Fundamentos Filosoficos Da Educacao

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2009 Otto Leopoldo Winck Ivo José Triches Cláudio Joaquim Rezende Wanderley Machado Luciano D. da Silva Natalina Triches Fundamentos Filosóficos da Educação

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2009

Otto Leopoldo Winck

Ivo José Triches

Cláudio Joaquim Rezende

Wanderley Machado

Luciano D. da Silva

Natalina Triches

Fundamentos Filosóficos da Educação

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© 2006-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

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Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Domínio público

Nome da obra: Escola de Atenas, 1510

Autor: Rafael Sanzio

W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo José; Rezende, Cláudio Joaquim. / Fundamentos Filosóficos da Educação. / Otto

Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende et al. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.336 p.

ISBN: 978-85-387-0657-1

1. Educação. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filoso-fia – História. I. Título.

CDD 370.1

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Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Espe-cialista em Filosofia com Ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR.

Otto Leopoldo Winck

Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pela Faculdade Padre João Bagozzi. Espe-cialista em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâ-neo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR.

Ivo José Triches

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Sumário

Convite à filosofia ..................................................................... 13

Por que filosofia? ....................................................................................................................... 13

Definições .................................................................................................................................... 14

Divisão de tarefas ...................................................................................................................... 16

A atitude filosófica e o senso comum ................................................................................ 17

Nem dogmatismo nem ceticismo ....................................................................................... 18

Sócrates e a filosofia moral ocidental ............................... 25

O gênio grego, o mito e as origens da filosofia .............................................................. 25

Os filósofos naturalistas e os sofistas ................................................................................. 27

Platão e o nascimento da razão ocidental ...................... 41

Platão: atleta e poeta ............................................................................................................... 41

As vigas do pensamento platônico .................................................................................... 43

O legado de Platão ................................................................................................................... 46

Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes ............................................... 53

Filho de médico, mestre de príncipe .................................................................................. 53

Os escritos de Aristóteles ..................................................................................................... 54

Só o individual é real ................................................................................................................ 55

A metafísica ................................................................................................................................. 57

O pai da lógica .......................................................................................................................... 59

A justa medida e o bem comum .......................................................................................... 61

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De Aristóteles à Renascença................................................. 69

A filosofia na era helenística .................................................................................................. 69

Sob a égide da cruz .................................................................................................................. 77

A Renascença e o divórcio entre razão e fé ...................................................................... 87

Espinosa: uma filosofia da liberdade ................................. 97

A filosofia moderna: entre razão e experiência .............................................................. 97

Uma vida em diáspora ............................................................................................................. 98

Uma vida de filósofo ..............................................................................................................100

O panteísmo de Espinosa .....................................................................................................103

O ser humano ...........................................................................................................................104

A moral, o sábio e a eternidade ..........................................................................................106

Igreja e Estado ..........................................................................................................................106

O Iluminismo e o Século das Luzes ..................................113

Há algo de novo debaixo do Sol ........................................................................................113

Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo .......................................115

Luzes e revolução ....................................................................................................................116

A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica .....................................118

Nomes que brilham ................................................................................................................119

O legado iluminista ................................................................................................................122

Immanuel Kant e o idealismo alemão ............................129

Na encruzilhada da razão .....................................................................................................129

O filósofo de Königsberg ......................................................................................................130

Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana .............................................................133

A razão no tribunal .................................................................................................................134

O imperativo categórico .......................................................................................................138

Kant e a educação ...................................................................................................................140

O idealismo alemão ................................................................................................................141

Page 7: Fundamentos Filosoficos Da Educacao

A dialética idealista e materialista ....................................147

Dialética: breve histórico ......................................................................................................147

Hegel ............................................................................................................................................149

O hegelianismo ........................................................................................................................151

Filósofo e agitador ..................................................................................................................154

O materialismo histórico ......................................................................................................156

A práxis ........................................................................................................................................158

Schopenhauer: o mundo como representação ..........167

Contra Hegel .............................................................................................................................167

Uma vida taciturna .................................................................................................................169

O mundo como representação ..........................................................................................171

Tudo é dor ..................................................................................................................................172

O nirvana ....................................................................................................................................173

Schopenhauer e a educação .............................................................................................174

O positivismo e o desenvolvimento da ciência ...........179

Um mestre e uma musa ........................................................................................................179

História e evolução ...............................................................................................................181

A religião da humanidade ..................................................................................................183

Quando filosofia vira samba ..............................................................................................183

Nietzsche educador ...............................................................191

Vates e filósofos........................................................................................................................191

Uma vida perigosa ................................................................................................................192

Uma filosofia feita com o martelo ...................................................................................196

O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povo ...................................................197

O super-homem e a nova moral ........................................................................................198

Nietzsche e a educação .......................................................................................................199

Nietzsche está vivo ...............................................................................................................201

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A Escola de Frankfurt ............................................................209

A herdeira do facho ................................................................................................................209

Uma escola crítica ...................................................................................................................210

Os momentos da teoria crítica .........................................................................................212

Teoria crítica versus teoria tradicional ..............................................................................213

Razão instrumental e indústria cultural ........................................................................214

Principais expoentes ..............................................................................................................216

Luzes, razão e educação .....................................................................................................222

Pragmatismo e existencialismo.........................................231

Era dos extremos: as duas faces da moeda ..................................................................231

Pragmatismo: origens e paternidade .............................................................................232

Existencialismo: “uma mística do inferno” ....................................................................237

Filosofia e educação ..............................................................259

Filosofia para quê? ..................................................................................................................259

Crise e filosofia .........................................................................................................................259

Filosofia e educação: isso dá samba? .............................................................................262

Filosofar ou filosofar: eis a questão ...................................................................................264

Ética e educação .....................................................................269

A refundação da ética ............................................................................................................269

Ética e moral ..............................................................................................................................270

A ética através dos tempos ..................................................................................................271

A ética na educação ...............................................................................................................275

Reconstruindo a ética na escola: tarefas .......................................................................276

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Filosofia e formação humana na escola .........................283

No princípio ...............................................................................................................................283

A educação como formação .............................................................................................284

A formação como humanização ......................................................................................286

A escola como espaço privilegiado da formação ........................................................288

O processo do filosofar na Educação Infantil ...............295

Filosofia para crianças e filosofia com crianças .............................................................295

Filosofia e autonomia ............................................................................................................296

Uma sociedade real ..............................................................................................................298

A diferença ...............................................................................................................................300

Gabarito .....................................................................................305

Referências ................................................................................329

Anotações .................................................................................335

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“Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, escreveu Karl Marx no Manifesto Co-munista, referindo-se à vertiginosa velocidade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação con-tinua mais do que nunca atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considera-dos sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído.Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transforma-ções. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluarte de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser pro-fundamente afetadas pelas alterações do presente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades.Daí a importância e a urgência de pensarmos constantemente a educação. E para fazê-lo, nada melhor do que pedirmos auxílio à filosofia. E é o que faremos ao longo deste curso de Tópicos de Filosofia da Educação.Na aula inicial, intentaremos uma melhor clarificação do conceito de filosofia. Em seguida, da aula dois à aula 14, faremos uma viagem pela história da filosofia oci-dental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas como o Exis-tencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar espe-cial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada aula será com-plementada com um ou mais textos extraídos preferencialmente dos próprios filó-sofos – isso porque acreditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, frequentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Mas, em todo caso, ler textos de filosofia ainda não é produzir filosofia e, por isso, ao fim de cada uma destas aulas, os alunos serão estimulados a ousarem pensar e refletir, à luz tanto dos filósofos estudados quanto de problemas extraídos da contemporaneidade.As aulas 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações entre filosofia e educação. Aqui são atacadas algumas questões candentes dessa pro-blemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas disciplinas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma compreensão e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi-las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na 11.ª tese sobre Feuerbach, que “até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo”. Acrescenta-mos apenas que essa missão é também – e sobretudo – dos educadores.Dessa maneira, ao fim desta apresentação, que não pretendemos longa, só nos resta desejar bons estudos e que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica.

Otto Leopoldo Winck

Apresentação

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Convite à filosofia

A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.

Maurice Merleau-Ponty

Não se pode aprender a filosofia;

somente se pode aprender a filosofar.

Immanuel Kant

Por que filosofia?Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abs-

trata e a mais distante dos interesses humanos mais imediatos. Depois do declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências po-sitivas – aquelas que exigem o recurso da experimentação –, de modo que hoje é comum se perguntar o porquê da filosofia, pergunta que não é feita quando o assunto é Matemática, Física ou Biologia. Mesmo disci-plinas pertencentes ao arco das ciências humanas – como Pedagogia, Psi-cologia e Sociologia – encontram justificativas mais facilmente que a Filo-sofia. Ora, estuda-se Pedagogia para se aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a Psicologia e a Sociologia são necessárias para melhor se compreender o funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas, e a filosofia, serve para quê? Em uma cultura em que se valoriza sobrema-neira o que tem finalidade prática e utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora de lugar, supérfluo e desnecessário.

Todavia, é justamente aí que se revela a sua imprescindibilidade. Em uma época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros fatores, por causa do enorme cabedal de conhecimento e experiência acumulados) sendo extremamente especializados e portanto fragmentados, é indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa

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visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso – sob o risco de não saber-mos nos localizar e portanto ficarmos privados de ação – um saber sobre esses saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações, uma pergunta que nasce antes e não termina depois. Por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos?

Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo edu-cacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que ponto de vista e de que lugar social ele foi produzido? Isso é filosofia. E, aplicando-a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação.

DefiniçõesMas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmen-

te tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significa-do etimológico do termo é “amor à sabedoria”:

phylos = “amigo”, “amor”

sophya = “sabedoria”

Porém, antes do substantivo filosofia já era usado o verbo filosofar e o nome filósofo. Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar- -se filósofo, embora se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que ganharia depois, com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses dois nomes paradigmáticos do pensamento ocidental, a filosofia é resultante da admiração e do estranhamento diante do espetáculo do mundo. Enquanto para Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a visão do verdadeiro – isto é, das ideias –, para Aristóteles a sua função é a in-vestigação das causas e princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber. Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência do princípio dos princípios, da causa última.

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Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus fenômenos transitórios, mas pelos seus princípios imutáveis. Para René Descartes (1596-1650), ela é o saber que averigua os princípios de todas as ciências e, enquan-to filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant (1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um conhecimento racional por princípios.

Na corrente conhecida como idealismo alemão, a filosofia é entendida ora como o sistema do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte (1762-1814), ora, como em Hegel (1770-1831), como a consideração pen-sante das coisas, identificando-se assim com o espírito absoluto, isto é, o espírito plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um com-pêndio geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosó-fica fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos; não um conhecimento e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson (1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e ainda que se utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte.

Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de definição da filosofia:

A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUÍ, 1994, p. 17)

1 Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é apreendido pelos sentidos ou pela consciência.

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Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida que crescia a consciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira “filosofia da filosofia”, que tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível.

Divisão de tarefasNo entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tare-

fas para poder abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a divisão da filosofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas, como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema filosófico – espécie de enciclopédia do saber de seu tempo – que se constituíram como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a Psico-logia (doutrina da alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar, dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a epistemologia, a ontologia, a sociologia, além de um conjunto de matérias como filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do Direito, filosofia da história, filosofia da linguagem etc., bem como a história da filosofia. Algumas delas se tornariam autônomas, como a Psicologia e a Sociologia. Por outro lado, há aqueles que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico disciplinas como a lógica e a metafísica.

É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, rami-ficações e desdobramentos.

Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, a partir de uma visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que se sirva de ambas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegia-remos um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momen-tos, uma óptica sincrônica.

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A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos

no processo filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua capacidade de indagar. Perguntar:

O que a coisa é?

Como a coisa é?

Por que a coisa é assim?

Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma pos-tura filosófica frente ao mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as respostas às questões com que ele se depara no mundo.

De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que ques-tiona o saber instituído, que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural – em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resu-mindo, saber instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua própria existência.

Quando nos referimos ao conceito de senso comum, nós o relacionamos ao conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conheci-mento como doxa (“opinião”). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos cerca e, no entanto, nessas opiniões nos falta uma visão da totalida-de. Não conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se ne-cessário apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos.

Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realida-de, os dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum.

Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme (“ciência”) é pensá- -los à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Nesse trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinô-nimo de doxa, opinião, senso comum:

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A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir.A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas consequências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambiguidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais.A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes” da realidade, a filosofia, além de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107)

Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do seu pensar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais dis-tantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos depa-ramos todos os dias em nossa vida.

Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais de-vemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É por essa razão que se justifica mais uma vez a importância da filosofia em nosso trabalho como educadores: ela impede a estagnação e ressignifica a experiência. Se educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma refle-xão crítica sobre o que é conhecimento e sobre o que é educação, a filosofia não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio alvo.

Nem dogmatismo nem ceticismoNovamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras.

Skeptikós significa “aquele que observa”, “que considera”. Desse modo, cético é aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do conhecimento.

Por outro lado, dogmatikós denota “aquele que se funda em princípios”. Assim, dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma doutrina.

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Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamen-tal e indiscutível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamen-te religiosa. Toda vez que verdades irrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos.

As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia, sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalan-do da episteme para a doxa.

No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar-se a algum conhecimento real das coisas. O segundo, porque antes de se debruçar sobre a realidade, já traz, de antemão, as suas “verdades”.

A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo – na verda-de, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por seu turno, afirma que não sabe, mas quer saber – tendo consciência, entretanto, que todo saber é par-cial e provisório. Com efeito, “a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse” (ARANHA,1988, p. 51).

Texto complementar

Ciência e filosofia(DURANT, 2000, p. 26-27)

Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação atuais, reduz resolutamente o seu foco, concen-trando-o na natureza e no processo das coisas como são. O cientista é tão

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imparcial quanto a natureza no poema de Turguêniev: está tão interessado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria – o desejo coordenado à luz de toda experiência – pode nos dizer quando curar e quando matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar fins é filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além de nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia nos dá a sabedoria.

Atividades1. Com base nos trechos de Marilena Chauí e Will Durant que constam da aula,

estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a filo-sofia.

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2. Segundo as definições de filosofia que os filósofos foram estabelecendo ao longo dos tempos, relacione a coluna da esquerda com a da direita.

1. Bergson

2. Locke, Berkeley e Hume

3. Fichte

4. Wittgenstein

5. Kant

6. Husserl

7. Schopenhauer

)( Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia.

)( Tem por objeto a substância da intuição.

)( É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico.

)( Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência.

)( Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes.

)( Sistema do saber absoluto.

)( Conhecimento racional por princípios.

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3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa (“opinião”, “senso comum”) e episteme (“ciência”), assinale, quanto aos enunciados seguintes, F (falso) ou V (verdadeiro).

Pensar os problemas a partir da )( doxa é pensá-los à luz da filosofia.

O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da reali- )(dade.

Ao saber instituído ( )( episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa).

Doxa )( é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.

Episteme )( diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada.

Para produzir filosofiaDiante do aumento dos índices de violência em nosso país, não poucos têm

defendido o incremento de medidas coercitivas como ampliação das penas, di-minuição da maioridade penal e sobretudo recrudescimento da repressão do Estado. Há ainda quem, em conversas privadas, defenda o uso da tortura na in-vestigação e a eliminação física dos criminosos. Dizem que “direitos humanos são para humanos direitos”. Segundo o que foi explanado na aula, essa linha de pensamento relaciona-se com a doxa ou a episteme? O que seria uma reflexão filosófica – rigorosa, radical e de conjunto – a respeito da violência social em nosso país?

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Convite à filosofia

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

O mito é o nada que é tudo.

Fernando Pessoa

Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor.

Pergunta, não responde. Indaga, não ensina.

Marilena Chauí

O gênio grego, o mito e as origens da filosofiaTanto o termo quanto o conceito de filosofia tem a sua origem na Grécia

antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontra-mos algumas dessas formas na Índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos usufruíram conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e des-vinculado da religião que ficou conhecida como filosofia nós devemos às peculiaridades do gênio grego.

Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns traços básicos.

Em primeiro lugar, o racionalismo, isto é, a consciência do valor má-ximo do conhecimento.

Mas esse conhecimento não é abstrato e sim proveniente da expe-riência: é um conhecimento sensível.

Todavia, esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas transcende o real em direção ao absoluto.

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Sendo otimista, como consequência de seu racionalismo, o grego ten-derá também ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real.

Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico, como aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico1.

E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento filosófico:

Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvolver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tornou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram inicialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20)

Foi nas cidades ou pólis – que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado – que se desenvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimen-to urbano com as suas instituições, e o lugar privilegiado da península grega – entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e reflexões – resultaram em um ambiente propício para o surgimento da filosofia. Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas sobretudo aos jônios2, que souberam exprimir em alto grau o gênio helênico.

Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeira-mente, os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois verbos, tendo os sentidos de “contar, narrar, falar alguma coisa a alguém” e “anunciar, nomear, designar”. Para os gregos, o mito era um discurso proferido para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se supõe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso, costumam ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos contêm a personificação de coisas ou de acontecimentos.

1 Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos.2 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiático do Mar Egeu.

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

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Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológi-cas como um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua origem a partir do mito, desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação mítica dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas, devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do mundo.

São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filoso-fia clássica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral, podemos sintetizar essa época em quatro períodos:

Período naturalista – também chamado cosmológico3 ou pré-socrático do final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia ocupa-se fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transforma-ções na natureza.

Período humanista – também denominado antropológico4 ou socrático, do final do século V e todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filoso-fia torna-se as questões humanas, como a ética e a política.

Período sistemático – do final do século IV ao final do século III a.C., quan-do a filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre o mundo e o ser humano.

Período helenístico – também conhecido como greco-romano ou religio-so, do final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principal-mente pelas questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade e Deus.

Os filósofos naturalistas e os sofistasO primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmo-

lógico porque a especulação dos filósofos voltou-se para a natureza, o mundo exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita,

3 Em grego, cosmos significa “mundo” e por isso esse período recebeu o nome de cosmológico.4 Em grego, ântropos significa “homem” e por isso esse período recebeu o nome de antropológico.

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nas florescentes colônias da Ásia Menor5 e do sul da Itália, tendo o seu início nos fins do século VII e o seu término dois séculos depois.

A escola jônicaA primeira expressão dessa fase, inaugurando por assim dizer o pensamento

ocidental, é a chamada escola jônica, que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao longo do século VI. Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo, “maté-ria animada”, ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto (624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas. Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primor-dial seria o apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, este princípio era o ar.

O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470 a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial é o movimento, o eterno vir-a-ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir-a- -ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre as oposições. Por esse motivo Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio, pois ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro por conta do contínuo fluxo das águas. E como as coisas mudam constantemente, aquele homem já não será o mesmo homem que da primeira vez.

Pitágoras e a escola itálicaPitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em

Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele, o princípio primordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir-a-ser é explicado pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ím-pares são paradigmáticos. Esse conflito é reconduzido ao equilíbrio pela harmonia matemática que rege o universo todo, tanto material quanto moral. Outros repre-sentantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas de Tarento.

5 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhe-cemos hoje como Turquia.

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

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Xenófanes e a escola eleataEssa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu

fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor. Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno, representado como um esfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não passa de ilusão.

Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é famoso pelas controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do movimento.

A escola pluralistaEmpédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a

doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro ele-mentos fundamentais – a terra, a água, o ar e o fogo –, explicando a multiplici-dade e a mudança dos fenômenos mediante as várias recombinações desses elementos. Como Heráclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos quatros elementos.

Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, para explicar a variedade das coisas. O nous é a inteligência imanente que con-trola e seleciona essas partículas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua similaridade.

Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, na Trácia6, é o maior re-presentante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Par-mênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos, denominados átomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à diversi-dade de tamanho e à consequente diversidade de gravidade de cada uma dessas partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constituiriam a razão de tudo.

6 A Trácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia.

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Os sofistas e a arte da persuasãoDe 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas, relatadas em Histó-

rias, de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor, revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas ci-dades do continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que torna-se o eixo social, político e cultural do universo grego. É o chamado século de Péricles7, quando a democracia encontra-se em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característi-ca essencial que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação de representantes eleitos. Ora, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos ora-tórios. Aqui entram os sofistas, mestres da eloquência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias das classes mais abastadas a arte da persuasão.

Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória, os sofistas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis. Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preo-cupação com a natureza, que esteve no centro das atenções dos pensadores an-teriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano – daí também o nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. “Com efeito, os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como membro de uma sociedade” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73).

Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofística – junto com Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) –, dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma abertura para o subjetivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas significa dizer “que as coisas são como lhe parecem; não, porém, como aparecem ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc [“aqui e agora”]: é verdadeiro – e é bem – o que aparece como tal a cada qual e a cada momento” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem acusados de relativistas e céticos – para os relativistas, tudo pode ser verdade, enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade.

7 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um período de esplendor para Atenas, no qual convi-veram grandes nomes como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates.

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É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filoso-fia grega em antes e depois dele.

O filho da parteiraNascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira,

desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixan-do levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrá-rio dos outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos, como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e a sua atitude crítica foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as par-celas influentes da sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade diante dos deuses da cidade.

Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos 71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta – um veneno extremamente letal, ex-traído da planta de mesmo nome –, depois de ter recusado os projetos de fuga propostos por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que preferiu morrer em vez de negar suas convicções.

Sócrates não escreveu nada: tudo que sabemos de sua pessoa nos chegou por meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão – e não são poucos os de-bates da crítica para estabelecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao contrário destes, ele não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral, com propósitos morais.

Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a opinião, a doxa – mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racio-nal e perene. Esse conhecimento estaria dentro de cada um. Para encontrá-lo, Sócrates, um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de mai-êutica, um método que consiste em “parir”, “dar à luz” ideias complexas a partir de perguntas simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu método:

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A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35)

Daí também a sua máxima: gnothi seauton, “conhece-te a ti mesmo”.

O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conheci-mento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofundamento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33)

Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de mais nada, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chama-vam-na areté, “significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfei-çoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal é a ignorância: se conhecêssemos o bem, não praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição suficiente e necessária para a obtenção da areté. O autodomínio e a liberdade são as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade.

Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? “O homem é sua alma, en-quanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qual-quer outra coisa. E, por alma, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso, a essência do ser humano – segundo Sócrates – é sua psyché. Nesse sentido, ele é considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente.

Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua máxima “só sei que nada sei” é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incor-porado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é per-passada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa “a arte de interrogar”. Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que aquele com quem estava dialogando na verdade estava ignorando o que julga-va conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade.

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Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou-nos que a filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade – questões que nos tocam a todos.

Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chauí afiança que

[...] o maior erro dos juízes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUÍ, 2000, p. 155)

Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo até hoje, não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do edifício da moral do Ocidente.

Texto complementar

Sócrates e Polo(PLATÃO, 1986, p. 98-102)

SÓCRATES: – [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argumen-tação, respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós – eu, tu e toda gente – julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que ex-piá-la não a expiar.

POLO: – Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la?

SÓCRATES: – Eu? Sim, como tu e toda gente.

POLO: – Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais.

SÓCRATES: – Então, não vais responder?

POLO: – Mas como não? Estou até ansioso por saber o que, afinal, vais dizer!

SÓCRATES: – Então, para o saberes, faze de conta que estou principiando a inter-rogar-te e dize-me, Polo, o que achas pior: praticar uma injustiça, ou sofrê-la?

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POLO: – Sofrê-la, ora!

SÓCRATES: – E o que é mais feio? Ser autor ou ser vítima duma injustiça? Responde.

POLO: – Ser autor.

SÓCRATES: – Sendo mais feio, não é, então, pior?

POLO: – Absolutamente não.

SÓCRATES: – Compreendo. Não consideras a mesma coisa, parece, o belo e o bom, o mau e o feio.

POLO: – Não, realmente.

SÓCRATES: – Que dizes a isto? Todas as coisas belas, como objetos, cores, formas, ressonâncias, costumes, é sempre sem relação alguma que lhes atri-buis a beleza? Por exemplo, comecemos pelos objetos belos; não os chama belos tendo em vista, em cada caso, os fins a que servem, ou algum prazer, caso se delicie quem os contempla? Fora desses pontos de vista, podes men-cionar alguma outra razão da beleza dos objetos?

POLO: – Não posso.

SÓCRATES: – Não se dá o mesmo com tudo mais? Formas, cores, não as declara belas em razão de certo prazer ou certa utilidade, ou por ambos os motivos?

POLO: – Sim.

SÓCRATES: – Não é assim também quanto às ressonâncias e tudo que con-cerne à música?

POLO: – Sim.

SÓCRATES: – Outrossim, no tocante às leis e costumes, sem dúvida, os que são belos não fogem a estas qualificações de úteis, agradáveis, ou ambas as coisas.

POLO: – Acho que não.

SÓCRATES: – À beleza de instrução sucede o mesmo, não é?

POLO: – Por sem dúvida! Agora, Sócrates, estás acertando, quando defines o belo pelo prazer e pelo bem.

SÓCRATES: – Portanto o feio será aferido pelos opostos, pela dor e pelo mal.

POLO: – Forçosamente.

SÓCRATES: – Quando, portanto, de duas coisas belas, uma seja mais bela,

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assim é por sobrelevar num dos dois predicados referidos, ou em ambos, isto é, ou no prazer, ou na utilidade, ou nesta e naquele.

POLO: – Perfeitamente.

SÓCRATES: – E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por so-brelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim?

POLO: – É, sim.

SÓCRATES: – Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injusti-ça? Não dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio?

POLO: – Dizia.

SÓCRATES: – Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também forçoso?

POLO: – Como não?

SÓCRATES: – Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça so-breleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas.

POLO: – Isso, Sócrates, absolutamente não.

SÓCRATES: – Então, não é em dor que sobrelevas?

POLO: – Não, por certo.

SÓCRATES: – Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos.

POLO: – Não, é claro.

SÓCRATES: – Resta, pois, a outra razão?

POLO: – Sim.

SÓCRATES: – O dano?

POLO: – Naturalmente.

SÓCRATES: – Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que sofrê-la.

POLO: – Claro que sim.

SÓCRATES: – É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima?

POLO: – Sim.

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SÓCRATES: – E revelou-se agora pior.

POLO: – Aparentemente.

SÓCRATES: – Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o pri-meiro? Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, confia-te bravamente à razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta.

POLO: – Bem, Sócrates, eu não preferiria.

SÓCRATES: – Alguém no mundo o faria?

POLO: – Não creio, a pensar assim.

SÓCRATES: – Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso.

Atividades1. Segundo o princípio primordial que os filósofos naturalistas ou cosmológi-

cos aventaram para a origem das coisas, relacione a coluna da esquerda com a da direita.

a) Anaximandro de Mileto

b) Demócrito

c) Pitágoras

d) Tales de Mileto

e) Empédocles

f) Anaxímenes de Mileto

g) Heráclito

)( A água.

O )( apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento).

)( O ar.

)( Terra, água, ar e fogo.

)( O movimento, o vir-a-ser representado pelo fogo.

)( O número.

)( O átomo.

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2. Com base no conceito de maiêutica e no exemplo desse conceito apresenta-do no texto complementar, vamos fazer um exercício prático.

Para tanto, vamos dividir a turma dois a dois. Em cada dupla, um faz o papel de Sócrates e o outro o de interlocutor do filósofo. O primeiro, com base no conteúdo da aula, deve procurar extrair a verdade a partir do método socrá-tico de pergunta e resposta. O segundo deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a ideias mais pertinentes e perspicazes. Depois, os alunos devem registrar os resultados.

Eis alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálogos socráticos:

A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país.

A mulher só se realiza plenamente na maternidade.

Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua.

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3. Leia abaixo uma letra do compositor Chico Buarque.

Bom conselhoOuça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo Vim não sei de onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade

Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método socrático?

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Para produzir filosofia Em um país de alfabetização tardia e com péssimos índices de leitura, somos

levados a acreditar em qualquer opinião apresentada em letra impressa. Mas nem sempre essas opiniões são o resultado de uma reflexão de índole filo-sófica, isto é, que vai até a raiz do problema. Muitas vezes, elas não passam do que realmente são, isto é, uma opinião. A exemplo de Sócrates, procure desconstruir o que há de superficial – isto é, atrelado ao senso comum – em algumas das ideias veiculadas nos jornais da imprensa diária.

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Platão e o nascimento da razão ocidental

Platão: atleta e poetaAo contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes popu-

lares, Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1. Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aris-tócles. Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlético (ombros largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20 anos de idade travou contato com Sócrates – 40 anos mais velho – e por oito anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do mestre imprimiu uma marca em todas as fases de seu pensamento. Ele passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo dirigido pelos mais sábios e capazes.

A partir disso, fez várias viagens com o intuito de instruir-se. Conheceu o Egito, o sul da Itália, (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília (onde não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo sido vendido como escravo, sendo resgatado mais tarde).

De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu grande prestígio, a ela acorrendo homens de todos os cantos e ali sendo desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo.

O ideal da educação autônoma significa:

1 Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25 anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se baseava nos privilégios de nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas posteriormente.

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em primeiro lugar, ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do pensamento apenas com a verdade;

em segundo lugar, estimular a autodeterminação ética e política.

Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos no Mênon, que é um dos textos de Platão, “o dever de procurar o que não sabe-mos”. Em vez de transmitir valores éticos e políticos, a Academia ensina a criá-los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUÍ, 2000, p. 175).

Finalmente, em 347 a.C., aos 80 anos de idade, reconhecido e admirado, morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De sua grandeza nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX: “Poucos filósofos, se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o supe-rou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se ignorá-lo” (RUSSELL, 2002, p. 107).

Praticamente toda a sua produção chegou até nós, compreendendo 36 diá-logos, 13 epístolas e uma coleção de definições, esta provavelmente apócrifa – isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não há certeza se a sua autoria realmente é do mestre. Seu interesse abarca as mais diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática, retórica, arte, política etc. Suas obras mais importantes e conhecidas são:

Apologia de Sócrates, em que resgata os pensamentos do mestre;

O Banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialética;

A República, em que analisa desde a política e a ética até questões metafí-sicas, como a imortalidade da alma.

No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platôni-co diz respeito às “doutrinas não escritas”. Antigas fontes referem que, na Acade-mia, Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, “O conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos, esse as-pecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos discípulos de Platão. Além disso, é bom ter presente que Platão, a despeito de ter expulsado

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de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos.

No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É ver-dade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré- -socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de em seus livros, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil distinguir aquilo que é do mestre e aquilo que é efetivamente de Platão. Assim, é por meio dos textos de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre.

As vigas do pensamento platônicoAssim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático, moral:

a incumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao contrário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano, Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também distingue um conhe-cimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento intelectual (a ciência, a episteme). Mas enquanto Sócrates fazia derivar o segundo do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectual não pode se originar do conheci-mento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João da Penha (1994, p. 36):

As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única reali-dade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pálidas representa-ções daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições.

Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa teoria de Platão:

Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável.

Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa mente são eternos e imutáveis, e por isso, necessários2. São os arquétipos, isto é, formas ou mode-los espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são formados. A realidade, 2 Necessário, em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável.

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por sua vez, é mutável e imperfeita, ou seja, contingente3. O conhecimento por meio dos sentidos e o conhecimento por meio da razão trazem resultados com-pletamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões não raro contraditórias e superficiais sobre a realidade.

No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é funda-mental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria con-templado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse proces-so dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata-se, todavia, do nível mais baixo do conhecimento.

O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos a que estamos acostumados. O conhecimento, para Platão, passa ainda por três níveis fundamentais:

o conhecimento sensível, que é efetuado pelos sentidos no mundo dos fenômenos;

o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemáti-ca, a única ciência que possui uma natureza não corpórea;

o conhecimento intelectivo, ao qual só a filosofia é capaz de levar, por meio de um corte completo com a experiência sensorial.

Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno, universal e inteligível.

Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam:

a beleza;

a proporção;

a verdade.

Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias, unas e imutáveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir-a-ser. E, embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder

3 Contingente, em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe mas poderia não existir.

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criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o mundo, extraindo o cosmos do caos.

Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm uma função mediadora entre as ideias e a matéria.

Segundo Platão, existem três tipos de alma:

alma concupiscente, própria dos vegetais;

alma irascível, própria dos animais;

alma racional, exclusiva do ser humano.

Mas no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarqui-camente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabeça e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, asso-ciada à vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital, a moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtu-des obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça e a felicidade.

Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se além deste mundo, na contemplação do mundo das ideias.

Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado.

Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal e nela haveria basicamente três classes:

a dos filósofos, encarregados da direção do estado;

a dos guerreiros, responsáveis pela sua defesa;

a dos produtores – agricultores e artesãos –, os quais, submetidos aos ou-tros, seriam os responsáveis pela sua sustentação econômica.

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Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os primeiros em proveito dos últimos. Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de mais nada, o Estado deve zelar pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos.

O legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por

grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições – que seriam reforçadas mais tarde pelo cristianismo – para que se produzisse durante muitos séculos uma repulsa profunda por tudo que estivesse relacionado com a ordem material e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espírito, da mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensa-dores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde desconstruir essa herança. Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosó-fico e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua influência.

Textos complementares

Imaginemos uma caverna separada do mundo(CHAUÍ, 2000, p. 195)

Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, ge-ração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior

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sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da ca-verna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas exter-nas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da ca-verna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o re-torno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à caverna, o prisionei-ro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.

O amor platônico(WEISCHEDEL, 2006, p. 47-57)

Comumente entende-se [o amor platônico] por ser aquele amor no qual, em primeiro plano, não se encontra a cobiça sexual, mas antes, uma atração espiritual. Mas porque ele levaria o nome de Platão? De fato, folheando a obra de Platão, em parte alguma se encontram sinais de respeito às mulheres. Pelo contrário, afirma que são bem menos virtuosas que os homens, superficiais, pusilâmines, traiçoeiras e supersticiosas. Aqueles homens que tivessem sido covardes e injustos, após a morte, como punição, renasceriam mulheres. O ca-samento não passa da tarefa de produzir uma descendência. Assim, Platão não nos oferece uma imagem romântica do amor entre homem e mulher.

Na Grécia daquela época, mais que entre homem e mulher, havia ainda uma outra espécie de relação amorosa: a relação de um homem mais velho com um rapaz. Sócrates, seu mestre, ininterruptamente procura o trato com belos rapa-zes. Mas o relacionamento de Sócrates com os adolescentes não é da espécie usual de relação amorosa. Aí podemos ver algo do que significa “o amor platô-nico”. Em O Banquete, isso é expresso no discurso que o jovem Alcebíades pro-fere para Sócrates. Aquele amor que, com plena intensidade, dirige-se ao outro, mas que simultaneamente se contém, aquele “amor platônico”, portanto, está

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intimamente ligado ao modo de ser de Sócrates como praticante da filosofia e ao modo como Platão, então, concebe a essência da filosofia: como sendo essencialmente amor.

A experiência de Alcebíades com Sócrates mostra que o amor filosófico não é o amor sensual. E a essência desse amor seria a saudade do belo, pois isso é que de fato é eterno no homem. Dessa forma, portanto, torna-se claro o sentido mais profundo do “amor platônico”; que não consiste tão somente na repressão da cobiça sensual, em vez disso, concede-lhe a essa seus direi-tos limitados, mas os exalta a uma forma mais elevada de desejo, para além da beleza dos corpos, das almas, da condução da vida e do conhecimento: o “amor platônico” insta pela beleza em si mesma. O amor consiste na aspira-ção pelo arquétipo do belo, do qual tudo o que é belo participa, ou seja, na aspiração pela ideia do belo.

Assim, o “amor platônico” está estreitamente relacionado com a grandiosa realização do pensamento de Platão que entraria para a consciência do espí-rito ocidental: sua doutrina das ideias. Em suas reflexões, Platão descobre que o homem sabe desde sempre, originariamente, o que é justiça e o que são as outras virtudes. Ele traz em sua alma a ideia de todos esses retos modos do com-portamento, os quais podem e devem determinar a sua ação. Mas essa cone-xão entre realidade e ideia não diz respeito apenas ao campo da ação humana. Também o que seja uma árvore só o sabemos desde que tenhamos em nós a ideia da árvore. O conhecimento da realidade total só se torna possível quando o homem possui em sua alma arquétipos de tudo o que é, podendo então dizer: isto é uma árvore, aquilo é um animal; isto é um crime, aquilo é uma boa ação.

Isso significa que todo o real é o que é enquanto participa de seu arqué-tipo e enquanto aspira a tornar-se semelhante a ele. A árvore quer ser tanto quanto possível árvore; o homem, tanto quanto possível homem; a justiça, tanto quanto possível, justiça. O mundo é um lugar de incessante ímpeto pela perfeição, de amor pela ideia, pois as ideias são o real imaginário. As coisas são meras cópias das ideias e, portanto, de diminuto grau de realida-de. As ideias estão livres de toda a transitoriedade.

O conhecimento das ideias tem de ser atribuído ao homem antes de sua exis-tência temporal, em uma existência anterior ao nascimento. Quando reconhece uma coisa, isso significa que o homem se lembra de uma contemplação originá-ria dessa ideia, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal. Por-tanto, conhecer é relembrar. Assim, a teoria da ideia conduz necessariamente à suposição de uma preexistência da alma e a certeza da imortalidade. Dessa exis-tência anterior, fala-nos Platão através do diálogo Fedro, a qual deixa no homem, por toda sua vida, uma certa nostalgia. O filósofo, por sua natureza, aspira ao ser. A paixão daquele que filosofa é, portanto, a significação última do “amor platôni-co” e sem ela não haveria nenhuma procura verdadeira pelo eterno.

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Atividades1. Com base no texto complementar de Marilena Chauí (“Imaginemos uma ca-

verna separada do mundo”), qual é a mensagem deixada por esse mito? E, no seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? O que a educação pode fazer para ajudar os educandos a libertarem-se de suas cavernas?

2. Segundo as principais linhas do pensamento platônico, relacione a coluna da esquerda com a da direita.

a) As coisas

b) Os conceitos ou ideias

c) A alma concupiscente

d) A república ideal

e) O mundo das ideias

f) A realidade

só pode ser intuído pela razão. )(

é contingente )( .

é própria dos vegetais )( .

são cópias imperfeitas de arquétipos )(de modelos ideais.

é governada pelos filósofos )( .

são necessários )( .

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3. Quanto ao legado de Platão, assinale a única alternativa correta.

a) É o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente.

b) Não poucos pensadores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde reformular, a partir de novas bases, a herança de Platão.

c) É o principal responsável pela repulsa concernente a tudo que esteja re-lacionado com a ordem material e sensível.

d) É incompatível com a dogmática cristã, que desde o princípio preferiu a filosofia de Aristóteles.

e) Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas mar-cas na identidade ocidental, nós devemos mais a Sócrates que a Platão.

Para produzir filosofiaCom base no segundo texto complementar (“O amor platônico”), qual é a

relação da expressão “amor platônico” com as ideias de Platão?

