de um mínimo de conceitos primários e relações. Essa postura gnoseológica subordina-se a um princípio filosófico que foi muito bem representado por Mach, Einstein, Minkovski, Pauli e Heisenberg, e que consiste em referir, na teoria, apenas quantidades observáveis. Já o primeiro criti cava os conceitos newtonianos de espaço e tempo absolutos, chamando-os ‘ ‘metafísicos’ ’ , por entendê-los vazios de significado e, por isso, dispensáveis. Além disso, acentuava Mach a contradição consistente na impossibilidade concil iar a exigência de que a teoria descrevesse fatos da Natureza com o apoio naquelas tais ficções lógicas. Einstein considerou o tempo t’ , (conforme o concebera Lorentz para um elétron em movimento retilíneo uniforme), não como tempo aparente, mas como tempo real. Heinsenberg apoiou-se em tal princípio, ao propor uma nova Mecânica Quântica, aperfeiçoando a que Bohr construíra, com suas órbitas eletrônicas de raio definido. Como trabalharemos com conceitos (díades compostas de intenção e extensão), por amor à simplicidade, tomaremos emprestada a Einstein a noção que de conceitos primários ele nos

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fornece: ‘ ‘aqueles que estão, direta e intuitivamente, conectados a complexos típicos de experiências sensor iais.’ ’ Por “ intuiti vo” , entendemos (salvo quando expressamente fixado em contrário) o conhecimento que se refira, direta, clara e singelamente, aos objetos cognoscidos, sem intermediários, sejam eles –os objetos-- reais ou ideais, e às experiências sensoriais e teoremas que as relacionem. O método da Ciência procede por sucessivas aproximações, mapeando a “maneira de ser” da natureza, aí incluída a natureza humana. Sua utili zação colore-se com os valores morais das lideranças sociais de cada tempo, refletindo a maior ou menor apreensão e internalização dos princípios de Moral Cósmica, a nortear a ética humana. Ela lembra a árvore do conhecimento, da narrativa bíblica, árvore cujo fruto, uma vez ingerido, arranca o homem da ingenuidade primordial e situa-o no trato com o poder co-criador latente em sua essência. Nosso enfoque inicia-se, especificamente, com o criador da Física moderna: Galileo Galilei, que estabeleceu a passagem do real inicial fenomênico para o real final matemático. Galileo apresentou a Matemática (chamada por Mario Bunge de linguagem das ciências maduras) à Ciência moderna. Esse grande italiano decidiu concentrar-se na simplicidade que afirmava estar na Natureza, por isso que procurou observar um corpo, desvinculando-o das circunstâncias externas, acreditando que, assim, ele comportar-se-ia de modo muito mais simples... (** )2) De onde viria, então, tamanha complexidade observada?... Segundo o pensador vienense Ludwig Wittgenstein, o raciocínio tem de percorrer os mesmos labirintos que criou, para desfazê-los. Daí viria a complexidade. De acordo com ele, ‘‘ (...) nós somos como selvagens, gente pr imitiva, que ouve as expressões de homens civili zados, interpreta-as de maneira falsa, e, depois, extrai-lhes as mais bizarr as conseqüências’ ’ (Philosophical Investigations, §194). É bem verdade que Wittgenstein situa-se num contexto basicamente lingüístico, que

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não pretendia nem ser sistemático, nem, muito menos, criar uma teoria, preferindo uma terapia. A observação, porém, é válida e precisa. Galileo, fiel àquele princípio, começou a observar a queda dos corpos, fenômeno que envolve parâmetros como peso, forma, distribuição de massa, resistência do ar. Que fez, então?... Reduziu este último efeito e empregou corpos de forma regular; fez com que estes rolassem ao longo de declives, de modo a simular o efeito gravitacional, grandemente reduzido. Com isso e mais observação e raciocínio cuidadosos, conseguiu formular a lei segundo a qual o tempo gasto por um corpo para, em queda, percorrer uma determinada distância é proporcional à raiz quadrada da distância. Isso correspondeu a uma mudança no conceito orgânico do tempo, como uma espécie de transição para o conceito mecanicista, do universo como um relógio, do tempo matemático e absoluto, de Newton, até o tempo da Relatividade e dos paradoxos quânticos, que iremos examinar, mais adiante. Já dissemos que, com Galileo, a Matemática uniu-se à Ciência, Significa isso que uma lei da Natureza reduziu-se a uma fórmula, adquirindo simplicidade, objetividade e tratabilidade. Além disso, os dogmas da Física aristotélica, firmemente estabelecidos havia dezenas de séculos, cederam. O fundamental deixou de ser o conjunto de observações qualitativas, que, da queda dos corpos, diziam variar de acordo com o peso destes; não. A velocidade dos corpos, em queda livre, independe do peso dos mesmos. O fundamental passou a ser uma lei básica. Foi esse, ao que tudo indica, um dos acenos para a então distante Relatividade Geral, 272 anos após: a equivalência entre aceleração inercial e aceleração gravitacional. Com o trabalho de Isaac Newton, o universo físico acabou apanhado na Matemática, de modo mais global do que acontecera em razão de trabalho de Galileo Galilei. Newton criou a Mecânica, formulou suas leis, que deviam, necessariamente, aplicar-se a todos os tipos de movimentos conhecidos. A Matemática recebeu fortíssimo impulso, com a criação do Cálculo Diferencial e Integral (algo

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semelhante aos fluxogramas de Leibniz), descrevendo mudanças infinitesimais. Passou a ser o excelente instrumento de análise da reestruturação do mundo, sem sucessivos instantes do tempo. Newton enfatizou o aspecto dinâmico da Natureza e abriu campo para o conceito de futuros alternativos, que irá, com a Teoria Quântica moderna assumir importantíssimo papel. A influência do gênio de Newton foi tamanha que Gauss chegou a afirmar: ‘‘ O que sobrou para os sucessores de Newton fazerem, em mecânica, é somente oferecer novos pontos de vista, mas nenhum novo pr incípio’ ’ . Newton ampliou seu campo de ação até à óptica, assimilada por Hamilton a um conjunto de fenômenos essencialmente mecânicos, em seu caráter essencial. Ademais, sua influência aumentou geometricamente, quando Lagrange provou que a quantidade de ação seria um mínimo (lei da menor ação, formulada por Maupertuis) somente se os corpos se movessem de acordo com as leis de Newton. E assim, sucessivamente. A idéia-chave, com Newton, é a de que o Universo não pode alterar-se ao acaso. Dadas a magnitude e direção das forças atuantes sobre um corpo, num dado instante ‘ t’ , sua variação no tempo, sua posição e sua velocidade, é possível calcular, com precisão, onde e como estará o corpo a movimentar-se, em t1..., t2..., tn, como, também, em direção ao passado. Toda a Mecânica newtoniana está baseada nos conceitos de causalidade, determinismo, e espaço e tempo absolutos* Seu modelo mecanicista funcionou, e muito bem. As leis do movimento tiveram como domínio o Universo então observado. ocorreu a ampla matematização não só do movimento, como também da gravitação. O que Galileo fizera, com relação à queda dos corpos, Newton realizou com a gravidade, mediante a lei do quadrado inverso. E a união matemática de movimento e gravidade abriu a janela da observação para o macrocosmo. Neste ponto, a Física rompe os últimos liames com o modelo orgânico de Universo. Os ponteiros do relógio são acertados, a navegação marítima desenvolve-se, o humor dos

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deuses cede vez ao tic-tac de um sem número de relógios. O universo passa a ser, sobretudo, lógica, e não capricho. A Física newtoniana guarda intuiti vidade, seus modelos reproduzem o modo de ser dos eventos. A magnitude e direção das forças, mais as condições iniciais determinam o futuro. Estamos em pleno determinismo físico, matematicamente expresso por Laplace. Todavia, a ânsia insaciável de conhecimento resolveu indagar o porquê de o Universo ter se desenvolvido como se desenvolveu, e não de outro modo. Aparentemente, trata-se de uma pergunta banal, como a da criança que na fase dos “por quês?” ... Tal pergunta repousa sobre o determinismo de eleição do Universo, segundo Newton, diante da realidade de comportamentos absolutamente distintos, obedecendo, inobstante, às mesmas leis. Se, por exemplo, tomarmos uma bola qualquer e a lançarmos, com determinada força e em certa direção, obteremos que ela seque uma determinada trajetória; se repetirmos a experiência, de maneira absolutamente idêntica, chegaremos a idêntico resultado. Mas, se pusermos a girar uma moeda, fenômeno que obedece às mesmíssimas leis do movimento, como estabeleceremos um nexo estrito e determinístico entre as condições iniciais e o resultado cara-ou-coroa?... Isso é algo totalmente aleatório, que deve ser tratado em termos de probabilidade sugerindo, sim, um determinismo, mas um determinismo estocástico. Ou seja, a dúvida originou-se no próprio esquema clássico: predição determinística ou predição probabilística?... E a resposta: encarar o Universo do primeiro modo será, talvez, uma questão de escolha. As grandes teorias sempre guardam o gérmen dos grandes desenvolvimentos. Se pudéssemos ver o mundo microscopicamente, depararíamos com uma outra realidade, onde, tendo em vista o modelo clássico, avultam os abismos da incompletude. A falta de controle pormenorizado de todas as condições iniciais gera aquilo a que apelidamos “acaso” . Nossa ignorância da totalidade impede-nos a afirmação de que o

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Universo age deterministicamente, pois o que vemos é, somente, uma parte. Nada enxergamos além.(** *) SUTILEZAS DE ‘ ‘HERR GOTT’’ . Como sabemos, o modelo de Newton não funcionou com o átomo, embora se esperasse que, uma vez estabelecidas as regras segundo as quais a matéria comportar-se-ia, pudessem elas ser aplicáveis a todos os níveis de realidade material. Por quê não aconteceu assim?... O que se esperava para o átomo era que a mesma experiência com a bola, descrita parágrafos atrás, funcionasse, é obvio que com características ideais. Contudo, a partir de Max Planck, passando por Einstein e chegando a Bohr, Heisenberg, Schroedinger, Born e outros, a Física Quântica criou um modelo diverso do mecanicista. Dualidade onda/corpúsculo, relações de indeterminação, princípio da complementaridade, função de onda, função de probabilidade, etc..., tudo montou um Universo que é, antes, um padrão de números. Átomos, leptons, mesons e barions são entes matemáticos abstratos, e não “coisas” . As leis da Mecânica newtoniana aplicadas a um elétron orbitando ao redor de um núcleo (conforme o modelo de Bohr) levam a uma aceleração que força o elétron a irradiar energia. Com isso, o sistema perde energia, o que leva o átomo a encolher. Com o encolhimento, o elétron aproxima-se do núcleo e, para escapar-lhe à atração elétrica, acelera-se, mais e mais, o que o leva a perder mais e mais energia. O encolhimento progride, aumenta a aceleração eletrônica, ele perde mais energia e, assim, sucessivamente, até o colapso final, num curto intervalo de tempo. Essas leis tinham, portanto, de ser outras, porque, do contrário, nada poderia funcionar. Como ficava o modelo clássico newtoniano, já abalado pela Relatividade einsteiniana?... A resposta foi que, em nível de pluralidade quântica nós não temos condições de determinar, com absoluta precisão os parâmetros iniciais, seja de que fenômeno for. Se se determina, v. g., a posição de um elétron, não se pode determinar seu momento; e vice-versa. Um quantum terá, somente, a

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probabilidade de estar numa determinada região, num momento de tempo igualmente provável. A natureza desses entes matemáticos abstratos também é imprecisa. Seriam ondas, ou seriam corpúsculos Ambas?... Ou algo diverso de corpúsculo e onda, e ambos?... O tratamento dos sistemas quânticos pela mecânica ondulatória, intuída por de Broglie e matematizada por Erwin Schroedinger, leva a situações estranhíssimas. A medição operada sobre uma variável dinâmica do sistema faz com que ele salte para um auto-estado daquela. E, mais: a descrição de um sistema quântico (podendo a próprio Universo ser considerado como tal) sugere, como esboçamos uma superposição de ondas, em interferência, de tal modo que, digamos, os elétrons de um átomo, antes da medição, não estarão nesse OU naquele nível energético, mas nesse E naquele níveis; na realidade, estão em todos os níveis. Só escaparemos a tais efeitos se o sistema de medida for de natureza não quântica, pois, do contrário, não haverá realidade clássica... O efeito de acoplamento de um sistema quântico a um sistema macroscópico (constituído por átomos) transfere os mencionados efeitos de interferência para este. Como, então, admiti r-se seja o aparelho fundamentalmente real?... Haverá, é claro, necessidade de uma medição sobre ele, a fim de colapsá-lo à realidade. Mas se o segundo sistema de medição for, ele também, quântico, o efeito transferir-se-lhe-á, e assim ad infinitum. A atualização aconteceria quando da observação. Vale dizer, o sujeito cognoscente alteraria violentamente a realidade. Seria um participador, não um observador. Se a mente for uma estrutura não-quântica, a ‘ ‘ realidade’ ’ estará, por assim dizermos, garantida; do contrário, porém, o quadro fica pouco intuiti vo, bastante difícil de ser entendido. É que a diferença entre sutileza e malícia está longe de ser intuiti va...

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MAIS ALGUMAS DAS DIVINAS ‘ ‘SUTILEZAS’’ . Focalizemos, agora, um sério problema, envolvendo as chamadas ações a distância, conforme a questão acima exposta. A Relatividade Geral descreve o domínio macrocósmico, como teoria científica que explica e prevê o maior número de fatos, sem incoerências lógicas. Sabe-se, atualmente, que uma descrição coerente de Universo como um todo só parece ser possível mediante a união dos dois grandes conjuntos pertinentes de conhecimento: a Física Relativista e a Física Quântica. Nada de ‘ ‘metafísico’’ em tal recurso, que trata de aplicar instrumentos gnoseológicos à investigação de dada gama fenomênica. Focalizemos, então, especificamente, sob o ângulo da Relatividade, o problema de estaremos elétrons, todos e cada um, em todos os níveis de energia. Exige-se, assim, que esses entes matemáticos abstratos como que "conheçam” os estados de todos os átomos, em todo a Universo. Distâncias fantásticas entram em jogo. Ademais, se, como vimos, o participador determina a realidade, e se, ao mesmo tempo, outros tantos participadores de alguma forma “determinam” a realidade, quer isso dizer que ela sofre violentas alterações, as quais deverão, instantaneamente, ser conhecidas por todos os “componentes” do Universo. No caso específico dos elétrons, a exigência de instantaneidade decorre do princípio da exclusão, formulado por Wolfgang Pauli. No caso de participador autoconsciente, deve sua estrutura, por definição, ser não-quântica; do contrário, como já enfatizamos, não haverá realidade. É evidente que, em ambos os casos, deve a comunicação processar-se instantaneamente... Logo, a uma velocidade superior à velocidade da luz, para não dizermos: a uma velocidade infinita. Como, então, fica o princípio de ‘ c’ como velocidade-limite, no Universo físico? Seria o caso de a informação propagar-se por outro meio que não sinais energéticos? Deveremos postular um domínio atemporal e aespacial ? Em quê se transformaria um elétron, durante um salto quântico? Haveria sentido em se falar em partículas, num domínio fora de espaço e de tempo? Deveremos postular a

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existência de um hiperespaço? Neste caso, poderíamos tratá-lo por meio de matemática tensorial? As perguntas podem multiplicar-se indefinidamente. Todavia, nosso propósito, aqui, é, em primeiro lugar, o questionamento filosófico, vale dizer: enunciar o problema e propor-lhe equação conceptual consistente. E foi na tentativa de expor o problema da incompletude da Física Quântica que Einstein, Podolski e Rosen estruturaram uma experiência de pensamento, publicando -no ano de 1935- um comunicado que teve por título: “ Pode a Descrição Quântico-Mecânica da Realidade Física Ser Considerada Completa?”, e que ficou conhecido como ‘Argumento Einstein-Podolski-Rosen’ , uma importante tentativa de descrição da realidade física. O trabalho foi dividido em quatro partes: 1a) Preâmbulo epistemológico-metafísico; 2a) características gerais da descrição quântico-mecânica; 3a) implementação da descrição, via de exemplo característico, e 4a) conclusão apoiada sobre as premissas das partes primeira e segunda. Na primeira parte, os autores advogam a tese da completude, afirmando que, na fixação dos elementos da realidade física, devem ser evitadas considerações filosóficas apriorísticas; na segunda, sumariam a descrição quântico-mecânica por funções de onda, assinalando que o exato conhecimento de um dos elementos integrantes de um sistema opera a preclusão no preciso conhecimento de outro. Do mesmo modo, asseveram que, ou a descrição por funções de onda é incompleta, ou não existe realidade simultânea entre duas quantidades; na terceira parte, procuram tornar claro que, tomando-se um sistema composto de duas partículas, a medição do momento de uma delas permite a correta predição do momento da outra, sem que, nesta, ocorra qualquer tipo de perturbação, valendo o mesmo para a posição da partícula.(** **) Finalmente, na quarta parte, Einstein, Podolski e Rosen dirigem sua atenção para o estudo das duas alternativas presentes na parte 2. Concluem que, se se disser que a descrição

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por funções de onda é completa, assim se negando, como é claro, a primeira alternativa, então o descrito na parte 3 autoriza-os à conclusão de que duas realidades físicas, com operadores não-comutativos, gozam de simultânea realidade. Isso, segundo os autores, quer dizer que a negação da primeira alternativa conduz à negação da segunda. Ou seja, que a descrição quântico-mecânica da realidade física, por função de onda, é incompleta e insatisfatória.

Passemos ao exemplo. Vamos imaginar que, num sistema físico composto por duas partículas, estas, num dado instante ‘ t’ , começassem a deslocar-se, em direções mutuamente opostas. Num dado instante de tempo subseqüente, t1, opera-se medida sobre a primeira partícula (x) e observa-se, no referencial espacialmente separado onde se encontra a segunda partícula (Y), que esta comporta-se estritamente segundo um certo princípio, bem determinado, em Física. Digamos, o da conservação de momento angular, segundo o qual o spin total de sistema deve conservar-se. A questão é saber de que modo a partícula (y) tomou conhecimento do ocorrido com a partícula (x); e, mais, por que isso parece ter ocorrido instantaneamente. O que os três cientistas postularam foi que existe uma qualquer característica, no referencial de (y) não descrito pela Teoria Quântica; algo que é responsável pelo efeito observado. Em outras palavras, não existe ação a distância.

A réplica de Niels Bohr provocou, por sua sutileza, quase interminável debate. Ao que propôs, as duas partículas estariam conectadas de algum modo, agindo, através da distância, uma sobre a outra, instantaneamente. Em outras palavras, existiria ação instantânea a distância.

O impasse irradiou seus efeitos com rapidez. Tempos depois, David Bohm elaborou uma das

diversas teorias de var iáveis ocultas, que surgiram como tentativa de propiciar completude à Mecânica Quântica.

Para focalizarmos este assunto, faz-se mister deixar claro que o adjetivo ‘‘ ocultas’’ não é, no contexto, empregado significando algo de secreto, mas, antes, no sentido de parâmetros

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que devem, necessariamente, ser suplementados à descrição quântico-mecânica, para, como já frisado, dar-lhe completude. Além do mais, nós não teríamos controle experimental sobre essas variáveis, pois as relações de indeterminação impedem-nos, experimentalmente, de construir estados com valores definidos apoiados em variáveis ocultas. Não obstante, podemos, sim, construir estados com tais valores sobre a função de estado Y.

Toda teoria deve, contudo, submeter-se à experimentação e, para ser válida, sair-se não falsificada. E todas as tentativas de elaboração de teorias de variáveis ocultas fracassaram redondamente.

Voltando ao problema das tentativas de elaborar teorias de variáveis ocultas, von Neumann demonstrou, em 1932. um teorema segundo o qual a Mecânica Quântica é completa, não precisando apelar para nenhuma teoria de variáveis ocultas. Passando diretamente às conclusões de teorema, deve ser repetido que nenhum estado de sistema definido (nem mesmo um estado diverso daqueles aceitos em mecânica quântica convencional) pode atribuir, simultaneamente, valores definidos para todos os observáveis quântico-mecânicos. Diga-se, também, que, conquanto o teorema de von Neumann seja matematicamente correto, tem pouca ou nenhuma significação física. Pois a quarta condição (dentre as nele pressupostas) implica em situação idealíssima, que não é razoável no arcabouço da teoria. É uma condição não-física.

Em 1957, Gleason demonstrou um outro teorema que não pressupõe a quarta condição de von Neumann, mas que não se aplica a espaços de Hilbert a duas dimensões. Contudo, as assunções são fisicamente razoáveis e fortes o bastante para eliminar qualquer necessidade de complementação por meio de variáveis ocultas.

Pode parecer, à primeira vista, que a situação estaria definitivamente solucionada, se J. S. Bell não houvesse, nesse ínterim, aparecido com teorias de variáveis ocultas não tr iviais, que escapavam às condições estabelecidas e que, conseqüentemente, não se achavam, no escopo da conclusão de

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teorema. Com isso, Bell convenceu-se de que os teoremas de von Neumann e de Gleason não eliminavam, a priori, a necessidade de teorias de variáveis ocultas.

Bell considerou que tais construtos, embora logicamente consistentes, deveriam incluir propriedades físicas não-razoáveis, indispensáveis ao alcance de predições tão corretas quanto as da Mecânica quântica.

Para demonstrar isso, criou sua famosa inequação, cuja interpretação é no sentido de que, se existe uma teoria local completa, então ela (a inequação) é respeitada. O membro esquerdo dessa inequação é menor de que o membro direito. A probabilidade de se obter uma descrição correta do estado do sistema, recorrendo-se a ações diretas a distância, é menor do que a soma de duas probabil idades não-negativas de se obter a descrição correta, não se recorrendo a tal.

A seguir, Bell desenvolveu seu teorema, considerando determinada conexão existente na Mecânica Quântica, empiricamente testável e, admitindo ângulos de 60o 30o, nesta ordem inserindo-os na inequação (sessenta graus, no membro esquerdo, que é o menor; e trinta graus, no direito, que é a maior). Sabendo-se que isso é perfeitamente possível, e desde que se apeia em conexão empiricamente testável, a conclusão é a de que a inequação torna-se falsa, não vale. Então conclui Bell , não existe teoria local completa reproduzindo as predições da mecânica Quântica”

Restava, agora, o recurso à experiência. Aquelas levadas a efeito por Friedmann e Clauser

comprovavam, em princípio, o acerto de teorema de Bell . Todavia, houve complicações quanto à distância

entre os dois aparelhos de medida, de tal forma que haveria tempo para que a informação de um dos referenciais se propagasse até ao outro, a velocidades próximas à da luz. Assim, inexistiria, no caso, transmissão instantânea a distância.