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Filho de médico, mestre de príncipeSe elementos da filosofia platônica persistem nos substratos incons-

cientes do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensamento de Aristóteles, seu mais famoso discípulo, foi praticamente hegemônico. E ainda é cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma fase pós-aristotélica.

Diferentemente de Sócrates e Platão, Aristóteles era estrangeiro em Atenas: sua família era de Estagira, colônia grega da Trácia, na fronteira com a Macedônia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de Estagira, por vezes ele é chamado de o Estagirita. Seu pai foi médico na corte de Macedônia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e avô de Alexandre. Graças a essa influência, o futuro filósofo beneficia-se desde cedo de uma atmosfera de pesquisa empírica, experi-mental, sem dúvida alguma decisiva para os vários tratados sobre ques-tões biológicas que escreveria mais tarde.

Aos 18 anos de idade, já órfão, ele mudou-se para Atenas, ingressando na Academia platônica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os maiores nomes do pensamento da época. Todavia, com a morte de Platão, Aristóteles se afastou da escola, já que a direção desta tendia para áreas que não eram inteiramente de seu interesse.

Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela Ásia Menor, vivendo e le-cionando em várias cidades, em uma fase importantíssima de sua vida, até que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macedônia o convocou para a corte, encarregando-lhe da educação de seu filho, Alexandre, o Grande.

Pouco depois da ascensão de Alexandre ao trono, em 336, Aristóteles re-tornou a Atenas, onde funda uma escola própria, o Liceu, assim denominado por conta do templo dedicado a Apolo Lício, que ficava nas proximidades.

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Em virtude do seu hábito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de Perípatos, que significa “passeio”, e os seus seguidores foram peripatéticos. “Foram esses os anos mais fecundos na produção de Aristóteles, o período que viu o acabamento e a grande sistematização dos tratados filosóficos e científicos que chegaram até nós” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175).

Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelião contra a domi-nação macedônica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristóteles foi acusado de impiedade, como o fora Sócrates. No entanto, sem a mesma vo-cação para o martírio, Aristóteles fugiu para Cálcis, onde havia uma proprieda-de sua, deixando a direção do Liceu com Teofrasto, um de seus discípulos. Com apenas poucos meses de exílio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos de idade.

Os escritos de Aristóteles Os escritos de Aristóteles chegam às centenas – não faltando autores antigos

que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo é que os textos de Aristóteles dividem-se basicamente em dois grandes grupos:

os escritos exotéricos, destinados ao grande público, compostos sobretu-do em forma de diálogos, à semelhança de Platão;

os escritos esotéricos, de aspecto mais didático, produzidos para os alunos e, em alguns casos, pelos próprios alunos, como notas tomadas das aulas do mestre – a maior parte do que nos chegou pertence a este segundo grupo.

No entanto, a primeira edição completa de suas obras só veio a lume pela metade do último século antes de Cristo, graças ao esforço de Andrônico de Rodes, seu décimo sucessor na direção do Liceu. A classificação tradicional do corpus aristotélico, como a que se segue, tem por base essa edição:

Escritos lógicos – esse conjunto de escritos sobre a lógica, que Aristóteles considerava um instrumento indispensável da ciência, recebeu mais tarde o título de Organon.

Escritos sobre a física – esse grupo abrange as obras de ciências naturais e a Psicologia.

Escritos metafísicos – essa compilação, feita depois da morte do filósofo por meio de seus apontamentos, refere-se à metafísica, cujo nome foi dado devi-do ao lugar que ocupa na coleção de Andrônico, isto é, “depois da física”.

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Escritos morais e políticos – a Ética a Nicômaco, assim chamada porque é de-dicada a Nicômaco, seu filho; a Ética a Eudemo, inconclusa, considerada hoje em dia uma versão mais antiga do livro anterior; a Grande Moral, compêndio das duas precedentes, em especial da segunda; e a Política, também incompleta.

Escritos retóricos e poéticos – a Retórica e a Poética, que, no seu estado atual, é apenas uma parte do que Aristóteles escreveu.

Quanto à abrangência e à grandeza do empreendimento aristotélico e o estilo em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado co-mentário de Will Durant (2000, p. 75):

Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grécia: todos os problemas abaixo e ao redor do sol têm um lugar nela [...]. Aqui está uma síntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar até a época de Spencer, e mesmo então com uma magnificência que não chegava à metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitória de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia é a procura da unidade, Aristóteles merece o elevado título que 20 séculos lhe deram: Ille Philosophus – O filósofo.Naturalmente, a um espírito de tal pendor científico faltava a poesia. Não devemos esperar de Aristóteles o brilhantismo literário que inunda as páginas do filósofo-dramaturgo Platão. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristóteles nos dá ciência, técnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos à literatura, como fez Platão, ele construiu a terminologia da ciência e da filosofia; praticamente não podemos falar de qualquer ciência, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fósseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, média, máxima [...], categoria, energia, realidade, motivo, fim, princípio, forma – estas indispensáveis moedas do pensamento filosófico foram cunhadas em sua mente.

Com Aristóteles, assistimos à passagem de uma filosofia ainda tateante a uma filosofia madura, rigorosa, autônoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer outro antes dele, o domínio do logos sobre o mythos, da razão sobre a imaginação. Podemos afirmar ainda que com o filósofo de Estagira se manifesta, pelo menos em seus princípios epistemológicos, o que viria a ser a ciência ocidental.

Só o individual é realPara compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de

Aristóteles é preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formação prática herdada de seu pai e a força da filosofia platônica. São duas tendências opos-tas que encontrarão nele uma síntese original, a formação prática funcionando como ponto de partida e pano de fundo para a superação da filosofia platônica. Assim, em Aristóteles a pesquisa empírica fornece o instrumental para a refuta-ção da teoria platônica das ideias. Em outros termos, em Aristóteles é formulada uma filosofia realista em comparação ao pensamento idealista de Platão.

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O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrário de Platão, que somente o individual é real: o que realmente existe é o indivíduo material concreto. Esse indivíduo concreto seria o constituinte último da reali-dade, a qual, mais do que uma manifestação imperfeita do mundo das ideias, é composta pelo conjunto de indivíduos materiais e concretos existentes.

Além disso, para Aristóteles a experiência é a única fonte de conhecimento autêntico: contra Platão, ele postula que não existem ideias puras a serem in-vestigadas ou procuradas por trás das aparências. A inteligência humana conta apenas com o que está acessível aos sentidos. Dessa forma, no intelecto não há nada que antes não tenha passado pelo concreto. Trata-se de interessar-se ime-diatamente pelas coisas, pois é a partir delas que se extraem as ideias.

Aprofundando a análise, Aristóteles afirma que o indivíduo concreto – o único real e existente – é constituído de matéria e forma. “A matéria é o princípio da in-dividuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se” (MARCONDES, 2000, p. 72). Assim, cada indivíduo tem uma matéria específica, particular, e uma forma comum, partilhada com os indivíduos da mesma espé-cie. Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma forma específica.

A fim de compreendermos melhor, vejamos o exemplo da estátua: na está-tua, a matéria é o mármore ou o bronze, por exemplo; e a forma é a bela Afrodite ou o feio Sócrates.

E só o individual é real. O universal, por sua vez, somente existe em nossa mente por meio da abstração. O caminho por meio do qual o intelecto chega ao conhecimento é a abstração – que é o processo segundo o qual a inteligência separa matéria e forma. O conhecimento dá-se quando relacionamos os objetos que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas características particulares.

Formulemos um exemplo de abstração: pelos sentidos, conheço um ser, iden-tifico que ele é semelhante a outros da mesma espécie. Trata-se de um mamífero ruminante que chamamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro, não há um mundo das ideias onde exista uma vaca arquetípica, modelo para todas as vacas do universo. O que existe de fato é essa vaca particular, que posso ver com os meus olhos. Mas, por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que a ideia que tenho da vaca é a sua essência1. É a partir dessa ideia que reconheço uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem os seres in-dividuais que eu percebo pelos sentidos.1 A distinção entre essência e existência é uma das classificações da metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela essên-cia, ele passa a participar de determinada espécie de ser. A essência é, portanto, nada mais que um modo do existir.

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A metafísicaO interesse de Aristóteles pelo individual e pelo real não o impediu, porém,

de investigar as realidades não diretamente apreensíveis pelos sentidos. Se ele é considerado o pai da lógica e da ciência, também é o pai da metafísica. Para essas realidades suprassensíveis, Aristóteles desenvolveu o que ele chamou de filosofia primeira, a qual, com Andrômico, ganharia o nome com que se tornaria mundialmente conhecida: metafísica.

Esta é a ciência que se ocupa com as realidades que estão para além das reali-dades físicas (meta, em grego, significa “depois, além de”). O conceito de filosofia primeira é extremamente complexo em Aristóteles, não havendo uma definição única. Basicamente, o filósofo estabeleceu quatro definições. Assim, metafísica ou filosofia primeira é:

a ciência que indaga causas e princípios;

a ciência que indaga o ser enquanto ser;

a ciência que investiga a substância;

a ciência que investiga a substância suprassensível.

Os conceitos de matéria e forma, ato e potência, substância e acidente pos-suem papel capital na metafísica aristotélica. Para ele, existem quatro causas im-plicadas na existência de algo, conforme abaixo.

Causa material – é aquilo de que, como material imanente, provém o ser de uma coisa, isto é, fornece alguma coisa para o ser.

Causa formal – é a forma ou modelo, isto é, a definição da essência.

Causa motora ou eficiente – é aquilo que se origina da mutação ou da quietação da coisa. Por exemplo, o conselheiro é a causa da ação, o pai é a causa do filho e, de modo geral, o autor é a causa da coisa realizada, o agente modificador é a causa da alteração.

Causa final – é aquilo para o que a coisa é feita, como a saúde é o fim dos exercícios físicos, de modo que à pergunta: “para quê se faz ginástica”, geral-mente se responde: “para alcançar ou conservar a saúde física”.

Para exemplificar essas quatro causas, tomemos, um vaso de argila.

A causa material é a argila, a matéria de que o vaso é feito.

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A causa formal é a forma, o formato em que essa argila está disposta para se constituir em um recepiente ao qual damos o nome de vaso e não, por exemplo, de tijolo.

A causa eficiente ou motora é o oleiro que trabalhou a argila, produzin-do o vaso.

A causa final, o objetivo do vaso, o fim para o qual foi feito esse determi-nado objeto é, portando um arranjo de flores, servir de enfeite para um ambiente.

Aristóteles distingue ainda a essência e os acidentes.

A essência é aquilo que dá identidade a um ser e na falta dela esse ser não pode tornar-se o que é, não sendo reconhecido como tal. Assim, um livro sem nenhum tipo de letras não pode ser considerado um livro, pois o fato de ter letras impressas é o que o permite ser identificado como livro e não como cader-no, por exemplo.

O acidente, por sua vez, é algo que pode ou não ser inerente a um determina-do ser, mas que, mesmo quando ausente, não o descaracteriza. Desse modo, o perfume de uma flor é um acidente, pois uma flor não deixará de ser flor por lhe faltar o perfume. A sua cor também é um acidente: por mais que uma flor tenha necessariamente alguma cor, ainda assim o fato de ser amarela ou vermelha não lhe faz ser o que ela é.

Todas as coisas que existem, existem em potência e ato, ensina Aristóteles. Uma coisa em potência é uma coisa que tende a ser outra, tal como a semente, que é uma árvore em potência. Em outras palavras, potência é aquilo que ainda não é, mas que preexiste realmente como possibilidade de vir a ser. Segundo Aristóteles, “das coisas não existentes, algumas existem em potência, por não existirem em ato”.

Uma coisa em ato é algo que já está realizado, o ser enquanto já é, como uma árvore é uma semente em ato. De algum modo, o ser em ato pressupõe deter-minação e perfeição.

A principal determinação é a da existência: é a determinação na ordem do ente. A determinação dá-se também na ordem da essência, enquanto esta apresenta essa ou aquela fisionomia. Ademais, todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência, pois uma árvore – uma semente em ato – também é uma folha de papel ou uma cadeira em potência.

Fundamentos Filosóficos da Educação

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A única coisa que é totalmente em ato é o ato puro, que Aristóteles identifica com o bem. Esse ato não é nada em potência, nem é a realização de potência alguma – desse conceito, mais tarde São Tomás de Aquino derivaria a sua noção de Deus como ato puro.

E há potências ativas e passivas. As potências passivas apenas recebem o ato. As ativas têm a condição de produzir o ato. O homem tem potências como as do conhecimento e as dos impulsos. Um ser em potência só pode tornar-se um ser em ato mediante algum movimento. O movimento vai sempre da potência ao ato, da privação à posse. É por isso que o movimento pode ser definido como o ato de um ser em potência enquanto está em potência.

Em suma, com esse quadro de conceitos, a metafísica aristotélica inaugura tanto a investigação da estrutura geral dos seres quanto as condições que fazem com que um determinado ser possa existir e ser conhecido pelo pensamento. Assim, postula que a realidade no seu todo é apreensível pelo intelecto, apresen-tando-se como conhecimento teorético ou teórico dessa realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais. Além do mais, ela deve preceder as pesquisas que cada ciência particular realiza sobre um determinado tipo de ser.

O pai da lógica Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica ocidental, o organon, que em

grego quer dizer “instrumento”. Ora, tanto a ciência quanto a filosofia tem por objeto o universal e o necessário, não se podendo fazer ciência em torno do individual e do contingente. Assim como a ideia era o alvo da ciência platônica, a forma é o objeto da ciência aristotélica, a qual, estritamente falando, opera a partir da “dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 126).

Assim, o objeto principal da lógica de Aristóteles é esse processo de derivação. Portanto, a lógica aristotélica é basicamente dedutiva e demonstrativa, e o seu pro-cesso característico é o silogismo. Eis como Marilena Chauí a explica:

O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este exprime-se logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos, e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros [...]. (CHAUÍ, 2000, p. 183)

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Qualquer proposição é composta pelos seus termos ou categorias, que são palavras que designam algo: Sócrates, morte. Quando emitimos um juízo sobre algo, estamos fazendo uma combinação desses termos – por exemplo, “Sócra-tes é mortal”. Esse juízo, combinado com outros, forma um raciocínio. Quando o raciocínio é formulado de uma forma lógica, chama-se silogismo. Retomando a frase “Sócrates é mortal”, posso elaborar o seguinte silogismo:

Todos os homens são mortais.

Sócrates é homem.

Logo, Sócrates é mortal.

Em outras palavras, silogismo é a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas primeiras (denominadas premissas) é possível deduzir uma conclusão.

Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o as-pecto formal e o rigor dedutivo.

Pelo aspecto formal se entende que três leis supremas condicionam o seu exercício e garantem a sua validade:

o princípio de identidade (dizer que o que é é, e o que não é não é, é verdade);

o princípio de não-contradição (é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo);

o princípio do terceiro excluído (uma determinada coisa não pode ser afirmada e negada ao mesmo).

Pelo rigor dedutivo se entende que, uma vez admitida a verdade de certas proposições (premissas), as consequências que daí resultam são necessariamen-te verdadeiras.

Com esse rigoroso modelo de lógica formal, Aristóteles estabeleceu a meto-dologia que permearia toda a pesquisa científica e a investigação filosófica do Ocidente até praticamente a Idade Moderna.

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A justa medida e o bem comumA ética e a política também estão entre as grandes contribuições de Aristó-

teles. Para falarmos da primeira, é preciso antes nos reportarmos à sua teoria da alma. De Platão ele empresta a divisão tripartite da alma, segundo a qual a alma se divide em alma concupiscente, alma irascível e alma racional. Se todos os seres vivos possuem a alma concupiscente (a vida vegetativa, já que todos têm um metabolismo), e a alma irascível é partilhada tanto pelos animais quanto pelo ser humano (a sensibilidade), somente o ser humano é detentor de uma alma racional. Ora, a ética só intervém nesse último nível, no nível racional.

Sendo a razão o distintivo do ser humano, ele só pode realizar a sua verda-deira natureza vivendo racionalmente. E assim, mediante a virtude, que é uma atividade conforme a razão, ele alcança a felicidade.

Com efeito, o fim do ser humano é a felicidade, que ele atinge por meio da virtude, a qual é necessária à razão. Por esse motivo, pode-se afirmar que a carac-terística fundamental da ética aristotélica é o racionalismo. Além disso,

As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 132)

Essa “ação com ciência” se manifesta precisamente na escolha do justo meio entre dois extremos, ou seja, entre duas paixões opostas, já que os impulsos e as paixões tendem ao excesso ou à carência. A razão deve impor a justa medida entre um e outro extremo. É justamente nesse meio-termo, nesse equilíbrio, que se encontra a virtude. “A coragem, por exemplo, é o meio caminho entre a te-meridade e a vileza, ao passo que a liberalidade é o justo meio entre a prodiga-lidade e a avareza” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205). Obviamente, a justa medida não é abstrata, nem é a mesma para todos e em todo o tempo, pois é concreta e variável conforme as paixões em jogo, o indivíduo e as circunstâncias.

Além disso, se a virtude é uma atividade segundo a razão, ela também é um hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição da vontade. Como o conhecimento, que exige esforço e disciplina, a virtude não é inata, mas adquirida

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mediante a prática, o exercício. Porém, uma vez adquirida, ela torna-se de fácil execução, quase automática, como uma segunda natureza. Daí a importância da educação. Daí, também, a importância do Estado, responsável pela educação dos cidadãos.

Se o objetivo da ética aristotélica é a felicidade do indivíduo, a política aris-totélica tem por meta a felicidade coletiva da pólis (a cidade-Estado grega)2. Com este fim, o filósofo investiga as formas de governo e as instituições capazes de assegurar uma vida feliz ao cidadão. Por isso mesmo, a política situa-se no âmbito da práxis, isto é, no âmbito das ciências que buscam o conhecimento como meio para ação.

Ora, assim como o bem comum é superior ao particular, o Estado é superior ao indivíduo. Unicamente no Estado se realiza a satisfação de todas as neces-sidades, pois o indivíduo não pode se realizar plenamente sem a coletividade. O Estado, que surge como consequência da sociabilidade do ser humano, é responsável primeiramente por prover a satisfação das necessidades materiais, como a defesa e a segurança. Mas o seu alvo é espiritual: promover, mediante a ciência, a virtude – e, por conseguinte, a felicidade dos cidadãos. Assim, sua tarefa principal é a educação, por meio da qual são formados os futuros cida-dãos, sobretudo por meio das artes, como a música e a poesia.

Não obstante a importância do Estado, Aristóteles conserva os direitos indi-viduais: o Estado é antes de tudo a síntese de indivíduos distintos. Desse modo, ao contrário da república de Platão, Aristóteles salvaguarda a família e a proprie-dade particular. Todavia, como fazia o seu mestre, Aristóteles admite a divisão de castas, reconhecendo sobretudo duas: a dos homens livres (os cidadãos da pólis) e a dos escravos, que eram privados de qualquer direito político.

Ademais,

Quanto à forma exterior do Estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade. E cuja degeneração é a demagogia. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 134)

Embora Aristóteles prefira a forma de governo democrática, como a que se desenvolveu na Grécia – sobretudo em Atenas –, por conta do seu realismo ele tem consciência de que a forma de governo ideal deve adaptar-se à índole do povo e às circunstâncias históricas.

2 Apesar de, no tempo de Aristóteles, a cidade-Estado grega estar em decadência e de se assistir ao surgimento de um império colossal, o império de Alexandre, Aristóteles não tem olhos a não ser para a cidade-Estado.

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Cada Estado é uma comunidade estabelecida com alguma boa finalidade

(ARISTÓTELES, 2000, p. 143-146)

A observação nos mostra que cada Estado é uma comunidade estabe-lecida com alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou comunidade política, que é a forma mais elevada de co-munidade e engloba tudo o mais, objetiva o bem nas maiores proporções e excelência possíveis.

É um erro supor que sejam as mesmas as relações entre um estadista e o Estado, entre um rei e seus súditos, entre um chefe de família e sua casa, entre senhores e escravos. Com efeito, elas diferem não apenas no tamanho, mas na espécie. Tamanho não é critério. Não podemos dizer que é um pe-queno número de pessoas que define a relação senhor-escravos; que uma quantidade maior de indivíduos define o relacionamento do chefe de famí-lia com os seus; que um monarca o é porque se relaciona com numerosas gentes ou, talvez, com uma comunidade política – como se não houvesse diferenças entre uma enorme família e um pequeno Estado.

Até mesmo entre comunidades monárquicas e políticas, ou de cidadãos, existe diferença de espécie; e não é correto dizer que, quando uma pessoa controla todo o resto, é ele um monarca; e que se trata de um ser político quando o cidadão tem sua vez de governar ou de ser governado de acordo com os princípios estabelecidos pela ciência. Isso fica evidente quando exa-minamos a matéria segundo nosso princípio: o método analítico. Acostuma-mo-nos a analisar outras coisas compostas até que não possam mais ser sub-divididas; façamos o mesmo com o Estado e com as partes que o compõem, e entenderemos melhor as diferenças entre um e outras, e se podemos de-duzir algum princípio de funcionamento de suas partes.

[...]

Fora essas duas afinidades, o primeiro ponto a considerar é a família. Hesío do tem razão ao dizer: “Primeiro o lar, a esposa e um boi para o arado”, uma vez que o boi é o escravo dos pobres.

Texto complementar

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Atividades1. Com base no texto complementar da obra Política, de Aristóteles, responda

as questões a seguir.

a) Quais são as relações entre a família e o Estado?

A família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessi-dades diárias dos homens, e seus membros são chamados, por Charondas, companheiros do pão; já Epimênides, o Cretense, denomina-os companhei-ros de comer. Mas, quando várias famílias estão unidas em certo número de casas, e essa associação aspira a algo mais do que suprir as necessidades cotidianas, constitui-se a primeira sociedade, a aldeia. A forma mais natural de aldeia parece ser uma colônia de famílias com filhos e netos dos quais se diz que foram “criados com o mesmo leite”. Por causa dessa composição, seu governo era inevitavelmente monárquico; é por esse motivo que as cidades--Estado helênicas foram, originariamente, governadas por reis – porque foi assim antes de os helenos se reunirem em cidades, como acontece ainda hoje com algumas nações bárbaras. [...]

Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bas-tante para ser autossuficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou Estado – que nasce para assegurar o viver e que, depois de for-mada, é capaz de assegurar o viver bem. Portanto, a cidade-Estado é uma forma natural de associação, assim como o eram as associações primitivas das quais ela se originou. A cidade-Estado é a associação resultante daquelas outras, e sua natureza é, por si, uma finalidade; porque chamamos natureza de um objeto o produto final do processo de aperfeiçoamento desse objeto, seja ele homem, cavalo, família ou qualquer outra coisa que tenha existência. Ademais, o objetivo e a finalidade de uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição; e a autossuficiência é, a um só tempo, finalidade e perfeição.

Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político.

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b) Qual é a origem do Estado?

c) Qual é o sentido da afirmação de que o homem é um animal político?

2. Quanto à vida e ao pensamento de Aristóteles, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

Para Aristóteles, o universal existe em nossa mente somente por meio )(da abstração.

Aristóteles é o sucessor de Platão na direção de sua escola, a Academia, )(também chamada Liceu.

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A )( metafísica ou filosofia primeira pode ser definida como a ciência que indaga as causas e os princípios.

A cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas )(na moral ocidental, é a principal herança da ética aristotélica.

Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: )(o aspecto formal e a indução.

3. Sobre a metafísica aristotélica, assinale a alternativa correta.

a) Metafísica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão aquém das realidades físicas.

b) Para Aristóteles, existem quatro causas implicadas na existência de algo: a causa material, a causa formal, a causa motora e a causa eficiente.

c) Uma coisa em potência é uma coisa que tende a permanecer sempre em repouso até que uma força a desperte.

d) O Estado é a resultante metafísica da reunião das comunidades.

e) Todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência.

Para produzir filosofiaQual são as consequências para a educação da máxima aristotélica de que o

ser humano é um animal político?

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De Aristóteles à Renascença

Creio para compreender, e compreendo para melhor crer.

Santo Agostinho

A filosofia na era helenísticaAo contrário da Academia, fundada por Platão, a escola de Aristóteles,

o Liceu, conheceu rápida decadência, não exercendo grande influência no período posterior à sua morte, em 322 a.C. Aliás, por esse tempo também morreram Demóstenes1 (322 a.C.) e Alexandre (323 a.C.), marcando uma importante virada na roda da história: foi o fim do esplendor da era grega (da qual, na filosofia, o estagirita foi o maior expoente) e o começo de uma nova era, que recebe o nome de helenismo.

Com o império de Alexandre, o pensamento, a língua e a cultura grega expandiram-se para o Oriente, no rastro das conquistas militares, e em contrapartida receberam elementos orientais. Com a inesperada morte de Alexandre, com 33 anos incompletos, o novíssimo império – que ia dos Bálcãs à Índia – foi repartido entre os seus generais. Todavia, uma nova cul-tura – que não era mais a cultura grega clássica nem a cultura dos povos conquistados – já se encontrava em gestação. Helenismo é o nome dado a esse novo amálgama.

A filosofia também não escapa incólume desse período de profundas mutações. As grandes sínteses e as especulações metafísicas da época an-terior são deixadas de lado e a filosofia volta-se para questões práticas, tornando-se predominantemente pragmática. Significativo dessa ênfase é a frase do filósofo Epicuro: “É vão o discurso daquele filósofo que não cure algum mal do espírito humano.”

Compreende-se assim que o pensamento helenístico se tenha concentrado sobretudo nos problemas morais, que se impunham a todos os homens. E, propondo os grandes

1 Nascido em 384 a.C., Demóstenes foi um dos maiores oradores e políticos atenienses.

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problemas da vida e algumas soluções para eles, os filósofos dessa época criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos quais os homens continuaram a inspirar-se ainda durante outro meio milênio e que, ademais, se tornaram paradigmas espirituais, verdadeira “conquista para todo o sempre”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 230)

Junto com a expansão da cultura grega, surgiram novos centros de cultura, como as cidades helenísticas de Pérgamo, Rodes e sobretudo Alexandria, pois Alexandre, à medida que avançava, ia fundando novas cidades e povoando-as com colonos gregos. Ao mesmo tempo, a pólis, a cidade-Estado grega, perdia a sua autonomia, dissolvendo-se nos grandes e centralizados reinos helenísticos, não raro em constante e sangrenta disputa. O cidadão voltou a ser súdito, dimi-nuindo o interesse pela coisa pública. Com isso, a ética desprendeu-se da política. No entanto, um sentimento de pertença universal foi aos poucos suplantando o antigo bairrismo grego: era o cosmopolitismo, que considerava o mundo inteiro uma cidade – consequência da primeira experiência de globalização ocorrida na história. Ciosos de sua superioridade, os gregos foram obrigados a rever pre-conceitos em relação a outros povos considerados bárbaros. O já citado Epicuro tinha os bárbaros como membros de sua família e ansiava tê-los entre os seus discípulos – atitude inadmissível para Aristóteles, por exemplo.

Ao mesmo tempo, como consequência das numerosas guerras e das con-tínuas alterações das fronteiras, uma sensação de insegurança impregnava os corações. Superstições e misticismos, oriundos do Oriente, invadiam as mentes e novos deuses foram admitidos no Olimpo e nos altares. Até que um novo im-pério (o romano) e um novo sistema religioso (o cristão), ambos com vocações universalistas, açambarcassem a herança de Alexandre e a dos gregos. Assim, um pulular de escolas, tendências e seitas disputaram as preferências dos per-plexos e inquietos homens desse período. No campo da filosofia, que é o que nos interessa, o cinismo, o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo cumpriram esse papel.

CinismoTalvez antes mesmo de Platão e Aristóteles, os sinais da crise do pensamento

clássico já eram visíveis. Com efeito, o cinismo tem a sua origem com um dis-cípulo de Sócrates, Antístenes de Atenas (cerca de 444-365 a.C.), que fundou a sua escola em um ginásio chamado Cinosargos, de onde derivou-se o nome de sua doutrina. Segundo o cinismo, o bem supremo consiste no desprezo das

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riquezas e das honras deste mundo. Sábio é aquele que não se deixa dominar pelas paixões, não se submete ao prazer e não foge da dor, levando uma vida com a simplicidade natural de que dão exemplo os animais. Apesar do sucesso de Antístenes, que conseguiu reunir um bom número de discípulos, a maioria dos atenienses achava que todos eles não passavam de um bando de presun-çosos e hipócritas – daí o sentido atual do termo cínico.

Todavia, o maior representante da escola cínica foi um discípulo de Antís-tenes, Diógenes (413-323 a.C.), de Sínope, na Ásia Menor. Foi ele quem levou às últimas consequências os ensinamentos de seu mestre. Dele, que rompeu a imagem clássica do homem grego, circulam muitas anedotas.

Diógenes, o cínicoI.

Uma das anedotas de Diógenes é a de que em pleno dia, com uma lanter-na na mão, nos lugares mais cheios, ele repetia a frase: “procuro um homem”. Na verdade, com ácida ironia, ele queria dizer que procurava um homem verdadeiramente virtuoso.

II.

Outra história igualmente célebre diz que uma vez Alexandre Magno, ao encontrá-lo, disse-lhe:

– Eu sou Alexandre, o Grande.

A isso, ele respondeu:

– Eu sou Diógenes, o Cão.

Em seguida, o imperador perguntou o que poderia fazer por ele. Ocorria que, pela posição em que se encontrava, Alexandre lhe fazia sombra. Então Diógenes, olhando para cima, disse:

– Eu só te peço que não me tires o que não me podes dar. Sai da frente do meu sol!

Essa resposta impressionou vivamente Alexandre, que, na volta, ouvindo seus oficiais zombarem de Diógenes, comentou:

– Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes.

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III.

Em outra ocasião, reza outra fonte, estava Diógenes comendo o seu costu-meiro prato de lentilhas quando Aristipos aproximou-se. Aristipos, também era filósofo, mas adepto da doutrina de que o prazer é o único bem da vida. Para poder levar uma vida confortável, vivia sempre bajulando o rei. Disse, então, Aristipos a Diógenes:

– Se aprendesses a bajular o rei, não precisarias reduzir tua alimentação a um prato de lentilhas.

Diógenes retrucou:

– E tu, se tivesses aprendido a te satisfazeres sempre com um prato de lentilhas, não precisarias passar tua vida bajulando o rei.

Exemplificadas pela vida de Diógenes, que dormia em uma barrica e vivia como um “cão”, a autarquia (bastar-se a si mesmo) e a apatia (indiferença perante as vicissitudes da vida) eram os pontos de chegada do ideal cínico.

O cinismo quase se constituiu em um movimento de massas na época he-lenística, com muitos dando as costas às convenções sociais para viverem uma vida mais simples e autêntica. O movimento hippie e outros movimentos con-temporâneos de contestação, algumas atitudes dos profetas hebreus do Antigo Testamento e dos monges zen-budistas do Japão, guardam afinidades como o cinismo. Na verdade, mais que uma corrente filosófica, o cinismo foi um estilo de vida, questionador do status quo helenístico, em uma época de crise e transição – quando o velho ainda não tinha morrido e o novo ainda não despontara.

EpicurismoUma das doutrinas mais populares durante o helenismo e no Império Romano

foi o epicurismo, movimento que toma o nome de seu fundador, Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Atenas e criado em Samos. Em 306 a.C., ele instalou a sua famosa escola em Atenas, nos jardins de sua requintada residência. Co-nhecido como Jardim de Epicuro, esse local se tornou o centro de uma animada vida intelectual. Foi lá que o mestre exerceu a sua influência, não somente pelo ensino direto como por uma personalidade de refinamento e fidalguia, nunca deixando de auxiliar os discípulos e de tratar os escravos com civilidade.

Epicuro dividia a filosofia em lógica, física e ética.

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Segundo a lógica, o critério de verdade é a evidência, que pertence à sen-sação, não podendo ser refutada nem por outras sensações nem pela razão. As ideias gerais formam-se a partir do que foi percebido muitas vezes. Entre essas ideias gerais (que, ancoradas na sensação, são sempre verdadeiras) distingue-se a opinião, que pode ser verdadeira ou falsa. Todavia, a opinião é importante, pois permite, por meio das sensações, chegar ao conhecimento dos princípios, que são inacessíveis à percepção direta.

Tais princípios são os átomos, que são objeto da física. Para Demócrito, a rea-lidade é composta por átomos, vácuo e gravidade, aos quais Epicuro acrescenta uma faculdade dos átomos: a de se desviarem da linha reta na queda através do espaço, tornando possível a reunião desses átomos, assim originando as coisas.

A lógica e a física são o pressuposto da ética espicurista, cujo objetivo último é a felicidade. Para Epicuro, a felicidade é o prazer – que para o corpo consiste em não sofrer e para a alma, em não ser perturbada. Para que se atinja tal objetivo, Epicuro propõe-se a libertar os seres humanos do temor dos deuses e do medo da morte.

Seres perfeitíssimos, os deuses não se misturam às imperfeições do mundo e não se ocupam com as vicissitudes humanas.

E também não há razão para temer a morte: ela nada mais é do que a dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. Portanto, a morte não existe enquanto o ser humano vive, e este não existe mais quando ela sobrevém.

No entanto, a libertação do temor dos deuses e da morte não é suficiente para conduzir o ser humano à felicidade. Enquanto ser natural, o homem – como os ani-mais – pauta a sua vida pela busca do prazer e a fuga da dor. Assim, o prazer é o prin-cípio e o fim da vida humana, e o bem não pode ser concebido sem os prazeres.

Mas a verdadeira sabedoria consiste em saber selecionar e dosar os prazeres. Fiel a sua filosofia materialista, Epicuro tem como pressuposto que todo prazer é basicamente um prazer corpóreo. Porém, ao contrário dos cirenaicos (corrente hedonista2 fundada pelo supracitado Aristipo), Epicuro ensina que o prazer de-sejável não é o prazer da pura satisfação imediata. Para ele, o prazer que deve nortear a conduta humana – o prazer com dimensão ética – é o prazer do repou-so, constituído pela ataraxia (ausência de perturbações da mente) e pela aponia (ausência de dor).

Ataraxia e aponia podem ser alcançadas na medida em que, por meio de au-todomínio, o ser humano adquire a autarquia, isto é, a autossuficiência de quem 2 O hedonismo coloca o prazer como a finalidade suprema da existência.

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tem em si a própria lei. Para tanto, ele deve renunciar aos prazeres que podem ocasionar sofrimento e aceitar a dor na medida em que ela é inevitável. Portanto, é preciso, como um primeiro passo para a felicidade, um cálculo utilitário dos prazeres e das dores possíveis.

Epicuro – ele próprio um homem enfermo, achacado por terríveis males físi-cos, e também um grego privado da liberdade política – teria demonstrado em sua vida a eficiência dessa técnica interior de equilíbrio e libertação, capaz de dotar o ser humano de condições objetivas para enfrentar com impassibilidade as mais adversas circunstâncias.

O epicurismo gozaria de grande sucesso não só no ambiente helenístico como também no Império Romano, vindo a experimentar reavivamentos nos períodos da Renascença e do Iluminismo.

EstoicismoNo entanto, a doutrina de maior prestígio no Império Romano foi o estoicismo.

Grandes estoicos foram os romanos Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Sua influência, inclusive, permearia a moral cristã e, de certa forma, prepararia-lhe o terreno.

O fundador do estoicismo foi Zenão, nascido em Cítio, na ilha de Chipre (334-262 a.C.), e o nome de sua escola vem do lugar onde ele costumava en-sinar: stoá, que significa “pórtico” em grego. Como o mestre não era cidadão ateniense, ele não podia possuir um imóvel, sendo obrigado a ministrar suas aulas debaixo de um pórtico. Aos poucos, seus discípulos ficaram conhecidos como os “alunos do pórtico”, “alunos da stoá”, isto é, os estoicos.

Assim como os epicuristas, os estoicos dividiam o conhecimento em lógica, física e moral.

Segundo a lógica, o conhecimento deriva apenas dos sentidos; sendo a imagem a impressão produzida na alma pelos objetos exteriores. Por sua vez, o acúmulo de imagens permite a formação das ideias universais, as quais – com Aristóteles e contra Platão – existem apenas no pensamento.

Já para a física estoica, a realidade seria o fruto de dois princípios básicos: um passivo (a matéria) e outro ativo (a razão). Sendo fogo, como queria Heráclito, a razão impregnaria a matéria, dando origem à terra, à água e ao ar. Tudo procede do fogo e ao fogo retornará um dia, inclusive a alma humana, que sobrevive ao

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corpo até a “última conflagração”, quando perderá a individualidade. Tudo está contido em tudo, desde as origens. A harmonia do mundo implica uma inteli-gência, pois do acaso não poderia resultar a ordem: Deus é a razão universal, origem e substância de todas as coisas.

Segundo a ética estoica, a felicidade consiste em viver conforme a natureza. Para o ser humano, que é participante da razão universal, isso significa viver con-forme a razão, já que a natureza humana é racional. Ademais, a felicidade passa a ser compreendida como libertação de toda perturbação, como autarquia e ataraxia. A paixão é vista sempre como má, pois é movimento que perturba a alma – seja ódio, seja amor. Assim, a atitude do sábio deve ser o aniquilamento da paixão, até atingir o estado de apatia, de indiferença altiva perante toda de-sordem do mundo.

O ideal estoico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 148)

Assim, indiferença e renúncia a todos os bens do mundo são o núcleo da virtude estoica. O sábio pratica essa virtude para não ser perturbado nem pela posse e nem pela privação dos bens terrenos. Absorto em sua torre de marfim, nada pode alterá-lo. A ética estoica, como a epicurista, é democrática: todo os seres humanos, sejam escravos (como Epicteto) ou imperadores (como Marco Aurélio) são capazes da virtude e da perfeição, sendo igualmente aptos à reali-zação do bem e à conquista da felicidade.

O estoicismo também foi importante para a tendência do cosmopolitismo: o sábio estoico é cidadão do mundo, ao qual pertencem todos os indivíduos, independentemente de raça, nação ou condição social.

Ceticismo e ecletismoSe tanto o estoicismo como o epicurismo visam ao ideal da apatia – o primei-

ro mediante uma metafísica positiva e o segundo com uma metafísica negativa, que nega todo absoluto –, o ceticismo, buscando o mesmo fim, abre mão de toda metafísica. Tendo o seu início com Pirro de Elis (365-275 a.C.) – que como Sócrates, nada escreveu –, o ceticismo é, portanto, mais coerente e radical que as escolas anteriores.

Acreditando que as sensações e os juízos são incapazes de apreender a ver-dade, tudo se torna igualmente indiferente. O sábio cético, por conseguinte, não

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terá opiniões, assim evitando a vã agitação do espírito. A suspensão do juízo, por sua vez, conduz à completa apatia, tanto teórica quanto prática, e à imperturba-bilidade (ataraxia).

Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade, os céticos limitam-se a declarar que é impossível encontrá-la. E se houvesse uma verdade, não haveria critérios que permitissem demonstrá-la.

Por outro lado, ser cético significa também ser dialético, isto é, um pesquisa-dor contumaz, reconhecendo que se há alguma verdade, ela consiste na procura da verdade. Assim, para haver ciência, isto é, investigação racional, é necessário um certo ceticismo de base, pois ninguém procura aquilo que julga que sabe.

Apresentando-se como um sistema afim, porém aparentemente antagôni-co, temos o ecletismo: se nada é verdadeiro, tudo é igualmente válido. O sur-gimento de uma filosofia dessa natureza foi favorecido pela coexistência, nos períodos helenístico e romano, de várias correntes filosóficas, com postulados muitas vezes opostos, como o platonismo (e o neoplatonismo), o aristotelismo, o cinismo, o epicurismo, o estoicismo, o ceticismo, para ficarmos apenas nos mais conhecidos. O pragmatismo eclético será enfim estimulado pelo contato do pensamento grego com a cultura latina dominante, totalmente voltada para a prática e apresentando sua principal contribuição mais no âmbito do direito que no da filosofia.

NeoplatonismoAntes do apagar das suas luzes, a filosofia pagã da Antiguidade ainda nos lega-

ria uma reformulação original e vigorosa do pensamento de Platão (427-347 a.C.): o neoplatonismo. Surgido em Alexandria, no Egito, com Amônio Saca (175-240 d.C.), seu principal responsável é um aluno seu, Plotino (204-270 d.C.), natural de Licópo-lis, também no Egito.

Não que as doutrinas de Platão tivessem sido esquecidas. Entre a morte do autor da República e o magistério de Amônio, não poucos pensadores serviram- -se do instrumental platônico, sem falar que a Academia, a escola fundada por Platão, não deixara de funcionar, embora nem sempre se conservando fiel aos princípios filosóficos de seu fundador. No entanto, com Amônio e sobretudo Plo-tino, o platonismo recobraria forças e versatilidade em uma nova síntese, desti-nada a servir de arcabouço para o pensamento cristão por cerca de um milênio.

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Repensando o platonismo na óptica do Império Romano, a filosofia de Ploti-no é um saber de salvação, destinado a suscitar no ser humano a recordação de sua origem divina, voltando-o para Deus, do qual é uma emanação.

Imortal, a alma individual é todavia parte da alma universal, a qual, por seu turno, procede da inteligência, e da qual recebe as formas que imprime na matéria.

Acima da Inteligência encontra-se o Uno, que se basta si mesmo e é portanto o Absoluto.

Causa geradora de tudo que existe, o Uno, em emanações sucessivas, engen-dra a inteligência, a qual, por sua vez, engendra a alma, que, finalmente, produz o mundo sensível.

Procedendo da unidade, todos os seres aspiram à unidade, que é a sua razão de ser. Assim como em Platão, o mundo das coisas é mera aparência do mundo das ideias. O objetivo da moral é a libertação do corpo. A felicidade da alma encontra-se na contemplação (um tipo de meditação profunda que, eventual-mente, pode ocasionar o êxtase), na qual se realiza a unidade do sujeito e do objeto, único meio para atingir o êxtase, pelo qual a alma funde-se com o Uno.

A filosofia de Plotino é, com efeito, o grande arremate do pensamento grego. Com ela, uma era se encerra. Com ela, não só anuncia-se como também inaugu-ra-se outra era, na qual a filosofia caminhará não mais independente como o foi na Antiguidade clássica, mas guiada pela fé.

Sob a égide da cruzTirante o direito romano e a administração pública, a herança cultural do

Império Romano não é original: a Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), é uma pálida sombra da Ilíada e da Odisseia, de Homero (séc. IX a.C.), escritas quase um milê-nio antes; e não há um único filósofo romano que chegue aos pés de um Platão ou um Aristóteles. Todavia, a importância de Roma foi a de ter sabido receber, conservar e transmitir à posteridade o portentoso legado dos gregos.

Em 476, depois de muito assédio e também crises internas, esse fabuloso império caiu sob o assalto dos bárbaros. Se não fosse pela Igreja, cuja organi-zação hierárquica foi decalcada em parte da estrutura do Império, esse legado correria o risco, pelo menos no Ocidente, de se perder completamente debaixo das sucessivas levas das tribos invasoras. No entanto, o cristianismo não apenas

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desempenharia a função de salvaguardar – nas bibliotecas dos mosteiros, à espera de tempos mais propícios – a cultura clássica herdada de Roma, servindo de mais um elo nessa corrente: essa religião de origem semita3 – portanto oriental – não dei-xaria de acrescentar elementos novos e próprios à aventura do espírito ocidental.

O cristianismo tem a sua origem, como o nome já diz, em Cristo. A palavra cristo é a tradução grega para o título de ungido (em hebraico, messias), aplicado por seus seguidores a um judeu morto na cruz, por volta do ano 30, na província da Palestina, no extremo leste do Império.

Nesse sentido, o cristianismo é uma original reformulação do judaísmo, a pri-meira religião monoteísta de importância na história, cujos principais fundamentos se encontram na Bíblia. O monoteísmo judaico, acrescido da interpretação cristã (sobretudo de Paulo, um judeu de cultura helenística e cidadania romana, tão im-portante para o cristianismo como o próprio Cristo) traria para o Ocidente, junto com a religião, um rol de elementos que configurariam, junto à herança clássica, a identidade da civilização ocidental. A partir daí, é impossível negar essa contribui-ção: pode-se contestá-la, pode-se tentar superá-la, mas não se pode negá-la.

Vamos apresentar agora os principais elementos que seriam decisivos para o desenvolvimento da filosofia na Idade Média.

Monoteísmo – o pensamento grego havia chegado a conceber a unidade do divino, nunca a sua unicidade. A concepção judaico-cristã do Deus úni-co enseja um novo conceito de transcendência: Deus é totalmente outro, que não se confunde com as suas criaturas.

Criação ex nihilo – os gregos jamais conseguiram uma resposta satisfató-ria para o problema da origem dos seres. A concepção bíblica da criação “do nada” daria uma solução para o antigo problema de como e por que o múltiplo deriva do uno e o finito do infinito, além de conferir um valor positivo ao mundo, já que ele é criado diretamente por Deus e não por um demiurgo ou um poder intermediário.

Mandamentos e pecado original – os gregos entenderam a lei moral como uma lei da natureza. A ideia de um Deus que outorga a lei é estranha à filosofia grega. Com o advento de uma lei revelada por uma divindade, a virtude torna-se obediência aos mandamentos de Deus. E a ideia de um pecado original também é importante para a compreensão da mudança de paradigma: o ser humano peca não apenas por ignorância da verdade,

3 Pertencente ao grupo étnico e linguístico que abrange hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes.

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mas também por fraqueza da vontade. Assim, o antigo “intelectualismo” grego é subvertido pelo “voluntarismo” judaico-cristão.

Teleologia da história – a compreensão grega do tempo é a-histórica, como o demonstram as diversas teorias do “eterno retorno”. A concepção de história da Bíblia, ao contrário, é teleológica, pois tem um princípio, um desenvolvimento e um fim. Essa talvez tenha sido a principal herança judaico-cristã para o Ocidente. Os conceitos de progresso e evolução, tão importantes para o Ocidente durante os últimos séculos (ainda que ques-tionados recentemente), não seriam possíveis sem essa nova compreensão de história.

Entre outros, esses elementos configurariam um marco incontornável no pen-samento ocidental.

Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da “fé”; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205)

A primeira fase da filosofia da era cristã transcorreu no campo da primeira posição – filosofar na fé – e recebeu o nome de patrística.

A segunda fase se deu na esfera da segunda posição – a distinção dos âmbi-tos da “razão” e da “fé”– e foi chamada de escolástica.

A terceira posição – filosofar fora e contra a fé – teve seu início já no crepús-culo medieval, anunciando a filosofia da Idade Moderna.

Patrística: a razão a serviço da féPatrística é o nome dado ao período do pensamento cristão que se seguiu

à redação do Novo Testamento (século I), e estende-se até o começo da esco-lástica, no século VIII. Consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos “pagãos” e as heresias. Foi produzida pelos chamados Padres da Igreja, um conjunto de escritores cristãos, não necessariamente padres ou sacerdotes (alguns foram inclusive leigos)4.

O núcleo da mensagem cristã, o Evangelho (isto é, o relato das palavras e das obras de Jesus), não era um discurso filosófico, mas antes um saber soteriológico (isto é, que se refere à salvação do homem), que dispensava, quanto ao essencial, 4 Padres tem aqui o sentido latino de “pais”.

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o recurso a qualquer filosofia. No entanto, quando o cristianismo começou a espraiar-se por terras de cultura helenística, logo foi alvo de ataques polêmicos, vendo-se obrigado a esclarecer os próprios pressupostos.

Para tanto, ele se serviu da filosofia dominante, que na época era de matriz sobretudo (neo)platônica. Esse processo já pode ser percebido na própria reda-ção do Novo Testamento. Se os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (os cha-mados Evangelhos sinóticos) são relativamente simples, o evangelho de João e os escritos de Paulo já se servem de categorias gregas.

Portanto, os Padres da Igreja nem sempre foram hostis à filosofia, compreen-dendo que a “sabedoria pagã” – a despeito de ser “pagã” – era obra da razão, que por sua vez era obra de Deus. Da tentativa de utilizar a filosofia a serviço da fé resulta a filosofia cristã, da qual a primeira manifestação é a patrística.

No entanto, esse “filosofar na fé” por um lado enriqueceu o objeto da filosofia, com o aporte de novos conteúdos, e por outro foi eivado de problemas, do qual o maior seria o atrelamento e a subordinação da filosofia à teologia. Doravante, por cerca de mil anos aquela seria serva desta, perdendo a sua autonomia e sua liberdade de pesquisa. Isso é um dado novo na história da filosofia. Na Grécia e em Roma, a filosofia era relativamente autônoma dos poderes religiosos: ainda que Sócrates tenha sido condenado por “impiedadade”, ele o foi pelo poder po-lítico de Atenas e não por um colégio de sacerdotes. Mais tarde, sobretudo após a cristianização do Império (com Constantino e Teodósio5), tornou-se perigoso pensar diferentemente da ortodoxia definida pelos dirigentes da Igreja. Não foram poucas as fogueiras acesas para dissuadir os que teimavam em pensar de outra maneira.

Além disso, é bom ter em mente que a patrística é contemporânea do último período do pensamento greco-romano, com o qual teve um fecundo contato. Como vimos, esse período deu grande ênfase à ética (como no estoicismo e no epicurismo), com um forte viés místico-religioso (como no neoplatonismo). É também contemporâneo do Império Romano, de quem testemunha o esplen-dor, a decadência, a queda e a substituição como cimento social em uma Europa traumatizada e fragmentada pela igreja romana.

Por causa da grandeza de Agostinho, costuma-se dividir a patrística em três períodos: antes de Agostinho, a época de Agostinho e depois de Agostinho.

5 Com o Edito de Milão (313), Constantino tornou o cristianismo religião lícita, acabando com dois séculos de sangrentas perseguições. Com o Edito de Tessalônica (380), Teodósio elevou o cristianismo à religião oficial do Império, colocando as demais religiões na ilegalidade.

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Patrística pré-agostinianaSubdivide-se, por sua vez, em três fases.

A primeira fase abarca o século II, compreendendo os padres apostólicos, muito próximos temporalmente dos apóstolos; os padres apologetas e os padres controversistas. Os apologetas interessam-se pela defesa ra-cional da fé cristã, ao passo que os apostólicos e os controversistas têm uma importância mais interna. Os maiores representantes desse primeiro momento foram Clemente de Roma (séc. I), Inácio de Antioquia (67-110), Justino (103-167) e Irineu (130-202).

A segunda fase abarca o século III, destacando-se a escola de Alexandria, no Egito, e os padres africanos, isto é, os padres latinos do norte da África. Foi o tempo em que o pensamento cristão ganhou corpo e visibilidade no mundo cultural. Enquanto os padres alexandrinos tiveram em boa es-tima o pensamento helênico, os padres africanos olharam-no com suspei-ta. Entre os primeiros ressaltam-se Clemente de Alexandria (150-215) e o grande Orígenes (185-253). Entre os africanos, o maior nome é Tertuliano (155/160-230).

Por fim, a última fase do primeiro período se dá no século IV, época áu-rea da patrística. Com as grandes heresias6 do período, os padres viram-se obrigados a concentrar-se no elemento dogmático, deixando a filosofia propriamente dita em segundo plano. A divisão da patrística em oriental (grega) e ocidental (latina), já patente no século anterior com a polariza-ção entre alexandrinos e latinos, foi acentuada, o que foi corroborado pela separação do Império Romano em oriental e ocidental. Os padres gregos eram mais voltados para questões especulativas, teológicas; os latinos dedicaram-se mais aos problemas morais, disciplinares, políticos. Entre os primeiros despontam Atanásio (296-373), Gregório Nazianzeno (335-394), Gregório de Nissa (330-390) e João Crisóstomo (349-407). Entre os últimos, distinguem-se Ambrósio (340-397) e Jerônimo (343-420).

Patrística agostinianaO segundo período da patrística é marcado pela figura luminar de Santo

Agostinho, cujo pensamento reinou inconteste no Ocidente durante quase um milênio. Aurélio Agostinho nasceu em 354, em Tagasta, na Numídia, província

6 Heresias são doutrinas consideradas como falsas pela Igreja.

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romana do norte da África, filho de pai pagão e mãe cristã. Essa mãe era Santa Mônica, que seria muito importante na conversão do seu filho. Jovem inquieto, Agostinho entregou-se com afinco ao estudo de toda a ciência do seu tempo. Chegou a ser brilhante professor de retórica em Cartago, Roma e Milão. Aderiu ao maniqueísmo7 nos seus dias de estudante, mas, embebido de neoplatonis-mo, converteu-se ao cristianismo por meio da pregação de Santo Ambrósio, fazendo-se batizar em 387.

De volta à África, estabeleceu com alguns amigos, em Tagasta, uma comuni-dade monástica. Em 391, foi ordenado sacerdote em Hipona, logo se tornando famoso por suas pregações. Notabilizou-se sobretudo pelo combate ao mani-queísmo. Cinco anos depois, foi consagrado bispo dessa mesma diocese. Em 430, durante o cerco de Hipona pelos vândalos, veio a falecer o maior Padre da igreja ocidental.

Santo Agostinho é autor de mais de 400 sermões, 270 cartas, muito asseme-lhadas a tratados doutrinais, e 150 livros. Destacam-se, entre esses, Confissões, em que narra a história de sua conversão, a primeira autobiografia da história; e Cidade de Deus, escrito depois do saque de Roma pelos godos, ocorrido em 410 – nesse livro, ele argumenta que a cidade dos homens pode ser derruída, mas o que conta é a cidade de Deus, que é fundada sobre alicerces eternos.

Patrística pós-agostiniana Depois de Agostinho, seu apogeu, a patrística decaiu juntamente com a cul-

tura. A lenta agonia do Império do Ocidente sob as arremetidas das tribos ger-mânicas e mais tarde dos muçulmanos fez a Europa mergulhar em um período de obscurantismo.

Mas a decadência da patrística também teve motivos internos: a aplicação da filosofia à fé já não apresentava um desenvolvimento fecundo. No entanto, ainda resplandecem alguns pensadores nesse melancólico crepúsculo: Boécio (475/480-524), o “último dos romanos”; e Bento de Núrcia (480-543).

Se com a cristianização do Império Romano a Igreja tornou-se romana, com a evangelização dos bárbaros ela se barbarizou: o esplendor do pensamento grego e da administração romana pereceram nas cinzas dos saques e invasões. Até que a poeira assentasse decorreram alguns séculos (do século VII ao X), aos quais é realmente apropriada a designação com a qual erroneamente se tentou apodar toda a Idade Média (476-1453): idade das trevas.

7 Dualismo religioso que, difundido nos séculos III e IV, afirmava haver um conflito entre o reino da luz e o reino das sombras, sendo que a matéria e a carne pertenciam à sombra.

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Escolástica: harmonia e tensão entre fé e razão A insegurança decorrente das sucessivas invasões aprofundou um proces-

so já iniciado no outono do Império Romano: a feudalização. A Europa se frag-mentou em numerosos territórios mais ou menos autônomos, que por sua vez continuaram se pulverizando em numerosos condados, ducados e principados cada vez menores. Somente pelo século XII, com uma certa estabilização das correntes migratórias, estancou-se esse processo.

Então começaram a surgir as línguas nacionais, as cidades se repovoaram e se constituiu uma nova classe (a burguesia) vivendo nos centros urbanos. Essa nova classe surgiu a partir das trocas mercantis, ao contrário da nobreza e do campesinato, que viviam da terra, com os nobres explorando a mão-de-obra servil dos camponeses.

A Igreja não ficou imune a essas transformações: surgem as ordens mendi-cantes (franciscanos e dominicanos), mais afinadas com as forças sociais e eco-nômicas emergentes. Ao contrário dos mosteiros – comunidades sedentárias que vivem do cultivo da terra e se dedicam à oração e ao trabalho manual – os frades mendicantes exercem o seu apostolado nas cidades, nas novas rotas do comércio, no magistério. Com efeito, desde o tempo de Carlos Magno (século VIII), ressurgiam as escolas, as quais podiam ser monacais (anexas a um mos-teiro), episcopais (anexas a uma catedral) ou palatinas (anexas à corte). A partir do século XIII, a escola configura-se em universidade, que era, a princípio, uma corporação que congregava mestres e alunos.

Logo, por meio de traduções – primeiramente do árabe e depois diretamen-te do grego –, a civilização medieval redescobriu a sua herança clássica. Assim, era natural que sob essas circunstâncias a ciência e a filosofia encontrassem um novo e vigoroso estímulo, e das cinzas feudais começassem a brilhar as novas luzes que pouco a pouco retiraram a sociedade de seu sono secular.

A filosofia desse período recebe o nome de escolástica justamente por ter se originado nessas novas escolas. E mais que uma retomada dos estudos an-teriores, feitos no tempo da patrística, assistia-se a um verdadeiro e inovador despertar da filosofia. Se os Padres serviram-se da razão para dar razões à fé, os filósofos escolásticos tomaram razão e fé como dois campos autônomos e sua empreitada foi a de harmonizá-los.

Embora convencional como todas as divisões, os historiadores tendem a de-marcar quatro fases na escolástica.

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A escolástica primitivaSendo uma fase mais preparatória, estendeu-se do fim da patrística até o

século IX e foi marcada por momentos de grande obscuridade cultural e anteci-pações luminosas, como no chamado Renascimento Carolíngio (séc. VIII).

O maior representante desse período foi o monge irlandês João Escoto Eriú-gena (morto em 877), que tenta conciliar o teísmo cristão com a teoria das ema-nações neoplatônicas.

Primeira escolásticaA segunda fase, ou a primeira escolástica propriamente dita, vai do século

IX ao século XII, e essa é a época das Cruzadas, um período de vigorosa centra-lização do poder eclesiástico e da primeira expansão das cidades medievais. Na filosofia, os chamados dialéticos proporcionaram um importante incremento, dividindo a cena com os denominados místicos.

Os dialéticos, assim como os místicos, partem da fé; mas enquanto os místi-cos hostilizam a razão, os dialéticos servem-se dela para penetrar os mistérios.

Entre os maiores representantes da corrente mística, encontramos Pedro Damião (1007-1072) e Bernardo de Claraval (1090-1153).

Entre os dialéticos, por sua vez, destacam-se Santo Anselmo de Aosta (1033-1109), o primeiro a tentar demonstrar racionalmente a existência de Deus; e Pedro Abelardo (1097-1142), famoso por sua aventura histórica de amor com Heloísa – o que lhe acarretou trágicas consequências – e um dos pioneiros na assimilação do pensamento de Aristóteles.

Escolástica áureaCorresponde ao século XIII, apogeu da escolástica e do pensamento filo-

sófico cristão, época dos altos e sofisticados voos especulativos e das grandes sínteses doutrinárias. Essa fase é marcada e preparada sobretudo pela redes-coberta de Aristóteles no Ocidente. Ao contrário das ideias de Platão, o pen-samento de Aristóteles caiu no esquecimento por quase 1 500 anos. O Liceu, a escola fundada por Aristóteles, não desfrutou da mesma glória que a Acade-mia de Platão, nem o seu sistema gozou de um reavivamento semelhante ao neoplatonismo.

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No século XIII, a filosofia aristotélica foi recuperada graças aos árabes, cuja civi-lização vivia então um momento de esplendor, especialmente na Espanha moura (isto é, a Espanha sob domínio muçulmano). Pensadores árabes como Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198), aos quais se deve acrescentar o judeu Maimô-nides (1135-1204), foram buscar em Aristóteles as novas categorias que iriam re-volucionar o pensamento e a ciência ocidentais. Por meio deles, o pensamento de Aristóteles experimentou uma reentrada – dessa vez triunfante – no Ocidente.

Coube a Tomás de Aquino, seguindo as pegadas de seu mestre e confrade Alberto Magno (1207-1280), o empreendimento da reformulação em bases aris-totélicas de todo o edifício da fé cristã. Descendente de nobre estirpe, Tomás de Aquino nasceu em Roccasseca, Nápoles, em 1225. Sua família queria que fosse monge beneditino, mas, contrariando a vontade familiar, ele entrou na ordem dos dominicanos. Estudou nas universidades de Colônia e Paris, na qual recebeu seu grau acadêmico e mais tarde veio a lecionar por um longo tempo. Morreu aos 49 anos, em 1274, no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma, quando se dirigia a Lião para participar de um concílio a pedido do papa.

Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles, seus maiores livros, siste-matizou o conhecimento teológico e filosófico de seu tempo, ancorado no pos-tulado de que a teologia (fundada na fé) e a filosofia (baseada na razão) amal-gamam-se em uma síntese definitiva, unidas em sua orientação comum rumo a Deus. Para ele, a filosofia não pode ser substituída pela teologia, já que as duas abarcam campos próprios, mas não há contradição entre elas: “Com base no sistema aristotélico, é conquistada finalmente a consciência do que é conheci-mento racional, ciência: um lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões inteligíveis” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 250).

Tornaram-se célebres as cinco vias de São Tomás para a demonstração racio-nal da existência de Deus. Dessas cinco, precisamos reter, para a nossa discussão, as duas primeiras, segundo as quais Deus seria o motor primeiro (primeira via) e a causa incausada (segunda via).

Chamado de tomismo, o pensamento de Tomás de Aquino foi a princípio rece-bido com reservas pelo seu aristotelismo, mas depois viria a ser a filosofia oficial da Igreja Católica até o Concílio Vaticano II (1962-1965). Afirma-se, ademais, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é compreendida como uma construção autônoma e crítica da razão humana.

E o século da escolástica áurea ainda é palco de outras prestigiosas figuras: o italiano Boaventura (1221-1274) e o escocês Duns Scoto (1265-1308). Ao contrário

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do aristotelismo de São Tomás, esses dois franciscanos servem-se do agostianis-mo de extração platônica. Contra o concordismo tomista, Scoto propugna a clara separação entre ao âmbitos da filosofia e da teologia, já que as duas tem metodo-logias e objetos distintos.

No entanto, quem exerceria maior influência sobre o desenvolvimento ulte-rior da filosofia e da ciência seria outro franciscano das ilhas britânicas – Roger Bacon (1210-1294), um aristotélico. Para ele, são três as fontes do saber: a au-toridade, a razão e a experiência. A primeira nos dá a fé, mas não a ciência; a segunda, a ciência que não é eficaz sem a experiência. A ciência experimental, portanto, é que constitui a fonte mais sólida da certeza.

A escolástica tardiaO século XIV caracteriza-se pela separação definitiva entre a filosofia e a teolo-

gia, a razão e a fé. O inglês Guilherme de Ockham (1285-1347), outro franciscano, é um dos nomes que brilham nessa fase. Para ele, só o saber sensível é verdadei-ro, os conceitos só existem no pensamento e o universal não tem realidade. Com Ockham, foi dado mais um passo rumo ao empirismo radical e a ciência moder-na. Além disso, ele defendeu a separação entre os poderes temporal e religioso, aliando-se ao imperador contra o papa. Não por acaso, teve sérios problemas com a Inquisição8, o que já tinha ocorrido com o seu conterrâneo Roger Bacon. O castelo filosófico medieval, que subordinava a razão à fé (com a patrística e os escolásticos agostinianos) ou que as harmonizava admiravelmente (com São Tomás de Aquino), estava prestes a ruir.

Com Ockham, a escolástica encontra o seu epílogo: no século XIV, depois dele, não surgiriam mais personalidades nem grandes sistemas.[...] Diante do tomismo e do escotismo, que repre-sentavam a via antiqua, o ocamismo se impõe como a via moderna, enquanto é programatica-mente crítico em relação à tradição escolástica. (REALI; ANTISERI, 2003, p. 663)

Mas a escolástica ainda conheceria um florescimento na Península Ibérica, nos seculos XVI e XVII, por conta dos dominicanos e dos jesuítas, orientando-se pela nova interpretação do tomismo que se fez na Itália. Os teólogos de Salamanca, na Espanha, juntamente com os jesuítas de Coimbra, em Portugal, defenderam uma síntese da escolástica tradicional com as novas tendências de pensamento da época. Mas então já estávamos no terreno dos epígonos9 e há muito a esco-lástica já tinha deixado de estar na vanguarda do pensamento ocidental.

8 Órgão da Igreja Católica que tinha a finalidade de investigar e julgar possíveis hereges e feiticeiros, acusados de serem contra o catolicismo. Em geral os condenados eram levados à fogueira para serem queimados até a morte.9 Em geral considera-se que o epígono é um mero imitador de um artista realmente criativo ou de um grande pensador.

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A Renascença e o divórcio entre razão e féÉ errôneo situar a Renascença – ou Renascimento – como uma etapa pos-

terior à Idade Média: na verdade, a Renascença começa nos últimos anos da Idade Média – sendo contemporânea da última escolástica – e se prolonga pelo começo da Idade Moderna (1453-1789).

Embora não seja relevante do ponto de vista filosófico – o primeiro grande filósofo moderno será René Descartes (1596-1650) –, essa época prepara o hori-zonte histórico no qual irão despontar os representantes da modernidade.

Assim, a partir do século XIV, o mundo medieval – que era teocêntrico, co-letivista, místico – começa a se desintegrar por uma série de fatores. A unidade religiosa, característica da cristandade, foi rompida pelo grande cisma do Oci-dente (1378-1417)10 e, um século depois, pela Reforma protestante (1517), que deu origem às igrejas nacionais na Europa setentrional.

A Reforma tem como premissa a livre interpretação das Escrituras (a Bíblia) e o acesso direto do fiel a Deus, sem a itermediação das instâncias eclesiásticas – o que contribui para o advento do individualismo moderno.

No plano teológico e filosófico, a crise se manifestou no antagonismo entre a via antiqua (representada pelo tomismo e o agostianismo) e a via moderna (derivada de Guilherme de Ockham). Tendo sido mais uma revolução que uma reforma, essa via moderna constitui a negação radical de toda a filosofia anterior. Deus deixa de ser racional, e a racionalidade, que seria um limite à onipotência divina, torna-se um atributo exclusivo do ser humano. Ora, se Deus não é racio-nal, não pode ser apreendido pela razão humana. Desligando-se de um deus in-cognoscível, a razão volta-se para o que pode conhecer – a natureza e o próprio ser humano.

Ao mesmo tempo, os novos descobrimentos científicos propiciaram as gran-des navegações. Descobriu-se que a Terra é redonda e, além disso, com Copérni-co (1473-1543) e Galileu (1564-1642), que ela não é o centro do universo, e sim, apenas um planeta em órbita em torno do Sol (isto é, descobriu-se o heliocentris-mo). A invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg (1456), por sua vez, barateou o custo do livro, ajudando a propagar os novos conhecimentos. Que seria da Reforma de Martinho Lutero (1483-1546) sem a possibilidade de uma divulgação mais rápida e de preços mais acessíveis de sua tradução da Bíblia?

10 Durante esse cisma, a Igreja Católica chegou a ter três papas simultaneamente, cada um exigindo a obediência dos fiéis. Anteriormente, em 1054, já havia ocorrido o cisma da Igreja oriental, separando as igrejas latina e ortodoxa.

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O fato de o império germânico (que encontrava a sua justificação na Igreja) ter se desintegrado e a emergência de uma nova classe social (a burguesia, que necessitava da ciência para conhecer e dominar o mundo) contribuiram para a decomposição das estruturas feudais e para a formação das novas nações, que mais tarde desenharam o mapa da Europa moderna.

São duas as principais características da Renascença: o humanismo e o naturalismo.

O humanismo se manifesta a partir da recuperação e do estudo de obras da Antiguidade clássica, no florescimento das letras e das artes.

Já o naturalismo tem manifestação no empenho de conhecer a natureza pela ciência e de viver segundo a natureza, o que leva a uma ética e a um direito natural.

Os grandes artistas dessa época são Dante (1265-1321), Giotto (1266-1337), Petrarca (1304-1374), Boccaccio (1313-1375), Michelangelo (1475-1564) e o nosso Luís de Camões (1524-1580). Entre os cientistas, além dos já citados, en-contramos Vesálio (1514-1564), que alargou os conhecimentos sobre anatomia, e Gilbert (1544-1603), que desenvolveu pesquisas sobre o magnetismo e a eletri-cidade. O genial Leonardo da Vinci (1452-1519), figura paradigmática dessa era de ouro, transita entre os dois campos – arte e ciência.

Ao contrário do período anterior, o platonismo passou a ser revalorizado, junto com outras escolas da filosofia helênica, como o estoicismo, o ceticismo e o epicurismo – este último, bastante próximo do espírito mundano da Renas-cença. O próprio aristotelismo dessa época é desvestido de sua roupagem cristã tomista, dividindo-se em duas correntes – uma sendo naturalista e outra pante-ísta, com raízes em Averróis.

Grandes nomes dessa época são Nicolau de Cusa (1401-1464), que tentou a síntese do cristianismo e do neoplatonismo, resvalando no panteísmo; Maquia-vel (1469-1527), autor do célebre O Príncipe, para quem os interesses do Estado estão acima dos interesses do indivíduo e dos valores éticos e religiosos11; Thomas Morus (1478-1535), cujo livro Utopia descreve uma sociedade ideal inspirada na República platônica; Erasmo de Roterdã (1467-1536), autor do famoso Elogio da Loucura, em que ataca a hipocrisia da sociedade e da Igreja.

Mas talvez o autor mais característico desse período tenha sido Giordano Bruno (1548-1600). Para este dominicano que abandonou o hábito e teve uma

11 Lançado em 1532 (embora já escrito há 19 anos), O Príncipe é o primeiro livro em mil anos a não trazer nenhuma citação bíblica ou referência a autores da Antiguidade. Junto com a tradução alemã da Bíblia de Martinho Lutero, foi o grande best-seller do século XVI.

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vida nômade e atribulada o universo é infinito, Deus é a alma universal do mundo e todas as coisas materiais são manifestações desse princípio único. Mártir da liberdade de pensamento, morreu queimado na fogueira pela Inquisição. O filó-sofo holandês Baruch Espinosa foi vivamente influenciado por Giordano Bruno.

E assim, com a Renascença, consuma-se o divórcio entre teologia e filosofia, razão e fé. A partir de então, cada uma delas irá seguir seu próprio caminho, rara-mente voltando a encontrar-se com a outra, como em Kierkegaard (1813-1855). A filosofia, por sua vez, tendo esgotado a herança platônica e aristotélica, buscará novas bases.

Textos complementares

Que é, pois, o tempo?(AGOSTINHO, 1977, p. 303-304)

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existia o tempo presente.

De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?

Pode-se provar a existência de Deus(AQUINO, 2008)

Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais ma-nifesta é a procedente do movimento; pois é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o

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é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira cálido potencial, em cálido atual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois o cálido atual não pode simulta-neamente ser cálido potencial, mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois tudo o que é movido há de sê-lo por outro. Se por-tanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este, por outro. Ora, não se pode assim proceder até o infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por consequência, outro qualquer; pois, os moto-res segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.

Da causa, princípio e uno(BRUNO, 1964, p. 86)

O universo, pois, é uno, infinito, imóvel. Una é, digo, a absoluta possibi-lidade, uno o ato, uno a forma ou a alma, una a matéria ou o corpo, una a coisa, uno o ser, uno o máximo e ótimo; o qual não poderia estar contido em outra coisa, e por isso, sem fim nem termo; portanto, infinito e ilimitado, e, em consequência, imóvel. Não se move com relação a seu lugar, pois não há fora dele nada aonde possa transladar-se, já que é o todo. Não se cria a si mesmo porque não há outro ser que ele possa desejar nem querer, tendo em conta que ele possui todo o ser. Não se corrompe, pois, não há nenhuma outra coisa em que possa transmutar-se, porquanto ele é todas as coisas. Não pode aumentar nem diminuir, porquanto é infinito, e assim como não cabe acrescentar-lhe nada, assim também não se lhe pode tirar nada, pois o infinito não tem partes proporcionais. Não pode ser alterado com outra disposição, pois nada há de exterior a ele de que possa padecer uma afeição qualquer. De resto, por compreender em seu próprio ser todas as oposições em unidade e harmonia, e por não poder ter inclinação alguma para outro ser novo, ou por este ou aquele modo de ser, não está sujeito a mutação em qualidade alguma, nem pode possuir nada diverso ou contrário que o

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altere, pois nele tudo é concorde. Não é matéria, pois carece de forma e não pode ser configurado; carece de limite e não pode ser limitado, não é forma, porque não informa nem configura nada, porquanto é tudo, máximo, uno e universal. Nem é mensurável nem é grandeza. Não se contém a si mesmo, pois não é maior que si mesmo. Não está contido em si mesmo, pois não é menor que si mesmo. Não se iguala a si mesmo, pois não é este e aquele, mas um só e o mesmo. Sendo um só e o mesmo, não tem este e aquele ser, e porque não tem este e aquele ser, não tem também esta e aquela parte e, pois, não tendo tais partes, não é composto. É termo de tal sorte que não é termo; é forma de modo que não é forma; é matéria de modo que não é ma-téria; é de tal modo alma que não é alma; porque é indistintamente o todo e portanto, uno: o universo é uno.

Atividades1. Identifique o período da história da filosofia a que pertencem os textos auxi-

liares de Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Giordano Bruno, dissertando sobre suas semelhanças e diferenças.

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2. Quanto à filosofia do período helenístico, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

Diógenes, o Cão, que vivia em um barril, é o maior representante da )(filosofia estoica, segundo a qual os homens deviam viver do modo mais natural possível.

A filosofia do período helenístico volta-se para questões metafísicas, )(tornando-se predominantemente especulativa.

Epicuristas e estoicos dividem a filosofia em lógica, física e ética. )(

A )( ataraxia (imperturbabilidade) era um dos principais ideais perseguidos pelas correntes filosóficas helenísticas.

O imperador Marco Aurélio foi o maior epicurista romano. )(

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3. A seguir, enumeramos uma série de características de correntes filosóficas. Quais delas pertencem à patrística (P), à escolástica (E) ou à filosofia produzi-da durante a Renascença (R)?

Foi produzida pelos chamados Padres da Igreja. ( )a)

Preparou o caminho para a filosofia moderna. ( )b)

Seu conteúdo é cristão e sua estrutura filosófica basicamente (neo)c) platônica. ( )

d) Subordinou a razão à fé. ( )

Recebeu um forte incremento da redescoberta dos escritos de e) Aristóteles. ( )

Entre seus expoentes encontramos João Crisóstomo, Orígenes, f) Clemente de Alexandria e Tertuliano. ( )

São Tomás de Aquino foi o seu mais luminoso nome. ( )g)

É a época que marca o divórcio entre razão e fé. ( )h)

Tentou harmonizar razão e fé. ( )i)

Entre seus representantes estão Duns Scoto, Santo Anselmo de Aosta, j) Pedro Abelardo e São Boaventura. ( )

k) Foi dinamizada pelos grandes descobrimentos científicos. ( )

Santo Agostinho é o seu maior nome. ( )l)

Thomas Morus pertenceu a esse período. ( )m)

Encontra o seu epílogo com Guilherme de Ockham. ( )n)

Teve suas origens nas escolas e universidades medievais. ( )o)

Boécio e Bento de Núrcia foram uns de seus últimos representantes. ( )p)

Giordano Bruno foi um de seus maiores representantes. ( )q)

Tomou razão e fé como dois campos autônomos. ( )r)

O aristotelismo dessa época foi desvestido de sua roupagem cristã s) tomista. ( )

Foi contemporânea do Império Romano, de quem testemunhou o t) esplendor, a decadência e a queda. ( )

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Para produzir filosofiaAo contrário do que previram vários filósofos da modernidade, em nosso

tempo continuam circulando inúmeros discursos religiosos. Na sua opinião, eles se servem do instrumental da razão para se justificarem?

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

O homem livre, que vive entre os ignorantes, procura,

quanto lhe é possível, evitar os seus favores.

Baruch Espinosa

A filosofia moderna: entre razão e experiênciaO terreno já fora limpo pela filosofia renascentista, que separara para

sempre os campos da razão e da fé, e assim os tempos estavam maduros para o surgimento de uma nova filosofia, não apenas mais uma releitura ou atualização das correntes da filosofia clássica. Ao contrário da religio-sa e dogmática filosofia medieval, produzida por clérigos submetidos à autoridade da Igreja, a filosofia que se anunciava era profana, crítica, pro-duzida por leigos que procuram pensar não conforme o critério da au-toridade, mas de acordo com as exigências da razão e do conhecimento científico. Portanto, a tarefa que se impunha era repensar radicalmente os fundamentos do saber: se não podemos mais nos pautar nos argumentos de autoridade – seja esta a Igreja (para os católicos) ou a Bíblia (para os protestantes) –, em que devemos então nos apoiar para a construção do conhecimento?

Duas respostas foram aventadas, duas soluções aparentemente anta-gônicas: a razão e a experiência, que deram origem, cada qual, às duas principais correntes do pensamento moderno – o racionalismo, de matriz francesa, e o empirismo, de molde anglo-saxão. Seus pais são, respectiva-mente, René Descartes (1596-1649) e Francis Bacon (1561-1626).

O primeiro – considerado o verdadeiro fundador da filosofia moder-na – parte da dúvida metódica, que põe em cheque as supostas certezas tanto do conhecimento sensível quanto do conhecimento intelectual. Trata-se de encontrar uma certeza que resista à dúvida e permita a recons-trução do edifício do saber. Ao duvidar de tudo, Descartes constata que,

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duvidando, pensa; e, pensando, existe. Cogito ergo sum (“penso, logo existo”) será, portanto, a pedra angular da sua filosofia. Assim, ocorre um deslocamento radical na estrutura do pensamento ocidental, com o fundamento da certeza transferindo-se do objeto para o sujeito, do ser para a consciência, da realidade para a consciência.