Foi um físico de Paris, Alain Aspect, quem imaginou e montou uma experiência em que os parâmetros finais de medida só foram estabelecidos depois de as partículas terem

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iniciado o deslocamento. Levando-se em conta que o tempo de comutação foi algo em torno de 20 nanossegundos (vinte bilionésimos de segundo), e que esse intervalo é inferior ao tempo de propagação da luz desde os comutadores até à fonte (para distâncias intermediárias superiores a 06 metros), a probabilidade de que o sinal se deslocasse à velocidade da luz foi eliminada, e as predições probabilísticas da Mecânica quântica funcionaram, conforme previsto por Bell .

Parece que Bohr estava certo. Deve existir ação a distância.

E a curiosa sugestão de uma espécie de “telepatia” processando-se entre entes físicos apareceu, décadas depois, na Biologia, quando, em 1988, o biólogo francês Jacques Benveniste introduziu a estranha idéia de que as moléculas não necessitam estar próximas umas das outras para interagirem, afetando-se mutuamente. Ou seja, exatamente o oposto da suposta mecânica das reações bioquímicas, conforme universalmente admitida.

Benveniste caiu em desgraça no meio científico ortodoxo, especialmente porque sua hipótese, que engendrou a Biologia Digital, parece dar sustento a uma assim dita “memória da água”, que conferiria base epistemológico-científica à ação de medicamentos homeopáticos submetidos a altas diluições, que tornam sem significado o número de Avogadro.

Observando-se essa sucessão de esforços, em cuja série misturam-se, por certo, erros e acertos (estes com um elevadíssimo valor quali tativo, imaginamos que talvez tenha sido essa inevitável constatação do impositi vo de um salto no escuro o que teria levado a mente privilegiada de Albert Einstein a escrever: ‘‘ trabalhando em sua própr ia pesquisa, cada cientista gravita em torno de pontos par ticulares, na fronteira que separa o conhecido do desconhecido, e inclina-se a assumir uma perspectiva pessoal sobre estes pontos. Contudo, não se deve esperar que estes aspectos individuais venham a formar um quadro completo, nem que indiquem os

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únicos caminhos ao longo dos quais a ciência possa ou vá avançar .’ ’

Naturalmente, é para tanto necessária certa estatura moral, pois, por estranho que possa parecer, os feitos intelectuais de real peso surgem como se guardassem algum tipo de vinculação com a estatura do caráter. A interrelação deve ser mais globalizante do que a início se pensou. A Ciência passa, destarte, a ser mais do que “um refinamento do pensar cotidiano", para mostrar-se, sobretudo, como um produto da lapidação do homem como ser integral.

Na medida que refinamos nosso aparato conceptual, parece que a chamada intuição se apresenta como algo extremamente lógico. Assim, vamos compreendendo que a ‘ ‘malícia’’ e a ‘‘ sutileza’’ de ‘ ‘Herr Gott’ ’ são apenas a imagem especular produzida por nossa ignorância.

A QUE ISSO NOS CONDUZ? Alcançar o mundo dos valores, enxergá-los aderentes ao mundo dos fatos, saber discernir entre suas características mais profundas e refinadas, tudo isso depende, inicialmente, de nossa índole. Quer, porém, partamos do pressuposto inatista, segundo o qual dispomos, ao nascer, de uma qualquer estrutura que nos induza a agir mais num sentido do que noutro; quer descartemos essa hipótese, admitindo que a vida de relação molda-nos integralmente, diremos, sem adentrar o mérito de quaisquer dos modos de entender, que o importante é fornecer estímulos nobres, reforçar as efetivas respostas por meio de sinais eficientes, que enfatizem os valores de Bem e do Belo, auxiliando no desenvolvimento do poder de discernimento entre o Verdadeiro e o Falso. Os valores lógicos são reflexivos, criam um, efeito de objetividade, como que gratificam mais facilmente, pois fazem com que o homem se sinta intensamente útil e participante. Todavia, não chega a estar claro até que ponto eles determinam mudanças positivas, sem a precedência dos valores éticos, principalmente. Na realidade, parece-nos que a questão a ser posta é se, em termos humanos, existe precedência... o homem, visto como um todo, deve ser tratado como uma unidade

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de infinita potência ontológica, por alguma razão fragmentado e suportando um convívio onde predominam a competição, o preconceito e o egoísmo. Com isso, e em razão disso, a sociedade é retalhada. Compreende-se que onde o grupo não cuide de todos e, sobretudo, do conjunto, todos passam a ser estimulados a cuidar apenas de si mesmos, de seus interesses, procurando fazer predominar a sua vontade, com perda de noção de conjunto. Não é possível negar que, desde cedo, ainda uma vez independentemente de elegermos um referencial inatista ou behaviorista puro, o ser humano vai sendo condicionado a agir em consonância a determinadas regras. A ele é ensinada uma linguagem, a fim de que possa comunicar-se. Recebe ele instrução, primaria, secundária, colegial e universitária, a fim de que se habil ite a, como se diz coloquialmente, ser alguém. Mas a educação não tem, de certo modo, primado por levar, seja quem for, a ser aquele que esse alguém potencialmente é. Os grupos costumam exercer fortíssima pressão sobre a personalidade isolada, freqüentemente cobrando, mais do que mandaria o respeito humano, procedimentos que afaguem as regras da coletividade, mesmo que agridam, não raro impiedosamente, as legítimas necessidades do homem. Fique claro não estarmos advogando a tese, a nosso ver temerária, segundo a qual cada um deva fazer exatamente o que queira, sem necessidade de, por sua vez, ponderar a existência do semelhante. Nunca. Mas, como exigir respeito, quando as atitudes fundamentais, os verdadeiros propósitos, o conteúdo das ações, sugerem, às escâncaras, competição desvairada, desonestidade intelectual, preconceito, egoísmo?... A sociedade comumente violenta o indivíduo como um todo, dele se descuida, e, depois, reclama-lhe e adboga tratamento respeitoso. É triste, é sábio e é verdadeiro o que afirmou Sartre: ‘‘ a associação das vítimas reúne a vítima e seu executor ’ ’ ...

Sob esse aspecto, seria infindável a lista de perguntas que poderiam ser feitas. E não nos é difícil perceber as decorrências éticas, morais e sociais desses fatos. O que, talvez, ou com certeza, venha a ser extremamente árduo e quase

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insuportavelmente penoso será conjugar essas decorrências com o preconceito e o egoísmo de quantos tentem fazer de sua verdade a verdade da existência humana. A proposta espírita original persegue esse ideal de educação por inteiro. É preciso relê-la, refletindo sobre seus alicerces, situando-a no contexto moderno e contemporâneo, para tanto se compreendendo o momento histórico em que foi elaborada, a fim de que sua força não se exaura nas concessões ao religiosismo pequeno, nem ao secularismo empobrecido pela preguiça de conhecer. Relativizando-se o ‘ ‘absolutismo’ ’ do timbre ‘ ‘ revelação divina’ ’ , em que pese o desacerto que isso cause em certa mentalidade sectarista, acreditamos que estaremos enunciando o ‘‘ espírito do Espiritismo’ ’ como resposta à seguinte observação de Whitehead: ‘ ‘Por dois séculos a religião tem estado na defensiva, e uma defensiva fraca. O período tem sido de progresso intelectual sem precedentes. Neste sentido, uma série de novas situações tem sido criada para o pensamento. E cada uma destas situações encontrou os pensadores da religião despreparados. Algo cujo caráter vital fôra proclamado chegou, finalmente, a sofrer modificações, sendo interpretado diversamente. Isto, após luta, mágoa e anátema. Então, a geração de apologistas religiosos seguinte congratula o mundo religiosos pela intuição mais profunda alcançada. O resultado da continuidade dessas retiradas desonrosas, ao longo de muitas gerações, acabou por quase destruir a autor idade intelectual dos pensadores da religião. Considerem o seguinte contraste: quando Darwin ou Einstein proclamam teor ias que modificam nossas idéias, isso é um tr iunfo para a ciência. Nós não saímos por aí, dizendo que se trata de outra der rota para a ciência, porque as antigas idéias foram abandonadas. Nós sabemos que foi dado um outro passo na compreensão científica. (...) A religião não reconquistará seu velho poder , até que possa enfrentar a mudança com o mesmo espír ito da ciência.’ ’ (Whitehead, AN., ‘‘ Science and The Modern Wor ld’ ’ , pp. 188/9).

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A resposta do Espiritismo já existia e, sob este aspecto, posta sob o pressuposto da ‘ ‘f é religiosa’ ’ (cf. ‘‘ O Evangelho Segundo o Espiritismo, pp. 301-3, 112a ed. FEB, tradução de Guillon Ribeiro), condensava-se na referência básica à ‘ ‘ fé inabalável’ ’ , que gerou a curiosa e mal compreendida expressão ‘‘ fé raciocinada’ ’ , a qual, parecendo expor uma contradição nos termos, terá sido imposta pela tríplice natureza da doutrina espírita. O conflito semântico é, todavia, apenas aparente, e decorre dos sentidos mutuamente excludentes que, em geral, a língua empresta aos vocábulos ‘‘ fé’ ’ e ‘‘ razão’ ’ , que, nela, surgem antitéticos. Tal expressão (‘ ‘ fé raciocinada’ ’) parece-nos um esforço de explicação de uma nova mentalidade dirigida ao mundo e à vida, opondo-se, tenazmente, aos extremos do intelectualismo e do fanatismo, bem associados, por sua vez e respectivamente, ao cientismo e ao religiosismo. Segundo o Espiriti smo, a fé não pode ser cega, nem a razão (ou, se quisermos, o intelecto) pode ser cem por cento vidente. Ambas complementam-se, na medida em que nenhuma delas, por si só, logra atingir um enfoque mais preciso do fenômeno humano. Fé raciocinada são, destarte, a razão e a fé que, reconhecendo-se de alcance parcial, e proclamando um não-exclusivismo, por isso mesmo se autolimitam e dão autoconsistência a um método de busca que ainda não atuara na plenitude de suas forças. Como seu escopo é o Conhecimento, admitimos esteja aí a grande proposta epistemológica do Espiriti smo. Outro aspecto epistemológica e metodologicamente importante é o controle universal do ensino dos Espíritos, que levaria à “autoridade da doutrina espírita (‘‘ O Evangelho Segundo o Espiriti smo’’ , Introdução, p. X, 3a ed. Francesa –definitiva). Com efeito, Allan Kardec optou por tal concordância de informações, como método de avaliação da verdade (Op. Cit., p. XII), o que, segundo nos parece, foi necessário no momento em que foi estabelecida a própria codificação. Hoje, porém, tal metodologia de investigação da verdade (discussão epistemológica célebre e bastante desenvolvida) levanta o grave

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problema da fragilidade de uma epistemologia intersubjetivista, e precisa ser repensado. Passaremos, isto posto, à análise de alguns trechos que entendemos como textos-chave do pensamento kardequiano. É evidente que eles não esgotam o ponto, sendo uma amostragem da natureza gnoseológica do Espiritismo. Ou seja, que ele faz sentido nos diversos períodos históricos da civilização, porque é um excelente fotograma da evolução integral, na seqüência do filme que ter-se-á, pensamos, iniciado com as notáveis Upanixades, de cuja interpretação advaiti sta (não-dualista) ressalta a identificação Atman=Brahman, como quintessência da mais refinada e profunda intuição acerca do Homem e do Universo.

OS TEXTOS (I )

“ 0 liame cr iado pela religião, relativamente a qual for o objeto, é (...) essencialmente moral, religando os corações, identificando os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de ligações mater iais, que à vontade se rompem, nem a observância de formulas que falam mais aos olhos que ao espír ito. O efeito desse vinculo moral consiste em estabelecer entre aqueles que une, como conseqüência da comunhão de objetivos e de sentimentos, *a fraternidade e a solidar iedade*, a indulgência e a benevolência mutuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.

“ Se assim é, dir -se-á, o Espir itismo é, então, uma religião? Claro que sim! Sem duvida, Senhores; no sentido filosófico, o Espir itismo é uma religião, e disso nos gabamos, porque é a doutr ina que embasa os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não

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apenas sobre simples convenção, mas sobre alicerces os mais sólidos: as própr ias leis da natureza.

“ Por que, então, declaramos não ser o Espir itismo uma religião? Porque existe somente uma palavra para expr imir duas idéias diversas, e porque, na opinião das gentes, a palavra religião é inseparável da idéia de culto; enfatiza exclusivamente uma noção de forma, que o Espir itismo não tem. Se este se afirmasse religião, nele não ver ia o publico senão uma nova edição, uma var iante, se quisermos, dos pr incipias absolutos em matér ia de fé, uma casta sacerdotal com seu cor tejo de hierarquias, de cer imônias e de pr ivilegias (... ).” (ln “ Revue Spirite” , 1868, p. 353 - Discurso pronunciado por Kardec, quando da Sessão Anual comemorativa dos Mortos. Sociedade de Par is, 1o de novembro de 1868)

COMENTÁRIO

Questão fundamental, também em doutrina espírita, é a busca da precisão de conceitos (fase de “abstração” , no método), o que permite delimitação de significados básicos e clareza expositi va de idéias. Procura-se, destarte, sem pobreza vocabular, a

simplicidade, sem banalização, e a síntese, esta podendo ser entendida como proporção ideal entre forma e conteúdo, não sendo mensurável pela simples consideração da quantidade de palavras, frases ou períodos. Os textos científico e filosófico caracterizam-se pelo

balizamento conceptual e pela objetividade, efeitos diretos da abstração. Assim, tais textos, freqüentemente, exibirão complexidade, sem que sejam, em si mesmos, obscuros. Igualmente, nem por se apresentar "curto", será o texto

necessariamente sintético; nem, por ser "longo", será necessariamente prolixo. Os vocábulos ‘ ‘obscuro’’ , ‘‘ sintético’ ’ e ‘ ‘complexo’ ’

não são sinônimos.

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O texto kardequiano deve ser lido como caracterizado pela precisão vocabular, pela abstração conceptual, pela extensão e pela síntese. Alertava André Moreil (autor de famosa biografia de

Rivail-Kardec) para que “o destino do espir itismo está ligado a sua definição”, destacando que “quando uma noção é muito ampla, englobando um domínio infinito, toma-se imprecisa” . E acrescentava que, “(... ) pior ainda: não significa mais nada.” (ln “ La Vie et I 'Oeuvre d' Allan Kardec” , p. ll , ed. Vermet, Par is). Daí o esforço do codificador, sintetizando os textos

integrantes dos mais de 50 cadernos de comunicações mediúnicas, na busca da essência teórica, o que terá levado o mesmo Moreil a observar, com agudeza, que "(... ) entre Rivail, o educador, e Allan Kardec não existe nenhuma diferença, nem de método, nem de rigor científico." (Op. cit.) Como exemplo claríssimo do recurso à abstração,

temos este texto: ‘ ‘Há necessidade de palavras novas para designar

coisas novas. Assim o exige a clareza da linguagem, visando evitar a confusão gerada pelo sentido múltiplo dos mesmos vocábulos.” (In “ Le Livre des Esprits” , p. I , ed. Dervy-L ivres). Quanto ao significado do vocábulo ‘‘ religião’’ ,

considera-o Rivail desgastado e deturpado, o que o induz a analise das prováveis conseqüências da adoção sincera de uma religião, como situadas em "liames morais" (texto inicialmente transcrito), geradores da "fraternidade e solidariedade", da "indulgência e benevolência mutuas". (Idem). Seguindo a transcrição, observa-se o destaque do

efeito de "religação", atribuído a religião já por Agostinho (Retract., I, 13) e por Lactancio (lnst. Div., IV, 28), este último citando Lucrecio (“ De Nat.Rerum” , I , 930). Ao mesmo tempo, contudo, o codificador procede a verdadeira "releitura" dessa "função superior do espírito"(ap. Johannes Hessen, in A Teor ia

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do Conhecimento” ), lembrando-nos da origem que para o termo (‘ ‘religião’ ’ ) postulava Cícero (“ De Nat. Deor.” , ll , 28, 72), e sempre o afastando da noção de culto (exterior). (Ap. terceiro parágrafo, texto inicialmente transcrito). Impunha-se que o novo conceito (o de "Espiriti smo")

não contivesse, fosse na sua extensão, fosse na sua intenção, nenhum dado que induzisse "a opinião das gentes" a enformar a nova teoria em qualquer um dentre aquelas notas que a afastassem do sentido de "religião natural", postura interior, de busca do autoconhecimento, visando elaboração e aperfeiçoamento do Espírito. Compreende-se, destarte, o alcance desta reflexão: “Não tendo o Espir itismo, como o não tem, nenhuma das

caracter ísticas de uma religião, na acepção comum da palavra, não podia, nem devia apoderar-se de um titulo sobre cujo valor haver ia inevitável desprezo; eis por que se diz, simplesmente: doutr ina filosófica e moral.” ( In “ Revista Espír ita” , 1868, p. 353, transcrito em “ L’Obsession” , pp. 288/9, éditions de I 'Union Spirite Belge, 1959) Percebe-se que tal é a distinção levada a cabo pelo

professor lionês, tal é a sua preocupação em estremar o Espiriti smo das religiões formalistas, que enfatiza (e essa é, tão-somente uma das diversas oportunidades em que o faz): “ Do ponto de vista religioso, o Espir itismo tem por

base as verdades fundamentais de todas as religiões: Deus, a imor talidade, as penas e as recompensas futuras, mas ele é independente de todo e qualquer culto par ticular . Seu propósito é provar aos que negam ou duvidam da existência da alma que ela sobrevive ao corpo, que sofre, após a mor te, as conseqüências do bem e do mal que haja feito durante a vida corpórea, vale dizer, isso que pertence a todas as religiões.

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“ Como crença nos espír itos, está ele em todas as religiões, assim como em todos os povos, eis que, onde quer que exista o homem, existem almas ou espír itos; as manifestações são de todos os tempos, e a narr ativa se encontra em todas as religiões, sem exceção. Pode-se, destar te, ser católi co, grego ou romano, protestante, judeu ou muçulmano, e crer nas estações dos espír itos, sendo-se, via de conseqüência, espír ita; prova disso está em que o Espir itismo conta com adesões em todas as seitas.” (In “ Le Spiritisme à sa plus Simple Expression” , p. 14/5, ed. Librairie des Sciences Psychiques, 1922)’ ’ . A natureza religiosa do Espiriti smo traduz-se, portanto, numa postura intimista de reverência pelas verdades universais apontadas, enquanto leis da natureza, acerca de que toda reflexão séria gera decorrências morais, na esteira de princípios igualmente universais, que ele indica embasarem o pensamento de Jesus. Parece-nos claro não haver fronteiras para a postura interior em matéria de fé. Contudo, os textos do Kardec-pensador levam-nos a considerar que, enquanto religião, o Espiritismo expõe a sua força no campo das conseqüências morais alcançadas individual e coletivamente. Não obstante sua preocupação, explicada na Introdução de ‘ ‘O Evangelho Segundo o Espiriti smo’’ , no sentido de escolher, dentre os textos atribuídos ao Cristo, apenas aqueles de natureza moral, fato é que, com isso, consciente ou inconscientemente, afastou a teoria que expunha da penumbrosa e não raro obscura região dos lances teológicos, cipoal infindável de tricas e disputas inquestionavelmente menores.

(I I )

“ 0 Espir itismo não é obra de um homem. Ninguém se pode dizer seu autor porque ele é tão antigo quanto a Cr iação; encontra-se por toda par te, em todas as religiões e mais ainda na religião

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católica, com mais autor idade do que em todas as outras porque nela se encontram os pr incipias de todas as manifestações: os Espír itos de todos os graus, suas relações ocultas ou patentes com os homens, os anjos guardiães, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, as visões, as manifestações de todo gênero, as apar ições tangíveis. No tocante aos demônios, não são mais do que os Espír itos maus e salvo a crença de que são eternamente destinados ao mal, enquanto a via do progresso não é interditada aos outros, entre eles não ha qualquer diferença alem do nome.” (ln “ 0 Livro dos Espír itos” , p. 249, ed. Opus Editora L tda)

COMENTÁRIO

Observada a abstração, por meio da qual o codificador buscou clarificar os conceitos de que se valeu, no notável esforço de síntese, com vistas ao trabalho de codificação (cf Comentário 01), impõe-se a interpretação sistemática do texto, para compatibilizá-lo com o pensamento integral. Não há dúvida de que as demais religiões têm a sua

doutrina própria, que não é a espírita. Portanto, não é razoável sustentar-se que a doutrina espírita seja encontradiça “em todas as religiões” (texto acima transcrito), nem mesmo que ela (a doutrina) se confunda com a fenomenologia cuja observação evidenciou “o pr incípio de todas as manifestações” (loc. cit.). Não cremos que Allan Kardec, de formação

pedagógica pestalozziana, cometesse, com tanta facilidade, o equívoco da anfibologia, por ele mesmo criticada na "lntrodução ao Estudo da Doutrina Espírita" (In “0 L ivro dos Espír itos” , pr imeiro parágrafo, ed. Dervy-L ivres). Portanto, como se compatibiliza o texto II com este

outro, constante da mesma fonte retrocitada: “Diremos, em conseqüência, que a doutr ina espír ita ou o espir itismo tem por pr incípio as relações do mundo material com os Espír itos ou seres do mundo invisível.”? ...