Do outro lado do canal da Mancha, na Inglaterra, uma revolução semelhante se processava, mas em outros moldes. Na esteira de Roger Bacon (1210-1294) e Guilherme de Ockham (1285-1347), Francis Bacon lançava as bases do empirismo moderno. Para ele, a descoberta de fatos verdadeiros não depende do raciocínio silogístico1, mas antes da observação e da experimentação reguladas pelo racio-cínio indutivo, o qual se pauta por transpor em linguagem matemática os fatos empíricos descritos. Somente assim é possível passar das sensações particulares para os axiomas gerais – por meio de axiomas intermediários. O conhecimento verdadeiro seria nada mais que o resultado da concordância e da variação dos fenômenos, os quais, caso devidamente observados, revelariam suas causas reais.

O empirismo viria a ser extremamente fecundo no ambiente anglo-saxão. Seus principais nomes são John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776).

Por outro lado, o cartesianismo – como também é chamado o racionalismo, derivado de Cartesius, nome latino de Descartes – iria nos legar, na França, Nico-las de Malebranche (1636-1715) e, na Holanda, o judeu Baruch Espinosa.

Uma vida em diásporaNo Ocidente cristão, os judeus foram uma das etnias que mais sofreram perse-

guições sistemáticas. De certa forma, os judeus são e não são ocidentais, ao con-trário dos muçulmanos, que, a despeito de sua próspera civilização moura na Es-panha, são sempre excluídos para a categoria do Oriente. Os judeus são ocidentais porque desde a diáspora2 estão – ou pelo menos boa parte deles – no Ocidente. Sua herança e suas contribuições culturais são decisivas para a configuração da identidade ocidental. A religião do Ocidente – o cristianismo – tem sua origem em um humilde carpinteiro judeu do primeiro século. Mas também não são ple-namente ocidentais, pois não são cristãos e sempre se recusaram a serem assimi-lados, tanto que permaneceram sempre como povo e nação distintos – mesmo

1 Um silogismo é o termo com o qual Aristóteles designou a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas primeiras, denominadas premissas, é possível deduzir uma conclusão.2 Diáspora vem do grego e significa “dispersão”, o deslocamento incentivado ou forçado de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas. É usada sobretudo para se referir à dispersão dos judeus no mundo antigo.

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

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não possuindo um território –, dispersos entre os povos e nações da Terra, teimo-samente aferrados aos seus costumes e práticas, o que desencadeou desde o pre-conceito mais comezinho até campanhas sistemáticas de extermínio, das quais o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, foi o mais trágico.

A primeira diáspora iniciou em 586 a.C., quando o reino de Judá foi invadi-do por Nabucodonosor e sua população foi deportada para a Babilônia. Apesar da libertação em 539 a.C., apenas parte dos judeus retornou ao seu território – a maioria optou por permanecer na Babilônia e alguns migraram para vários países do Oriente.

O segundo momento da diáspora aconteceu no ano 70 d.C., com a destruição de Jerusalém pelos romanos (em 135, aconteceria ainda outro cerco e destrui-ção da cidade). Proibidos de viver na Palestina, os judeus espalharam-se pelo Império Romano.

Quando da expansão do Islã, nos séculos VII-VIII, parte dos judeus do norte da África se estabeleceu também na Península Ibérica, desfrutando de significativa liberdade sob o domínio mouro.

Como o nome sugere, os antepassados de Espinosa viviam em Espinosa de los Monteros, um pequeno vilarejo no norte da Espanha. Com a conquista de Granada, último bastião mouro, em 1492, os muçulmanos foram expulsos da pe-nínsula. Por sua vez, o decreto de Alhambra, do mesmo ano, proibiu aos judeus a residência no país – salvo sob a condição de se batizarem e aderirem ao catolicis-mo. Então uma grande leva de judeus emigrou para Portugal, que oferecia asilo aos desterrados. Lá se fixou a família Espinosa, ainda em 1492. Mas em 1498, por conta do casamento do rei português com a princesa espanhola, a Coroa castelhana impôs a mesma condição a Portugal. Em consequência, a família Es-pinosa não viu outra alternativa a não ser a conversão. Lá, na pequena cidade portuguesa de Vidigueira, nas proximidades de Beja, nasceu Miguel de Espinosa, pai do filósofo. A condição de cristãos-novos – ou marranos, como eram chama-dos3 – era extremamente perigosa em decorrência do zelo com que a Inquisição investigava a autenticidade de sua conversão. Por esse motivo, quando Miguel era ainda criança os Espinosas se mudaram para Nantes, no noroeste da França, onde, por conta de um edito de tolerância religiosa, vivia uma colônia marrana.

Todavia, essa paz não duraria muito tempo: em 1615, todos os marranos foram expulsos da França. De lá, a família seguiu para a Holanda, onde os judeus goza-vam de uma relativa liberdade religiosa. Talvez porque não fosse mais prudente

3 Marrano, do árabe mharram = “proibido”, é uma designação injuriosa outrora dada aos judeus e mouros obrigados a se converterem. Em espanhol tem o sentido de “porco” (tanto o judaísmo como o islamismo proíbem o consumo de carne suína, pois o porco é considerado um animal impuro).

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permanecer católico em um país calvinista e em guerra contra a católica Espanha, Miguel retornou ao judaísmo de seus pais. Com o tempo, tornou-se um abastado comerciante.

Em 24 de novembro de 1632 nasceu o filho que celebrizaria o nome da família: Baruch em hebraico, Benedictus em latim, conforme ele assinaria em seus livros.

Uma vida de filósofoBaruch era um jovem judeu de família abastada e em sua educação incluiu-se

o estudo do hebraico, da Bíblia, do Talmude e dos filósofos medievais judeus. Ele se impressionou com Maimônides (1138-1204), que identificava Deus e o uni-verso; com Levi ben Gerson (1288-1344), que ensinava a eternidade do mundo; e com Hasdai Cresças (1340-1412), para quem a totalidade da matéria correspon-dia ao corpo de Deus.

É igualmente importante a formação que Espinosa recebeu de Francis van den Enden, um erudito egresso da Companhia de Jesus, com quem aprendeu as línguas clássicas e as ciências naturais e por quem foi introduzido na filosofia de Descartes. Sem dúvida Espinosa deve a Van den Enden o seu ótimo domínio do latim, língua em que escreveria praticamente toda a sua obra.

Como matemático, Espinosa realizou cálculos sobre o arco-íris e ocupou-se do recém-descoberto cálculo de probabilidades. Além disso, como parte dos estudos de física, fabricava lentes ópticas, sendo provável que tenha recebido muitas encomendas de seus amigos.

Enfim, sua curiosidade e sua inquietude o fizeram absorver o que havia de mais novo e complexo na cultura científica e filosófica de seu tempo.

Todavia, o jovem estudante não tardaria a levantar suspeitas quanto à ortodo-xia de sua fé na comunidade judaica local. É verdade que seu ceticismo não era estranho aos jovens das famílias marranas reconvertidas ao judaísmo. Se entre os refugiados de Amsterdã não poucos desejavam reatar os laços com a religião de seus ancestrais, havia também aqueles que hesitavam, preferindo permane-cer católicos. Outros ainda, ao retornarem ao judaísmo, já não encontravam a tradição sefardita4 da Península Ibérica.

Um exemplo é o caso de Uriel da Costa, que antes de voltar ao judaísmo che-gara a ordenar-se sacerdote católico. Depois de escrever um tratado atacando a

4 Sefarditas ou sefaraditas (do hebraico sefardi, plural sefardim) são os judeus originários da Península Ibérica, que eles chamavam de Sefarad.

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existência de uma outra vida – o que de certa forma não era tão contrário ao ju-daísmo primitivo –, foi excomungado pela sinagoga, temerosa de desagradar o Estado calvinista que a acolhia. Abalado, o rapaz suicidou-se com um tiro. Baruch Espinosa, que tinha oito anos na ocasião e assistira ao rito do herem5, mal sabia que uma sorte semelhante – a excomunhão – o aguardava.

Com efeito, a leitura de alguns comentadores judaicos da Bíblia leva-o a duvidar, entre outras coisas, da unidade autoral do Pentateuco. Percebe também discrepân-cias na cronologia bíblica. Em Maimônides, que tentara harmonizar as Escrituras e o aristotelismo, o jovem encontra sua maior inspiração humanista e antiortodoxa.

Outro que exerceria grande influência sobre ele é o seu contemporâneo Juan de Prado, um médico que questionava, entre outras coisas, o Deus pessoal da Bíblia, substituindo-o por uma divindade panteísta que se manifestava nas leis naturais.

Além disso, para o ceticismo de Espinosa foram relevantes as disputas teo-lógicas que dividiam a comunidade de Amsterdã entre os humanistas e liberais sefarditas de um lado e os dogmáticos e intransigentes asquenazitas6 do outro. O espírito desse segundo grupo foi aos poucos dominando a comunidade, constrangendo os judeus ibéricos, que em geral eram prósperos comerciantes e viviam integrados à sociedade local. O certo é que o jovem Espinosa, em meio a tantos conflitos, partiu em busca de seu próprio caminho.

Entretanto, algumas declarações suas – como a de que na Bíblia não havia nada que afirmasse a inexistência de um corpo físico de Deus – levaram a sina-goga a convocá-lo para prestar esclarecimentos. De maneira arrogante, ele de-clarou que já havia desejado romper com a congregação, mas ainda não o fizera para evitar um escândalo. A sinagoga não teve alternativa senão aplicar-lhe o herem em 27 de julho de 1656. Até que ponto chegou a rejeição a Espinosa em setores da comunidade é demonstrado por uma tentativa de assassinato de que ele foi vítima por essa época.

A excomunhão acarretou ainda outras consequências. Baruch Espinosa foi obrigado a abandonar os negócios da família, uma empresa de importação e ex-portação herdada de seu pai, falecido dois anos antes, que ele dirigia junto com um irmão. Seus biógrafos acreditam que ele tenha se dedicado, então, à medi-cina, pois seus escritos testemunham profundos conhecimentos médicos e sua biblioteca continha as principais obras de medicina de seu tempo. Além disso, a

5 Herem, derivado do hebraico haram, significa “arrancar fora”, “separar”, “amaldiçoar”, e indica que aquilo que foi amaldiçoado ou excluído, seja uma pessoa ou objeto, passa a ser proibido para uso ou contato. É traduzido por “anátema” ou “excomunhão”.6 Asquenazitas (do hebraico ashkenazi, plural ashkenazim) são os judeus oriundos da Europa central e oriental, onde era forte a influência da Cabala e de correntes místicas heterodoxas.

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herança paterna foi motivo de contenda entre ele e uma meia-irmã. Apesar de ter vencido a causa na justiça, Baruch deixou praticamente tudo para essa irmã. E assim se precipitou o definitivo afastamento entre ele e sua família.

Depois da rupturaDepois da ruptura com a sinagoga e com a família, Espinosa ligou-se a uma

irmandade ecumênica cujos membros, muitos dos quais eruditos, eram oriun-dos das mais diversas confissões religiosas. Conhecidos como colegiantes, eles praticavam uma leitura não ortodoxa da Bíblia. Muitos deles viriam a se tornar não só amigos como benfeitores do filósofo, ajudando-o nas dificuldades e na publicação de suas obras.

Precisando de tranquilidade para se dedicar ao estudo e à reflexão, Espinosa mudou-se para a pequena aldeia de Rijnsburg, nas imediações de Leyden, que era o centro dos colegiantes.

Mais tarde, entre 1663 e 1670, viveu em Voorburg, outra pacata localidade, dessa vez nas proximidades da sede do Estado holandês, a cidade de Haia, onde aumen-tam seus contatos políticos, como com Johan de Witt. Em Voorburg Espinosa traba-lhou no seu Tractatus Theologico-Politicus, que publicou em 1670. Seguindo a caute-la então em voga, essa foi uma publicação anônima, sem o crédito da autoria.

Porém, o futuro político da Holanda estava em jogo. Guilherme III, príncipe de Orange, tratava de se apoderar do Estado. Isso seria o fim de uma república re-lativamente progressista em uma Europa absolutista e Espinosa preocupava-se com essa situação: para ele, é imprescindível a participação do povo no Estado. Suas ideias, portanto, favoreciam os partidários da república, então sob o gover-no de seu amigo Johan de Witt, e contrariavam as pretensões de Guilherme de Orange que, por sua vez, contava com o apoio dos calvinistas mais ortodoxos.

Em 1670, Espinosa mudou-se para Haia, indo morar em um bairro de intelec-tuais e artistas. Ao mesmo tempo, aumentavam os ataques dos calvinistas a sua obra. De Witt foi assassinado em uma revolta popular, após a invasão francesa, em 1672. Dois anos depois, a Assembleia dos Estados Gerais – agora sob o co-mando do príncipe de Orange, aliado da ortodoxia calvinista – proibiu o Tracta-tus juntamente com outros livros considerados danosos à religião do Estado. A atmosfera era tensa.

Mesmo assim, Espinosa recusou a cátedra de filosofia que lhe foi oferecida pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha.

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Todavia, a despeito das dificuldades – inclusive de saúde –, ele não deixou de escrever. Começou a redação de uma gramática hebraica e retomou o trabalho em sua Ética, obra que não conseguiu publicar por causa da pressão da Igreja calvinista. O que foi possível foi fazer circularem algumas cópias manuscritas entre os seus amigos.

E pela própria força de suas ideias, sua fama atravessava as fronteiras. Muitos o procuravam. Entres estes, estava Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que viria a ser um dos mais proeminentes racionalistas da época.

Daqueles que o conheceram e privaram de sua amizade, é unânime o tes-temunho de que se tratava de um homem agradável e de modos distintos. Trajava-se com elegância e dizia a respeito do estereótipo dos filósofos: “Uma aparência suja e descuidada não nos transforma em sábios”. Solteiro e sem her-deiros, Baruch Espinosa morreu subitamente em 21 de fevereiro de 1677, aos 44 anos. Seguindo suas instruções, seus amigos prepararam seus inéditos para publicação.

A princípio desconhecida e atacada, a obra de Espinosa só viria a despertar real interesse depois de Kant (1724-1804), então ganhando grande popularida-de entre os românticos – incluindo Goethe e Fichte – e proporcionando ao idea-lismo alemão o elemento metafísico monista.

O panteísmo de EspinosaA filosofia de Espinosa é uma espécie de resposta ao dualismo de Descartes,

que separou matéria e mente como duas substâncias distintas. Lançada postu-mamente, em 1677, a Ethica Ordine Geométrico Demonstrata (Ética Demonstra-da Geometricamente) de Espinosa contém basicamente o seu sistema filosófico. Composta à imagem da matemática (como Descartes sugerira que deveria ser a verdadeira filosofia), cada uma das cinco partes que formam esse livro começa com uma série de definições e axiomas, dos quais deriva todo um corpo de provas, corolários e explicações.

A primeira parte é dedicada a Deus. Após apresentar as definições e axiomas pertinentes, deduz 36 proposições sobre a natureza de Deus, das quais a mais importante é sem dúvida a de número 14: “Além de Deus, nenhuma substância pode ser dada ou concebida”. Por conseguinte, tudo o que existe, sob qualquer forma, é parte de Deus. Essa proposição panteísta, segundo a qual Deus é idên-tico ao universo, entra em choque com a concepção ortodoxa de que Deus é

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transcendente e distinto da criação – daí uma das principais causas das desaven-ças de Espinosa com as autoridades religiosas.

Porque não pode ser explicada por nenhuma outra coisa, essa substância – que é ao mesmo tempo Deus e a natureza toda – é a causa de si mesma, sendo imutável e eterna. Todavia, ela pode ser concebida sob um duplo aspecto:

como um processo ativo e vital, a que Espinosa dá o nome de natura natu-rans, a natureza criadora;

como o produto passivo desse processo, natura naturata, a natureza cria-da, que é precisamente o mundo todo e tudo o que ele contém.

Entretanto, essa substância única pode apresentar diferenças – não nos seus atributos, mas naquilo que Espinosa denomina modos. Um modo, ou modifi-cação, é uma propriedade mais restrita do universo, ou seja, é a maneira como determinado atributo aparece em um nível inferior. Se a substância é eterna e imutável, os modos são mutáveis e transitórios, além de individuais. De certa forma, é uma nova maneira – o que Espinosa não nega – de apresentar a antiga dicotomia essência/acidente, com a diferença de que aquela é identificada a Deus e este ao mundo.

Ademais, de um modo ou de outro todas as coisas são animadas. Vida e mente, de um lado, ou matéria e corpo, de outro, são apenas fases – ou atributos, na no-menclatura espinosiana – da mesma substância divina. Sob esse ângulo, Deus – que é a realidade eterna por trás dos eventos do mundo – pode ser considerado como possuindo uma mente e um corpo. Nem um nem outro, isoladamente, pode ser tomado por Deus, mas os processos mentais e materiais que configu-ram a história do mundo, estes sim, são idênticos a Deus. Consequentemente, a vontade de Deus é a soma de todas as causas e todas as leis, e o intelecto divino é o conjunto de todas as mentes. Na metafísica de Espinosa, portanto, Deus não é distinto do mundo e não pode ter personalidade, vontade ou propósitos. Logo, o homem que ama a Deus não pode esperar ser amado por ele.

O ser humanoA segunda parte da Ética é dedicada ao espírito humano, isto é, ao ser humano

integral, corpo e alma. A substância, que é única, como vimos, tem uma infinida-de de atributos. Desses atributos – que são aquilo que o intelecto pode perceber da substância – só conhecemos o pensamento e a extensão. Para Espinosa, o

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corpo humano é um modo, isto é, uma modificação do atributo extensão. Da mesma maneira, o espírito humano é um modo do atributo pensamento. No entanto, no ser humano não há senão uma única entidade, vista interiormente como alma e exteriormente como corpo. Não há como isolar os dois elementos desse amálgama inextricável.

A cada estado ou mudança da alma corresponde um estado ou mudança do corpo, mas um não pode agir sobre o outro, porque não há “outro”. E o mundo inteiro é dessa forma, unificadamente duplo: onde quer que haja um processo material, externo, há outro interno, correlativo. E isso significa que o universo é um todo consciente – uma posição conhecida como pampsiquismo: da mesma forma que as emoções são consequências das mais leves alterações dos siste-mas circulatório, respiratório e digestivo, as ideias são resultado de um processo orgânico complexo. Até mesmo as sutilezas da reflexão matemática repercutem no corpo e, por outro lado, não pode acontecer nada ao corpo que não seja per-cebido, consciente ou inconscientemente, pela mente.

Depois de suprimir a distinção entre corpo e alma, Espinosa nega que exis-tam faculdades como intelecto, vontade, imaginação ou memória: “[...] a mente não é uma agência que lida com ideias, mas as próprias ideias em seu processo de concatenação. Intelecto é meramente um termo abstrato e abreviado para indicar uma série de ideias; e vontade, um termo para uma série de ações ou volições” (DURANT, 2000, p. 178).

A vontade é em primeiro lugar o pensamento de um conjunto de ações a ser prati-cado e, quando não há obstáculos, a ação em vista inevitavelmente se segue. A ilusão de uma determinada escolha brota da ignorância a respeito das causas precedentes. Assim, vontade e intelecto são uma coisa só, pois uma volição (ato de escolher ou de-cidir) é apenas uma ideia que, pela riqueza de associações – ou talvez pela ausência de ideias opostas, permaneceu na mente tempo suficiente para passar à ação.

O que é frequentemente chamado de vontade deveria ser mais apropriada-mente chamado de desejo, que é um apetite ou instinto do qual temos consci-ência. Por trás dos instintos está o esforço vago e constante de autopreserva-ção. O prazer e a dor são o resultado da satisfação ou não de um instinto, e não são as causas de nossos desejos, mas seus resultados: “[...] nós não desejamos as coisas porque elas nos dão prazer; mas elas nos dão prazer porque as deseja-mos; e nós as desejamos porque temos que desejá-las” (DURANT, 2000, p. 179). Por conseguinte, para Espinosa não existe livre-arbítrio, pois “as necessidades da sobrevivência determinam o instinto, o instinto determina o desejo, e o desejo determina o pensamento e a ação” (DURANT, 2000, p. 179).

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A moral, o sábio e a eternidadePartindo do pressuposto que a vontade de Deus e as leis da natureza são uma

única e mesma realidade, segue-se daí que todos os acontecimentos são resultan-tes de leis invariáveis. Com efeito, o mundo espinosiano é um mundo de determi-nismo, não de vontade e liberdade.

Para Baruch Espinosa, o bem é altamente subjetivo. O que é bom para de-terminada espécie (por exemplo, o leão) pode não ser para outra (a gazela). Da mesma forma, o que tomamos como mal pode não sê-lo com respeito à totali-dade do universo, mas somente em relação à nossa própria natureza. Assim, do ponto de vista da substância divina, não faz sentido a distinção entre bem e mal, já que tal distinção só diz respeito às criaturas finitas.

Daí o equívoco do modo tradicional de solucionar o problema da teodiceia, isto é, a tentativa de conciliar a experiência concreta da existência do mal com o postulado da bondade divina. Ora, Deus está além do bem e do mal. O bem e o mal estão relacionados muitas vezes a perspectivas humanas extremamente individuais (o que é bom para mim pode não ser para você), não tendo validade para um universo no qual os indivíduos são coisas ínfimas e efêmeras.

Na última parte da Ética, Espinosa expõe o que seriam para ele os distintivos do sábio: liberto das paixões e da ignorância, o sábio é aquele que realiza si-multaneamente a felicidade, a virtude e o conhecimento racional, vivendo já na eternidade – no sentido de que já atingiu o conhecimento do eterno.

Todavia, como consequência lógica do sistema espinosiano, a imortalidade da alma individual está naturalmente excluída, de modo que essa imortalidade só poderá ser entendida como a eternidade das ideias verdadeiras, que perten-cem à substância divina. Desse modo, eternos serão somente os pensamentos dos sábios, ao passo que os pensamentos das pessoas vulgares estão votados ao aniquilamento total dentro do sistema racional da substância divina.

Igreja e EstadoO problema político e religioso foi abordado por Espinosa no Tractatus The-

ologico-Politicus, um dos poucos livros do autor publicados em vida. Sua teoria política tem muito em comum com Thomas Hobbes (1588-1679), mas enquanto este desenvolve o seu sistema de maneira empírica, o filósofo holandês, como

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um bom racionalista, deduz suas conclusões de sua teoria metafísica geral. Para ele, o Estado e a Igreja são meios irracionais para o advento da racionali-dade. As obras praticadas – ou não – em vista das recompensas e dos castigos temporais e eternos, segundo as ameaças ou promessas dos clérigos e gover-nantes, dependem do temor e da esperança – os quais, para o nosso filósofo, são paixões irracionais.

No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os seres huma-nos encontravam-se em guerra contínua uns contra os outros. Tendo em vista o bem comum, eles se uniram em uma espécie de pacto social pelo qual se com-prometeram a abrir mão da violência e a auxiliarem-se mutuamente. Todavia, o pacto não é suficiente: é necessária a força para que ele se sustente, pois o direito sem a força não é eficaz. Assim, os membros do pacto confiaram a um poder central a força de que dispõem, encarregando-o de zelar pelos direitos e deveres de cada um. Só então o Estado é realmente constituído – dispondo de poder absoluto para alcançar os seus fins.

Contudo, o Estado não é o fim supremo do ser humano: o seu papel é ajudar na consecução desse fim, que é o conhecimento de Deus e uma vida segundo a razão. Portanto, se o Estado se mantiver na violência, obstaculizando o desen-volvimento racional da sociedade, cidadãos mais cedo ou mais tarde se rebela-rão contra ele e o destruirão. Porém, das ruínas desse Estado surgirá outro, mais conforme à razão. Assim, do Estado natural emerge o Estado racional, o qual limitaria os poderes de seus cidadãos apenas na medida necessária à sua finali-dade, que não é a de dominá-los pelo medo, mas antes a de libertar de tal modo o indivíduo do medo que ele possa viver e agir com total segurança. A partir dessas premissas, é secundária a forma específica de governo – monárquica, aristocrática ou democrática –, ainda que Espinosa manifeste uma preferência por esta última.

E, segundo Espinosa, um outro grande instrumento irracional a serviço da ra-cionalidade é a religião, espécie de sucedâneo popular da filosofia. Mesmo que o conteúdo da religião revelada seja racional, não o é a forma na qual ela vem embu-tida, que rebaixa o conhecimento filosófico de Deus em uma revelação mítica. Por outro lado, a ação racional – que deveria derivar do conhecimento de Deus – reduz- -se à obediência mecânica aos mandamentos. De todo modo, em seus dogmas a religião representaria, de forma tangível e simbólica para a mentalidade do povo, as verdades racionais acerca de Deus e do ser humano. Consequentemente, o que é válido nos dogmas não é a sua fórmula externa e sim o seu conteúdo moral, ou seja, “induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo

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e de todos em Deus” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 301). Assim, já estamos nos umbrais da religião racional e naturalista do Iluminismo e a léguas de distância do pensamento filosófico religioso da escolástica.

Além disso, como descendente de judeus convertidos à força, e vivendo no primeiro país europeu a gozar de uma significativa liberdade religiosa, Espinosa advoga a total separação entre Igreja e Estado.

Texto complementar

Definições(ESPINOSA, 1964, p. 117-118)

I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.

II. Diz-se que uma coisa é finita no seu gênero quando pode ser limitada por outra da mesma natureza. Por exemplo: um corpo diz-se que é finito, porque sempre podemos conceber outro que lhe seja maior. Do mesmo modo, um pensamento é limitado por outro pensamento. Porém um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.

III. Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece de conceito de outra coisa do qual deva ser formado.

IV. Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância, como constituindo a essência dela.

V. Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que existe noutra coisa por meio da qual também é concebido.

VI. Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substân-cia que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essên-cia eterna e infinita.

Explicação: digo que é absolutamente infinito, e não que é infinito no seu gênero; porquanto ao que somente é infinito no seu gênero podem negar- -se-lhe infinitos atributos, e, pelo contrário, ao que é absolutamente infinito

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pertence à respectiva essência tudo o que exprime uma essência e não en-volve qualquer negação.

VII. Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua na-tureza e por si só é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira.

VIII. Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como sequência necessária da mera definição de coisa eterna.

Explicação: Pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa, como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela dura-ção ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim.

Atividades1. A partir do texto complementar, de Baruch Espinosa, um dos representan-

tes da filosofia moderna, tente estabelecer os pontos de contato e diferença com a filosofia do período anterior – mais precisamente, a escolástica.

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2. Segundo a filiação dos pensadores às correntes da filosofia moderna, assina-le R se ele pertencer ao racionalismo, e E se pertencer ao empirismo.

Nicolas de Malebranche )(

David Hume )(

John Locke )(

Baruch Espinosa )(

René Descartes )(

Francis Bacon )(

George Berkeley )(

3. A respeito das proposições filosóficas de Espinosa sobre a doxa (opinião, sen-so comum) e a episteme (ciência), assinale se os enunciados abaixo são falsos (F) ou verdadeiros (V).

Pensar os problemas a partir da )( doxa é pensá-los à luz da filosofia.

O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade. )(

Ao saber instituído ( )( episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa).

)( Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.

)( Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada.

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Para produzir filosofia Que ensinamentos podemos extrair da vida de Baruch Espinosa para a nossa

prática pedagógica?

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O Iluminismo e o Século das Luzes

O Iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser impu-

tado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a

guia de outro. Imputável a si próprio é esta menoridade se a causa dela não depende de

um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio

intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-se da tua

própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.

Immanuel Kant

Há algo de novo debaixo do SolAs sociedades tradicionais são avessas às transformações da história

e às revoluções. Os filhos seguem a profissão dos pais, que por sua vez seguiram a de seus pais e avós; as pessoas morrem nas mesmas aldeias em que nasceram e viveram. Não há inovações nos métodos de cultivo da terra e na produção artesanal dos poucos instrumentos de uso manual de que se servem. Durante muito tempo a humanidade foi assim. É verdade que guerras e epidemias perturbaram a paz bucólica dessas gerações. É verdade também que o preconceito e a superstição causaram não poucas vítimas entre aqueles que, eventualmente, procuraram seguir outros ca-minhos. Com efeito, os horizontes eram estreitos; as estradas, poucas e pe-rigosas; as alternativas, mínimas, quando não nulas. Realmente, não havia nada de novo debaixo do Sol.

Todavia, no século XVIII algumas revoluções sacudiram profundamen-te a sociedade ocidental, desencadeando mudanças como nunca antes se tinha visto, a despeito de o germe dessas mudanças já vir atuando sub- -repticiamente nos últimos séculos: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Depois delas, o mundo nunca mais seria o mesmo. Como causa dessas duas revoluções (de modo indireto na primeira e direto na segun-da) está o Iluminismo.

1 Citação de Horácio: “tem a coragem de saber”.

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Também chamado de Ilustração ou Século das Luzes, o Iluminismo foi o mo-vimento intelectual que caracterizou o pensamento europeu no período que decorre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). O nome deriva do seu objetivo de iluminar com a razão todas as áreas da ação humana.

Aufklärung – clareamento, clarificação, iluminação – Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente “iluminado”, isto é, visível. Nada deve permanecer velado ou coberto. O conhecimento da natureza emancipa-se do mito, e o conhecimento da sociedade deve, também, fundar-se na razão. A razão esclarecida é uma razão emancipadora. (MATOS, 2006, p. 33)

Nesse sentido, são precursores do Iluminismo vários pensadores da Renas-cença que foram buscar inspiração para os seus anseios de renovação nos fi-lósofos da Antiguidade clássica. Embora não tenha nada em comum com os movimentos pré-iluministas, a Reforma Protestante (1517) também contribuiu para eles ao abalar a autoridade da Igreja romana e favorecer o nascimento do individualismo moderno ao proclamar o livre exame das Escrituras e o acesso direto do fiel a Deus. O caldo de cultura dessas transformações foi a insegurança crítica do século XVII, impactado pelas guerras religiosas, pelas novas descober-tas científicas, pelas viagens ultramarinas e seus efeitos econômicos.

A segurança e a estabilidade da Idade Média, representadas pelo geocen-trismo2 e o teocentrismo3, foram profundamente abaladas nesse período. Uma nova classe – que já despontara ao final da Idade Média, não mais ancorada na propriedade da terra e nos laços de sangue, mas na livre-iniciativa, na acumula-ção do capital e no individualismo – dá os passos decisivos para a conquista do poder, não sem a vigorosa reação das antigas classes hegemônicas. Até certo ponto, o Iluminismo é a ideologia dessa classe, a burguesia, então empenhada não apenas em fazer negócios, mas também em fazer história.

As fontes filosóficas do Iluminismo são o racionalismo inaugurado por René Des-cartes (1596-1649) e o empirismo inglês, especialmente John Locke (1632-1704).

Com o racionalismo, o Iluminismo se vê munido de um método crítico rigo-roso, eficientíssimo no seu projeto de demolir a tradição e instaurar uma época regida pelas luzes da razão.

Já com o empirismo ele se equipa de uma série de procedimentos simples, experimentais, aptos a proporem a reconstrução da realidade a partir de seus dados imediatos.

2 Antigo sistema cosmológico que considerava que o centro do sistema planetário era a Terra, em torno da qual girariam todos os demais astros.3 Doutrina segundo a qual Deus é o centro de tudo.

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Assim municiado, o Iluminismo vê no conhecimento da natureza e no seu domínio real a tarefa fundamental do ser humano. Daí a necessidade de uma descontrução radical do passado histórico, marcado pela superstição e pela ig-norância. Isso não significa a negação da história como um fato efetivo, mas a necessidade de considerá-la de um ponto de vista crítico: o passado não foi um estágio necessário da evolução da humanidade, mas um conjunto de equívocos explicáveis pela insuficiência no uso da razão.

Por esses motivos o Iluminismo ostenta um militante otimismo na capaci-dade humana de emancipação, de superação e de progresso. Fundado nessa ideia capital, ele persegue em todas as partes a realização desse ideal. Mais que um movimento estritamente filosófico – na filosofia, ele foi mais divulgador que original quando comparado com o período anterior –, o Iluminismo foi um mo-vimento cultural que abrangeu não só o pensamento filosófico e científico, mas as artes em geral, a política e o comportamento dos nobres esclarecidos e dos burgueses ascendentes:

Por esta sua simplicidade, em relação aos seus intentos vulgarizadores, o Iluminismo se espalha pela sociedade, leva ao meio do mundo os pensamentos dos filósofos que os precederam. Penetra a cultura, a literatura, a poesia; ingressa nos salões, penetra nas cortes, galga os tronos dos príncipes reformadores, até determinar, afinal, o maior movimento social, econômico, político dos tempos modernos: a Revolução Francesa. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 337)

Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo

Se foi na França que o Iluminismo atingiu a sua forma extrema e revolucio-nária, as suas origens imediatas podem ser encontradas nas ilhas britânicas, na Inglatera. Entre 1640 e 1688, a primeira revolução burguesa da história acabou com o absolutismo inglês, transferindo ao parlamento o poder efetivo e impon-do ao rei uma monarquia constitucional. Ao mesmo tempo, os filósofos empi-ristas e as novas descobertas, como as de Newton (1642-1727), abalavam as convicções medievais, abrindo caminho para a ciência moderna. De passagem pela Inglaterra, o francês Voltaire impressionou-se com essa liberdade de pensa-mento e de expressão. Absorveu as novas ideias e, por meio do livro Cartas Filo-sóficas ou Sobre os Ingleses, de 1734, divulgou-as na França, onde o Iluminismo adquiriu os aspectos com os quais ficaria mundialmente conhecido: o culto à razão, a ojeriza à tradição, o antiautoritarismo e a idealização do homem primi-tivo, em estado de natureza. Com efeito, diante das mazelas daquele tempo – as

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sangrentas guerras entre católicos e protestantes, a Inquisição, o despotismo, as estratificações feudais –, os iluministas não raro voltaram os olhos para o homem primitivo, o qual, segundo eles, vivia em estado de natureza, em liberdade e har-monia, servindo-se de uma moral e de uma religião naturais, sem dogmas ou hierarquias. “O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe” disse Jean- -Jacques Rousseau.

Mas o Iluminismo não foi necessariamente antirreligioso: ele pretendia, antes, acomodar a religião às novas ideias, o que o levou a entrar em choque com as Igrejas estabelecidas. Sua religião ideal era uma religião natural, como a dos deístas e livres-pensadores ingleses: sem dogmas, sem revelação divina, sem sacerdotes, sem mistérios, sobretudo sem crendices. Pois os iluministas se bateram principalmente contra a fé popular nos milagres e todo tipo de supers-tições. Se as leis da natureza são fixas, como dizia a física newtoniana, não pode haver milagres. De fato, o Deus iluminista é muitas vezes como o primeiro motor imóvel, o qual, uma vez criado o mundo, abstém-se de intervir nesse mundo. Mas, de certa forma, o Iluminismo deificará a razão – como a entronização da deusa razão durante a Revolução Francesa exemplificará admiravelmente.

Luzes e revoluçãoO ponto culminante do Iluminismo francês e mundial (já que o movimento,

atingindo as colônias americanas, deixava de ser apenas europeu) foi a publica-ção da Encyclopédie ou dictionnaire des sciences, des arts et des métiers (Enciclopé-dia ou dicionário das ciências, das artes e dos ofícios). Foi a primeira enciclopédia. Dirigida por D’Alembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), foi publicada entre os anos de 1751 e 1780, em 34 volumes, dedicando um espaço considerável à tecnologia – o que revela o empreendedorismo do espírito burguês que presidiu os trabalhos. Vários iluministas famosos, como Voltaire e Rousseau, colaboraram, sendo por isso chamados enciclopedistas, e assim suas ideias encontraram um poderoso meio de vulgarização e propagação.

Além disso, muitos dos filósofos do movimento eram também talentosos li-teratos e, no limiar da sociedade de massas, suas peças e romances também se tornaram um importante veículo na divulgação das novas ideias. O jornal, então nascente, e os panfletos igualmente cumpriam essa função.

Assim, aquilo que no começo do século era as ideias de um punhado de fi-lósofos, cientistas, libertinos e livres-pensadores, perto de seu último quartel já

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havia se tornado dominante em círculos influentes da burguesia e da nobreza. Em muitos países, os monarcas absolutos (assessorados por conselheiros em-bebidos de Iluminismo) realizaram reformas inspiradas pelos novos princípios: tolerância religiosa, limitação ou abolição dos privilégios feudais, modernização do processo penal, eliminação da tortura, reformas administrativas, liberalização da economia. Entre esses dirigentes, Frederico II, da Prússia (1740-1786), amigo de Voltaire; a czarina Catarina, da Rússia (1762-1796), amiga de Diderot. Em Por-tugal, não foi o monarca, mas o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal (1750-1777).

O primeiro caso de implantação radical das ideias políticas do Iluminismo deu-se no outro lado do Atlântico: em 1776, com a Revolução Americana, nascia a primeira nação inspirada diretamente nos ideais iluministas. Na Declaração da Independência dos Estados Unidos, proclamava-se que “todos os homens são criados iguais” e dotados de “direitos inalienáveis”, entre os quais “o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade”. Além disso, a Constituição Americana de 1787, foi o primeiro documento político em que se consignavam os direitos indi-viduais dos cidadãos. E a sua primeira emenda, de alguns anos depois, assegura a separação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade de culto, de expressão e de livre associação.

Todavia, a monarquia francesa mostrou-se irredutível aos ideais iluministas, não restando à burguesia alternativa senão, associando-se aos camponeses e aos trabalhadores urbanos, deflagrar o movimento revolucionário. A 26 de agosto de 1789, foi aprovada pela Assembleia Nacional Francesa a Declaração dos Di-reitos do Homem e do Cidadão, cujo primeiro artigo declara peremptoriamente que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Os privilégios feudais foram abolidos; os bens eclesiásticos, confiscados; Igreja e Estado foram sepa-rados e em 1791 foi aprovada uma constituição que consagra os princípios de Montesquieu sobre a separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). A Revolução Francesa tornou-se um marco de um novo ordenamento socioeco-nômico, tendo como classe dominante a burguesia, que desobstruiu o caminho para o desenvolvimento do capitalismo e consolidou os ideais liberais4.

Mais tarde, com as guerras napoleônicas (1804-1815), muitos dos princípios revolucionários foram aplicados às outras nações. Mesmo com a restauração conservadora posterior à derrota de Napoleão, o novo regime burguês, muitas vezes associado à velha aristocracia, estabeleceu-se paulatinamente em toda a Europa.

4 O ano do início da Revolução Francesa (1789) é também considerado pelos historiadores como o marco inicial da Idade Contemporânea.

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A independência das nações da América Latina, no começo do século XIX, foi outro fruto dos ideais iluministas.