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É o próprio Allan Kardec quem indica a abstração que enfocamos, ao escrever, no parágrafo seguinte (op. cit., loc. cit.), isto: “ Como especialidade, o L ivro dos Espír itos contem

a doutr ina espír ita’ ’ , sem mencionar, novamente, “ou o espir itismo” . Não nos parece equivocado, nem mendaz, conjecturar

que, nos textos abordados, a palavra “espiriti smo” signifique “conjunto de fenômenos espíritas” , estes os “princípios de todas as manifestações” , “os Espír itos em todos os graus, suas relações ocultas ou patentes com os homens, os anjos guardiães, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, as visões, as manifestações de todo gênero, as apar ições tangíveis” (cf texto I I ) Entende-se que o espiritismo se encontre, mesmo, na natureza (a Criação), “por toda parte, em todas as religiões e mais ainda na religião católica (...)” ; não, porém, a doutrina espírita, de manifesta incompatibil idade com a estrutura e o conteúdo desta última. Quanto aos enunciados: “0 Espir itismo não é obra

de um homem. Ninguém se pode dizer seu autor ” , cremos signifiquem, primeiro, que os fenômenos se enquadram em leis da natureza (ainda que o respectivo mecanismo causal eficiente ainda não estivesse, nem esteja, completamente equacionado); e, segundo, que o próprio corpo doutrinário não é ideação sua (de Kardec), tocando-lhe a imprescindível sistematização, enriquecida, porém, com comentários de rara felicidade e, freqüentemente, tão importantes quanto a sua motivação. Sobre isso, André Moreil manifesta-se com muita

clareza: “Saibamos, no entanto, que Kardec, na sua grande

modéstia, diz: 'O Espir itismo não é nem uma concepção pessoal, nem o resultado do trabalho de um homem. É que ele não quer ser considerado como o Papa do espir itismo',

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justamente para lhe manter a autonomia e o valor científico.” (ln “ La Vie et l’Oeuvre d'Allan Kardec” , p. 14, ed. Vermet). Interpretar, repetimos, é revelar estruturas, dar sentido,

compreender... conhecer, em uma palavra.

(I II )

“ Do ponto de vista religioso, o Espir itismo tem por base as verdades fundamentais de todas as religiões: Deus, a imor talidade, as penas e as recompensas futuras; mas ele é independente de todo e qualquer culto par ticular . Seu propósito e provar aos que negam ou duvidam da existência da alma que ela sobrevive ao corpo, que sofre, após a mor te, as conseqüências do bem e do mal que haja feito durante a vida corpórea, vale dizer , isso que pertence a todas as religiões.

“ Como crença nos espír itos, está ele em todas as religiões, assim como em todos os povos, eis que, onde quer que exista o homem, existem almas ou espír itos; as manifestações são de todos os tempos, e a nar rativa se encontra em todas as religiões, sem exceção. Pode-se, destar te, ser católico, grego ou romano, protestante, judeu ou muçulmano, e crer nas manifestações dos espír itos, sendo-se, via de conseqüência, espír ita; prova disso está em que o Espir itismo conta com adesões em todas as seitas.” (ln “ Le Spiritisme à sa plus Simple Expression” , pp. 14/5, ed. Librairie des Sciences Psychiques, 1922).

COMENTÁRIO

Afirma Allan Kardec que a doutrina espírita “ (...) tem por base as verdades fundamentais de todas as religiões: Deus, as penas e recompensas futuras (... )” . Mas, como não poderia deixar de ser, nada tem ela a ver seja com qual culto for. Com isso, o codificador nega, mais uma vez, a associação da doutrina à noção de “religião” , conforme tradicionalmente entendida.

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As preocupações de ordem moral são, elas mesmas, as de todas as religiões, o mesmo se podendo dizer, quer dos fenômenos que deflagram, desde o paleolítico, a atitude religiosa fundamental { cf. Comentário 01 [crença nos Espíritos, manifestações desde todos os tempos, narrativa encontradiça em todas as religiões, “sem exceção”, (apud texto sob comento)]} . Encontramos o mesmo pensamento no “Livro dos

Médiuns” , primeiro parágrafo, capítulo II, edição Dervy-Livres, a seguir traduzido e transcrito, palavra por palavra: “ Fosse a crença nos Espír itos e em suas

manifestações uma concepção isolada, produto de um sistema, e dela poder-se-ia, com alguma aparência de razoabili dade, suspeitar de ilusór ia; diga-se-nos, então, por que a encontramos, tão vivaz em todos os povos antigos e modernos, nos li vros santos de todas as religiões conhecidas?” (Op. cit., loc. cit.).

Baseando-se, contudo, na existência dos Espíritos, na sua preexistência, sobrevivência e comunicabilidade, a doutrina espírita expõe perspectivas, causas e conseqüências de autenticas leis da natureza (cf. tb. “ Obras Póstumas - Constituição do Espir itismo Dos Cismas” ), com participação da inteligência espiritual que o Homem é, o que dá sentido amplíssimo é à reflexão moral desenfocando-a seja das miudezas de valor relativo, seja do puro lirismo entrevisto em atitudes à semelhança, por exemplo, da que meramente contempla a perspectiva da eternidade na memória dos indivíduos. A Literatura universal é farta desses exemplos,

cabendo evocar, na literatura brasileira, a indiscutível beleza ímpar do “Soneto da Fidelidade” , de Vinícius de Moraes, em cujo confronto ressalta a perspectiva global, delineada pelo Espiriti smo, dizendo a todos nós sobre a ‘ ‘atitude’ ’ ontológica perante a Vida. E não só da infinita percepção que, eventualmente, nos proporcione a própria transitoriedade, espécie de refinamento do “Carpe Diem”.

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Apresenta-se, destarte, a doutrina espírita, sem nenhum toque de fanatismo, de sectarismo, de isolacionismo, e, sempre, como espécie de religião natural, relendo a tradição religiosa, sumariando a base natural comum, por isso mesmo, a todas elas, e incentivando a religação autoconsciente do Espírito com a sua dimensão potencialmente cocriadora. Compreende-se, então, o porquê das três orações finais do texto ora comentado. A doutrina, ao propor uma nova visão da Realidade,

ao mesmo tempo respeita a adesão religiosa preferida e entrega a cada um a chave para a libertação espiritual, gerada pelo discernimento entre o periférico e o essencial. Isso se consegue pelo Conhecimento, englobando um

intensíssimo esforço intelectual: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (cf. João, VIII-32). Essa investigação é crucial para o Espiritismo, integrando, admitimos, sua própria essência. Não perceber isso, significa entender muito pouco (ou quase nada) da proposta original espírita, enveredando por um “biblismo” formal, ôco, que nada tem a ver com a doutrina. Tal equivaleria a assumir postura objetivista-reducionista, insistindo em negar à teoria sua natural riqueza, em termos de referenciais ocultos, assim abrindo campo para a sua inumação no túmulo de um século (o XIX, no caso) que, nem ele, faz sentido isolado da linha evolutiva histórica.

(IV)

“ Não tendo o Espir itismo, como o não tem, nenhuma das caracter ísticas de uma religião, na acepção comum da palavra, não podia, nem devia apoderar-se de um titulo sobre cujo valor haver ia inevitável desprezo; eis por que se diz, simplesmente: doutr ina filosófica e moral. “ As reuniões espír itas podem, por tanto, ser realizadas com sentimento religioso, vale dizer , com o recolhimento e o respeito que admite a natureza grave dos temas de que nelas nos ocupamos. Pode-se, mesmo, orar nos momentos propícios, preces que, em vez de serem ditas em par ticular , são

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par tilhadas, sem que isso transforme as reuniões em assembléias religiosas. E não se diga que isso é jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara e a aparente confusão deflui da inexistência de uma palavra para cada idéia. “ Qual é, então, o laço que deve existir entre os espír itas? Não os une nenhum contrato, nenhuma pratica obr igatór ia. Qual é o sentimento no qual devem confundir -se todos os pensamentos? É um sentimento de índole puramente moral, inteiramente espir itual, humanitár io: o da car idade para com todos, vale dizer , o amor ao próximo, aí entendidos os vivos e os mor tos, já que sabemos integrarem estes a humanidade. “ A car idade é a alma do Espir itismo: ela resume todos os deveres do homem em relação a si mesmo e em relação aos semelhantes. Eis por que podemos dizer que não existe verdadeiro espír ita sem car idade.” (ln “ Revista Espír ita” , 1868, p. 353, transcr ito em “ L’Obsession” , p. 288/9, Editions de I 'Union Spirite, 1959)

COMENTÁRIO

Novamente, nega o codificador à doutrina espírita a natureza de religião, “na acepção comum da palavra” , o que, ipso facto, a faz, não apenas isenta, mas, muito mais, imune a todos os consectários que tornam as organizações religiosas em mal disfarçado núcleo de exercício de poder. Por ser, quer enquanto teoria, quer enquanto praxis,

indutora e fomentadora da chamada reforma íntima, afasta-se da atitude catequista, inconfundível com o espontâneo influxo de persuasão que dela promana, e que leva o Homem a ser e a comportar-se não como censor do próximo, porém como educador de si mesmo e companheiro do semelhante. A idéia de “doutrina filosófica e moral” instiga, no

indivíduo, a necessidade de auto-reflexão sobre as funções de valor teóricas e praticas, relativamente a ele mesmo e ao universo (apud Johannes Hessen, in “Teoria do Conhecimento” , p 15, Armenio Amado-editor-sucessor, Coimbra, 1976), seu natural

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contorno. Esse dado cogniti vo-ontológico faz da doutrina não um corpo, mas urna inteligência viva, estuante de beleza e de sabedoria. Cuida-se, destarte, de uma doutrina hiperdinâmica e de elite, conquanto não eli tizada. De elite, sim, na medida em que introduz, como dado crucial dramático "refinamento do pensar cotidiano" (apud Einstein, A., acerca de “Ciência” , in “A Física e a Realidade” , inserto em “Pensamento Político e Últimas Conclusões” , p. 60), através, v.g., do enunciado e esforço de desdobramento das leis da reencarnação e do carma (“causa e efeito” , segundo muitos, com as ressalvas anteriormente levantadas). Eliti sta não é, porquanto franqueia a todos a sua

mensagem, sem banalizá-la, que seria o resultado da decadência da simplicidade, gerado pela preguiça espiritual e pela sutil contaminação do conceito de “graça” , em formulação deturpada. Nada disso exclui o fato de que o ideal espírita passa

por aquilo que Albert Schweitzer apelidou de “reverência pela vida”, e que não se esgota no “não matarás” bíblico, mas que ultrapassa todas as fronteiras ditadas pelo senso comum, este, ainda na dicção de Einstein, “(... ) o conjunto de preconceitos sedimentados na mente, antes da idade dos 18 anos” (in “ Física” , Orear , J., ed. L ivros Técnicos e Científicos, 1971, p. 254). Esse ideal, muito ao invés de marginalizar o

sentimento religioso (religiosidade natural), escoima-o de um estilo rococó, e apresenta-nos o ato de orar, a um só tempo como disposição intima à contemplação participativa e atualização de uma predisposição espiritual ao respeito pela nossa própria existência. Por isso, a prática da oração espontânea não

transforma as reuniões ‘ ‘em assembléias religiosas” (cf texto sob comento); nem o se afirmar isso significa, necessariamente, empregar um jogo de palavras (entidade semântica cujo estudo é, em medida própria, alvo da Filosofia da Linguagem), mas esforço inserto na releitura do conceito de ‘‘ religião’ ’ .

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Como conseqüência, temos a redefinição do conceito de “caridade” , com isso lhe sendo emprestada nova extensão. Se maior, não o sabemos; seguramente, porém, mais qualificada, de acordo, aliás, com a natureza do Espiritismo, que expõe processos basicamente qualitativos e que, por isso mesmo, insistimos em considerar uma doutrina de elite, porém, repetimo-lo, com abertura plena para toda e qualquer adesão espontânea, desde que de substância.

(V)

“ Visando a desacreditar o Espir itismo,

pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis exatamente o contrar io, pois a maior ia de vos, que apenas acreditáveis em Deus e na alma, agora crêem; quem não sabia o que era orar , ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, agora vai com recolhimento. Alias, se a religião devesse ser destruída pelo Espir itismo, é que ela ser ia destrutível e o Espir itismo ser ia mais poderoso. Dizê-lo ser ia uma inabili dade, pois ser ia confessar a fraqueza de uma e a força de outro. O Espir itismo é uma doutr ina moral que for tifica os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões. É de todas, e não é de nenhuma em par ticular . Por isso não diz a ninguém que a troque. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus a sua maneira e de observar as praticas ditadas pela consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um ao templo do vosso culto; e, assim provareis que vos caluniam, quando vos taxam de impiedade.” (ln “ Revista Espír ita” 1862, p. 35, Edicel)

COMENTÁRIO

A “ Revue Spirite” , fonte para seleção do texto sob comento, era, como indicado pelo subtítulo, um “Journal d'Études Psycologiques” , com finalidades de divulgação e discussão mais dinâmicas de pontos doutrinários, cujas bases se

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encontram no “Livro dos Espíritos” , no “Livro dos Médiuns” e no “Evangelho Segundo o Espiritismo” . Era hábito do codificador consultar os responsáveis espirituais pela Obra, ouvindo-os por médiuns de sua confiança. Seu comportamento, no pertinente à “ Revue” , não discrepou do habitual: Kardec ouviu a Espiritualidade, via Ermance Dufaux, tendo obtido, sobre o projeto acalentado, a seguinte comunicação mediúnica:

“ É necessár io dispensar-lhe toda a atenção, para que sejam assentadas as bases de um bom e duradouro êxito. A apresentá-lo defeituoso, melhor será omitir -se, já que a pr imeira impressão pode decidir -lhe o futuro. Impõe-se, mais ainda de início, a satisfação da cur iosidade, a reunião do sér io ao agradável, visando, a um só tempo, atrair os cientistas e deleitar as pessoas comuns. Este é um objetivo fundamental; o pr imeiro é, todavia, mais impor tante, porquanto, sem ele, o jornal careceria de alicerces sólidos. É preciso, em síntese, evitar a monotonia, recorrendo aa var iedade, e acoplar ao interesse a instrução sólida. Com isso, ela (a revista) será um poderoso auxili ar para os trabalhos futuros.” (Parênteses nossos)

No primeiro volume da série, dado à luz no dia 1o de janeiro de 1858, o pensador enunciou-lhe os objetivos (informação pormenorizada sobre o desenvolvimento mundial da doutrina) e traçou-lhe as diretrizes de tribuna livre, observando, primeiro, que, nela, “a discussão não deverá jamais fugir das regras da mais estrita conveniência; e, segundo e finalmente, que, em suma, discutiremos, mas não disputaremos." O texto-motivação desse comentário leva ao

paroxismo a insistência de Allan Kardec em recusar aspecto religioso tradicional à Doutrina Espírita, situando-a, para os fins ali propostos, como “doutrina moral que fortifica os sentimentos religiosos em geral” (cf. initio) e que "se aplica a todas as religiões" (idem).

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Considerados, destarte, o sistema das religiões oficiais, incompatíveis com a nova proposta, e a aptidão desta para gerar o sentimento religioso de reverencia pela vida, temos situar-se ela, ao mesmo tempo, como meta-religião e como teoria do conhecimento religioso. Compreende-se, por meio dessa reflexão, o reforço

provocado no sentimento religioso de cada indivíduo, com o qual, não custa lembrar, nem custa enfatizar, cada um lidará de acordo com os recursos cognitivo-sentimentais que detenha. Nem, portanto, essa função superior do espírito é, sequer, prejudicada; processa-se, isso sim, o seu esclarecimento, com importantíssimas decorrências, quer no campo do intelecto, quer no das emoções, que se encontram num ponto comum: a auto-reflexão. Decorrência prática exterior é a não condenação, pelo

Espiriti smo, desses cruciais processos íntimos, que dizem respeito à própria alma, no exercício do seu autoconhecimento, seja isso sob qual propósito ou estilo for; do contrário, reeditar-se-ia o “crê ou morre” , e o Espiriti smo negaria a própria finalidade: induzir o auto-exame e acelerar a evolução individual e coletiva. Corresponde isso, exatamente, ao contrário da atitude

assumida pela Igreja Católica (e por outros credos religiosos), instituição que, durante mais de um século, combateu fortemente a gênese de uma parcela da fenomenologia mediúnica *e* a Doutrina Espírita, exatamente por lhe haver, de pronto, percebido a ameaça libertária, a incidir sobre a atividade catequética e pastoral institucionalizada. Confiram-se, a esse propósito, as palavras de Kardec,

ele mesmo, constantes do seguinte excerto:

“ Resumindo: a Igreja, ao repeli r sistematicamente os espír itas que a ela retomavam, forçou-os a voltarem sobre seus própr ios passos. Pela natureza e a violência dos ataques por ela desfechados, ampliou a discussão e conduziu-a para um novo terreno. O Espir itismo não passava de simples

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doutr ina filosófica; foi ela mesma que, apresentando-o como um temível inimigo, lhe conferiu maiores proporções; foi ela finalmente, que o proclamou nova religião. Isso foi um equívoco; mas a paixão não raciocina.” (ln “0 que é o Espir itismo” , p. 89, ed. Dervy-L ivres)

Em suma, o tiro saiu pela culatra... Como se depreende do que ficou exposto, o

Espiriti smo inaugura, no quadro do pensamento ocidental, cravado no racionalismo grego, uma nova concepção teórico-prática de “religião” , como releitura de cada um e religação das cisões do Espírito, por meio das quais se procura redescobrir o sentido da Criação, a ecoar dentro de nós mesmos. Ainda que a questão fosse de etimologia, seu peso não

decresceria. Valemo-nos de Pavlov, para que a palavra é um reflexo condicionado do segundo sistema de sinalização, capaz de influenciar e inibir, violentamente, quer os reflexos incondicionados, quer os reflexos condicionados do primeiro sistema (cf, milenar e pragmaticamente, Tiago, 3:5-8). Modernamente, enfatizou-o a Filosofia Analítica, ao

cogitar de que, na realidade, quem não sabe falar não sabe pensar, assim invertendo as postulações clássicas.

(VI)

“ Para responder , desde logo e em suma, à pergunta formulada no titulo deste opúsculo, diremos que:

“ 0 Espir itismo é, a um só tempo, ciência de observação e doutr ina filosófica. Como ciência experimental, consiste na relação passível de ser estabelecida com os Espír itos; como filosofia, engloba todas as conseqüências morais que defluem dessas relações.

“ Pode-se defini-lo assim: " 0 Espir itismo é uma ciência que aborda a natureza, a or igem e o destino dos Espír itos, bem como suas relações com o mundo corpóreo.” (ln “ 0 que é o Espir itismo” , p. 08, ed. Dervy-L ivres)

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COMENTÁRIO

INTRODUÇÃO. Devidamente clarificado o pensamento do codificador acerca da natureza do Espiritismo, sob o prisma da religião, raciocinemos acerca do texto acima transcrito, no qual sobressaem os aspectos filosófico e científico da doutrina. Todo texto, por se estruturar numa linguagem, contem

extratos informativos, que se ligam uns aos outros e propõem estruturas que se revelam graças à interpretação. Mesmo o Evangelho, cuja moral cósmica é uma das

bases do Espiriti smo, cai sob a poderosa atividade hermenêutica humana. Não interpretá-lo significará, tão-somente, repetir-lhe as frases, calando-se logo a seguir, o que, a seu turno, provocará reações de perplexidade gerada pelo silêncio.

Qual será a sua conotação, eis o que se procurará interpretar.

Para que, então, bem se compreenda o Espiritismo como Filosofia e como Ciência, mister primeiro saber-se quais estruturais esses vocábulos estariam a indicar. Não consideramos a etimologia dessas palavras, na medida em que seus significados acham-se bem postos e definidos na Cultura universal. A Ciência e a Filosofia, assim como a Religião e a

Arte, costumam ser categorizadas dentre as chamadas “funções superiores do espírito” , o que, todavia, não as faz atividades idênticas. Participam, sim, de um gênero próximo (são funções superiores do espírito), mas estremam-se por diferenças específicas (origem, objeto e essência do conhecimento, por exemplo). Assim, a Ciência e a Filosofia enraízam-se na razão,

ao contrário da Religião, cuja origem está na fé. Afastam-se as duas primeiras, porque, enquanto a Filosofia, à semelhança da religião, tem por objeto a totalidade, a Ciência tem por alvo setores da realidade, setores estes bem definidos, na medida em que adquiram tratabil idade por seu(s) método(s).

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A questão da essência do Conhecimento, como um todo, põe o problema da determinação do sujeito pelo objeto, ou vice-versa. Da interrelação básica desses dados nascem os cinco

problemas estudados em Teoria Geral do Conhecimento, disciplina fundamental para a compreensão dos limites da Filosofia e dos próprios métodos científicos, um dos quais,. clássico, o indutivo se encontra sob violenta crítica, desde David Hume, passando, muito tempo depois, pelo falsificacionismo, inaugurado por Kar l Popper. São aqueles cinco problemas: 1) a possibil idade do conhecimento, onde se estudam o dogmatismo, o ceticismo, o subjetivismo, o relativismo, o pragmatismo e o criti cismo; 2) a origem do conhecimento, rubrica sob a qual são investigados o racionalismo, o empirismo, o intelectualismo e o apriorismo; 3) a essência do conhecimento, balizando-se, como soluções pre-metafisicas, o objetivismo e o subjetivismo; como soluções metafísicas, o idealismo, o realismo e o fenomenalismo; finalmente, como propostas teológicas, o monismo, o dualismo, o panteísmo e o teísmo; 4)forma do conhecimento, investigando-se o racionalismo e o intuicionismo; 5) critério de determinação do conhecimento verdadeiro, via logicismo e psicologismo. Inevitável, diante desse esquema (que apenas introduz

o leitor ao equipo necessário à eventual compreensão do fenômeno), indagarmo-nos se, para entendermos o Espiriti smo, serão necessárias considerações deste jaez. Não titubeamos em responder que sim, tanto quanto se erige a compreensão de um novo modelo de Religião, para que, igualmente, se comece a equacionar a doutrina. Quanto a este último aspecto, estendemo-nos,

anteriormente, em considerações varias, nas quais, sempre buscando escora no pensamento do codificador, procuramos clarificar o porquê de afirmar ele, com veemência, não estarmos diante de mais uma religião.