Finalmente, aquilo que começara nos gabinetes de estudo, nos salões e nos cafés, às vezes como a especulação diletante de alguns filósofos, convertera-se – no curso de um século e meio – em uma das maiores mudanças sociais, eco-nômicas e culturais já ocorridas na história da humanidade. Com efeito, a razão tem efeitos revolucionários.

A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica

Mas os efeitos revolucionários não ficaram restritos aos níveis político e jurídi-co. Outra revolução aconteceu simultaneamente, transformando profundamente as bases econômicas sobre as quais se assentava a sociedade. O milenar sustentá-culo da produção, de matriz agroartesanal, transferiu-se para outro ponto, predo-minantemente urbano-industrial, ao passo que o comércio – que já emergira das cinzas no final da Idade Média, levando em seus ombros um novo protagonista social, a burguesia – fazia circular com mais agilidade os bens produzidos.

A Grã-Bretanha – o país do empirismo, do liberalismo econômico e de sua versão mais radical, o utilitarismo – foi o palco em que se processou essa revolu-ção que com justiça recebeu o apodo de industrial.

Uma série de fatores contribuiu para isso: um inédito excedente de capital, o acesso a grandes reservas de recursos naturais – sobretudo nas colônias de seu império global – e o surgimento de novas técnicas produtivas. Com efeito, a ciência e a técnica conquistavam os instrumentos, capazes de multiplicar as forças produtivas em uma proporção nunca antes imaginada:

De fato, basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor usava-se a energia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que houvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dos tempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram da Revolução Industrial. (ARANHA, 1986, p. 180)

Em pouco tempo as antigas oficinas de artesãos deram lugar a fábricas provi-das com as máquinas recém-inventadas – as quais produziam um maior volume de bens, com menos dispêndio de tempo e, proporcionalmente, de mão-de- -obra, e a um preço bem mais vantajoso, atendendo à crescente demanda do mercado nacional e internacional.

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A partir de 1830, as ferrovias e os navios a vapor permitiram a criação de uma rede de comunicação e transportes mais ampla e eficiente, interligando os cen-tros industriais, as fontes de matéria-prima e os mercados consumidores. Com isso, agilizava-se o processo de formação de um gigantesco mercado mundial.

Junto a um vertiginoso aumento da população, ocorreu o êxodo rural, fazendo as cidades incharem com trabalhadores em busca de emprego nas novas fábricas.

A partir da metade do século XIX, a Revolução Industrial espalhou-se por outros países, configurando aos poucos o mundo – com seus maravilhosos avanços técnicos e suas não menos chocantes contradições internas – como nós conhecemos hoje.

Nomes que brilhamIdeologia da burguesia ascendente e progressista em luta contra o obscu-

rantismo da monarquia absolutista e da aristocracia feudal, era natural que o Iluminismo acompanhasse a expansão daquela classe, manifestando-se primei-ramente na Grã-Bretanha – o primeiro país em que ela efetivamente galgou o poder.

Nesse sentido, filósofos empiristas como George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776) são os representantes máximos do Iluminismo britâ-nico, enquanto economistas como Adam Smith (1723-1790, autor do clássico A Riqueza das Nações, publicado em 1776), James Mill (1773-1836) e David Ricardo (1792-1823) construíram o ideário do liberalismo clássico, que até hoje, por meio de várias reformulações (que no entanto não tocam em seu núcleo básico – a livre iniciativa e o Estado mínimo), constitui a ideologia da classe burguesa.

Todavia, o nome que mais influência exerceu no Iluminismo francês foi o do já citado John Locke, que em sua obra mais importante, Ensaio Acerca do Enten-dimento Humano (1690) formulou as bases do empirismo moderno. Além disso, em Epístola Sobre a Tolerância (1689) ele defendeu a tolerância religiosa e em Alguns Pensamentos Sobre a Educação (1693) desenvolveu uma pedagogia em-pirista e liberal.

Não há dúvida, porém, que o nome mais célebre do Iluminismo é o de Voltai-re (1694-1778), pseudônimo de François-Marie Arouet, que pontificou soberano ao longo do Século das Luzes, chamado inclusive “o século de Voltaire”. Escritor engajado, militante do Iluminismo, serviu-se de todos os meios ao seu alcance

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(teatro, romances, poemas, ensaios, correspondência ou panfletos) para divulgar suas ideias. Correspondeu-se com príncipes e reis, entre eles Catarina da Rússia e Frederico II, da Prússia, de quem foi conselheiro por dois anos, vivendo em Potsdam.

Voltaire foi um ardente e destemido defensor da liberdade de culto, de pen-samento e de expressão, sobre a primeira publicando o seu Tratado Sobre a To-lerância (1763). O romance Cândido ou o Otimismo, escrito em três dias é, para muitos, a sua obra-prima, uma amostra de seu talento como escritor, marcado pela mordacidade e a ironia. Em uma época de confiante otimismo – e o Ilumi-nismo foi extremamente otimista quanto aos poderes emancipadores da razão –, esse livro foi uma crítica áspera sobre a ingenuidade muitas vezes subjacente ao otimismo. Por duas vezes preso na temível Bastilha, exilado, caluniado, persegui-do, ouvido, adorado, aclamado, idolatrado, Voltaire, em sua longa e aventurosa vida, simbolizou a liberdade pregada pelos iluministas e conquistada mais tarde pelos burgueses na Revolução Francesa. Quando a Revolução triunfou, os seus restos mortais foram transladados para o Panteão, sendo acompanhados por uma multidão de centenas de milhares de pessoas. Até Victor Hugo, no século seguinte, nenhum outro homem de letras seria tão célebre.

Outro grande iluminista que bebeu suas ideias iniciais nos vizinhos do outro lado da Mancha foi o barão de Montesquieu (1689-1643), título nobiliárquico de Charles Louis de Secondat, outro insigne elaborador do liberalismo clássico. Em O Espírito das Leis (1748), sua obra mais importante, ele estuda as diversas formas de governo – o despotismo, a monarquia e a república – dando especial relevo à monarquia parlamentar inglesa. É nesse livro que o autor desenvolve a clássica teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a fim de salvaguardar as liberdades individuais. Suas ideias influenciaram os líderes da Independência Americana e a primeira fase da Revolução Francesa. Outras obras importantes de Montesquieu são Cartas Persas (1721, um relato imaginário no qual dois persas de passagem por Paris criticam os costumes e abusos da França absolutista) e o monumental Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Ro-manos e da sua Decadência (1734-1748).

E se, a despeito de todas as suas críticas à Igreja, Voltaire admite uma religião natural, com sanções ultraterrenas, a corrente iluminista liderada por Claude Adriens Helvetius (1715-1771) aproxima-se do ateísmo. Seguidor de John Locke, ele considerava que toda a atividade intelectual se assenta sobre sensações. Hel-vetius foi precursor do utilitarismo, afirmando que o interesse próprio é o único motivo da ação humana.

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Mas caberia a Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), um sacerdote católi-co, desenvolver com o Tratado das Sensações (1754), a doutrina do sensualismo. No entanto, seria o franco-germânico Dietrich Holbach (1723-1789) quem se de-dicaria a um materialismo ateu militante.

Todos esses foram enciclopedistas, colaborando com Diderot e D’Alambert na redação da grande Enciclopédia. Todavia, todos, inclusive Voltaire, ficariam, com o passar do tempo, à sombra da figura singular, atormentada e genial de Jean- -Jacques Rousseau (1712-1778), de origem suíça. Ao mesmo tempo fruto do Século das Luzes e crítico feroz da tradição, de certa forma Rousseau representa a supe-ração do Iluminismo, enveredando por um caminho de desconfiança da razão e retorno da emoção. A sociedade e a civilização – afirma ele – corrompem o ser humano, sendo preciso voltar à natureza, à liberdade e à fraternidade originais.

Suas obras políticas fundamentais são o Discurso Sobre a Origem da Desigualda-de dos Homens (1753) e o Contrato Social (1762). Segundo ele, de um estado de na-tureza ideal surge – em virtude de um contrato social – o Estado como escravidão. Esse Estado tirânico deve ser substituído por um outro que tenha por base a liber-dade e no qual a vontade geral dos cidadãos encontrem a sua livre expressão.

Em Emílio (1762), Rousseau imagina uma educação igualmente natural, em que o aluno não seja oprimido pelo professor, mas antes encontre espaço para o livre desenvolvimento de suas potencialidades.

Rousseau é considerado precursor dos movimentos socialistas, sendo um dos primeiros a atacar a propriedade privada. Com ele, assistimos ao anúncio do ocaso da era das luzes e o prenúncio do romantismo, no qual não mais a razão e sim o sen-timento e às vezes o sonho é que darão as cartas. Mas aí já estamos no século XIX.

Findo o Século da Luzes, seus efeitos continuaram a agir na humanidade. A in-dependência das colônias da América Latina é consequência deles. A Maçonaria, por um lado, que teve grande influência nessa independência, e os movimentos socialistas, por outro, são extensões dos ideais do Iluminismo a propagarem- -se bem depois de sua época. Praticamente todos os iluministas foram maçons e estavam ligados à burguesia. Os movimentos socialistas, que se colocam do lado do proletariado – a classe que nasceu à sombra e sob o tacão da burguesia – situam-se no outro lado do espectro político. Ambos são os descendentes, por assim dizer, dos girondinos e dos jacobinos da Revolução Francesa5.5 Durante a Revolução Francesa, os girondinos (nome derivado da região francesa da Gironda, de onde provinham seus principais representantes) eram um grupo político moderado, chefiado por Jacques-Pierre Brissot (1754-1793), constituído pela alta burguesia. Fazia oposição aos jacobinos (que receberam esse nome por se reunirem inicialmente no Convento de São Tiago, Jacobus em latim), que eram liderados por Robespierre (1758-1794) e defendiam mudanças mais radicais, apoiados pela baixa burguesia e pela plebe. Os girondinos sentavam-se à direita no recinto da Assem-bleia Nacional, enquanto os jacobinos sentavam-se à esquerda, e dessas posições surgiu a tradição de se identificar os termos direita e esquerda com conservadores e progressistas, respectivamente.

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Antes de encerrarmos esta seção com os luminares do Iluminismo é bom men-cionar os nomes de Christian Wolff (1679-1754) e Gotthold Lessing (1729-1781) como representantes do movimento na Alemanha. Nos demais países, não se des-tacaram filósofos de envergadura e repercussão internacional. Países como Por-tugal e Espanha, devido ao peso da Contrarreforma e o medo da Inquisição, não chegaram a desenvolver o Iluminismo – no máximo, um sucedâneo muito tímido ou mitigado.

O legado iluministaÉ difícil falar do legado iluminista em nossa sociedade já que, ao se olhar em

volta, tudo parece nos remeter a ele: a república, as constituições das nações, a democracia, a divisão dos poderes, os direitos civis, a tecnologia, o conceito de educação, os parâmetros curriculares, os ideais de justiça, igualdade e liberdade etc. Com efeito, a atual classe detentora do poder continua sendo a burguesia, que assumiu o poder em parte devido à militância iluminista. Mesmo o socia-lismo, que no século XX foi a ideologia de um bom número de países e chegou por um momento a ameaçar a hegemonia burguesa, tem a sua origem, como vimos, nos grupos mais à esquerda da Revolução Francesa – portanto, também faz parte do legado iluminista.

É verdade que depois de a burguesia ter assumido o poder e a razão ter sido implantada como princípio norteador da sociedade, as coisas não se revelaram assim tão maravilhosas. Também é verdade que o século XX, com duas guerras mundiais e a experiência do totalitarismo (Stalin e Hitler fariam enrubescer os déspotas do século XVIII), retrocedeu muitas vezes à barbárie – e essa barbárie não significa uma volta ao estado de natureza, mas o recurso à razão mais sofis-ticada (a razão tecnológica) para os objetivos mais irracionais, como a limpeza étnica, realizada em larga escala e mais de uma vez no século que passou. De fato, percebemos que a razão nem sempre leva à emancipação, pois pode colo-car-se a serviço dos maiores obscurantismos. Por outro lado, a sociedade atual, resultado das revoluções iluministas, não parece necessariamente um ambiente de liberdade e livre pesquisa como sonharam os filósofos do Século das Luzes: em muitas ocasiões, assemelha-se mais a uma grande feira em que tudo está à venda, inclusive as ideias. Diante disso, não poucos se apressaram a declarar o fracasso do projeto iluminista. Todavia, é de se perguntar se ele realmente fra-cassou ou se o “fracasso” que testemunhamos não é porque o seu ideário não foi plenamente aplicado ou foi abandonado em alguma parte do caminho.

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Texto complementar

Dois tipos de desigualdade(ROUSSEAU, 1978, p. 235-260)

Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabeleci-da ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consis-te nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda, por fazerem-se obedecer por eles.

Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a resposta seria enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que procuram a verdade.

De que se trata, pois, precisamente neste discurso? De assinalar, no pro-gresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, sub-meteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranquilida-de imaginária pelo preço de uma felicidade real.

[...]

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cer-cado um terreno, lembrou-se de dizer que isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassí-nios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arran-cando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que

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os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascido suces-sivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza.

Atividades1. Segundo Olgária Matos, “Aufklärung – clareamento, clarificação, iluminação –

Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente ‘iluminado’”. Discuta com os colegas as razões e as implicações dessa metáfora de “iluminação” referente ao Iluminismo e depois registre suas conclusões.

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2. Como podemos levar o ideal do Iluminismo ao nosso trabalho de educadores?

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3. Assinale com V (verdadeiro) os itens que foram precursores do Iluminismo e com F (falso) aqueles que não foram – ou porque não o influenciaram de modo direto ou porque são seus efeitos.

Descobertas ultramarinas. )(

Racionalismo. )(

Revolução Francesa. )(

Empirismo Inglês. )(

Escolástica. )(

Máquina a vapor. )(

Revolução Inglesa. )(

Para produzir filosofiaA República foi proclamada no Brasil tendo como base os ideais do IIuminis-

mo. Desde lá, todas as nossas constituições inspiraram-se ora mais, ora menos, nos mesmos ideais, sobretudo a última, a “Constituição Cidadã” de 1988. No en-tanto, em nosso país, não raro os direitos dos cidadãos são violados; não per-cebemos que entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – reina aquela independência prescrita por Montesquieu. O que fazer para que os ideais iluministas venham permear cada vez mais nossos valores?

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu

estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.

Immanuel Kant

Na encruzilhada da razãoDo encontro do empirismo inglês com o racionalismo francês nasceu,

como síntese prática e divulgadora, o Iluminismo, o qual, por meio de duas revoluções (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial), é a parteira da sociedade contemporânea. No entanto, vamos encontrar a síntese filosó-fica do racionalismo e do empirismo no criticismo, que está na origem do idealismo alemão e, por força deste, do pensamento contemporâneo.

Para compreender as curvas e voltas que o curso da filosofia descreveu até o alvorecer da Idade Contemporânea (iniciada em 1789) e vislumbrar os caminhos que suas correntes seguiriam desde então, é inelutável nos depararmos com Kant, o fundador do criticismo.

O pensamento moderno – após a Renascença – pode-se, assim, comparar a um grande X, representando Kant precisamente o centro: os dois braços anteriores representa-riam o empirismo e o racionalismo, que convergem para Kant; os dois braços posterio-res representariam o idealismo e o positivismo, que dependem de Kant. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 359)

Mas o que é o criticismo?

Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investiga-ção crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a filosofia.

Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que se propõe uma investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.

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Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão me-dieval atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?

Com efeito, no decorrer dos séculos XVII e XVIII foram duas as respostas aventadas.

De um lado, com o racionalismo (que teve o seu início na França, com René Descartes – 1596-1650), alguns filósofos responderam que a razão é a única fonte de conhecimento válido.

Do outro lado – inclusive do outro lado do Canal da Mancha, isto é, na In-glaterra –, situam-se os que, como os britânicos Roger Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), defenderam que o conhecimento autêntico procede da experiência sensível. Daí o nome de empirismo dado a esta corrente, pois a palavra empeiría, em grego, significa “experiência”.

Ao embate entre empirismo e racionalismo deve-se acrescentar o prodigioso desenvolvimento que as ciências naturais experimentaram na época, notada-mente com a nova física formulada por Isaac Newton. A propósito, o empirismo foi fundamental para o advento da revolução científica na medida em que esta-beleceu as bases de experimentação e controle sobre as quais pode se alçar a ciência moderna.

E se, como dissemos, o Iluminismo soube propagar os problemas e respostas dessas duas correntes por toda a Europa sem no entanto lograr uma síntese sa-tisfatória, seria com Kant que essa síntese seria forjada. E essa solução, a despeito dos hábitos pacatos de seu formulador, revolucionaria o pensamento ocidental.

O filósofo de KönigsbergImmanuel Kant nasceu em Königsberg, uma pacata cidade da Prússia Orien-

tal1, no dia 22 de abril de 1724. Seu pai era um modesto artesão que trabalhava com couro, fabricava selas, e sua mãe, que era de origem propriamente alemã, não teve estudo, mas foi mulher admirada por seu caráter e pelos dotes de uma inteligência natural. A família Kant pertencia ao ramo pietista da Igreja Luterana,

1 Fundada no século XIII pelos Cavaleiros Teutônicos (ordem religiosa militar, como os Templários, que lutou nas Cruzadas), Königsberg já foi capital da Prússia, já pertenceu à Polônia e, desde 1946 – agora com o nome de Kaliningrado, pertence à Rússia, como um enclave situado entre a Lituânia e a Polônia.

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uma corrente que reagia ao dogmatismo oficial realçando a experiência pessoal da fé, uma vida simples e uma moral rigorosa. Immanuel foi o quarto de 11 filhos (contudo, o primeiro que sobreviveu) e estudou no Colégio Fredericiano, estabe-lecimento de espírito pietista onde permaneceu por oito anos e meio.

Em 1740, aos dezesseis anos de idade, ele se matriculou na universidade de sua cidade natal e por cinco anos permaneceu nessa instituição. Assistiu a cursos de Teologia e conta-se que até pregou alguns sermões. Mas sentiu-se atraído pela matemática e pela física. Começou a ler os trabalhos de Newton auxiliado por um amigo que era um entusiasta da ciência deste físico inglês e também havia estudado com Christian Wolff, um sistematizador da filosofia racionalista.

Todavia, aos 21 anos o jovem Kant foi obrigado a ganhar a vida por causa da morte de seu pai, suspendeu os estudos e pôs-se a trabalhar como professor particular, atividade em que foi bem-sucedido e que lhe permitiu conviver com o melhor da sociedade de seu tempo. Servindo a uma família na cidade próxima de Arnsdorf, foi esse o único período em que morou fora de Königsberg. Final-mente, em 1755, Kant pôde completar os estudos, obtendo o grau de doutor, depois do que, na mesma Universidade de Königsberg, assumiu a posição de livre-docente e lecionou por 15 anos. Ao contrário do estilo denso e pomposo de seus livros, suas aulas eram dinâmicas e alegres.

Foram anos de muita leitura, nos quais não se suspeitava que por trás daque-le professorzinho que mal passava de um metro e meio de altura escondia-se um gigante do pensamento. Com efeito, após um primeiro momento de interesse pelas ciências naturais, sobretudo pela física newtoniana, Kant mergulhou na filosofia racionalista, sobretudo a de Leibniz e Wolff. Todavia, após o contato com os empiristas ingleses – Locke e principalmente Hume –, ele foi despertado do sono dogmático, como chamou o racionalismo.

Outro autor que então exerceu grande influência sobre Kant foi Rousseau, com sua radical desconfiança da razão. Como consequência, Kant passou por uma profunda crise, que resultou em uma suspeita em relação aos alcances da metafísica racionalista. Expressão dessa fase é o livro Sobre as Formas e Princí-pios do Mundo Sensível e Inteligível (1770), em que a metafísica é comparada aos sonhos de Swedenborg (1688-1772), um místico sueco daquela época. No mesmo ano de 1770, entretanto, ele foi promovido à cátedra de lógica e metafí-sica da universidade (da qual só se aposentaria, por motivos de saúde, em 1796). Desse modo se encerra o período conhecido como pré-crítico no pensamento kantiano.

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O período crítico anuncia-se com a publicação da Crítica da Razão Pura (1781), obra na qual Kant vinha se dedicando já por dez anos e que marcou uma guina-da decisiva não só no seu pensamento como no pensamento ocidental depois dele, por meio de uma explanação rigorosa dos alcances e os limites da razão.

Outras grandes obras suas são:

Prolegômenos a toda Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência (1783), em que aborda o mesmo problema com vistas exclusivas à metafísica;

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), que é seu primeiro tra-balho sobre a moral;

Crítica da Razão Prática (1788), em que o problema moral é nova e ampla-mente abordado;

Crítica do Juízo (1790), em que se debruça entre outras coisa sobre a esté-tica; e

A Religião nos Limites da Simples Razão (1793), em que é exposto o cristianis-mo sob uma óptica racional, o que lhe acarretou uma proibição do governo prussiano de lecionar ou escrever sobre temas religiosos – sem vocação para Sócrates, Kant acatou o “silêncio obsequioso” até a morte do monarca e então fez publicar um resumo dos seus pontos de vista religiosos.

Immanuel Kant seguiu sempre uma disciplina rigorosa, tanto na vida quanto na sua investigação filosófica. Não casou, não teve filhos, nunca viajou além de sua Prússia natal – apesar de ter dado ótimas aulas de geografia. Sua vida trans-correu da maneira mais regular possível:

Acordar, tomar café, escrever, fazer palestras, jantar, caminhar, diz Heine, tudo tinha a sua hora marcada. E quando Immanuel Kant, com o seu casaco cinza, bengala na mão, aparecia na porta de casa e se dirigia à pequena alameda de tílias que ainda é chamada de ‘O passeio do Filósofo’, os vizinhos sabiam que eram exatamente 15h30. (DURANT, 2000, p. 254)

Conta-se que somente duas vezes ele não saiu no seu tradicional passeio: quando recebeu os jornais com a notícia da queda da Bastilha (Kant acompa-nhou com interesse a Revolução Francesa, embora tenha se desapontado com os seus rumos) e quando lia o Emílio (só mesmo Rousseau para sacudir a rotina do austero professor!).

Mas Kant não era má companhia não: “foi um brilhante conversador e a sua pre-sença em reuniões sociais foi sempre acolhida com agrado” (RUSSELL, 2002, p. 341).

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Talvez seja graças à regularidade de seus costumes que tenha vivido muito, não obstante uma compleição frágil. No entanto, após um declínio gradual em que foi pouco a pouco perdendo as suas faculdades – o que foi muito doloroso tanto para ele quanto para seus amigos –, Immanuel Kant faleceu, octogenário, em Königsberg, a 12 de fevereiro de 1804. O empenho com o qual ocupou toda a sua vida pode ser resumido em sua famosa frase: “Não se pode aprender a filo-sofia; somente se pode aprender a filosofar.”

Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantianaNão obstante a vida regrada e provinciana, Kant viveu profundamente os

dilemas e angústias de seu tempo. Súdito de uma monarquia absoluta, ele al-mejava a liberdade da república. De formação pietista, estava ciente dos proble-mas decorrentes da não-separação entre Igreja e Estado. Mas, sobretudo como filósofo, Kant vivenciou o embate entre racionalismo, empirismo e física newto-niana. E desse embate produziu uma nova e grandiosa filosofia: “Na confluência dessas três grandes correntes, situou-se Kant; e dessas três grandes correntes tirou os elementos fundamentais para poder estabelecer de um modo eficaz [...] o problema da teoria do conhecimento e, em seguida, o problema da metafísica” (MORENTE, 1967, p. 218). Portanto, o criticismo kantiano pode ser caracterizado como uma espécie de terceira via entre o dogmatismo dos racionalistas e o ce-ticismo dos empiristas, como se pode perceber no segundo prefácio à Crítica da Razão Pura:

A crítica opõe-se [...] ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico) apoiado em princípios, como os que a razão desde há muito aplica, sem se informar como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade. Esta oposição da crítica ao dogmatismo não favorece, pois, de modo algum, a superficialidade palavrosa que toma a despropósito o nome de popularidade, nem ainda menos o cepticismo que condena, sumariamente, toda a metafísica. A crítica é antes a necessária preparação para o estabelecimento de uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular). (KANT, 1985, p. 23-31)

Em outro momento, Kant define a filosofia como “a ciência da relação de todo conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana”. Nesse sentido, a filosofia deve responder a quatro questões:

O que posso saber?

O que devo fazer?

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O que posso esperar?

O que é o ser humano?

Essas questões são discutidas, respectivamente, pela metafísica, pela moral, pela religião e pela antropologia. A última pergunta é a mais importante e sintetiza as outras três. No entanto, nosso dever e nosso destino somente podem ser de-terminados depois de um profundo estudo das possibilidades do conhecimento humano, o que nos leva à primeira pergunta. E é por isso que a primeira e principal obra que contém o pensamento sistematizado de Kant é a Crítica da Razão Pura.

A razão no tribunalPara David Hume (a quem Kant atribui o mérito de tê-lo despertado do “sono

dogmático”), não se pode alcançar um saber autêntico, já que todo o saber humano é apenas provável, sempre restrito aos limites da experiência: além dos dados palpáveis dos sentidos, a aventura pelos caminhos metafísicos jamais levaria a um conhecimento seguro, sequer plausível. Embora impactado pelo pensador inglês, Kant discorda desse posicionamento, pois para ele existe sim um saber fidedigno, que é a ciência matemática da natureza, isto é, a nova física de Newton.

Além disso, não se pode negar que, se os resultados da metafísica são inve-rificáveis, eles pelo menos são o testemunho de um esforço investigativo do ser humano para transcender as balizas da experiência.

De fato, se por um lado, a atitude crítica pode negar a possibilidade de re-solver certos problemas, por outro não pode deixar de enfrentar o desafio de explicar a gênese desses mesmos problemas.

Assim, Kant institui o tribunal que, julgando as demandas da razão, garante suas pretensões legítimas enquanto afasta as ilegítimas. Esse tribunal é a Crítica da Razão Pura, ou seja, uma autocrítica geral da razão no que diz respeito a todos os conhecimentos a que se pode aspirar independentemente da experiência, um exame do conhecimento puramente racional, único meio de evitar a queda no dogmatismo especulativo. Cabe a essa crítica decidir, também, sobre a possi-bilidade ou a impossibilidade da metafísica, bem como, caso opte pela primeira, sobre suas fontes, sua extensão e seus limites.

Com efeito, Kant, ao contrário dos empiristas, é partidário da postura de que é possível a aquisição de conhecimentos extrínsecos à experiência. Na verdade,

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todo o conhecimento universal e necessário, para ele, é independente da ex-periência, uma vez que a experiência não pode dar valor universal e necessário aos conhecimentos que dela derivam. No entanto, independente não significa precedente, anterior: todo o conhecimento começa com a experiência, mas pode não derivar totalmente dela. Pode, por exemplo, ser uma composição das im-pressões derivadas da experiência com aquilo que é acrescentado, a partir do estímulo inicial, pela nossa faculdade de conhecer.

Aqui aparece uma distinção fundamental em Kant, que se dá entre a forma e a matéria do conhecimento. A matéria dos nossos conhecimentos é composta pelas próprias coisas, ao passo que a forma somos nós mesmos. É necessário distinguir no conhecimento uma matéria, constituída pela ordem e a unidade que a nossa faculdade cognitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura contêm verdades universais e necessárias – portanto, independentes da experi-ência. Elas contêm juízos sintéticos a priori:

sintéticos no sentido de que, nelas, o predicado acrescenta algo de novo ao sujeito;

a priori porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar.

O primeiro problema com que se defronta uma crítica da razão pura é ver como são possíveis os juízos sintéticos a priori, ou seja, como é possível uma matemá-tica e uma física pura. O desafio consiste em alcançar e realizar a possibilidade fundamentadora da ciência. Tal possibilidade jamais pode ser dada pela matéria do conhecimento, constituída pela variedade sem ordem e sem forma das impres-sões sensíveis. Deve ser, pois, reconhecida na forma do conhecimento, isto é, nos elementos ou funções a priori que dão ordem e unidade a essas impressões.

Assim, a crítica tem um duplo objetivo: descobrir os elementos formais do conhecimento e determinar o uso possível dos elementos a priori. Mesmo se mantendo nos limites da experiência, a investigação da razão estará em condi-ções de justificar a própria experiência na sua totalidade e, portanto, também os conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. Além disso, é forçoso determinar o uso possível dos elementos a priori do conheci-mento, isto é, o método do próprio conhecimento. Como vimos, o conhecimen-to humano é uma composição ou síntese de dois elementos:

um formal ou a priori;

o outro, material ou empírico, que é o seu objeto.

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O resultado nascido desse conceito é o fenômeno. Ora, o entendimento humano não intui, mas pensa; não cria, mas unifica – e portanto deve ser-lhe dado, por outra fonte, o objeto do pensar, o múltiplo a unificar. Essa fonte é a sensibilidade. Mas a própria sensibilidade é basicamente passividade: aquilo que ela possui é recebido. Isso significa que o objeto do conhecimento não é a coisa em si, uma essência, uma substância, e sim aquilo que aparece, ou seja, o fenômeno. Nós percebemos o fenômeno pela experiência, mas o objeto somen-te é real por sua relação com o sujeito que conhece.

Assim chegamos ao cerne da teoria de Kant, a sua revolução copernicana: tal como Nicolau Copérnico, que demonstrou que a Terra girava em torno do Sol, Kant comprovou que os objetos dependem do sujeito cognoscente. Dessa ma-neira, em termos kantianos não é o sujeito que se adapta aos objetos da realida-de, mas a realidade que se modela a partir da percepção do sujeito. Responden-do aos empiristas, Kant mostrou que não é o sujeito que gira em torno do objeto, e sim o objeto que gira em torno do sujeito.

Isso é possível porque apenas o sujeito do conhecimento é capaz de síntese, somente ele tem a faculdade do entendimento. Em última instância, o conheci-mento somente se torna possível porque existem as formas a priori da sensibili-dade – que são, para Kant, o tempo e o espaço.

Quanto ao espaço, se o conhecimento é relação (do sujeito com o objeto), não podemos conhecer as coisas “em si”, mas “para nós”. A geometria pura, quando aplicada, coincide totalmente com a experiência, porque o espaço é a forma a priori da sensibilidade externa.

O mesmo se dá quanto ao tempo. Podemos concebê-lo sem acontecimentos, internos ou externos, mas não podemos conceber os acontecimentos fora do tempo. Objeto da intuição, o tempo não pode ser conceito. Forma vazia, intuição pura, o tempo torna possíveis, por exemplo, os juízos a priori na aritmética, cujas operações (soma, subtração etc.) ocorrem sucessivamente e, assim, o pressupõe. Logo, o tempo é também a forma a priori da sensibilidade, não apenas externa como também interna.

Além disso, existem ainda os conceitos a priori do entendimento, que são as categorias, catalogadas em número de 12 (conforme quadro a seguir). Esses con-ceitos puros do entendimento é que tornam possível qualquer experiência.

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Juízos e categorias

Critério Juízos Categorias

QuantidadeUniversaisParticularesSingulares

UnidadesPluralidadeTotalidade

QualidadeAfirmativosNegativosIndefinidos

RealidadeNegaçãoLimitação

RelaçãoCategóricosHipotéticosDisjuntivos

Substância e acidenteCasualidade e dependênciaComunidade e interação

ModalidadeProblemáticosAssertóricosApodíticos

Possibilidade e impossibilidadeExistência e não-existênciaNecessidade e contingência

Assim, temos os juízos analíticos e os juízos sintéticos:

analíticos são aqueles juízos de caráter lógico, em que o predicado está contido no sujeito, como, por exemplo, “O triângulo é uma figura de três lados” – segundo Kant, esses juízos não ampliam nossos conhecimentos;

sintéticos são aqueles juízos cujo predicado acrescenta algo ao sujeito (como por exemplo, “O calor dilata os corpos”), pois dependem da experi-ência; o espaço e o tempo são condições a priori de possibilidade da intui-ção empírica.

Portanto, segundo a Crítica da Razão Pura, não há conhecimento de fato sem unir as formas a priori com o conteúdo a posteriori. A experiência fornece a maté-ria e a forma é a priori. A experiência é a ocasião que une forma e matéria.

O engano dos inatistas foi dizer que o conteúdo ou a matéria são inatos. Ora, não existem ideias inatas.

O engano dos empiristas, por sua vez, foi supor que a estrutura da razão é adquirida pela experiência.

Entretanto, sem a forma da sensibilidade e do entendimento, não há conhe-cimento verdadeiro.

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O imperativo categóricoTendo limpado o terreno na área da razão pura, Kant voltou-se também para a

razão prática. A razão é pura, isto é, teórica e especulativa, quando se refere aos prin-cípios a priori do conhecimento, e é pratica quando se refere aos princípios a priori da ação. Assim, Kant estende o seu sistema à área da moral e da ética. Os principais escritos sobre estes temas aparecem na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), na Crítica da Razão Prática (1788) e na Metafísica dos Costumes (1797).

E se para Kant a questão da moralidade e da liberdade não são objetos da razão pura, mas sim da razão prática, a ética é puramente racional e universal: não está restrita a preceitos de caráter pessoal ou subjetivos nem submetida a hábitos e práticas socioculturais. E, uma vez que os princípios morais resultam da razão prática e se aplicam a todos os indivíduos, independentemente das circunstâncias, a ética kantiana é de caráter prescritivo.

O objetivo de Kant é, com base apenas na razão, estabelecer princípios uni-versais e imutáveis para a moral. Coerentemente com o que foi definido na Crí-tica da Razão Pura, ele assinala que os princípios morais são a priori – vale dizer, não dependem da experiência para serem prescritos. Ademais, no ser humano a vontade não é capaz de determinar sempre a ação, porque é influenciada não apenas por si mesma, mas também pelas inclinações dos sentidos na medida em que eles influenciam o seu agir. Nesse caso, as ações que a lei moral prescre-ve como necessárias constituem uma obrigação, o que revela a existência de um imperativo que se expressa como um dever.

Os imperativos podem ser:

hipotéticos – quando estão sujeitos a uma condição (deves estudar para passar nos exames);

categóricos – quando é incondicional ou absoluto (não matarás).

Além disso, os imperativos hipotéticos apontam uma ação boa como meio para algum fim – em outras palavras, são os conselhos e as regras da destreza. Assim, economizar é bom para se garantir uma velhice tranquila.

Os imperativos categóricos, por seu turno, são as leis práticas, são aqueles que, ao contrário dos primeiros, estabelecem uma ação como boa em si mesma, ainda que não seja causa de nenhum resultado: não mentir é uma ação boa em si mesma, mesmo que nenhum mal venha decorrer do fato de mentir.

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Os imperativos hipotéticos são possíveis porque quem ordena um fim ordena também os meios necessários para se alcançar esse fim.

Já os imperativos categóricos são possíveis na medida em que representam juízos a priori.

Os imperativos hipotéticos não podem fundamentar a moral porque não são universais. Apenas os imperativos categóricos preenchem essa condição e por isso apenas eles, segundo Kant, podem ser imperativos da moral. A vontade é pura, sendo moral quando é regida pelos imperativos categóricos e não pelos imperativos hipotéticos.

O imperativo categórico independe da experiência para revelar o seu conteú-do, que é a universalidade de uma lei à qual a ação deve se conformar. Isso quer dizer que o princípio subjetivo pelo qual um indivíduo determina o seu agir deve ser idêntico ao princípio objetivo que determinaria o agir de qualquer outro ser. Em Kant encontram-se várias formulações do imperativo categórico, que foram classificadas conforme veremos agora (GALUPPO, 2002, p. 97).

1. Fórmula da lei universal

“Age apenas com base na máxima que tu possas desejar ao mesmo tempo que se torne uma lei universal.”

2. Fórmula da lei da natureza

“Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza.”

3. Fórmula do fim em si mesmo

“Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio.”

4. Fórmula da autonomia

“Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas.”

5. Fórmula do reino dos fins

“Age de tal maneira que tu sejas sempre através de suas máximas um membro legislador em um reino universal dos fins.”

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O imperativo categórico é o primeiro empreendimento sistemático (ainda que pese a sua austeridade de viés pietista) para se estabelecer uma moral autônoma, isto é, uma moral que se outorga à própria lei, fundada exclusiva-mente na razão e acessível a qualquer ser racional disposto e de boa vontade. A moral religiosa, contra a qual Kant apresenta a sua moral, ao contrário, é heterônoma ao determinar a vontade pelas consequências da ação – recom-pensas e castigos.

A autonomia implica a liberdade. Se não fôssemos livres, não seríamos res-ponsáveis e, por consequência, não haveria moralidade. Ora, se a consciência moral é um dado, devemos buscar nela própria as suas condições de possibilida-de. Ainda segundo Kant, três são os postulados da razão prática:

a liberdade;

a imortalidade;

a existência de Deus.

A unidade, ou a síntese entre o ser e o dever ser, realiza-se em Deus. Assim, Kant deduz a metafísica não da ciência, mas da ética, instituindo o primado da razão prática sobre a razão pura. Aliás, o próprio conhecimento está a serviço da lei moral. Para que serve o saber senão para aperfeiçoar-se? O progresso histórico, portanto, não pode consistir somente no desenvolvimento científico e técnico, mas também e principalmente no aperfeiçoamento moral do ser humano.

Kant e a educaçãoAs principais ideias de Kant sobre a Educação estão em suas Aulas sobre Peda-

gogia (1776-1777), nas quais resgata o ideal pedagógico grego, enriquecido com as teses que Rousseau desenvolveu em Emílio (1767). Para Kant, o ser humano é o único ser vivo que pode e deve ser educado. Como Rousseau, ele acredita na diferenciação das práticas pedagógicas de acordo com a idade do educando. Além disso, insiste na necessidade da disciplina no processo de instrução e de formação cultural, que constituem a via de acesso à autonomia e à integridade moral. Em linhas gerais, para Kant, o papel da educação na formação humana e especialmente na formação do educador é sintetizado pela ideia de que:

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O homem somente pode vir a ser homem através da educação. Ele não é outra coisa senão o produto de sua educação. E cabe mencionar que o homem somente pode ser educado por homens que, por sua vez, foram educados. Por isso, a ausência de disciplina e instrução em certas pessoas faz delas maus educadores de seus educandos. (FREITAG, 1994, p. 22)

Contemporâneo dos iluministas, Kant representa ao mesmo tempo sua sín-tese e sua superação. Se para os filósofos hedonistas da França do século XVIII a educação apresentava função emancipadora, para o austero professor prus-siano a emancipação propiciada pela educação não é possível sem uma grande dose de disciplina e autodomínio.

O idealismo alemãoKant representa o ápice do pensamento moderno e ao mesmo tempo é a

fonte das principais formas contemporâneas do pensar. Para ele convergem, fil-tradas pelo Iluminismo, o empirismo e o racionalismo, encontrando nele uma síntese brilhante. Dele procede o pensamento posterior, particularmente o idea-lismo clássico alemão, matriz de boa parte do pensamento atual.