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O ESPIRITISMO COMO FILOSOFIA. Podemos dividir a Filosofia em três grandes disciplinas, a saber: A) Concepção do Universo; B) Teoria dos Valores; C) Teoria da Ciência. Sob a rubrica "Concepção do Universo", albergam-se a Metafísica e a Teoria do Universo "stricto sensu", a primeira se subdividindo em Metafísica do Espírito e Metafísica da Natureza; a segunda, estudando os problemas de Deus, da Liberdade e da Imortalidade. Sob a rubrica "Teoria dos Valores", estudam-se os valores éticos, estéticos e religiosos. Sob a rubrica "Teoria da Ciência", focaliza-se a Lógica e a Teoria do Conhecimento. Este, o domínio da Filosofia, cujo estudo nos ensinará,

no mínimo, a ordem dos conceitos e a possível correção do raciocínio, despertando-nos a sadia perplexidade diante do mundo. O aspecto filosófico, impende lembrar, vincula-se ao

próprio conceito de Filosofia, ou, melhor dizendo, a uma sua “representação geral” , apoiando-nos no movimento pendular, observado no curso da historia da Filosofia Ocidental, definindo-se por um constante reforço das doutrinas de Aristóteles (concepção do universo, como elemento material) e de Platão (concepção do eu, na mesma categoria). Foi com base nessa oscilação, de que apenas destacamos os extremos, numa tentativa de simplificação suficiente (“navalha de Ockham”, sem nominalismo, nem reducionismo ontológico), que Johannes Hessen conformou tal representação: “A filosofia é uma tentativa do espírito humano para chegar a uma concepção do universo por meio da auto-reflexão sobre as suas funções de valor teóricas e práticas” (In “ Teor ia do Conhecimento” , p. 15, ed. Armenio Amado, Coimbra, 1976). E, com efeito, o “Livro dos Espíritos” , com sua sólida

estrutura teórica, introduz uma concepção do universo como, praticamente, um organismo inteligente, na medida em que o evolucionismo espírita postula um continuum", da matéria física ao elemento inteligente (espírito, com ‘e’ minúsculo), e deste à individualidade (Espírito, com ‘E’ maiúsculo), exatamente na parte final da resposta à pergunta de número 540.

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Ganha novos e mais precisos contornos o “principio antrópico” , segundo o qual, grosso modo, “porque nós estamos aqui, o universo tem de ser tal, de modo a permiti r a eclosão da vida, em algum lugar, em algum ponto da história” (John Archibald Wheeler, Center for Theoretical Physics, University of Texas at Austin, in “ The Anthropic Cosmological Principle” , por John D. Barrow & Frank J. Tipler, Clarendon Press, Oxford, 1986). Se, como afirmou Nicolau Hartmann, “o sentido do

conhecimento filosófico é não tanto resolver enigmas, quanto descobr ir maravilhas” , então, os alicerces doutrinárias do espiriti smo, cravados no solo das leis da natureza e enunciados com a clareza que brotou da pena de Kardec, permite-nos afirmar que, nele, o Homem é, tão-somente, um momento da inteligência cósmica, voltada sobre si mesma, num processo interminável de auto-revelação e autoconhecimento. Como conseqüência de seu núcleo, propriamente dito

(“natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como suas relações com o mundo corpóreo” , cf texto sob comento), a reflexão espírita tem hausto para projetar-se, não apenas sobre a Concepção do Universo e a Teoria dos Valores, mas, também, sobre a própria Teoria da Ciência, na medida em que o balizamento de uma sobrevivência pessoal, em dimensão própria, com contornos específicos, permite a formulação de novos questionamentos, versando as leis gerais reitoras do Conhecimento e a relação pensamento-objeto, ou seja, novas avaliações do que sejam critérios de estabelecimento da verdade. Acreditamos não haver, nesse enquadramento, mais

estranheza do que a contida, por exemplo, no argumento de Einstein, Podolski e Rosen, ou no Teorema de Bell , marcos fundamentais da Filosofia da Física, até hoje suscitando debates. Quanto a estes, saudabilíssimos, não há de levantar a

reflexão acerca de nossa natureza e de nosso destino, para além do intervalo berço-túmulo, como individualidades de fato imortais, e não somente literariamente perenes.

É o que veremos a seguir.

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O ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA. Ao situar o

Espiriti smo como a ciência do Espírito, e procedendo metodicamente para potencializar o descortino da teoria proposta, imunizando-a contra a crendice e o dogmatismo, disso retirou Allan Kardec todas as conseqüências filosóficas e ético-morais que marcam a doutrina.

Fixando a racionalidade aberta da investigação do fenômeno espírita, expôs, sem rebuços: “0 Espir itismo repudia, no que lhe concerne, todo efeito maravilhoso, ou seja, fora das leis da natureza; (... ) explica, em vir tude de uma lei, cer tos efeitos até hoje reputados milagres e prodígios, e, deste modo, demonstra-lhes a possibili dade. Dilarga, destar te, o domínio da ciência, e é nisso que é, ele mesmo, uma ciência; como, porém, a descober ta dessa nova lei produz conseqüências morais, o código dessas conseqüências, faz dele, a um só tempo, uma doutr ina filosófica.” (In “ O que é o Espir itismo” , pp. 34-5, ed. Dervy-L ivres, Par is). Por vezes, destaca-se a influência positi vista na elaboração kardequiana, o que não significa, necessariamente, que a estrutura do Positivismo, especialmente aquele levado ao extremo, integre o corpo doutrinário espírita. Não o faz, e convém lembrar ter sido o próprio codificador quem desfez qualquer mal entendido. Vale lê-lo:

“ Vou mais longe, e afirmo que é precisamente o positivismo do século que engendra a adoção do Espir itismo, e que é àquele que este deve, em par te, sua rápida propagação, e não, como pretendem alguns, a recrudescência do amor pelo maravilhoso e pelo sobrenatural. O sobrenatural desaparece diante do fanal da ciência, da filosofia e da razão, como desapareceram os deuses do paganismo diante da luz do cristianismo” . (Op. cit., p. 34) E vale consultá-lo, ainda, quando critica o fechamento

do positi vismo, nestas palavras:

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“ Sobrenatural é o que está fora das leis da

natureza. O positivismo nada admite fora destas leis; conhece-as ele, porém, a todas?” (id., id.)

Retirava Allan Kardec de uma escola de pensamento o equipamento útil à investigação dos fatos, furtando-se, com inteligência, a incidir no erro elementar de crer que essa ou aquela postura filosófica (o mesmo, no concernente ao cartesianismo) pudesse impor-se ao fenômeno. Conhecia, naturalmente, o episódio de Procusto, em cujo leito eram as vitimas do bandido deitadas e, eventualmente e a seguir, esticadas ou cortadas, para nele caberem. Furtou-se, ao mesmo tempo, e com a sabedoria dos grandes, a reprisar, sutilmente, a figura do "Papa do Espiriti smo", o que André Moreil l embrou, com muita propriedade, como já vimos. Mas não apenas isso, se não, também, a do galvanizador da verdade, o que fica bem claro neste texto, em que continua a rebater as criticas (que situa no plano individual) do primeiro visitante. Confira-se: “Esqueço, porém, deve o Sr . tratar a questão ex professo, o que significa ter-lhe estudado todas as facetas; ter tudo visto, dentre o que se pode ver , haver lido tudo o que foi escrito sobre a matéria, e analisado e comparado as diversas opiniões; (... ) em uma palavra, que nada haja o Sr . negligenciado para chegar à ver ificação da verdade” . (Op. cit., p. 13, ed. Dervy-L ivres) Acha-se, assim, a investigação do fenômeno espírita

aberta à metodologia da ciência contemporânea, já estando bem estabelecido por investigadores sérios a necessidade de abordagem de certa gama desses fenômenos por instrumentos gnoseológicos distintos dos clássicos. Os fatos espíritas investem-se de características peculiaríssimas, uma das quais vem a ser a extrema dificuldade da replicação laboratorial.

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Exempli ficam-no as investigações sobre casos que sugerem reencarnação (Stevenson, I., Andrade, H. G., Müller, K., e Banerjee, H. N., v.g.), dentre outros os fenomênicos. Nem se exime o Espiriti smo, enquanto ciência, das

influências de um certo "anarquismo epistemológico", à maneira do advogado por Paul Feyerabend [v.g., “ Against Method” (I975) e “ Farewell to Reason” (l987)]. Não quer isso dizer (e passe o truísmo) que a

investigação espírita deva aderir à falta de critérios; tão-somente que tal atividade conhece colorido próprio, por isso necessitando de adaptações metodológicas. A ausência de algoritmo eficiente gera a necessidade de recurso à heurística, negativa e positiva, com o que se mantém hígido o núcleo do Espiriti smo e, concomitantemente, se reforça a sua muralha de proteção epistemológica. Foi exatamente a essa proteção dos alicerces da

doutrina que Kardec se lançou, em prefácios, comentarias, ensaios, posfácios e notas. Daí o porquê de insistirmos na importância de sua contribuição pessoal, sem a qual não haveria Espiriti smo. Esse núcleo, fortemente amarrado pelo codificador, já

o enunciamos: preexistência e sobrevivência do Espírito ao binômio nascimento-morte; reencarnação; comunicabilidade bi(pluri)dimensional. Entendemos que todo o restante, inclusive as ilações sobre Deus, decorrem desse centro gravitacional, ao contrário do que se vê em outras filosofias, de razoável proximidade, e, mais ainda, nas religiões tradicionais. A investigação do fato espírita ganhou grande

aceleração com a Metapsíquica e, modernamente, com a Parapsicologia, a Psicobiofísica e a própria Psicotrônica (esta, de origem e conteúdo marcadamente materialista, reducionista). Isso porque, especialmente entre nós, desenvolveram-se, de um lado, uma vertente religiosa quase tradicionalista do Espiritismo, sob o apelo do indiscutível impositivo de consolação (extremamente refinada, contudo, segundo a doutrina original), mas, também e infelizmente, do desleixo para com a razão, injustificadamente

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eleita como inimiga do Evangelho; e, de outro, um intelectualismo cientificista, sob o apelo de um racionalismo puramente objetivista (sumamente refinado, segundo a doutrina original) e do descaso relativamente à natural e saudável religiosidade humana. No esforço de recuperar dos escombros do imediatismo o sistema gnoseológico espírita, lembramo-nos de um dos dois tercetos integrantes do soneto ‘ ‘Natureza Íntima’ ’ , que se lê na obra ‘ ‘Eu e Outras Poesias’ ’ , de Augusto dos Anjos. Em tal obra-prima, o grande paraibano, homenageando o filósofo simbolista Farias Brito, descreve, ao buril dos decassílabos, a indagação da própria natureza, modernizando a constatação que, via Platão, nos legou Sócrates. Canta, instrospectiva e abissalmente, o terreno poeta dos anjos:

‘ ‘Pois é possível que Eu, causa do mundo, Quanto mais em mim mesma me aprofundo,

Menos interiormente me conheça’ ’ ” A indagação filosófica embasa a atividade científica,

numa série de esforços combinados, objetivando o conhecimento de nosso contorno, em cada vez maior expansão.

O homem sempre olhou o céu e questionou a natureza, praticamente lhe exigindo respostas. Ela as prodigalizou e prodigaliza, acutilada pela audácia humana, que lhe abre as entranhas ansiando por conhecer. A indagação e a interpretação dos fatos, aí, obviamente, incluídos os fatos espíritas, processa-se, essencialmente, por meio da filosofia da ciência. É através dessa reflexão ordenada e extremamente fugidia que o Espírito intui, deduz e programa a experimentação, com ela procurando confirmar as hipóteses que, em pensamento, formula.