De um modo geral, idealismo diz respeito às correntes de pensamento que, de uma maneira ou outra, dão primazia às ideias, quer como componentes ex-clusivos da realidade, quer como o único modo pelo qual se pode conhecer ou experimentar o mundo. Platão (na Antiguidade) e o racionalismo (na moder-nidade) são exemplos dessa postura. Tendo o seu início em Kant, o idealismo alemão posiciona-se nessa vertente ao postular, em linhas gerais, que o signifi-cado de um objeto depende do sujeito que o compreende – em outras palavras, todo o conhecimento é dependente dos termos ou formas ideais que caracterizam a subjetividade humana.

Além de Kant, representantes do idealismo alemão são Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831) e Schopenhauer (1788-1860), os quais aprofundam e problematizam o criticismo kantiano. Com Hegel, o idealismo encontra o seu auge autoafirmativo e otimista; com Schopenhauer, sua versão pessimista, instaurando-se sua crise. Em termos comparativos, o vigor filosófico dessa corrente só pode ser comparado à era socrática. Se a filosofia clássica é dividida em antes e depois de Sócrates (470-399 a.C.), a filosofia moderna e con-temporânea pode ser dividida em antes e depois de Immanuel Kant.

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Texto complementar

Da distinção entre o conhecimento puro e o empírico(KANT, 2008)

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a facul-dade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência?

No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos co-meçam por ela.

Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebe-mos das impressões e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adi-ciona (estimulada somente pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.

Surge, desse modo, uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos sentidos?

Tais conhecimentos são denominados a priori, e distintos dos empíricos, cuja origem é a posteriori, isto é, da experiência.

Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado da ques-tão proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência, isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no en-tanto não podem ser tachados de conhecimentos a priori.

Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, a priori poderá espe-rar que ela desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois,

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praticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade. Assim, esse conhecimento é nitidamente empírico.

Consideraremos, portanto, conhecimento a priori, todo aquele que seja adquirido independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só o são a posteriori, quer dizer, por meio da experiência.

Atividades 1. Analise o trecho a seguir.

Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a filosofia.

Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que propõe uma investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.

Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura refor-mular o caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálo-go tanto com o racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?

Com base no texto acima, quais são os fundamentos do processo de ensino e aprendizagem no qual nos inserimos? O que seria uma postura dogmática na educação? E uma postura cética?

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

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2. Assinale quais as influências diretas de Immanuel Kant.

Revolução Industrial. )(

Cabala. )(

Racionalismo. )(

Revolução Francesa. )(

Empirismo inglês. )(

Escolástica. )(

Iluminismo. )(

Idealismo alemão. )(

3. Quais são os principais representantes do idealismo alemão? Assinale a alter-nativa correta.

a) Kant, Hume, Christian Wolff e Leibniz.

b) Kant, Leibniz, Schelling, Hegel e Nietzsche.

c) Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer.

d) Kant, Christian Wolff, Leibniz, Goethe e Hume.

e) Kant, Goethe, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche.

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A dialética idealista e materialista

O homem tem de viver em dois mundos que se contradizem [...]. O Espírito afirma

o seu sentido e a sua dignidade perante a anarquia e a brutalidade da natureza, à qual

devolve a miséria e a violência que ela o faz representar. Mas essa divisão da vida e da

consciência cria para a cultura moderna e para a sua compreensão a exigência de resolver

uma tal contradição.

Georg Hegel

Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que

importa é transformá-lo.

Karl Marx

Dialética: breve históricoO termo dialética confunde-se com a própria história da filosofia e,

assim como a filosofia, tem as suas raízes na Grécia antiga. Sua origem etimológica está em dois radicais gregos:

dia (δια), com o sentido de “dualidade”, “troca”;

léktikós (λε’κτκ’ξ), significando “apto à palavra”, “capaz de falar”, da mesma raiz de logos, “palavra”, “razão”.

Nesse sentido, tem estreita relação com o vocábulo diálogo, sendo pos-sível definir a dialética como a “arte do diálogo”: tal como no diálogo, na dialética também há duas razões ou posições entre as quais se estabelece, precisamente, um diálogo.

Com o tempo, dialética passou a significar o processo de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação precisa, capaz de distinguir claramente os termos envolvidos na discussão. Com efeito, boa parte da filosofia clássica era feita em praça pública, em debates e discus-sões acaloradas.

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Mas o sentido mais radical da dialética – e paradoxalmente, mais próximo do moderno – deve ser buscado em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.). Para ele, tudo está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que se transformam continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial, tornou-se célebre: “Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”. Isto porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados.

Todavia, para os gregos essa concepção era muito unilateral e eles preferi-ram a posição de um outro pensador da época: Parmênides (530-460 a.C.), para quem a essência do ser é imutável, de modo que o movimento é uma ilusão. Não por acaso, Aristóteles considerava Zenão de Eleia (495-430 a.C.), discípulo de Parmênides, o fundador da dialética.

Zenão servia-se da dialética para tentar demonstrar que o movimento não existe. Ficou famosa a sua argumentação de que, se o tempo e o espaço são infinitamente divisíveis, Aquiles, a despeito de toda a sua velocidade, nunca ven-ceria uma corrida com uma tartaruga.

E outros atribuem o mérito da invenção da dialética a Sócrates (470-399 a.C.). É verdade que antes dele os sofistas já utilizavam a dialética, afirmando que tanto uma opinião quanto a sua contraditória podem ser válidas, dependendo da argumentação de seu defensor. Mas Sócrates serviu-se da dialética com um fim positivo e, no mesmo estilo dialógico dos sofistas, mostrou que é possível, a partir de duas opiniões contraditórias, chegar a uma opinião superior, mais próxima da verdade. A passagem da ignorância ao saber é feita pela ironia (in-terrogação) e culmina na maiêutica (parto), pela qual o conhecimento é “parido” e a verdade é trazida à luz.

Em Platão, discípulo de Sócrates, encontramos duas formas de dialética. Em alguns diálogos (como Fédon e a República), a dialética é apresentada como um método de elevação do sensível ao inteligível. Em outros, especialmente nos últimos diálogos (como Parmênides e o Sofista), ele a apresenta como um método de dedu-ção racional que permite discriminar as ideias. De toda forma, para Platão, a dialética nunca é uma mera disputa ou simplesmente um sistema formal de raciocínio.

Aristóteles, por sua vez, prefere a demonstração à dialética – que para ele é uma forma não demonstrativa de conhecimento, uma aparência de filosofia e não a filosofia propriamente dita. Daí por que tende a colocá-la no mesmo nível que a disputa e a probabilidade.

Fundamentos Filosóficos da Educação

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A dialética idealista e materialista

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E no helenismo, o sentido positivo da dialética ressurge somente de modo ocasional – aqui com os estoicos, ali com os neoplatônicos.

Já na Baixa Idade Média (séculos XII-XV), a dialética forma com a retórica e a gramática o trivium das artes liberais1. Como tal, era mais um método do que propriamente filosofia. Colocava-se, por exemplo, situações contraditórias e se tentava demonstrar pelo sim e o não (sic et non) aquela que é mais plausível. A tese era, pois, o resultado da apreciação dos argumentos prós e contras sobre determinado tema.

No Renascimento, novamente se rejeitou a dialética, tomada como um mero conteúdo formal.

Da mesma forma, a dialética recebeu um sentido pejorativo na filosofia mo-derna. Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, considerava-a como a lógica da aparência. Daí por que a “dialética transcendental”, por ele desenvolvida, apresenta-se como a crítica desse gênero de aparências, que se origina da razão quando esta ultrapassa os seus limites.

E, assim, chegamos a Hegel, o ponto culminante do idealismo alemão e ao mesmo tempo o seu desfecho. Ele resgatou a dignidade da dialética, tornando-a o principal instrumento de compreensão da dinâmica da história.

HegelGeorg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, a 27 de agosto

de 1770, filho de um modesto funcionário público do departamento de finan-ças do Estado de Wurtemberg. Depois de estudar gramática e a cultura clássica, George Hegel ingressou no seminário de Tubingen. Permaneceu na instituição de 1788 a 1793, cursando filosofia e teologia, e ali foi colega do filósofo Schelling (1775-1854) e do poeta Hölderlin (1770-1843). Foi também ali que Hegel, estu-dante aplicado, começou a organizar, em ordem alfabética, um colossal fichário – que manteve atualizado ao longo de toda sua vida – acerca de tudo o que lia.

Deixando o seminário, Hegel foi trabalhar como tutor particular em Berna, na Suíça. Em 1796, voltou para território alemão, instalando-se em Frankfurt, onde Hölderlin lhe arranjara uma tutoria. Porém, desiludido amorosamente, esse amigo entrou em depressão e veio a enlouquecer – o que deixou Hegel profundamente abalado.1 Essas três disciplinas do trivium compunham a primeira parte do ensino universitário e depois vinha o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), assim completando as sete artes, também conhecidas como artes liberais.

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Para superar essa crise, o filósofo mergulhou com mais afinco no trabalho de engrossar o seu fichário. Com recursos herdados de seu pai, falecido em 1799, Hegel deixou Frankfurt dois anos depois e foi concorrer a uma cadeira de livre-docente na Universidade de Jena, onde Schelling, então com apenas 26 anos, lecionava. Porém, os maiores nomes de Jena, como Fichte (1762-1814) e os irmãos August (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829), já haviam saído de lá. Com o auxílio de Goethe, Hegel foi nomeado professor extraor-dinário, mas conseguiu receber algum rendimento significativo somente um ano depois, em 1806.

Nesse mesmo ano, Hegel se entusiasmou quando Napoleão submeteu a Prússia2, que ele considerava governada por uma burocracia corrupta. Em 1807, publicou seu célebre livro, Fenomenologia do Espírito, para muito poucos enten-dedores – escritas com uma terminologia inteiramente nova, suas obras são de difícil leitura.

Para melhorar sua renda, Hegel tornou-se editor de um jornal (1807-1808) e em seguida diretor de um ginásio em Nurberg (1808-1816). Em 1811, casou- -se com Marie von Tucher (que era 22 anos mais nova que ele), com quem teve dois filhos, sendo que já havia um filho natural que ele trouxe de Jena. E foi em Nurberg que ele publicou as duas partes de Ciência da Lógica (1812 e 1816), cuja repercussão motivou o convite para lecionar em Heidelberg.

Já em Heidelberg, veio à luz a sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817), na verdade uma exposição de suas ideias.

No ano 1818, ele foi para a Universidade de Berlim assumir a cadeira vaga com a morte de Fichte. Em Berlim, sua ascendência sobre os alunos foi e ele publicou sua Filosofia do Direito (1821). Em 1830, tornou-se reitor da universidade.

Por essa altura, ele já era um ardoroso defensor do Estado prussiano, pois temia que as convulsões sociais daquele momento levassem o povo ao poder. Seus livros desse período são feitos principalmente a partir de anotações dos seus alunos.

No verão de 1831, fugindo a um surto de cólera, Hegel refugiou-se nas re-dondezas da cidade. Porém, precisou retornar para o período acadêmico e assim contraiu a doença, vindo a falecer em 14 de novembro. Conforme sua vontade, foi enterrado ao lado de Fichte.

2 Antigo Estado cuja capital era Berlim e que existiu no que hoje é a região norte da Alemanha.

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A dialética idealista e materialista

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O hegelianismoEm linhas gerais, o pensamento de Hegel é tributário da filosofia grega, do

racionalismo cartesiano e do idealismo alemão – do qual ele é o ápice.

De Heráclito, ele resgata a ideia de dialética, entendida como estrutura da realidade e do pensamento.

De Aristóteles, ele toma três noções fundamentais:

a do universal, imanente e não transcendente ao individual;

a do movimento como passagem da potência para o ato;

a das relações entre a razão e a experiência, cuja necessidade interna deve ser revelada pelo pensamento.

Do racionalismo, Hegel herdou a ideia da racionalidade do real, ou seja, a coincidência entre res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa material), e de Espinosa, em particular, a intuição de que “qualquer afirmação é uma negação”.

De Kant (ponto de partida de toda a moderna filosofia alemã), Hegel assumiu a ideia de uma lógica transcendental, a qual, remontando às origens do conheci-mento, considera os conceitos a priori, em relação aos objetos; formula as regras do pensamento puro e vincula as categorias ao eu subjetivo.

De Fichte, Hegel emprestou a noção de dialética como processo de afirma-ção, negação e negação da negação, na síntese.

E de Schelling, ficou com a ideia de identidade do sujeito e do objeto na cons-ciência do absoluto.

A filosofia de Hegel pode ser considerada uma filosofia do vir-a-ser, do movi-mento e das transformações – de certa forma, é o primeiro grande sistema filo-sófico que reflete a nova consciência histórica derivada da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, as duas revoluções que revelaram a inevitabilidade das mudanças e que a história é muito mais que uma sucessão de fatos.

Para dar conta dessa nova compreensão, foi necessário abandonar a antiga lógica aristotélica, considerada demasiado estática, e estabelecer os princípios de uma nova lógica: a dialética, que afirma a perecibilidade de todas as coisas. Em outras palavras, toda morte gera um novo ser, o qual já traz em si o germe de sua destruição. Esse movimento é o processo histórico. Hegel também o chamou

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de contradição criadora, em oposição à contradição aristotélica, na qual não há movimento na medida em que o não-ser é completamente oposto ao ser.

Essa leitura permite também um novo entendimento da história, segundo o qual o presente não é um simples acumulado de fatos, mas um engendramento de acontecimentos movidos por um “motor” – que para Hegel é, justamente, a contradição. Em outras palavras, a história não é vista como algo que está enfor-mado, formatado, preso em “repartições” que são o tempo, mas ela escoa, tor-nando o presente o resultado de um processo.

Por outro lado, os vários estágios da história da humanidade não são mais vistos como contingentes ou aleatórios, mas sim como necessários e progres-sivos, assim como a luta, a guerra e o conflito entre os grupos que representam esses estágios também são necessários.

Para Hegel, o conceito de real recebe também um novo sentido: aquilo que se conhece apenas a partir da experiência, do imediato, é abstrato. Aquilo de que, ao contrário, é conhecida a gênese, a origem, o processo de constituição, é real. Isso se expressa no famoso axioma “O real é racional, o racional é real”. No entanto, vale lembrar que Hegel se mantém dentro dos limites do idealismo, e que para ele a história nada mais é que história da ideia.

Como a de Fichte, a dialética hegeliana compõe-se de três etapas: tese, antí-tese e síntese – ou seja, afirmação, negação e negação da negação.

Assim, o que está no início não é a natureza (como pensavam os pré-socrá-ticos), mas sim a ideia pura, que constitui o princípio inteligível do mundo, a ordem do real: essa é a tese, e o seu conteúdo é estudado pela lógica.

A natureza, porém, é a ideia alienada, a ideia fora de si, a forma “empírica” da ideia no espaço e no tempo, e para desenvolver-se ela cria algo oposto a si mesma – a antítese. O seu desenvolvimento dialético é tratado na filosofia da natureza.

Da luta desses dois princípios antagônicos nasce a síntese, ou o espírito, que é a natureza que toma consciência de si, da sua imanente divindade. Esse é o objeto da filosofia do espírito.

Nesse último nível ainda temos dois espíritos: um subjetivo, que se encer-ra na individualidade humana (emoção, desejo, imaginação), e outro objetivo, que constitui a humanidade enquanto coletividade (moral, direito, política). Do embate desses dois espíritos tem-se o espírito absoluto – Deus – a mais alta rea-lização da ideia, em que se atinge o mais alto grau de autoconsciência.

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O espírito absoluto, por seu turno, desenvolve-se “em arte (expressão do ab-soluto na intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia (expressão conceitual, lógica, plena do absoluto)” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389). Todavia, houve vários sistemas filosóficos, que re-presentariam momentos necessários na história da filosofia até o advento da filosofia absoluta, que é o idealismo absoluto de Hegel.

Família e EstadoPor outro lado, a família é a primeira realização do espírito objetivo, o qual, para

resolver as contradições entre os indivíduos, entre as várias famílias e clãs, cria o Estado, que é a síntese mais perfeita desse espírito, já que harmoniza os interesses contraditórios dos indivíduos, o público e o privado. No final da vida, Hegel veria esse Estado materializado na Prússia. Assim, o Estado prussiano é a síntese do es-pírito objetivo e a filosofia hegeliana, a síntese absoluta de todo esse processo dialético. Como se pode ver, a modéstia não era uma das virtudes de Hegel.

Não obstante os exageros desse sistema grandiloquente, Hegel tem o indiscu-tível mérito de trazer para o cerne da reflexão filosófica o processo histórico. Mas aqui também está a sua fraqueza: uma certa simplificação a que ele submeteu a história para que ela coubesse dentro da sua estrutura triádica. Todavia, com a his-tória incorporada à filosofia, a antiga lógica aristotélica mostrou-se incapaz de dar conta dos processos de compreensão da nova realidade e, assim, a dialética hege-liana vem justamente oferecer os instrumentos que faltavam. Eis como Padovani e Castagnola distinguem a lógica tradicional da dialética de Hegel:

1.º – A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;2.º – a lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;3.º – a lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;4.º – a lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreen-de o ser, não o esgota inteiramente – como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio logos divino que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo. (PADO-VANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389)

Profundamente revolucionária, no entanto, a dialética hegeliana permane-ceu inofensiva nas mãos daquele pacato professor do Estado prussiano. Seria necessário que alguém a tirasse do mundo abstrato das ideias e a colocasse no

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mundo concreto da matéria para fazer detonar o seu potencial revolucionário. Esse alguém foi Karl Marx.

Filósofo e agitadorKarl Heinrich Marx nasceu em Trier, sul da Alemanha, a 5 de maio de 1818. A

mãe tinha origem na nobreza da Holanda e o pai era advogado. Eram judeus e precisaram converter-se ao cristianismo quando o pequeno Karl ainda estava com seis anos de idade em função das restrições legais impostas aos membros da comunidade judaica no serviço público.

Em 1835, com 17 anos, Marx ingressou na Universidade de Bonn, transfe-rindo-se, já no ano seguinte, para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel era bastante forte, mesmo após sua morte em 1811. Em Berlim, Marx participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos, um grupo de in-telectuais que pretendia levar adiante o pensamento de Hegel, em desacordo com os chamados hegelianos de direita, para quem o Estado prussiano era a culminância da história.

Com a tese Sobre as Diferenças da Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro, Marx obteve o grau de doutorado, em Jena, em 1841. Impossibilitado de seguir a carreira acadêmica, já que as portas da universidade estavam fechadas para os hegelianos de esquerda, tornou-se redator de um jornal de tendência liberal publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas con-cretos de natureza política e econômica. No entanto, o governo, incomodado com o teor desses artigos, fechou o jornal.

Depois de um noivado de longos anos, Marx casou-se e emigrou para a França, onde editou, juntamente com seu amigo Arnold Ruge, os Anuários Franco-Germâ-nicos. Em Paris, travou contato com o poeta alemão Heinrich Heine – também exi-lado – e com socialistas franceses, além de estreitar amizade com Friedrich Engels (1820-1895), com quem produziu diversas obras em comum. Filho de um industrial, Engels costumava socorrer Marx nas suas numerosas dificuldades financeiras.

Mas a permanência de Marx na França foi breve: a pedido do governo prus-siano ele foi expulso, estabelecendo-se provisoriamente em Bruxelas, na Bélgica, onde fundou o primeiro partido comunista do mundo.

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Após uma passagem por Londres, Inglaterra – ocasião em que redigiu O Ma-nifesto Comunista, ou O Manifesto do Partido Comunista, juntamente com Engels – Marx retornou à França, mas logo assumiu a chefia do Novo Jornal Renano, em Colônia, primeiro jornal diário francamente socialista.

Todavia, foi novamente expulso, agora de sua própria terra, e então viveu até seus últimos dias, com apenas breves interrupções, em Londres.

Em Londres, Marx dedicou-se a vastos estudos econômicos e históricos e es-creveu artigos para jornais, mas sua situação material continuou sempre muito precária.

Em 1864, foi cofundador da Internacional Socialista3, desempenhando grande papel de direção.

Em 1867, veio a lume o primeiro tomo da sua obra máxima, O Capital.

Em 1883, porém, antes que a obra de três volumes estivesse completa, Marx morreu, aos 65 anos de idade.

Sua produção deve ser enquadrada dentro da chamada esquerda hegeliana. Isso porque, segundo ele, não é o espírito que determina o movimento da histó-ria, mas, antes, as relações econômicas de produção. É sobre essas relações que se erguem as superestruturas do pensamento, da cultura e da forma política. Por isso, considera-se sua obra uma inversão da teoria hegeliana.

Sua obra principal é composta pelos livros:

A Ideologia Alemã (1845, com a coautoria de Engels);

Manifesto do Partido Comunista (1848, também com a coautoria de Engels);

Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), cujo conteúdo é retoma-do em O Capital (1867);

O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1869).

Em Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx reconhece em Hegel o mérito de ter instituído o instrumental que serviria para explicar as contradições reais da história e da vida, mas acusa-o de ter colocado esse sistema de cabeça para baixo – daí a necessidade de invertê-lo, colocá-lo sobre seus pés.

3 A Internacional Socialista foi uma primeira tentativa de organização mundial dos trabalhadores com vistas à defesa de seus interesses, tendo como horizonte uma revolução socialista mundial.

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O materialismo históricoO pensamento de Marx tem três fontes principais: a economia política ingle-

sa do início do século XIX, o idealismo alemão e o materialismo filosófico francês do século XVIII.

Nos economistas ingleses, ele buscou uma teoria social que se pretende científica. De David Ricardo (1772-1837), adotou a teoria do valor do trabalho, embora lhe imprimindo uma nova orientação. Para Ricardo – que parte do pres-suposto da imutabilidade da ordem social existente –, a livre concorrência man-teria os salários dos trabalhadores no nível de subsistência, assim controlando o seu número. Marx, por sua vez, parte do ponto de vista do trabalhador, distin-guindo duas formas de trabalho:

trabalho-ação – a força de trabalho que é vendida pelo trabalhador e paga pelo empregador;

trabalho-resultado – o produto do trabalho realizado pelo trabalhador e vendido pelo empregador no mercado.

Para Marx, essas duas formas de trabalho não apresentam o mesmo valor, já que entre elas existe, como diferença de valor, a mais-valia, isto é, o lucro do empregador.

O valor do trabalho-ação, da força de trabalho, tem como medida o seu custo de produção, ou seja, o valor que foi necessário para produzir abrigo, alimen-tação, vestuário etc. para o trabalhador e seus dependentes, todos elementos indispensáveis ao prosseguimento de seu esforço produtivo. Digamos que a parcela de todos esses elementos consumida pelo trabalhador e seus depen-dentes durante um dia de trabalho equivale a quatro horas de trabalho. Assim, o trabalho-ação desse trabalhador vale um preço que lhe é pago pelo patrão sob a forma de salário. No entanto, a força vendida pelo operário ao patrão vai ser uti-lizada não durante quatro horas, mas, seis, oito, dez ou mais horas. A mais-valia é, assim, constituída pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de trabalho (quatro horas) e o preço pelo qual ele vende o resultado no mercado (oito horas, por exemplo)4.

Do idealismo alemão, Marx bebeu sobretudo em Hegel. Depois da morte do grande filósofo, seus discípulos dividiram-se em dois grupos: os hegelianos de

4 No capitalismo moderno, com a redução da jornada de trabalho, o lucro empresarial seria sustentado por meio do que se denomina mais-valia relativa (em oposição à primeira forma, chamada mais-valia absoluta), que consiste em aumentar a produtividade do trabalho utilizando a raciona-lização e o aperfeiçoamento tecnológico.

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direita, para quem o espírito absoluto se manifestava no Estado prussiano da-quele tempo, e os hegelianos de esquerda, que, brandindo o movimento his-tórico permanente, lançaram uma crítica veemente à religião cristã. Entre esses jovens hegelianos destacava-se um que exerceria influência decisiva sobre o jovem Marx: Ludwig Feuerbach (1804-1872), que substitui o espírito hegeliano pelo ser humano, o panteísmo de seu mestre por um ateísmo humanista.

A novidade do hegelianismo está, como vimos, em ter oposto a todas as filo-sofias anteriores a ideia de um devir constante, por meio do fluxo incessante dos fenômenos históricos, segundo a lei da dialética:

Aqui a interpretação da Marx é profundamente hegeliana no método, embora a força propulsora seja concebida de modo diferente em ambos os casos. Para Hegel, o curso da história é uma gradual autorrealização do espírito que tende para o absoluto. Marx substitui o espírito pelos modos de produção, e o absoluto pela sociedade sem classes. Um determinado sistema de produção, no curso do tempo, desenvolverá tensões internas entre as várias classes sociais a ele vinculadas. Estas contradições, como Marx as denomina, se resolvem numa síntese mais elevada. A forma que a luta dialética assume é a luta de classes. A batalha prossegue até que, com o socialismo, instaura-se uma sociedade sem classes. Uma vez alcançado esse objetivo, não há mais razão para lutar, e o processo dialético pode adormecer. (RUSSELL, 2002, p. 390)

Assim, a dialética idealista de Hegel é transformada no materialismo dialético, escopo da concepção filosófica de Marx. Não é mais a ideia que propulsiona a história, mas as relações materiais de produção. Com efeito, Marx vira de cabeça para baixo o modelo hegeliano.

E aqui entra a terceira grande influência do marxismo: o materialismo, que Marx vai buscar nos enciclopedistas franceses, especialmente Diderot (1713-1784) e Holbach (1723-1789), e novamente em Feuerbach. Todavia, Marx não se satisfez com esse materialismo mecanicista que faz todas as obras do espírito (religião, arte, cultura) dependerem da matéria (as relações materiais de produção). Aplicando seu materialismo dialético à história, ele criou o materialismo histórico, que é a teoria sociológica geral do marxismo, no qual a sociedade é comparada a um edifício em que as fundações (a infraestrutura) seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si (a superestrutura) representa as ideias, os costumes, as instituições sociais etc. Se por um lado a infraestrutura determina a superestrutura, por outro lado ela sofre reflexos dessa superestrutura, dialeticamente.

Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), também mudam as ideias e construções culturais do ser humano (a superestrutura). Ora, as rela-ções fundamentais da sociedade são as relações de produção, que se efetivam na divisão social do trabalho; a maneira pela qual as forças produtivas se orga-nizam determina as relações de produção. No entanto, o desenvolvimento da

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técnica leva a uma contradição com a antiga relação de produção e faz-se neces-sária uma nova organização (divisão do trabalho).

Assim, nas sociedades primitivas os seres humanos organizavam-se mutu-amente para enfrentar a natureza; os produtos eram de propriedade comum e não havia sentimento de posse. Mais tarde, com o começo da domesticação de animais e o incremento da agricultura, alteraram-se as relações de produção e, por conseguinte, os modos de produção, aparecendo a propriedade familiar e as primeiras distinções de classe. Mais adiante, a produção foi aumentada além do necessário à subsistência, tornando-se prementes novas forças de trabalho; surgiu então a primeira forma de propriedade privada e a exploração do homem pelo homem e, consequentemente, a contradição entre senhores e escravos. Essa linha evolutiva – a partir da dialética de afimação, negação e negação da negação (tese, antítese e síntese) – só chegaria ao fim na sociedade sem classes, no comunismo.

Portanto, o materialismo marxista é dialético, ou seja, parte da constatação de que os fenômenos materiais são processos. Isso significa que o mundo não é uma realidade estática e sim dinâmica, um complexo de processos e, por isso, a abordagem da realidade pode ser feita apenas de maneira dialética. Nesse mesmo sentido, a superestrutura não é uma simples decorrência da matéria: é possível libertar-se do determinismo e libertar o ser humano por meio da ação revolucionária.

A práxisE aqui chegamos a outra novidade do pensamento de Marx: ele nunca foi

um filósofo de gabinete, como seus conterrâneos Kant e Hegel. Se alguém qui-sesse acertar seu relógio pelo horário dos passeios do filósofo (como faziam os vizinhos de Kant), ficaria sem dúvida em apuros. Como vimos, por suas posi-ções políticas Marx não conseguiu obter uma cátedra nas universidades alemãs e teve que ganhar a vida no exílio e em condições muito adversas. Além disso, participou ativamente da luta revolucionária de seu tempo, ajudando a cons-cientizar e organizar os trabalhadores. Na 11.ª das suas Teses sobre Feuerbach, ele declara: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é transformá-lo.” Isso significa que a prática é tão importante quanto a teoria – a qual não pode se desvincular da ação histórica e concreta do ser humano, unindo-se dialeticamente os níveis teórico e prático em uma coisa só, que é a práxis (termo que provém do grego e significa “ação”, “realização”).

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Para Marx, a queda do regime capitalista ocorreria não só por força de suas contradições internas, mas também pela ação – a práxis – revolucionária dos trabalhadores organizados. A essa derrubada do sistema sucederia uma fase transitória (a ditadura do proletariado), com a liquidação das antigas classes e a implantação de um regime coletivista, preparatórios da fase definitiva (o comu-nismo integral), com a abolição completa do Estado. O mais, Marx não diz: ele se recusa a elaborar uma utopia – o seu socialismo, fruto típico do século XIX, pretende-se rigorosamente científico.

Marx morreu antes de ver os partidos socialistas que ele ajudara a fundar ven-cerem suas primeiras eleições. Trinta e quatro anos após a sua morte, o partido bolchevique, inspirado diretamente nas suas ideias, assumiu o poder na Rússia, depois de uma revolução. Ao longo do século XX, várias nações tornaram-se socialistas, chegando ao ponto de quase metade da população do globo viver sob regimes de inspiração marxista. Entre a queda do Muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991), esses regimes caíram como castelos de cartas. Mas uma pergunta que se fez e se faz é sobre até que ponto Marx pode ser responsabilizado pelas diferentes “leituras” de sua obra (e os respectivos efei-tos colaterais) ou se tais práticas não seriam resultado de visões distorcidas de suas ideias. Todavia, a discussão sobre o futuro do capitalismo continua e Marx não pode ser alijado desse debate, já que ele foi um dos melhores – senão o melhor – intéprete do regime fundado sobre o capital.

Textos complementares

O verdadeiro é o todo(HEGEL, 1964, p. 233-234)

O verdadeiro é o todo. Mas o todo é tão-só a essência que não se comple-ta senão por seu desenvolvimento. É preciso dizer do absoluto que é essen-cialmente resultado, que só no final é o que em verdade é; e nisso consiste precisamente sua natureza, ser alguma coisa real, sujeito ou mesmificação. Por bastante contraditório que possa parecer conceber o absoluto essencial-mente como resultado, basta uma pequena reflexão para desvanecer esta aparência de contradição. O começo, o princípio, ou o absoluto, tal como se manifesta do início e imediatamente, é tão-só o geral. Do mesmo modo que

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eu digo “todos os animais”, não equivale esta expressão à Zoologia, assim também percebemos que as palavras divino, absoluto, eterno etc. não mani-festam o que está contido nelas – e somente estas palavras são as que expri-mem em verdade a intuição como alguma coisa imediata. Tudo o que seja mais que uma de tais palavras, a menor transição para uma só proposição, é já um alterar-se que tem que ser substituído, é uma mediação. Mas esta mediação é o que horroriza, como se ao fazer só o que acabamos de dizer, isto é, não ser nada nem absoluto nem no absoluto, já não se tivera um co-nhecimento absoluto.

Mas este horror procede em verdade do desconhecimento da nature-za da própria mediação e do conhecer absoluto. Porque a mediação não é senão a semovente igualdade consigo mesma ou a reflexão sobre si mesmo, o momento do eu que é si mesmo, a pura negatividade, ou, reduzido a sua própria abstração, o simples devir. O eu ou o devir em geral, este mediar, é justamente, graças à sua simplicidade, a imediatez em processo de vir-a-ser ou o próprio imediato. Por isso, é um desconhecimento da razão, excluir do verdadeiro a reflexão, ou não tomá-la como momento do absoluto. É ela a que converte o verdadeiro em resultado e igualmente absorve esta contra-posição com referência a seu devir, pois o devir é igualmente simples, e por isto não difere da forma do verdadeiro, isto é, o manifestar-se como simples resultado; é justamente este mesmo “ser reproduzido” à simplicidade. Se bem é verdade que o embrião é o homem, não o é, contudo, que o seja para si; sê-lo-á somente como razão formada, quando a razão tenha chegado a fazer-se o que ela é em si. Só nisto consiste sua realidade. Mas este resultado é, por sua vez, simples imediatez, pois é a liberdade autoconsciente que re-pousa em si, e não atirou fora a contraposição deixando-a estar aí, porquan-to a reconciliou com ela.

A história das lutas de classes(MARX; ENGELS, 2006, p. 84-87)

A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a histó-ria das lutas de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corpo-ração e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante

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oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora aberta, ora disfarçada: uma guerra que sempre terminou ou por uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta.

Nas épocas históricas mais remotas encontramos, quase por toda parte, uma divisão completa da sociedade em classes distintas, uma escala gradu-ada de posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companhei-ros, servos; e, em cada uma dessas classes, gradações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabe-lecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas. No entanto, a nossa época, a da burguesia, possuiu uma característica: simplificou os antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os cidadãos livres dos burgos, das primeiras cidades; dessa população urbana saíram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em ascensão um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias, imprimiram um impulso até então desconhecido ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguin-te, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a cor-porações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mer-cadorias aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficien-te; então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A

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grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia ma-nufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadei-ros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvi-mento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Esse desenvolvimento, por sua vez, refletiu na extensão da indústria; e, na medida em que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se desenvolviam, crescia também a burguesia, multiplicando seus capitais e deixando em segundo plano as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de pro-dução e de troca.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si mesma na comuna; aqui, cidade-república independente, ali, terceiro estado, tributário da monar-quia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias; a burguesia, a partir do estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revo-lucionário.

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia jogou por terra as relações feudais, patriarcais e idílicas, despedaçou sem piedade todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superio-res naturais”, para só deixar subsistir, entre um homem e outro, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sa-grados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês, nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, con-quistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e polí-ticas, colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.

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A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então con-sideradas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta e do sábio seus servidores assalariados.

A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.

Atividades1. Quais são as peculiaridades, semelhanças e diferenças, nos textos acima, en-

tre Hegel e Marx?

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2. Leia o texto abaixo.

Para ele, tudo está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que transformam-se continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial, tornou-se célebre: “Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio.” Isso porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados.

Esse texto refere-se a que filósofo da Antiguidade?

a) Sócrates

b) Zenão de Eleia

c) Heráclito de Éfeso

d) Platão

e) Tales de Mileto

f ) Aristóteles

3. A respeito da compreensão de dialética, assinale H nas alternativas que se referem apenas a Hegel, M nas que se referem apenas a Marx e HM nas que se referem aos dois.

A dialética compõe-se de três etapas: tese, antítese e síntese, ou seja, )(afirmação, negação e negação da negação.

O que está no início não é a natureza, mas sim a ideia pura, que constitui )(o princípio inteligível do mundo.

Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), mudam )(também as ideias e construções culturais do ser humano (a superes-trutura).

Essa linha evolutiva – a partir da dialética de afimação, negação e )(negação da negação – só chegaria ao fim na sociedade sem classes.

O espírito absoluto desenvolve-se em arte, religião e filosofia. )(

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Para produzir filosofia Na sua opinião, a luta de classes continua acontecendo hoje?

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Schopenhauer: o mundo como representação

A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real [...] Há 80 anos que o sinto. Quanto

a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram

para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar.

Arthur Schopenhauer

Contra HegelIniciado com Immanuel Kant (1724-1804), o idealismo alemão chega ao

seu auge com George Hegel (1770-1831) – em sua grandiosidade, estrutu-ração e ousadia, a que se acresce sua quase ilegibilidade. De certa forma, esse foi o último dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Determi-nando o horizonte intelectual de boa parte dos séculos XIX e XX, esteve na matriz do marxismo, do existencialismo e de algumas das correntes mais significativas do pensamento cristão contemporâneo. Com efeito, o pen-samento de Hegel presta-se a mais de uma interpretação: por um lado, visa à reconciliação com a realidade, a qual procura interpretar racional-mente; por outro, a dialética, que é a alma do sistema, opõe-se a qualquer imobilidade, e explica o movimento, o processo histórico, as rupturas.

Assim, não é de se estranhar que pouco após a morte do grande filósofo prussiano começassem a surgir fissuras no edifício hegeliano. Entre os seus discípulos, logo houve uma divisão entre os chamados hegelianos de direita e os jovens hegelianos, mais tarde chamados hegelianos de esquerda.

Para a direita, a ideia absoluta, que no sistema hegeliano perpassa toda a história do universo, precisa de um suporte, um sustentáculo, que deve ser um espírito real, transcendente e consciente. Assim, ela reduzia o he-gelianismo ao espiritualismo, à afirmação do Deus pessoal e da imortali-dade da alma, apontando a religião e o Estado como os únicos capazes de voltar a aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução.

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Para a esquerda, ao contrário, reinterpretando o sistema hegeliano no senti-do do panteísmo e do ateísmo, a ideia é uma abstração que só existe exterioriza-da na natureza, que se basta a si mesma. Tratava-se, para eles, de erigir uma nova sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam.

Desenharam-se, desse modo, aquilo que Moses Hess (1812-1874) chamou de o partido do movimento e o partido da permanência.

Fiéis ao Estado e à religião do Estado, os hegelianos de direita monopoliza-ram as cadeiras das universidades. Hoje, mal são lembrados. Quem ainda sabe quem foram Jorge Gabler (1786-1853) e Karl Rosenkranz (1805-1879)?

Já os hegelianos de esquerda tiveram não poucas dificuldades na vida acadê-mica e na vida pessoal: perderam emprego, passaram fome, foram exilados – e entraram nas páginas da história. David Strauss (1808-1874) foi um dos pioneiros do método histórico-crítico de interpretação das Escrituras; Ludwig Feuerbach (1804-1872), o fundador do materialismo moderno; Karl Marx (1818-1883) e Frie-drich Engels (1820-1895), dispensam apresentações.

Mas, de toda forma, os hegelianos – de direita ou de esquerda – não rejei-taram o seu mestre. Conservando-o, imobilizando-o ou aprofundando-o, eles permaneceram, de uma maneira ou outra, ligados aos seus lineamentos. Marx, o mais célebre discípulo, mesmo criticando o idealismo do mestre, sempre se confessou devedor de sua filosofia.

E maiores ataques viriam de filósofos não-hegelianos.

O Schelling (1775-1854) da última fase já havia criticado Hegel por pretender deduzir os fatos do mundo das ideias.

Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o fundador da psicologia científi-ca, parte de Kant para se afastar do idealismo clássico, afirmando a fundamenta-bilidade da experiência e da realidade da coisa em si.

Todavia, os ataques mais virulentos partiriam do atormentado Sören Kierke-gaard (1813-1855) e do depressivo Arthur Schopenhauer.

O primeiro, dinamarquês (todos os outros aqui são alemães), protagoniza “uma violenta explosão anti-hegeliana” (RUSSELL, 2002, p. 365). Para Hegel, o indivíduo nada mais é do que um momento, de uma totalidade que o abrange e o ultrapassa e na qual, simultaneamente, ele encontra a sua realização. Em Kierkegaard, manifesta-se um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade existencial e do caráter insuperável de sua concretude.

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Não menos emocional seria a reação de Schopenhauer ao altissonante e oti-mista sistema hegeliano.

Uma vida taciturnaNascido em 22 de fevereiro de 1788, filho de um próspero comerciante da

cidade de Dantzig, na Prússia (atualmente Gdanski, na Polônia), Arthur Schope-nhauer estava destinado a seguir a profissão paterna. Aos cinco anos, por oca-sião da anexação da cidade livre de Dantzig pela Prússia, sua família mudou-se para Hamburgo. Em 1797, os Schopenhauers moraram em Paris, e em 1803 pas-saram seis meses em Londres. Viajaram por uma série de outros países, entre os quais a Áustria, a Suíça e a Holanda.

Em vez de se interessar pelos negócios do pai, o adolescente Arthur prefe-ria traçar considerações melancólicas sobre a condição humana. Fixando-se em Hamburgo, em 1805, a família obrigou-o a cursar uma escola comercial. Porém, a repentina morte do pai (provavelmente por suicídio) permitiu-lhe dedicar-se a uma carreira acadêmica, como era sua vontade. Assim, Schopenhauer começou os estudos humanísticos no Liceu de Weimar, em 1807.

Ao mesmo tempo, sua mãe, possuidora de veleidades literárias, tornou-se anfitriã de um salão frequentado pelos grandes intelectuais da região e assim Arthur Schopenhauer travou contato com Goethe (1749-1832).

No entanto, a relação entre mãe e filho não era fácil, eles se menosprezavam publicamente e Arthur chegou a dizer que ela ficaria famosa não por seus livros, mas por ser sua genitora (cruel vaticínio!).

Aos 21 anos, Schopenhauer recebeu um pequeno legado que lhe permitiu empreender os estudos universitários e, a partir de então, mãe e filho começa-ram a se afastar gradualmente.

Depois de uma passagem por Göttingen, onde teve contato com a filosofia de Kant, ele se mudou para Berlim (1811), assistindo, assim, aos cursos dos filóso-fos Schleiermacher (1768-1834) e Fichte (1762-1814). Mais tarde, Schopenhauer acusou Fichte de ter, deliberadamente, caricaturado a filosofia de Kant.

Em 1813, Schopenhauer obteve o doutourado pela Universidade de Berlim, com a tese Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente.

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Depois de uma temporada na Itália (1818-1819), sua situação econômica não era das melhores. Começou então a lecionar como livre-docente na Universi-dade de Berlim, onde pontificava o grande Hegel. “Totalmente convencido da própria genialidade [...], marcou suas conferências para a mesma hora das de Hegel” (RUSSELL, 2002, p. 369). Resultado: somente quatro ouvintes e um ressen-timento eterno para com Hegel.

Para piorar a situação, em 1821 ele se envolveu em um acidente que lhe traria desagradáveis consequências. Nessa época, o filósofo morava em uma pensão e, em certa ocasião, impacientando-se com uma vizinha que viera lhe espionar os en-contros com pretensas amantes, atirou-a escada abaixo. Acabou sendo processado e condenado a pagar-lhe, além de suas despesas médicas, uma pensão anual.

Em 1833, depois de muitas viagens e outra fracassada tentativa de lecionar em Berlim, o filósofo resolveu fixar-se em Frankfurt, onde permaneceria até sua morte. Ali levou uma vida quase solitária, tendo por principal companhia o seu cão.

Dedicando-se então exclusivamente à filosofia, Schopenhauer publicou di-versos livros.

Em 1818, com apenas trinta anos de idade, ele já havia lançado o seu clássi-co O Mundo como Vontade e Representação, que na época passou quase inteira-mente despercebido.

Em 1836, foi a vez de Sobre a Vontade na Natureza.

Escreveu também dois ensaios sobre moral – Sobre a Liberdade da Vontade e O Fundamento da Moral, este último contendo verdadeiros insultos a Hegel e a Fichte. Posteriormente, em 1841, esses dois ensaios foram reunidos sob o título de Os Dois Problemas Fundamentais da Ética.

O sucesso só começou a bafejar na vida do pensador misantropo com Pa-rerga e Paralipomena, seu último livro, publicado em 1851, contendo pequenos ensaios sobre política, moral, literatura, filosofia, estilo e metafísica.

Em 1853, um artigo publicado na Inglaterra por John Oxenford, atacando a filosofia de Hegel a partir de elementos de Schopenhauer, deu início à grande di-fusão da filosofia schopenhaueriana. Da França, filósofos e escritores vinham até Frankfurt para conhecê-lo. Na Alemanha, com o declínio da filosofia de Hegel, Schopenhauer viu-se subitamente galgado a ídolo das novas gerações. Assim, os últimos anos de sua vida lhe proporcionaram o reconhecimento que ele tanto ansiara. Artigos encomiásticos pululavam nos principais periódicos. A Univer-sidade de Breslau dedicou cursos à sua obra e a Academia Real de Ciências de

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Berlim convidou-lhe para membro, em 1858, honraria que ele, orgulhosamente, recusou.

Nos últimos anos, o arauto do pessimismo radical pôde gozar de uma insus-peitada alegria, dedicando-se inclusive à sua flauta.

Dois anos depois, a 21 de setembro de 1860, aos 72 anos de idade, faleceu o “cavaleiro solitário”, como ele seria chamado mais tarde por Friedrich Nietzsche (1844-1900), outro solitário.

O mundo como representaçãoO ponto de partida do pensamento de Schopenhauer é a filosofia kantia-

na, que estabelecera uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si, ou seja, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. Segundo Kant, a coisa-em-si não poderia ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência restringir-se-ia, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. Dessas distinções, Schopenhauer concluiu que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele, em um primeiro momento, como síntese entre o subjetivo e o objetivo, a realidade exterior e a consciência humana.

Todavia, Schopenhauer se afastou do mestre que tanto admirava em um ponto capital e a partir daí traçou uma filosofia original: para Kant, a coisa-em-si é inaces-sível ao conhecimento humano, pois se encontra para além dos limites do próprio ato cognitivo, enquanto Schopenhauer pretende abordar a própria coisa-em-si, a qual seria, para ele, a vontade – origem metafísica de toda a realidade.

Segundo Schopenhauer, mais do que simplesmente assegurar que ele é “um objeto entre outros”, a experiência interna do indivíduo também lhe garante que ele é um ser ativo, cujo comportamento manifesta diretamente sua vontade. Essa consciência interior, que cada um possui em si como vontade, seria primitiva e irredutível. Assim, a vontade revela-se imediatamente a cada um como o em-si. Ademais, a percepção que cada qual faz de si mesmo como vontade é distinta da percepção que cada um tem como corpo. Mas isso não significa que as ações cor-porais e as ações volitivas constituem duas séries de fatos, entendidas estas como causadoras daquelas: para Schopenhauer, o corpo humano é apenas objetivação da vontade, tal como aparece para a percepção externa. Em outras palavras, o que se quer e o que se faz são a mesma coisa, vistos, contudo, sob ópticas distintas.

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Da mesma forma que nos seres humanos a vontade seria o princípio funda-mental do universo. Mais: ela é independente da representação e, portanto, não se submete às leis da razão. “Esta vontade é cega e irracional, porquanto as suas manifestações no mundo são irracionais, e tanto quanto mais se sobe na hierar-quia dos seres até ao homem, no qual o mal e a dor do universo são compendia-dos e em demasia intensificados” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 396).

Tudo é dorA vontade, que é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana, é também

a origem de todo o sofrimento. O sistema schopenhaueriano é, portanto, pro-fundamente pessimista1, pois a vontade é concebida como algo sem nenhuma meta ou finalidade. Sendo um mal inerente à condição humana, ela gera, de modo necessário e iniludível, a dor. Por outro lado, aquilo que se chama de fe-licidade nada mais é que uma cessação temporária do sofrimento. Assim, para Schopenhauer, viver é sofrer.

Mas, a despeito de todo esse pessimismo, Schopenhauer indica alguns cami-nhos para a supressão da dor.

Em um primeiro instante, a via para a suspensão da dor encontra-se na con-templação artística. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte- -se, a inteligência passa a uma posição proeminente, de onde pode assistir à his-tória de sua própria vontade. A atividade artística revelaria, desse modo, as ideias eternas por meio de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, a escultura, a pintura, a poesia lírica, a poesia trágica e, finalmente, pela música. Com efeito, essa é a primeira vez na história da filosofia em que a música ocupa o proscênio, o lugar de destaque no panteão das artes. Liberta de toda referência específica aos diversos objetos da vontade, a música seria capaz de exprimir a vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um instrumento apto para propor a libertação do ser humano.

1 Em filosofia, o termo pessimismo pode assumir três acepções, não necessariamente excludentes entre si:

doutrina segundo a qual o mal sempre vence o bem, de modo que o não-ser é melhor que o ser;

doutrina segundo a qual a dor vence o prazer, ou segundo a qual somente a dor é real, o prazer sendo apenas a sua momentânea cessação;

doutrina segundo a qual a natureza é indiferente ao bem e ao mal moral, assim como à felicidade ou infelicidade dos seres.

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O nirvanaPorém, a libertação proporcionada pela arte não é total e absoluta: a arte sig-

nifica apenas um distanciamento relativamente passageiro e não a supressão da vontade. Para que atinja a libertação completa, é necessário que o ser humano ascenda ao nível da conduta ética, a qual representa uma etapa superior no pro-cesso de superação do sofrimento. A ética de Schopenhauer não está, contudo, presa à noção de dever: ao contrário do que acontece em Kant, na moralidade defendida por Schopenhauer não há imperativos categóricos, os quais não pas-sariam de formas de coerção. Assim, sua ética fundamenta-se, antes de tudo, na ideia de que a contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem.

Para Schopenhauer, o egoísmo – que faz do ser humano o seu próprio inimi-go – origina-se da vontade que intenta afirmar o seu ímpeto individual, e a su-peração do egoísmo só é possível por meio do conhecimento da natureza única e universal da vontade. Somente assim o ser humano pode se tornar bom. O es-pírito de contenda contra os seus semelhantes é substituído pelo de simpatia e compaixão. Libertado pela etapa ética, o ser humano alcança o princípio que é a base de toda moral: “Não prejudiques pessoa alguma, sê bom para com todos”.

Mas nem mesmo essa ética da compaixão possibilita ao ser humano atingir a felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais completa forma de redenção so-mente pode ser encontrada na renúncia ascética ao mundo e a todas as suas so-licitações, na anulação da vontade e no mergulho definitivo no nirvana2: “Graças a essa purificação ascética3 o homem torna-se perfeitamente indiferente a tudo, e desapega-se de tudo que o cerca: está morto inteiramente à vida, ainda que esta possa continuar materialmente” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397). Assim, há uma gradual eficácia nessas três vias de libertação da dor: a via estéti-ca, a via ética e a via ascética.

Schopenhauer foi um leitor atento dos textos sagrados das religiões orientais, sobretudo do hinduísmo e do budismo, cujo conhecimento chegava ao Ocidente pelas viagens marítimas e pelo colonialismo europeu. Assim, se o Ocidente coloniza-va econômica e politicamente o Oriente, este começava a “colonizar” espiritualmente 2 Nirvana é um termo sânscrito que significa literalmente “extinção”. No budismo, o nirvana é a culminância da libertação, uma espécie de supera-ção da ignorância e do apego aos sentidos, ao mesmo tempo em que é o fim do ciclo das reencarnações.3 O ascetismo é uma moral filosófica ou religiosa baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais e que busca alcançar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do espírito e da mente sobre os instintos e paixões. Purificação ascética é justamente uma disciplina que busca esse triunfo do espírito sobre instintos e paixões.

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o Ocidente capitalista e desencantado. Assim, a ascética filosofia schopenhaueriana nada mais era do que uma primeira leitura idealista da mística oriental, especialmen-te do budismo, para quem a realidade é dor e a origem do sofrimento é o desejo.

Com Schopenhauer, o idealismo alemão (que foi iniciado por Kant e teve o seu apogeu filosófico e institucional com Hegel, que se tornou uma espécie de filósofo oficial do estado prussiano) torna-se profundamente crítico de si mesmo, tornando- -se irracionalismo e pessimismo. É o ocaso, o solene pôr-do-sol dessa grande aventu-ra do espírito que foi o idealismo – que muitas vezes foi a alma filosófica do roman-tismo –, já que no horizonte anunciavam-se novas correntes filosóficas, mais ligadas ao mundo e à ação, como o marxismo e o positivismo.

Schopenhauer e a educação Da concepção schopenhaueriana “[...] do mundo e da vida, decorre uma pe-

dagogia negativa e quietista, mas que exige muita força e proporciona liberta-ção: uma pedagogia que ensina o desapego, o desprezo do mundo e da vida, porquanto não são o absoluto e porquanto estão cheios de mal” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397).

A uma primeira vista, parece que para o nosso fazer pedagógico de hoje não há muito o que reter de um sistema tão pessimista, ainda mais em uma socie-dade que, pelo menos no mercado de trabalho, exige a todo custo o otimismo e uma atitude confiante perante a vida. No entanto, é justamente esse contraste que é interessante oferecer. Para que corremos tanto? O que é o sucesso? O que é felicidade? A vontade é sempre positiva? E a vontade de poder, de domínio? São reflexões a que não podemos nos furtar após o contato com a originalíssima filosofia de Schopenhauer.

Texto complementar

A vontade(SCHOPENHAUER, 1964, p. 246-248)

Antes de tudo, é preciso recordar aquela consideração que coloquei no fim do livro segundo, com vista à questão ali suscitada, do fim da vontade.

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Ao invés de responder, fiz ver que a vontade, em todos os graus de sua mani-festação, desde o mais baixo até o mais alto, carece de objetivo final, pois sua essência é querer, sem que este querer tenha jamais um fim, e que, portanto, não consegue uma satisfação definitiva e só os obstáculos podem detê-la, mas em si vai até o infinito.

[...]

Reconhecemos, há muito tempo, que o núcleo e a essência de cada coisa é esta aspiração idêntica a que em nós chamamos vontade, onde se manifesta mais claramente e com a consciência mais perfeita. A sua compreensão por um obstáculo que se eleva entre ela e seu fim atual cha-mamo-la dor; pelo contrário, chamamos bem-estar e felicidade à consecu-ção deste fim. Estas mesmas denominações podem ser aplicadas a outros fenômenos de mais baixa graduação, mas da mesma índole no mundo inconsciente, e então vemo-lo também presa da dor e sem ventura dura-doura. Todo esforço ou aspiração nasce de uma necessidade, de um des-contentamento com o estado presente, e é portanto uma dor enquanto não se vê satisfeito. Mas a satisfação verdadeira não existe, porquanto é o ponto de partida de um novo desejo, também dificultado e origem de novas dores. Jamais há descanso final; portanto, jamais há limites nem termos para a dor.

Mas o que descobrimos com grande esforço na natureza inconsciente e na consciente se nos revela com toda a clareza na vida animal, cuja eterna dor é fácil demonstrar. Contudo, sem deter-nos neste escalão intermediário, queremos dirigir nossa atenção àquela esfera em que reina a mais deslum-brante clareza, a saber, a vida humana. Porque à medida que a vontade se faz mais intensa, a dor se nos revela de um modo mais evidente. Em sentido estrito, na planta não encontramos sensibilidade nem dor. Os animais infe-riores, os infusórios e os radiados são incapazes da menor dor; nos próprios insetos, a faculdade de sentir e de padecer é bastante limitada. Ao contrário, no sistema nervoso dos vertebrados chega a seu maximum e se desenvolve na proporção em que cresce a inteligência. À medida que o conhecimento se faz mais claro e a consciência se desenvolve, a dor aumenta, chegando a cul-minar no homem. Quanto mais lucidez de conhecimento possui o homem e mais elevada é sua inteligência, mais violentas são suas dores. O gênio é o que mais padece.

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Atividades 1. Quanto à vida de Arthur Schopenhauer, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

Desde pequeno, Schopenhauer estava destinado a seguir a carreira de )(comerciante.

A morte repentina da mãe impediu-o de se dedicar a uma carreira aca- )(dêmica, como era sua vontade.

Em 1818, com apenas 30 anos de idade, ele lançou o seu clássico )( Assim falou Zaratrusta, que na época passou quase inteiramente despercebido.

O sucesso só começou para Schopenhauer em 1851, com )( Parerga e Paralipomena, seu último livro publicado.

Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem )(como da conduta humana, e – ao mesmo tempo – a origem de todo o sofrimento.

A única libertação total e absoluta da dor é aquela que é proporcionada )(pela arte.

2. Para Schopenhauer, nós temos acesso ao mundo?

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3. Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da conduta humana, e ao mesmo tempo também é a origem de todo sofrimen-to. Para ele, há como fugir a essa realidade da dor? E se há, qual é o método e o caminho?

Para produzir filosofia Schopenhauer diz que a imagem que temos do mundo são representações

muito particulares e que essas representações são reguladas pela vontade, a qual é a força motriz que produz o movimento da vida. Levando em conta que as representações que fazemos das coisas são subjetivas, e que portanto cada um tem as suas representações, qual é a melhor maneira de agirmos em relação aos nossos educandos se desejamos que o processo de ensino-aprendizagem se torne de fato eficiente?

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O positivismo e o desenvolvimento da ciência

Todos os bons intelectos têm repetido, desde o tempo de Bacon, que não pode haver

qualquer conhecimento real senão aquele baseado em fatos observáveis.

Auguste Comte

Um mestre e uma musaDe certa forma, o positivismo é um novo rótulo para uma nova fase de

desenvolvimento do empirismo, corrente filosófica inglesa dos séculos XVII e XVIII, para a qual o conhecimento se funda exclusivamente nos dados do mundo empírico. O nome surgiu em 1830, na escola do socialista utópico Saint-Simon (1760-1825), e ganhou fama com Auguste Comte, o pensador paradigmático do movimento. Deriva-se do latim positum, significando o que “está posto a nossa frente”, o que é observável, experimentável.

Além do empirismo, o positivismo tem como suas fontes o criticismo de Kant (1724-1804), que estabelecera barreiras às pretensões da metafí-sica; o enciclopedismo francês, com Diderot e D’Alambert, que procura-va reunir e catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo; e o progresso das ciências experimentais daqueles, como a quími-ca de Lavoisier (1743-1793) e a biologia de Bichat (1771-1802), que revolu-cionavam a visão de mundo da época.

O positivismo subdividiu-se em várias correntes, não raro conflitantes, e cedo espalhou-se pelo mundo, granjeando um sucesso e uma penetra-ção até então nunca experimentados por uma escola filosófica.

E é forçoso que nos reportemos àquele que é considerado o seu funda-dor, pois até hoje o nome do positivismo, para o bem ou para o mal, está atrelado a ele.

Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, que se tornou conhecido como Auguste Comte, nasceu em Montpellier, no sul da França, em 19 de

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janeiro de 1798. Depois de realizar seus primeiros estudos em sua cidade natal, onde se destacou por uma memória prodigiosa, ingressou na Escola Politécnica, em Paris, como o primeiro colocado no concurso vestibular. Todavia, com o tem-porário fechamento dessa escola, em 1816, em consequência da onda conser-vadora do período pós-napoleônico, voltou a Montpellier para continuar seus estudos na faculdade de medicina local.

No ano seguinte, de volta a Paris, Comte foi expulso da Escola Politécnica por ter encabeçado um protesto contra um professor. Passou então a sobreviver de pequenos expedientes, como aulas particulares e artigos para jornais. Ainda em 1817, tornou-se secretário do pensador Saint-Simon (1760-1825), o socialista utópico que o introduziu no mundo intelectual parisiense.

Já mergulhado na elaboração da doutrina positivista, Comte publicou seu Plano de Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade em 1822. Dois anos depois, rompeu com Saint-Simon, já que as doutrinas de um e de outro se revelaram incompatíveis.

Em 1825, casou-se com Caroline Massin e mais tarde foi por ela abandonado, com o que sofreu perturbações mentais, tendo sido internado numa clínica. Em 1830, deu início à publicação de seu célebre Curso de Filosofia Positiva, que só viria a ser concluído 12 anos depois.

Em 1832, retornou como professor à Escola Politécnica, dela se desligando definitivamente em 1844.

Passou a ser ajudado por amigos e admiradores, entre eles John Stuart Mill (1806-1873). Ainda em 1844, divorciou-se da esposa que só lhe causara sofri-mentos e transtornos e envolveu-se em um caso de amor platônico com Clotilde de Vaux, que perduraria até a morte desta, dois anos mais tarde.

Verdadeira musa do filósofo, Clotilde viria a ser venerada como uma santa pelos discípulos mais ortodoxos do mestre.

Em 1848, Auguste Comte criou a Sociedade Positivista, que granjearia um grande número de discípulos.

Nos anos seguintes, publicou os volumes do Sistema de Política Positivista, no qual extraiu algumas das principais consequências de sua concepção de mundo não-teológica e não-metafísica, propondo uma interpretação pura e plenamen-te humana para a sociedade e sugerindo soluções para os problemas sociais. No volume final dessa obra, apresentou as principais intuições de sua “religião da humanidade”, em que os sacerdotes seriam os cientistas.

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Em 1856, publicou o estudo Síntese Subjetiva, que seria o primeiro de uma série a tratar de várias questões, mas veio a falecer em Paris, provavelmente de câncer, em 5 de setembro de 1857.

História e evolução O projeto inicial de Comte era substituir a filosofia, com seus conceitos abs-

tratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela ciência, ou melhor, pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a totalidade dos fenômenos empíricos. À filosofia caberia apenas uma sistematização das ciências, servin-do-se para tanto do método positivo, isto é, o método científico extraído das ciências experimentais. Assim, não havia interesse pelas causas primeiras dos fenômenos, mas apenas pelas relações causais ou de similitude entre eles. Em Comte, a hierarquia das ciências corresponde à ordem de formação histórica das mesmas, ao mesmo tempo que passa de um nível de maior abstração e menor complexidade a outro de maior complexidade e menor abstração, em uma linha que vai da matemática (a mais abstrata) até a sociologia1 (a mais concreta), pas-sando pela física, a química e a biologia.

Com efeito, assim como em Hegel, a filosofia de Auguste Comte é enformada pela ideia de uma linha evolutiva da história, possivelmente absorvida de Giam-battista Vico2, cuja obra ele conhecia. Para Vico, filósofo italiano que construiu a primeira filosofia da história, a história é regida por leis, sendo sujeita a um eterno ciclo de repetição de três fases:

a fase mítica, em que prevalece a força física;

a fase heroica, de domínio da aristocracia;

a fase humana, em que reina o direito.

Assim, para Comte, a evolução social da humanidade estaria igualmente sujeita a leis naturais fixas, que independem de qualquer intervenção da vontade humana, partindo de um estado teológico inicial, passando por um estado metafísico interme-diário e chegando a um estado positivo, termo feliz da evolução histórica. Segundo um filósofo contemporâneo, “neste aspecto, Vico foi mais realista e reconheceu que a sociedade pode retroceder, e efetivamente retrocede, de períodos de refinamen-to e civilização a eras de novo barbarismo” (RUSSELL, 2002, p. 396). Mas precisamos 1 O termo sociologia foi criado por Comte.2 Giambattista Vico (1688-1744), filósofo italiano que se opôs ao racionalismo de Descartes (1596-1650). Suas teorias da história estão expressas em seu principal livro, Princípios de uma Nova Ciência. Ignorado em sua época, Vico só passou a ser reconhecido no século XIX.

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reconhecer que a época de Comte, a primeira metade do século XIX, era uma fase de exultante otimismo com os efeitos da técnica e da ciência (somente o século XX revelaria o outro lado, de carnificina e barbárie, produzido pela tecnologia em duas devastadoras guerras mundiais). Eis como Maria Lúcia Aranha expõe estes três estados de Augusto Comte:

No Estado Teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais, mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.No Estado Metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primei-ro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abs-trações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidos como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um, uma entidade correspondente.Enfim, no Estado Positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do racio-cínio e da observação, suas leis efetivas; a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de simili-tude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, resume-se de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. (ARANHA, 1986, p. 180-181)

Cada um desses três estados, por sua vez, apresentam os seus graus de de-senvolvimento, sempre dentro de uma tendência em direção a uma unificação maior.

A fase teológica, por exemplo, subdivide-se em animismo, politeísmo e mo-noteísmo. Todos os sistemas teológicos têm por base o animismo, mesmo o pan-teísmo do idealismo alemão. Por meio da astrologia, passa-se do animismo ao politeísmo, a etapa principal do estado teológico, que, por seu turno, reparte-se em três formas principais: o politeísmo egípcio ou teocrático grego ou espiritual, romano ou social. Por meio de uma revolução, comparável à Revolução France-sa, o monoteísmo afirma-se, concorrendo para tanto o pensamento grego, a civi-lização romana e a teocracia hebraica. O monoteísmo tem a sua maior expressão no catolicismo medieval.

À diferença de Hegel (1770-1831), o desenvolvimento de uma fase para outra não é concebido em termos dialéticos. À diferença de Marx (1818-1883), não é das contradições do estágio anterior que surgem suas condições de superação no estágio superior. Entretanto, a semelhança de Comte com esses dois filósofos está na concepção otimista da evolução da história – aliás, uma característica comum no século XIX. Além disso, Comte sustenta, ainda, que todas as ciências passam por uma evolução semelhante de três estágios. A única que já teria atin-gido plenamente o estado positivo é a matemática.

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A religião da humanidade Com o advento das ciências positivas, já teríamos alcançado o último estágio,

o estado positivo, que deveria abranger toda a civilização, incluindo a religião. Nos seus últimos anos, Comte argumentava que havia chegado a hora em que ele deixaria de ser o novo Aristóteles, que ele fora até então, para se transfor-mar no novo São Paulo (e aqui percebemos que a modéstia não é virtude muito usual nos filósofos). Daí o seu empenho em instituir a assim chamada religião positiva, isto é, o culto do Grande Ser, que não é senão a humanidade – a quem se acresce, o Grande Fetiche, o planeta Terra, e o Grande Meio, o espaço side-ral. Juntos, humanidade, Terra e espaço constituem a trindade positiva. Ademais, vários símbolos foram acrescentados: calendário próprio, altares, sacramentos, sacerdotes, pontífices, paramentos, liturgia. Descendo a minúcias, Comte distin-gue um culto privado e um público:

O culto privado, por sua vez, é dividido em pessoal e doméstico. O primeiro dedicado particu-larmente à mulher, como sendo a mais apta a representar o Grande Ser; o segundo compreen-de nove sacramentos, com relação às fases mais importantes da vida. O culto público deveria ter um templo apropriado, oficiado por um sacerdócio organizado para isso, de conformidade com as solenidades estabelecidas pelo calendário positivista, onde os santos do cristianismo são substituídos pelos heróis do mundo. Tal religião teve, de fato, o seu centro em Paris, espa-lhando-se também alhures, especialmente na Inglaterra e na América, onde sobreviveu ao seu fundador. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 434)

Assim, paradoxalmente, o último estado, o positivo, que deveria marcar de-finitivamente a vitória da razão e da ciência sobre a religião e as superstições, de certa forma assinala o retorno da força de elementos religiosos – como um retorno do elemento reprimido, para nos servirmos dos conceitos de Freud.

Quando filosofia vira samba Naturalmente, nem todos os discípulos de Auguste Comte o seguiram nessa

via de erigir novos ídolos em lugar dos velhos deuses. Se Pierre Lafitte (1828-1881) acompanhou de perto o mestre, na ala ortodoxa do positivismo, Emílio Littré, porém, na ala chamada dissidente, recusou a parte religiosa, consideran-do-a uma involução no pensamento comtiano. O historiador e filósofo Hipolite Taine (1828-1873) e o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), contam-se entre os dissidentes. Durkheim, inclusive, e a escola francesa de sociologia, iniciada com ele, será de grande importância para o desenvolvimento dessa nova ciên-cia fundada por Comte. Na Grã-Bretanha, o positivismo reencontrou-se com o empirismo antecedente, dando origem ao que se chama positivismo inglês,

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com nomes como John Stuart Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903). O primeiro é considerado o último economista do liberalismo clássico e também precursor de alguns aspectos do keynesianismo3. O segundo, criou um sistema organicista e evolucionista que, antecipando-se a algumas das teorias de Darwin (1809-1882), desenvolveu a tese de que toda a realidade, desde a material até a espiritual, evolui à semelhança dos organismos vivos.

Longe de ser um objeto de antiquário do século XIX, o positivismo deixou um longo legado em nossa época. Sem falar nas influências diretas em escolas como o pragmatismo, o Círculo de Viena, e em pensadores como Bertrand Russell e Karl Popper, boa parte do século XX (e por que não dizer do início do século XXI?), na sua exaltação acrítica da técnica e do progresso, esteve sob o seu signo. Se hoje, na maioria dos círculos sociais, um engenheiro é muito mais benquisto que um filósofo, não vamos creditar a culpa exclusivamente ao filósofo Augusto Comte, mas não há como negar que uma parcela dessa culpa é dele e de seu louvor às ciências positivas.

O positivismo teve ampla aceitação no Brasil, nas escolas de Direito, nos círculos militares e sobre alguns dos principais líderes republicanos, entre os quais Benja-min Constant (1836-1891), fundador da Sociedade Positivista (1876). Aliás, o lema da bandeira nacional, ordem e progresso, é de inspiração comteana. Existe até uma Igreja Positivista do Brasil, como resultado dos esforços de Miguel Lemos (1854-1917) e R. Teixeira Mendes (1855-1927). Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio Romero (1859-1914) destacaram-se entre os intelectuais influenciados por essa escola.

Uma das maneiras de se mensurar, em nosso país, o grau da difusão de um determinado corpo de doutrina é observando se ele deixou marcas em nossa cultura popular. Raras correntes de filosofia tiveram esse mérito. Uma delas é o positivismo, cujo principal slogan inspirou o seguinte samba de Noel Rosa e Orestes Barbosa, cujo nome é justamente Positivismo:

O amor vem por princípio, a ordem por base

O progresso é que deve vir por fim.

Desprezaste esta lei de Augusto Comte

E foste ser feliz longe de mim.

3 Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista inglês John Maynard Keynes nos anos 1930 e consiste na afirmação do Estado como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego.

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Para concluir, podemos afirmar que o positivismo é a ideologia da burguesia quando ela deixa de ser uma classe revolucionária. No período que precede e acompanha a Revolução Francesa, a burguesia era uma classe ainda em busca de seu espaço, em luta sobretudo com a nobreza e o clero. Sua ideologia era o Iluminismo e seu discurso assumia não raro a arrogância e a intrepidez de quem se julga na vanguarda da história. Passado um século, a burguesia já estava as-sentada no poder das principais nações europeias. Todavia, à sua sombra nasceu uma nova classe: o proletariado, que já encampa o antigo discurso revolucioná-rio dos burgueses. Desse modo, temerosa de perder os privilégios recém-con-quistados, a burguesia operou uma sensível modulação em seu discurso e, em vez de liberdade e igualdade, passou a falar em ordem e progresso. Não é à toa que, em nosso país, foi nas fileiras do exército – organismo que tem a missão de manter a ordem instituída – que o positivismo mais encontrou guarida.

Texto complementar

A verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva

(COMTE, 1964, p. 274-275)

Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter pró-prio da filosofia positiva, é indispensável lançar antes um olhar geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto; pois nenhuma concepção se pode conhecer tão bem se não é por sua história.

Assim, pois, estudando o desenvolvimento total da inteligência humana nas diversas esferas de sua atividade, desde sua origem até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual se acha submetida por uma necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se, seja sobre as verificações históricas, resultantes de um exame atento do passado. Consiste esta lei em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teó-

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ricos diversos; o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente em cada uma das suas investigações três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e, inclu-sive, radicalmente oposto; primeiro o método teológico, depois o método metafísico, e por fim o método positivo. Daí três espécies de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se ex-cluem mutuamente: o primeiro é o ponto de partida necessário da inteligên-cia humana; o terceiro, seu estado permanente e definitivo; o segundo está destinado unicamente a servir de transição.

No estado teológico, o espírito humano, ao dirigir essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, das causas primeiras e finais de todos os efeitos que percebe, numa palavra, para os conhecimentos ab-solutos, se representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e continuada de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja inter-venção arbitrária explica todas as aparentes anomalias do universo.

No estado metafísico, que não é no fundo senão uma simples modifica-ção geral do primeiro, se substituem os agentes sobrenaturais por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidas como capazes de engendrar por elas mesmas todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste então em consignar a cada um deles a entidade correspondente.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossi-bilidade de obter noções absolutas, renuncia à procura da origem e desti-no do universo e ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos, para aplicar-se unicamente à descoberta, mediante o emprego bem combinado do raciocínio e da observação de suas leis efetivas, isto é, suas relações inva-riáveis de sucessão e de semelhança. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, não é agora senão a união estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais que os progressos da ciência tendem cada vez mais a diminuir em número.

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Atividades 1. Segundo sua opinião, vivemos ainda sob a herança do positivismo ou já

adentramos em uma época pós-positivista? Discuta com a turma e registre suas conclusões.

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2. Quanto às principais influências do positivismo, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

A filosofia da história de Giambattista Vico. )(

O enciclopedismo francês, com Diderot e D’Alambert, que procurava )(reunir e catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo.

O criticismo de Immanuel Kant. )(

O progresso das ciências experimentais, como a química e a biologia. )(

O historicismo da escolástica tardia. )(

O socialismo utópico de Saint-Simon. )(

O empirismo inglês. )(

3. Como vimos, o projeto inicial de Comte é substituir a filosofia, com seus conceitos abstratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela ciência, ou melhor, pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a tota-lidade dos fenômenos empíricos. Ainda há espaço no projeto comtiano para a filosofia?

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Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como poderemos nós,

os assassinos entre os assassinos, nos consolarmos? O que foi mais santo e poderoso de

tudo que este mundo jamais possuiu sangrou até à morte sob nossas facas. Quem remo-

verá este sangue de nós? Com que água nos purificaremos?

Friedrich Nietzsche

Vates e filósofosToda época tem seus profetas. Por uma rara união de sensibilidade e

inteligência igualmente raras (mais a primeira que a segunda, atributo de profetas e poetas), os profetas têm a peculiaridade de ler nas entranhas do tempo em que vivem os augúrios dos dias que não vivem, mas antecipam. Nietzsche foi um desses. Em uma breve e atormentada vida, ele anteci-pou muitas das discussões que só estariam maduras um século depois. Infelizmente para eles, a maioria desses profetas nasce póstuma, como o próprio Nietzsche disse de si. Isto é, o reconhecimento, quando vem, acontece quando eles já estão mortos. Ou quase. Não foi diferente com Nietzsche: quando suas ideias começaram a encontrar interlocutores, sua mente ensaiava o salto definitivo na loucura.

O escritor Ezra Pound (1885-1972) disse que os poetas são as antenas da raça. Nesse termo, poeta, está mesclado o sentido de profeta e ambos se encontram na palavra vate, com que antigamente se denominavam tanto um quanto outro. O filósofo dificilmente é visto como um vate, pelo menos desde Descartes (1596-1650). Defensor da razão, o filósofo só pode antecipar o futuro como futurólogo, isto é, como alguém que, lendo nas entrelinhas da atualidade, propõe um prognóstico razoável do amanhã, com tendências, probabilidades estatísticas. O vate, ao contrário, é aquele que, a partir da intuição, profetiza o porvir e, não raro, ao profetizar, ante-cipa esse porvir, instaura-o. Nietzsche foi um vate. Não que não tenha sido um filósofo. Como um bom alemão, teve uma sólida formação clássica e,

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quando foi preciso, soube escrever de maneira sistemática, como o costumam fazer, amiúde de modo aborrecido, os filósofos profissionais. Sim, mas Nietzsche não foi um vate apenas no conteúdo: também o foi na forma. E aqui se revela inteiramente o seu lado poeta. Servindo-se de aforismos, de fragmentos, de poemas, de diálogos, de monólogos, de imagens inusitadas, esse filósofo, mais que outros antes dele, escreveu como um poeta. “Escreve com sangue”, disse ele certa vez, “e descobrirás que sangue é alma.” Sua filosofia é a martelada final que desconjunta todos os belos e grandiosos edifícios filosóficos erigidos pelo idealismo alemão no século XIX. Sua filosofia revela, mais até que a de um outro alemão – Karl Marx (1818-1883) –, que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Se hoje já não há mais nada seguro no que se agarrar, o principal culpado é este pensador apaixonado por música e poesia.

Para compreendermos o século XX, e este século XXI que ainda está na aber-tura, é inelutável que encaremos esse vate-filósofo que não temeu encarar seus demônios e soltá-los sobre o mundo.

Uma vida perigosa Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, na casa paro-

quial do vilarejo de Röcken, na Saxônia, então província do cada vez mais pode-roso império da Prússia. Coincidentemente, era o dia do aniversário do impera-dor, Frederico Guilherme IV, o que fez com que a criança recebesse o nome do monarca. Seu pai, um pastor luterano filho de outro pastor, veio a falecer cinco anos depois, obrigando a família a mudar-se para Naumburgo. Nessa cidadezi-nha, o futuro crítico radical do cristianismo frequentou várias escolas, recebendo a alcunha de pastorzinho por causa de seu jeito recluso e tímido. Aos 14 anos de idade foi estudar em um internato na vizinha Pforta. Sua infância e sua ado-lescência foram cheias de devoção (ele lia a Bíblia até seus olhos se encherem de lágrimas), solidão, poesia e mortes: além da morte do pai, ele perdeu um irmãozinho logo em seguida, e mais tarde a tia e a avó paterna. A enfermidade também foi sua companheira desde cedo – em 1856, sofreu a primeira crise de dor de cabeça, o que o acompanharia pela vida afora.

Lia muito: Emerson (1803-1882), Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805), Sterne (1713-1768), Humboldt (1769-1859), Goethe (1749-1832), Hölderlin (1770-1843), Novalis (1772-1804)1. Em 1860, caiu-lhe nas mãos A Essência do Cristianismo, de 1 Com exceção do naturalista Humboldt, todos os demais são literatos, sobretudo ligados ao romantismo.

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Ludwig Feuerbach (1804-1872), um hegeliano de esquerda que também influen-ciara Marx. Esse livro abriu as primeiras fissuras em sua até então fervorosa fé. Em Pforma, além disso, Nietzsche recebeu uma sólida formação humanista, adquiriu disciplina e fez algumas amizades importantes.