Um grande exemplo de como opera essa aproximação filosófica com a realidade reside nas chamadas ‘‘ experiências de pensamento’ ’ , sendo notável o exemplo conformado nos debates

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entre Albert Einstein e Niels Bohr, acerca do princípio das causas locais (realismo), em Física teórica.

Esse protocolo geral, formulou-o Allan Kardec por meio do seguinte texto: “A ciência espír ita compreende duas par tes: uma, experimental, tendo por objeto as manifestações em geral; a outra, filosófica, abordando as manifestações inteligentes.” (ln “0 L ivro dos Espír itos” , p. XXX , ed. Dervy-L ivres, Par is) No conceito de "manifestações inteligentes" insere-se,

necessariamente, a atividade filosófica, mediante a qual o cientista cerca a sua proposta heurística. No caso do Espiriti smo, propõe-se à investigação a preexistência-sobrevivência do Espírito ao intervalo berço-túmulo, a reencarnação e a comunicabilidade bi(pluri)dimensional. Submetida ao Falsificacionismo (Karl Popper), a teoria espírita jamais foi desmentida, porquanto ou se contrapunham hipóteses metafísico-dogmáticas (hiperestesia indireta do inconsciente, criptomnésia, super-ESP, dentre outras), ou se buscava no animismo a desconsideração pura e simples do espiriti smo (a essa hipótese replicas dignas de nota foram elaboradas por Alexandre Aksakoff e Ernesto Bozzano).

Todas essas orientações decorrem de uma atitude "ad-hoc", ditada pela necessidade de ver triunfar o materialismo, mesmo em suas mais sutis formulações, sempre menos danoso à teologia que ainda insiste em dominar. Esse duplo aspecto do Espiriti smo, dínamo de sua forca, em termos de "fé raciocinada" (cf. adiante), bem se reforça na lição de Schilpp, afirmando que "a relação entre epistemologia e ciência é notória. Elas são dependentes entre si. Epistemologia sem contato com a ciência torna-se vazia; ciência, sem epistemologia, é, tanto quanto se pode imaginar, primitiva e caótica." A mesma tendência de fortalecer a reflexão está presente neste outro texto de Allan Kardec:

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“Dissemos ser o espir itismo toda uma ciência, toda uma filosofia. Quem quer , com ser iedade, conhece-lo deve, por tanto, e como pr imeira condição, dedicar-se a um estudo ser io, convencendo-se de que, mais do que qualquer outra ciência, o espir itismo não pode ser aprendido por diversão.” (ln “0 L ivro dos Médiuns” , p. 20, ed. Dervy-L ivres, Par is) Reforça essa noção o codificador, ele mesmo, quando,

ao bipartir a ciência espírita em experimental e filosófica (cf acima), assevera:

“Quem só haja observado a pr imeira estará na posição de quem só conhecesse a Física por meio de experimentos recreativos, sem haver penetrado o fundo da ciência.” (In “0 L ivro dos Espír itos” , p. XXX, ed. Dervy-L ivres, Par is) Não há, portanto, em sede espírita, lugar para

improvisações, na qual o desprezo pela reflexão embasada cria o deslumbramento e gera a asfixia, diante e por força do que Brodell apelidou de “a poeira brilhante dos fatos” . Para que tal não aconteça, impõe-se aplicar a reflexão

e o conhecimento, não como um garrote, a eliminar tudo o que, prima facie, desborde do enquadramento legado (versão do leito de procusto, a que chamamos de “epistemologia procustiana”); exige-se, isso sim, a observação constante, inclusive com a cuidadosa e criteriosa oitiva do "outro lado", em seu esforço de prosseguimento ao desenvolvimento da doutrina (André Luiz e Emmanuel, além das informações, comprovadamente corretas, obtidas via transcomunicação instrumental - TCI, que conhece investigações sérias, na Europa e, no Brasil . Outra não fora a recomendação de Kardec, o que se

colhe neste excerto:

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“ A verdadeira doutr ina espír ita está nos ensinamentos dados pelos Espír itos, e os conhecimentos que esse ensinamento traz são muito graves para serem adquir idos por outro meio que não o estudo ser io e perseverante, empreendido no silêncio e no recolhimento, porquanto é somente nesse estado que se pode observar um numero infinito de fatos e nuanças que escapam ao observador superficial e permitem a fomulação de uma opinião.” (Op. cit., loc. cit.)

Procurando gizar, no curso do intervalo histórico em

que codificou a doutrina, três períodos no evoluir do Espiritismo, avançou o codificador no seguinte raciocínio:

“0 desenvolvimento de tais idéias estende-se por três per íodos distintos: o pr imeiro, da cur iosidade gerada pela estranheza dos fenômenos produzidos; o segundo, do raciocínio e da filosofia; o terceiro, o da aplicação prática e das conseqüências. O per íodo da cur iosidade já passou; ela é fugaz e, uma

vez saciada, procura outro objeto; diversamente, porem, ocorre com o que se refere ao pensamento serio e ao raciocínio. O segundo período já começou, e o terceiro segui-lo-á, inevitavelmente.” (ln “ Le Livre des Esprits” , p. 482, ed. Dervy-L ivres, Par is) É manifesto que a curiosidade pela curiosidade

desapareceu enquanto marca de comportamento de massa, na História, no que se refere ao fenômeno espírita. Rivail referia-se, provavelmente, à histeria da "dança das mesas". O segundo período acha-se em franca ebulição, até

porque o Espiriti smo não se esgotou, enquanto fonte e gerador de conhecimento Também sob esse aspecto, os versos de Augusto dos Anjos caem como luva. O mesmo ocorre com o chamado “ terceiro período” ,

ou período da aplicação prática e das conseqüências".

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Inicialmente pessoal, espraia-se como proposta social, pedagógica. O Espiritismo é, moralmente, a doutrina da reforma intima. Bem analisados os fundamentos do Espiriti smo, as dificuldades de compreensão de sua formulação mínima, por força da hipertrofia do seu aspecto religioso, que desaguou num questionável religiosismo, não é, porém, impossível detectarmos a continuidade do pensamento kardequiano, fora das interpretações literais e reducionistas, que não espelham a natureza científica e filosófica desse poderoso sistema de releitura do próprio homem. Identificamo-lo no importantíssimo trabalho heurístico do Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas – IBPP, sob a presidência do Engenheiro Hernani Guimarães Andrade, atualmente na cidade paulista de Baurú. Desenvolve Andrade, há mais de 40 (quarenta) anos, pesquisa ininterrupta do chamado ‘ ‘campo biomagnético’’ (estático), hipoteticamente gerado por um Modelo Organizador Biológico, termo que criou no ano de 1.958, e que seria um ‘ ‘órgão’’ da individualidade espiritual, indutor de um campo morfogenético (terminologia de Sheldrake), estruturador da forma biológica humana, operando, na reencarnação, em sinergia com as leis da Genética. As pesquisas começaram com o Tensionador Espacial Eletromagnético, em 11 de novembro de 1.967, e confirmaram as previsões de Andrade: o crescimento das culturas de bactérias, sob a ação de um campo de natureza magnética, gerado pelo aparelho. Finalmente, desde 1.995, vai sendo cada vez mais evidenciado o acerto da hipótese sob teste, com novas experiências com o Tensionador Espacial Magnético, idealizado e construído pelo Engenheiro Ricardo de Godoy Andrade, filho do autor da teoria. O que Andrade persegue com a certeza antecipada (fé?...) que caracteriza tantos grandes cientistas é, com base em modelo constantemente aperfeiçoado, postular e testar loboratorialmente as leis do Espírito, as quais, uma vez equacionadas, situarão o Espiriti smo, definiti vamente, no quadro

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das Ciências, abrindo filões para a Biologia, a Psicologia e a própria Física. Seu pensamento, apoiado em sólida base cultural e desenvolvido com refinamento metodológico e cuidado epistemológico, acha-se, fundamentalmente, exposto numa trilogia integrada pelos livros ‘ ‘Morte, Renascimento e Evolução’ ’ , ‘ ‘Espírito, Perispírito e Alma’ ’ e ‘ ‘PsiQuântico’ ’ , todos editados pela ‘‘ Pensamento’ ’ . Andrade desenvolveu, ainda, como poderoso instrumento para se pensar o Espírito, a ‘ ‘Teoria dos Arquétipos’’ , apoiado na filosofia das idéias, de Platão, e que visa dar a possível intuiti vidade ao conhecimento do Espírito, operando logicamente, no processo cognitivo, com a imagem, ‘ ‘par tindo da sua forma mais genérica e, descendo organizadamente para detalhamentos sucessivos, reencontrar as representações famil iares da experiência, relacionadas com os objetos cognoscíveis.’ ’ Segundo Andrade, que buscou reduzir ao mínimo necessário as dificultosas complexidades do raciocínio via de categorias, o arquétipo seria ‘ ‘o ente simbólico capaz de representar as propr iedades mais fundamentais e gerais dos seres, tanto os reais, quanto os ideais’ ’ , que ‘ ‘poderá, mediante operações lógicas subseqüentes, transformar-se nas conhecidas equações da Física, da Geometr ia, da Química, cujas par ticular idades estão implicitamente subentendidas no símbolo arquetipal’’ . Parece, de fato, que François Laplantine nem suspeitava da extensão da verdade que proclamou quando, em seu “La Table, le L ivre et les Espr its” , fechou o prefácio afirmando que “estaríamos errados, se não levássemos o espiriti smo a sério” . Poder-se-ia mostrar tão ou mais grave do que não levar a Física ou a Química a sério. O Espiritismo não é mais uma religião, ou, como preferem alguns, mais uma seita; é um poderoso sistema filosófico, apoiado em fatos que, a seu turno, indicam a atuação de leis da natureza, uma natureza mais ampla , talvez, menos imediatamente compreensível para o engessamento gerado por certa a ortodoxia, a qual, infelizmente,

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tem adeptos fincados na própria atividade espírita. De qualquer forma, ignorá-lo seria, talvez, subordinar o homem ao Sábado, e não vice-versa.

NOTAS DO TEXTO

1) Sir ISAAC NEWTON foi autor de vários textos acerca de esoterismo, e suspeitava da existência de um código bíblico, ora abordado pelo jornalista

2) Exemplos disso vêm a ser a cr iação do Cálculo, a elaboração de teoremas e as grandes teorias da Física.

3) A natureza é simples. Esta intuição acha-se imortalizada em frase inscrita numa lareira, na Sala dos Professores, no Instituto de Princeton, e citada por John Archibald Wheeler, in EINSTEIN: THE MAN AND HIS ACHIEVEMENT: “Deus é sutil, mas não é malicioso” .

4) Adiante, quando estudamos alguns aspectos da Teoria Quântica, veremos que, relativamente às atuais condições de conhecimento, temos o modelo não-determinista da natureza. Percebemos, também, que, se almejamos uma visão objetiva, realista e “ completa” do Universo (o quanto isso seja possível), devemos considerar, ao menos enquanto hipótese de trabalho, um sistema de observação não-quântico, assim não sujeito aos efeitos de transferência, que se verifica toda vez que se acopla um sistema microscópico a um sistema macroscópico de medição, levando a uma regressão ao infinito.

5) Isso equivale a afirmar que, sob angulação realista, preconizada pelos autores, existir iam elementos físicos reais, correspondendo ao momento e à posição da segunda partícula. Trata-se do princípio das causas locais.