Aos 19 anos, matriculou-se na Universidade de Bonn para estudar Teologia e Filologia, com vistas a seguir a carreira religiosa de seus antepassados. Um pouco depois, porém, desapontando seus familiares, resolveu cursar apenas Filologia. No ano seguinte, transferiu-se para a Universidade de Leipzig, para acompanhar os cursos do eminente helenista Ritschl. Esse também foi o ano do seu acachapante encontro com Schopenhauer (1788-1860) por meio de O Mundo como Vontade e Representação: “Levou o livro para seus aposentos e leu avidamente palavra por palavra. ‘Parecia que Schopenhauer estava se dirigindo a mim pessoalmente. Senti seu entusiasmo e parecia vê-lo à minha frente’” (DURANT, 2000, p. 374).

Foram anos felizes para o futuro filósofo, de muita bebida e cigarro – que depois ele abandonaria por achar que prejudicavam a mente. Também é dessa época a sua primeira e desastrada experiência em um bordel. Foi o período em que pro-vavelmente contraiu sífilis, doença incurável na época e provavelmente causa ou complicador de seu estado de saúde cada vez mais precário e de sua demência final. Convocado para o serviço militar em 1867, sofreu uma fratura em uma queda de cavalo, sendo dispensado depois de uma longa e dolorosa convalescença.

De volta a Leipzig, conheceu Richard Wagner (1813-1883). Nietzsche viu-se arrebatado pelo carisma desse grande compositor, que vivia com pompa e luxo, acompanhado de um séquito de admiradores. Wagner convidou-o a vê-lo mais vezes em sua casa em Triebschen, na Suíça. Dois meses depois, o jovem professor – que recebera o título de doutor sem precisar de tese ou exame em decorrência de seu brilhante desempenho acadêmico – foi nomeado para uma cadeira na Universidade de Basileia, também na Suíça, o que lhe deu condições de frequen-tar com assiduidade a casa do músico.

Em 1870, foi deflagrada a Guerra Franco-Prussiana e Nietzsche obteve permis-são junto às autoridades suíças para se alistar como enfermeiro. Contudo, uma disenteria o obrigou a retornar mais cedo para casa. A saúde voltou a perturbá-lo. Um pouco depois, em uma carta a um amigo, ele confessou: “Entre cada 14 dias e três semanas tenho que passar 36 horas seguidas na cama.” Na guerra, entretanto, descobriu que “a mais forte e elevada vontade de viver não se encontra na luta pela vida, mas na vontade de potência, numa vontade de guerra e dominação. ” Toda-via, Nietzsche não ficou empolgado pelos feitos militares do império alemão.

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Em 1872, ele publicou seu primeiro livro, A Origem da Tragédia, em que de-fende a tese de que a cultura grega antiga vivia a tensão entre dois princípios básicos e divergentes – o dionisíaco (ligado à exacerbação dos sentidos) e o apo-líneo (ligado à razão e ao equilíbrio das formas). Apesar de o livro ter agradado a alguns, a crítica negativa de um eminente filólogo lançaria o seu autor em um gradativo ostracismo. Nos cursos que ministrou a seguir, a audiência foi cada vez menor. Por um lado, sua voz tornara-se fraca, quase inaudível para seus alunos, ao mesmo tempo que sentia-se entediado com a Filologia.

Apesar disso, continuava a escrever. Entre 1873 e 1876, redigiu uma série de ensaios polêmicos, reunidos depois sob o título de Considerações Extemporâneas, nos quais criticava vários aspectos da modernidade. Dois anos depois, reuniu suas anotações e lançou Humano, Demasiado Humano, obra em que adota o aforismo2 como meio de expressão, na busca por uma forma de dar vazão às suas inquieta-ções filosóficas. Todavia, durante muito tempo a repercussão de seus livros seria irrisória, o que atormentaria grandemente alguém consciente de haver sido des-tinado à genialidade.

Saúde precária e livros vigorosos O ano de 1879 foi um dos piores para Nietzsche: com frequência, terríveis

dores de cabeça e na vista impediam-no de ler e escrever. Ao longo do ano, ele teve 118 dias de crise grave, sendo que chegou a sofrer mais de 70 horas de dores ininterruptas. Por causa desse estado de saúde, em maio resolveu demitir- -se da universidade. Uma pensão anual que lhe foi concedida permitiu que vi-vesse modestamente até o fim da vida. Abraçou então uma existência errante, sempre em busca do melhor clima para a sua saúde, não passando mais de seis meses na mesma localidade. Viveria assim em lugarejos da Suíça, da Alemanha, da Itália e da França. Em 1881, em uma cidadezinha da Suíça, durante um pas-seio pelas montanhas, teve a “revelação” do eterno retorno: tudo que existe já existiu e tornará a existir outra vez.

Apesar da tranquilidade que lhe permitiu se entregar às reflexões, ele não se acostumou facilmente à solidão. Tentou se casar, mas nenhuma mulher por quem se interessou lhe correspondeu. Sua saúde foi se deteriorando cada vez mais. Desapontado com a medicina, tomou as rédeas de seu tratamento, ob-servando em seu organismo os efeitos das dietas que inventava. Com esse fito, 2 Em um sentido mais geral, aforismo ou ditado é uma sentença de poucas palavras que explicita um princípio moral. Entre os filósofos, os aforismos são textos curtos e sucintos, em um estilo fragmentário e assistemático.

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ingeria toda espécie de drogas em busca de um alívio para suas lancinantes ce-faleias, suas dores de cabeça: sais, soporíferos, ópio, haxixe. Ao mesmo tempo, a ideia de suicídio não lhe saía da cabeça.

Mas nenhum tormento físico ou psíquico conseguiu impedir o seu trabalho: de 1883 a 1885, Nietzsche redigiu o seu célebre Assim Falou Zaratustra, seguido de outros livros em velocidade impressionante, pois ele sabia que dispunha de pouco tempo. Sua obra é um formidável testemunho da força de vontade – ou vontade de potência, na linguagem nietzscheana – sobre as contrariedades, as incompre-ensões e a enfermidade mais atroz. Entre as obras desse período estão:

Para Além do Bem e do Mal (1886);

Para a Genealogia da Moral (1887);

O Crepúsculo dos Ídolos ou como Filosofar com o Martelo (1888);

O Anticristo (1888).

Em 1889, veio o colapso final. Tomado por convulsões, o filósofo entrou em delírio. Mandou cartas alucinadas para os seus amigos, para a mulher de Wagner, e inclusive para o rei da Itália, assinando ora Dionísio, ora “o Crucificado”. Ele, que sempre combatera a compaixão, é visto abraçado a um cavalo, protegendo-o dos açoites do cocheiro. A 10 de janeiro, foi internado na clínica psiquiátrica de Basileia, sendo logo transferido para a de Jena. No ano seguinte, deixou a clínica, ficando sob os cuidados de sua mãe. Com a morte desta, transferiu-se para Weimar, sob a guarda de sua irmã Elisabeth, casada com um antissemita – e assim seus manuscritos inéditos seriam manipulados para servir às ideias do antissemitismo.

Boa parte do tempo Nietzsche permanecia em estado catatônico, quase re-duzido a um vegetal. Não reconhecia seus familiares nem seus amigos. Uma vez, ao ver alguém folheando um livro, comentou: “Não escrevi eu também bons livros?”. A partir de 1894, porém, já não falava – apenas berrava sons ininteligí-veis enquanto seu rosto ostentava uma aparência de grande serenidade. Pouco depois, só se locomovia em uma cadeira de rodas. Por fim, em 25 de agosto de 1900, morreu Friedrich Nietzsche.

Nos seus últimos dez anos, sua obra começou a conquistar a aclamação pú-blica que ele tanto ansiara. Sua fama se difundia mundialmente, de maneira como ele nunca pudera imaginar em seus sonhos mais megalomaníacos. Mas disso ele nunca soube.

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Uma filosofia feita com o martelo A filosofia de Nietzsche é feita a marteladas, isto é, quebrando os ídolos e

ícones do passado. Sobre o crepúsculo dos ídolos, sobre a destruição das velhas verdades, ele constrói uma filosofia nova, não mais um sistema com pretensões de abranger o mundo, como o fizeram ou tentaram fazer os grandes filósofos do idealismo alemão, mas uma filosofia feita de lampejos capazes de iluminar as contradições e as fissuras do real. Por isso, para Nietzsche, não se trata mais de al-cançar a verdade ou estabelecer as condições do conhecimento, mas sim saber interpretar e avaliar. A finalidade da interpretação é a tentativa da determinação do sentido de um fenômeno, e esse sentido será sempre parcial e fragmentário. A avaliação, por sua vez, tem por meta a determinação do lugar desse sentido no conjunto dos fenômenos.

Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-socrá-ticos, os quais, segundo ele, não separavam pensamento e vida, que se alimen-tavam e retroalimentavam mutuamente. Mas o desenvolvimento da filosofia no Ocidente trouxe consigo o fim dessa relação harmônica e, em vez de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia outorgou-se a missão de “julgar a vida”, opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do filósofo críti-co de todos os valores instituídos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico – do qual o primeiro representante, conforme Nietzsche, seria Sócrates. Ao esta-belecer uma clara distinção entre dois mundos – um sensível e outro inteligível –, Sócrates teria lançado a pedra fundamental da metafísica, fazendo da vida um objeto a ser avaliado e medido à luz de valores ideais, como a verdade, o bem e o belo. Assim, com Sócrates, inaugurava-se não somente a metafísica ocidental, mas também a época da razão autônoma e do homem teórico, em oposição à antiga tradição extática do período da tragédia.

Para Nietzsche, a tragédia grega ostentaria como marca distintiva um co-nhecimento intuitivo da unidade de todas as coisas, constituindo-se como uma espécie de portal de acesso à essência do mundo. No entanto, para Sócrates, o teatro trágico não passava de expressão do irracional e do ilógico, represen-tando o agradável e não o útil, a ponto de pedir a seus discípulos que se abs-tivessem dessas emoções “indignas de filósofos”. Portanto, para ele, a tragédia desviaria o ser humano da senda da verdade: “uma obra só é bela se obedecer à razão”.

Com tal concepção, estebeleceu-se, segundo Nietzsche, um autêntico anta-gonismo entre Sócrates e Dionísio, também chamado Baco, que é o deus do

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vinho e representa a força dos instintos e da espontaneidade de viver. Enquanto para todos os seres humanos produtivos o instinto é uma energia positiva e cria-dora (ao passo que a consciência é crítica e negativa), em Sócrates se inverteria essa relação: a consciência é criadora e o instinto é crítico. Assim, Sócrates, o “homem teórico”, foi o primeiro antagonista do homem trágico, dando início a uma mudança radical na compreensão do ser humano. Com ele, os seres hu-manos afastam-se cada vez mais desse conhecimento instintivo na medida em que abandonam o trágico – a mais profunda revelação da natureza da realidade, segundo Nietzsche. Uma vez perdida a ancestral sabedoria da tragédia, resta ao pai da moral ocidental somente uma faceta da vida do espírito: o lado lógico- -racional. Dionísio é morto, e foram Sócrates e seus discípulos que o mataram.

Por esse motivo, Nietzsche combate implacavelmente a metafísica, retiran-do-lhe todo e qualquer valor. Para ele, as ideias não são mais verdadeiras ou falsas – são apenas sinais. A única existência real é a aparência e o único juízo permitido é sua interpretação. Afinal, não existe essência e o ser humano está destinado à multiplicidade. Nietzsche, o demolidor das ideias aceitas, retrocede às origens da filosofia e da moral ocidentais – isto é, a Sócrates – para proceder a desconstrução do castelo metafísico do Ocidente.

O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povoTodavia, o combate de Nietzsche não se restringe à herança socrático-platô-

nica, mas estende-se também e sobretudo ao cristianismo. Segundo ele, o cris-tianismo, espécie de versão popular do platonismo, ao transferir a esperança de felicidade do mundo terrestre concreto para o mundo celeste, constituiria uma espécie de metafísica, a qual, à luz das ideias do “além”, julgaria o mundo real como provisório, inautêntico e aparente. Dessa forma, o cristianismo é a forma mais acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo. Ancora-do em dogmas e crenças que proporcionam à consciência fraca um escape da vida, da dor e da luta, ele erige em virtudes de características passivas e negati-vas como a resignação, a renúncia e a submissão.

Na verdade, são os escravos e os vencidos que inventaram o além para se consolarem das misérias da vida. Idealizaram falsos valores para compensar sua incapacidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes. Cunharam o mito da salvação da alma porque não usufruíam de seus corpos. Forjaram a ideia de pecado porque não podiam participar das alegrias mundanas e da plena sa-tisfação dos instintos da vida.

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Imbuído dessas ideias, Nietzsche investe-se da tarefa de restaurar a vida em sua plenitude e transvalorar os valores falseados pelo cristianismo. Entre outras coisas, ele recupera um sentido esquecido da palavra “bom”. Em latim, bonus sig-nifica também “guerreiro”, significação esta que foi obliterada pelo cristianismo. Da mesma maneira, outros significados precisariam ser recuperados, constituin-do-se uma espécie de genealogia da moral, que explicaria as origens e variações dos conceitos de bem e mal. Para Nietzsche, os complexos que estariam por trás da moral cristã são o ressentimento, o sentimento de culpa e o ideal ascético, que converteriam a vontade de potência original em vontade de nada, em nii-lismo. Desse jeito, a vida transformar-se-ia em fraqueza, a saúde em mutilação, o vigor em torpor. É a vitória do negativo sobre o positivo, da reação sobre a ação. Quando prevalece esse niilismo, alega Nietzsche, a vontade de potência deixa de ser criação e transforma-se em dominação.

Assim, no cristianismo, Nietzsche detecta o triunfo da moral dos escravos e dos pusilânimes. Nessa moral tudo é invertido: os fracos são fortes, a vileza é nobreza. O resultado é a hipocrisia e o uso de máscaras nas relações sociais. Cabe ao sábio, ao escavar como um arqueólogo as camadas mais profundas das convenções da sociedade, denunciar a inversão dos valores e revelar que, na verdade, o bem é a vontade do mais forte, do mais capaz, do “guerreiro”. Em outras palavras, o bem é a vontade do porta-voz de um chamado a uma con-tínua superação dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida essa expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Nesse sentido, o voo da águia, a escalada da montanha e todas as imagens de ascensão encontráveis em Assim Falou Zaratustra represen-tam a inversão da profundidade “cristã” e a descoberta de que ela não passa de um jogo de superfície.

Além do mais, não existe um sentido original ou legítimo por trás das pala-vras, pois elas próprias, antes mesmo de serem signos, já são interpretações. O trabalho do filósofo, portanto, consiste no problema de descobrir o que é que há para ser interpretado, na medida em que tudo é interpretação, jogo, máscara.

O super-homem e a nova moralEm Ecce Homo, o último livro de Nietzsche, Zaratustra e Dionísio são aproxi-

mados entre si, o primeiro sendo concebido como o triunfo da vontade de po-tência e o segundo – um deus artista, arteiro, totalmente irresponsável, amoral e ilógico – como signo do mundo como vontade. Por outro lado, a tragédia grega, concebida como inteiramente oposta à decadência que se seguiu a ela, se situa

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na antinomia entre a vontade de potência, aberta ao futuro, e o eterno retorno, que faz do futuro uma repetição, ainda que esta não signifique uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo. De fato, o eterno retorno nietzscheano é es-sencialmente seletivo.

Para Nietzsche, agora, o verdadeiro oposto de Dionísio não é mais Sócrates, mas o Crucificado. De um lado, temos a afirmação da mudança e da multiplici-dade, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dionísio; de outro, a negação da vida e o desejo de vingança. Dessa forma, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em vez do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou inútil, o ser humano vislumbra no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância de nascimento e morte, júbilo e luto, o bem e o mal. O eterno retorno, assim, ofereceria uma saída para fora da mentira bimilenar do cristianismo, e a transvaloração dos valores traria consigo o super- -homem que se situa além do próprio homem.

É importante, porém, entender o que Nietzsche quis dizer exatamente com esse termo. Ora, para ele, o super-homem – o além-do-homem – não é um ser cuja vontade seja um mero desejo de domínio. Se a vontade de potência for entendida simplesmente como um desejo de domínio, faz-se dela algo depen-dente dos valores dominantes. Dessa forma, ignora-se sua verdadeira natureza, a qual é a energia que impulsiona todas as avaliações e cria os novos valores. Por esse motivo, a vontade de potência impele o super-homem para além do bem e do mal, libertando-o, ao mesmo tempo, dos produtos de uma cultura em deca-dência. Sua moral é, assim, o oposto à moral do escravo e do rebanho, a qual por seu turno é a moral da compaixão, da doçura feminina e cristã. O forte é aquele que soube operar a transmutação dos valores, fazendo triunfar o afirmativo da vontade de potência. Desse modo, Zaratustra, o profeta do super-homem, é a afirmação pura, a afirmação que leva a negação ao seu último nível, tornando-a uma ação, uma instância a serviço do ato criador.

Nietzsche e a educação Na área da educação, Nietzsche, que foi por um tempo professor universitá-

rio, não deixou de lançar também suas setas venenosas. Ele foi especialmente crítico do sistema de ensino superior alemão. Ainda na esteira do hegelianis-mo – o primeiro grande sistema filosófico ancorado na ideia de história – as universidades alemãs privilegiavam o ensino da história. Mas para Nietzsche o problema residia justamente aí, no conceito de cultura histórica que subjazia

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a esse ensino. Um estudo da história que não serve para engendrar vida e criar novos valores só é útil aos interessados em manter a ordem estabelecida. Ou seja: o ser humano só deve se utilizar da história quando ela estiver a serviço da vida.

Ora, para Nietzsche, confundia-se cultura com cultura histórica. Por isso a tão exuberante erudição alemã tornara-se um falso saber, sobretudo por tolerar a contradição entre cultura e vida. A cultura, na opinião do filósofo, só pode se desenvolver a partir das necessidades autênticas da vida. Ao contrário, o excesso de informação histórica, a ruminação incessante do passado, a cultura da memó-ria são forças que agem no sentido de separar cultura e vida. Quando a história atua a serviço do passado, torna-se na verdade “coveira do presente”, adverte Nietzsche. Não se trata, naturalmente, de abolir o ensino da história, mas de do-sá-lo. Absorvida em proporções adequadas, a história não envenena a vida nem amarra o presente ao passado.

O artista, por sua vez, não deixa que a massa de informações históricas o sub-merja, porque ele sabe que isso destruiria o seu poder criador. Embora o artista busque modelos e inspiração no passado, toda obra de criação é uma obra ra-dicalmente nova. Todavia, o erudito serve-se da história para remover a força do presente. Na verdade, segundo Nietzsche, por trás da cultura histórica vigora uma concepção teológica, ainda que “camuflada”, herdada da Idade Média. O olhar para trás prediz de certa forma o fim da vida, o último ato da tragédia. Afinal, é bom conhecer o passado porque é tarde demais para se fazer alguma coisa – é esse de certa forma o pensamento dominante.

Todo esse pessimismo lança uma sombra sobre a educação e a cultura. Mas não basta despojar o ensino alemão de seu culto à história, é necessário uma tarefa positiva, construtiva. Mas se grande parte dos professores alemães se utilizam da história para transformar os alunos em indivíduos apenas capa-zes de ganhar dinheiro ou servir o Estado, onde encontrar educadores que possam colocar o ensino da história a serviço da vida? Para tanto, seria preciso começar do zero. Uma nova geração deveria ser formada, com novos hábitos e uma nova natureza. Ora, as pessoas agem mais por convenção do que por convicção. Para libertar-se da moral do rebanho, é preciso que elas triunfem sobre si mesmas, sobre as noções de cultura que lhe foram inculcadas. Nessa renovação, para Nietzsche, é imprescindível a formação artística, não apenas informações sobre a arte e a história da arte. Pois, efetivamente, numa época em que vida e cultura andam dissociadas, a arte tem uma função primordial: afirmar a vida em sua totalidade.

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Nietzsche está vivo Nietzsche morreu duas vezes. Uma em 1889, quando sua mente abandonou

de vez o mundo da racionalidade e da lógica. Outra em 1900, quando o seu corpo sucumbiu ante o peso de décadas de atrozes sofrimentos físicos. Todavia, entre uma data e outra sua obra adquiriu vida própria e ele veio a se tornar um dos filó-sofos mais lidos e discutidos de todos os tempos. Sem fundar uma escola propria-mente dita, como Marx, suas ideias e conceitos não se restringiram ao ambiente acadêmico nem aos especialistas. E o fato de ela ter sido escrita basicamente em forma de aforismos, significa que ela também podia ser lida por um público mais amplo – ao contrário da maior parte da filosofia de seus conterrâneos que sempre pareceram experimentar um estranho prazer em escrever de forma ilegível.

Eis finalmente uma filosofia que se pode ler, cintilante, fulminante. Mas não necessariamente clara. Como os oráculos, ela pode ser interpretada de diver-sas maneiras. E foi. Aliás, não poucas filosofias no mundo foram tão distorcidas quanto a de Nietzsche. Os antissemitas, e depois os fascistas, começaram a pinçar pequenos trechos de sua obra e a lê-los fora do contexto. Por isso, sua filosofia foi durante muito tempo desacreditada. Hoje se conhece os bastidores dessa tentativa de manipulação: quem mergulhou no delírio absoluto foi o nazismo, não a filosofia de Nietzsche.

Sua filosofia, malgrado sua aparência muitas vezes alucinatória, permanece es-tranhamente lúcida. Foi a primeira manifestação vigorosa de repúdio ao positivis-mo e à idolatria da razão e da técnica. Com efeito, a segunda metade do século XIX assinala a apoteose da crença na ciência. É o domínio de Apolo, o severo deus da racionalidade, da justa medida e da ordem. Contra um mundo todo racionalizado e controlado, Nietzsche prefere as forças obscuras de Dionísio. Contra a razão de Apolo, ele brande, antecipando Freud, as razões de Dionísio. Contra o império da ordem, as forças libertárias da arte.

E quando, na década de 1980, começou-se a se articular o pensamento que recebeu o rótulo de pós-moderno, cuja matriz era justamente uma crítica aos fundamentos racionalistas da modernidade, o principal inspirador que seus expoentes foram buscar foi Nietzsche. Ademais, boa parte dos pensadores do século XX são devedores de Nietzsche: Adorno (1903-1969), Heidegger (1889-1976), Sartre (1905-1980), Foucault (1926-1984), Lyotard (1924-1998), Derrida (1930-2004). Ademais, Nietzsche faz parte da tríade de nomes – os “mestres da suspeita”, no dizer de Paul Ricoeur – que forjaram o espírito do século XX: Marx, Freud (1856-1939) e ele. Dos três, Nietzsche parece o mais habilitado para uma longa vida no século XXI.

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Texto complementar Apresentamos aqui uma seleção de frases e textos de Nietzsche.

Citações-chave(NIETZSCHE, 1997, p. 59-66)

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fe-nômenos.

(Aurora, livro IV, 415)

Deus está morto.Viva perigosamente. Qual é o melhor remédio? – Vitória.

(Aurora, 571)

A melhor cura para o amor é ainda aquele remédio eterno: amor retribuído.

(Aurora, livro IV, 415)

As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.

(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9, 483)

Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimensão mais profun-da, raramente permanecem fiéis a ela para sempre. Porque expuseram essas profundezas à clara luz do dia; e o que lá se encontra não é em geral agradá-vel de ver.

(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9, 489)

Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmen-te sabem.

(Crepúsculo dos Deuses; Máximas e Setas, 2.1)

O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vós a priori do caráter da existência para poder decidir que a desconfiança abso-luta apresenta mais vantagens do que a absoluta confiança? E se ambas são necessárias, uma grande confiança e uma grande desconfiança, onde irá a ciência procurar essa convicção absoluta, essa fé que lhe serve de base e que diz que a verdade importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo

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qualquer outra convicção? Essa convicção de base não se pode formar se o verdadeiro e não verdadeiro se afirmarem sempre – e é esse o caso! – úteis tanto um como o outro. Portanto, a fé na ciência, essa fé que existe de fato de uma maneira incontestável, só pode ter sua origem num cálculo utilitá-rio; deve ter-se formado, pelo contrário, apesar do perigo e da inutilidade da “vontade da verdade”, apesar do perigo e da inutilidade da “verdade de qualquer maneira”, perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar.

“Querer a verdade” não significa, portanto, “não querer deixar-se enga-nar”, mas – e não há outra escolha – “não querer enganar os outros, nem a si próprio”, o que nos leva para o domínio moral. Perguntemo-nos seriamen-te com efeito: “Por que não queremos enganar?” sobretudo se parece – é bem esse o caso! – que a vida seja vivida em vista da aparência, quero dizer que tenha como objetivo extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, por outro lado, de fato, ela se mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menos escrupulosos trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de não enganar pode passar por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também possível que seja alguma coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida “Querer o verdadeiro” poderia ser, secretamente, querer a morte. De modo que o porquê da ciência se liga a um problema moral: por que, de uma maneira geral, qualquer moral, quando a vida, a natu-reza, a história são imorais? Mas ter-se-á desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé metafísica que assenta ainda a nossa fé na ciência; pes-quisadores do conhecimento, ímpios inimigos da metafísica, nós próprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenária crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro se identifica com Deus e toda a verdade é divina.

(Gaia Ciência, livro V, seção 344)

O que nos torna heroicos? – Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e da sua maior esperança.

Em que tens fé? – Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de todas as coisas.

O que diz a tua consciência? – Deves transformar-te no homem que és.

Onde se encontra o teu maior perigo? – Na piedade.

O que amas nos outros? – As minhas esperanças.

A quem chamas mau? – Àquele que quer envergonhar sempre.

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Que encontras de mais humano? – Poupar a vergonha a alguém.

Qual é a marca da liberdade realizada? – Não mais corar de si próprio.

(A Gaia Ciência, livro III, 268-275)

De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito.

Quero ter duendes ao meu redor, porque sou corajoso. A coragem que afugenta os fantasmas cria seus próprios duendes: a coragem quer rir.

Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo debaixo de mim, essa coisa negra e pesada – é, justamente, a vossa nuvem de temporal.

Vós olhais para cima, quando aspirai a elevar-vos. Eu olho para baixo, porque já me elevei.

Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?

Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras.

Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos – assim nos quer a sa-bedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.

(Assim Falou Zaratustra, I, Do ler e escrever)

“O homem é mau” – assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá isso fosse verdade ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.

“O homem deve tornar-se melhor e pior” – isto ensino eu. O pior que tudo é necessário para o maior bem do super-homem.

Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele pregador do povinho.

Eu, porém, me rejubilo com o grande pecado como a minha grande con-solação.

(Assim Falou Zaratustra, V, Do homem superior, 5)

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Atividades1. Nietzsche foi um vate, isto é, um misto de profeta e poeta. Ele soube ante-

cipar, de uma maneira mais intuitiva que sistemática, muito das discussões e problemas da atualidade. Você poderia citar outros nomes que apresenta-ram essas mesmas características? (Não é necessário apontar apenas filóso-fos, pode ser também escritores, poetas, letristas etc.)

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2. Quanto ao pensamento de Nietzsche, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

Junto com Karl Marx, Nietzsche foi um dos mais conhecidos hegelianos )(de esquerda.

A filosofia de Nietzsche foi primeiramente influenciada pela de )(Schopenhauer.

A “vontade” de Schopenhauer inverte de sinal, tornando-se positiva e )(transformando-se em “vontade de potência” em Nietzsche.

A )( ataraxia (imperturbabilidade) é um dos principais ideais perseguidos por Nietzsche.

Suas ideias influenciaram Adorno, Heidegger, Sartre, Foucault, Lyotard, )(Derrida, entre outros.

O ateísmo radical de Nietzsche está na base do materialismo positivista )(de Auguste Comte.

3. Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-so-cráticos. Por quê?

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Para produzir filosofiaComo vimos, Nietzsche produziu uma filosofia a marteladas, destruindo

ídolos e verdades tidas como eternas. Empunhe agora, um pouco que seja, do martelo de Nietzsche e olhe ao seu redor, sobretudo no ambiente de trabalho educacional. Que mitos você poderia “destruir” hoje?

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A Escola de Frankfurt

Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que

parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos

estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que neces-

sariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde

para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só ca-

tástrofe, que não para de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria

ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade

que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-

-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas,

enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo que nós

chamamos progresso.

Walter Benjamin

A herdeira do fachoApós a debacle ou a ruína da cosmovisão medieval, o pensamento oci-

dental vai encontrar na França do século XVII o principal expoente de sua refundação: René Descartes (1596-1649). Um pouco depois, a vanguar-da do pensamento europeu migra para o norte e, ao longo da primeira metade do século XVIII, os empiristas ingleses darão a tônica. Todavia, na segunda metade do mesmo século, novamente a França, com o Iluminis-mo, foi o centro do cenário.

Mas já por essa época, ali pelo final do século XVIII, por todo o XIX e em boa parte do XX, a pole position da filosofia esteve com a Alemanha. Basta citar o nome de alguns filósofos para nos darmos conta dessa incon-teste supremacia: Immanuel Kant (1724-1804), Georg Hegel (1770-1831), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Até a primeira metade do século XX essa supremacia não foi obscurecida nem mesmo pelas duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com duas fragoro-sas derrotas da Alemanha, nem pela barbárie nazista.

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Dois grandes grupos caracterizam esse período.

O primeiro, mais eclético, gira em torno da fenomenologia de Edmund Hus-serl (1859-1938) e do existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976).

O segundo, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo, é representado por uma plêiade de pensadores oriundos da chamada Escola de Frankfurt, cuja po-derosa influência continua vigente em nossos dias.

Herdeira da melhor tradição marxista, à qual se somam outros influxos – como os de Nietzsche e Freud (1856-1939) –, a Escola de Frankfurt é com efeito a última glória da filosofia alemã, irradiando o seu crivo analítico por sobre áreas até então não plenamente exploradas, como a cultura de massas, o comporta-mento e a ideologia contemporâneos.

Todavia, a Alemanha em que nasceu e se desenvolveu a Escola de Frankfurt não é o mesmo país que assistiu às carreiras de Marx ou Nietzsche. Unificada em 1871, sob a tutela da Prússia (vitoriosa na Guerra Franco-Prussiana), a Alemanha da primeira metade do século XX é um país humilhado pela derrota na Primeira Guerra Mundial e traumatizado pela malograda revolução proletária de 1918. É também uma Alemanha que viu a ascensão e as consequências de um espec-tro muito mais tenebroso: o nacional-socialismo de Adolf Hitler, no qual estava embutido o projeto expansionista e de limpeza étnica do III Reich – o império alemão sob o governo nazista (1933-1945).

Uma escola críticaA inflação era gigantesca e tumultos sociais conflagravam a Alemanha

quando, no dia 22 de junho de 1924, no auditório da Universidade de Frankfurt, foi fundada aquela que viria a ser conhecida como Escola de Frankfurt. Cogi-tara-se o nome de Instituto para o Marxismo, mas – seja pelo anticomunismo dominante nos meios acadêmicos alemães da época, seja pelo fato de seus co-laboradores não adotarem a ortodoxia marxista – preferiu-se a denominação de Instituto de Pesquisa Social. Somente na década de 1950, e mesmo assim com reservas, a agremiação seria chamada de Escola de Frankfurt.

A iniciativa foi de Félix Weil, um intelectual de apenas 25 anos de idade que conseguiu convencer o pai, um abonado negociante judeu que fizera fortuna na Argentina, a financiar as atividades da instituição. Vinculado ao Ministério da Educação e Cultura da Prússia, o Instituto de Pesquisa Social funcionaria como

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uma espécie de anexo da Universidade de Frankfurt, mas tendo garantida sua total autonomia. Além de um edifício próprio, o Instituto receberia uma dota-ção anual de 120 mil marcos dos fundos de Herman Weil, capitalista e pai do idealizador.

Sem dúvida alguma, a inspiração para a abertura do Instituto de Pesquisa Social veio do Instituto Marx-Engels, de Moscou, fundado havia quatro anos na recém-criada União Soviética.

O primeiro diretor do instituto frankfurtiano foi o economista austríaco Carl Grunberg. Entre 1931 e 1946, Max Horkheimer (1895-1973) assumiu a direção e, nesse período, desenvolveu-se aquilo que ficou conhecido como Teoria Crítica, comumente associada à Escola de Frankfurt. O órgão do instituto, a sua publi-cação oficial, que era conhecida como Arquivos Grunberg, passou a se chamar Revista para a Pesquisa Social, e sua ênfase mudou da economia para a filoso-fia. Porém, a maioria dos números dessa revista reformulada teve sua edição no exílio por conta da ascensão do nazismo, que obrigou seus membros, quase todos de ascendência judaica e praticamente todos de esquerda, a uma diáspo-ra, primeiramente na Suíça e na França e depois nos Estados Unidos.

Aproximando Marx e Freud, e às vezes trazendo Heidegger, em um vasto empreendimento de interdisciplinaridade e síntese, praticamente não houve fenômeno social que não despertasse o interesse da Escola. Tudo foi abordado: filosofia, economia, sociologia, psicanálise, cultura de massas, ideologia, estéti-ca, literatura, cinema, música, os efeitos da tecnologia, as novas feições do capi-talismo, o totalitarismo, o fascismo, a repressão sexual e assim por diante. No en-tanto, a despeito do pano de fundo marxista e neo-hegeliano de que se diziam herdeiros, contribuição mais duradoura dos pensadores da Escola de Frankfurt foram questionamentos de nítida influência heideggeriana feitos às esperanças de emancipação despertadas pelo Iluminismo e também a desconfiança em relação à racionalidade em geral. Testemunhas da devastação provocada pela tecnologia durante as duas grandes guerras e da barbárie totalitarista, os frank-furtianos foram os primeiros teóricos de esquerda a buscar no Iluminismo, ou na perversão do Iluminismo, a origem dos problemas contemporâneos.

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno de alguns mem-bros à Alemanha, a Escola voltou a funcionar em sua cidade de origem, já sob a direção de Theodor W. Adorno (1903-1969). Jürgen Habermas (antigo assistente de Adorno e ainda atuante) com Axel Honneth e Karl-Otto Apel são os frankfur-tianos de maior destaque atualmente.

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A amplitude da influência da Escola de Frankfurt continua sendo imensa. Em uma série de domínios – da filosofia às ciências sociais, passando pela Psicanálise e pelo Direito, categorias sintetizadas por Horkheimer, Adorno, Herbert Marcuse (1898-1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Habermas – ainda são pertinentes e profícuos. Dificilmente outro empreendimento intelectual do século XX tenha gozado de um prestígio tão duradouro. E se levarmos em conta o aparecimento de uma nova geração de intelectuais frankfurtianos, como o já citado Axel Hon-neth, podemos esperar o desenrolar de novos capítulos dessa história.

Os momentos da teoria crítica A construção teórica da Escola de Frankfurt pode ser didaticamente dividida

em três períodos.

O primeiro deles é formado pelos escritos da década de 1930, nos quais, mais próximos do marxismo clássico, Adorno, Benjamim, Horkheimer e Marcuse procuraram responder à questão sobre em que condições seria possível uma teoria materialista da sociedade. Trata-se, portanto, de um período marcado por preocupações acerca da teoria do conhecimento. Ensaios como Materialismo e Metafísica (...), de Horkheimer; O Conceito de História Natural (...), de Adorno; Antologia de Hegel, tese de doutorado de Marcuse, e Alguns Temas Baudelairianos (...), de Benjamin, são obras que se destacaram nesse período.

Um segundo momento contém trabalhos da década de 1940 e sua carac-terística fundamental é o gradual afastamento da teoria marxista da re-volução, com o consecutivo desaparecimento do tema da luta de classes e a consequente substituição da crítica da economia política pela crítica da civilização técnica. Sob o impacto do nazismo e da Segunda Guerra, a Teoria Crítica procuraria a genealogia do fenômeno totalitário, não apenas na crise econômica, política e social, ou no “erro” tático ou estratégico das forças de esquerda alemãs, mas, de maneira original, em uma questão me-tafísica: é a própria noção de razão e de racionalidade a responsável pela produção do irracionalismo fascista. Essa razão funda-se na hostilidade ao prazer, na renúncia à felicidade, no “ascetismo do mundo interior”, no do-mínio e controle da natureza exterior e das paixões humanas. A natureza, assim reprimida, vinga-se na forma da destrutividade social. É desse perío-do o clássico Dialética do Esclarecimento (1947), de Horkheimer e Adorno.

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A partir dos anos 1950, a Teoria Crítica rompe de vez com as esperanças re-volucionárias de seu primeiro momento, encaminhando-se para a análise da sociedade unidimensional, em Marcuse, e da sociedade administrada, em Adorno e Horkheimer. Esse período é marcado pela reflexão acerca do desaparecimento do sujeito revolucionário em sentido marxista: rompe- -se a fé na unidade entre teoria e práxis – o pensamento do intelectual radical e a prática libertadora do proletariado. Este foi integrado primeira-mente pelo nazismo, dissolvido no stalinismo e, posteriormente, na socie-dade tecnológica unidimensional. Daí derivam as reflexões frankfurtianas a respeito das tendências do mundo homogêneo, uniforme, sem oposi-ção, que suprime os indivíduos ao liquidar sua autonomia e a liberdade de sua ação histórica.

Teoria crítica versus teoria tradicionalO nome de Teoria Crítica para o pensamento produzido pela Escola de

Frankfurt deriva de um célebre ensaio programático de Horkheimer, de 1937, intitulado Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Como o título sugere, nesse ensaio Horkheimer aponta a diferença fundamental de dois métodos gnosiológicos, dois métodos de conhecimento.

O primeiro, a teoria tradicional, tem sua base no método cartesiano, o qual

[...] organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. [...] A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. (HORKHEIMER, 1968, p. 163)

A Teoria Crítica da sociedade, por sua vez, fundamenta-se na economia políti-ca e “tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas his-tóricas de vida. [...] O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ele” (HORKHEIMER, 1968, p. 163).

Nesse sentido, a Teoria Crítica apresenta, por meio da constante autocrítica da razão, um posicionamento crítico em relação à ciência e à cultura, oferecendo uma reorganização política da sociedade de modo a se obter a superação do que os frankfurtianos denominaram crise da razão. Para eles, a razão, longe de solução automática, era parte do problema, como elemento de manutenção do status quo. Assim, era preciso uma reflexão sobre essa racionalidade.

Dessa forma, eles efetuam uma severa crítica da fragmentação da ciência em uma série de setores na tentativa de explicação da sociedade. Ao contrário, ao

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propor a dialética como método, eles almejam uma investigação analítica dos fenômenos estudados, relacionando esses fenômenos com as forças sociais que os provocam. Assim, as ciências sociais – cujas pesquisas não vão além de uma mera coleta e classificação de dados – não estariam aptas a apreender a dinâmi-ca do contexto social em todas as inter-relações.

Razão instrumental e indústria cultural Entre as numerosas contribuições da Escola de Frankfurt, importa frisar duas:

os conceitos de razão instrumental e indústria cultural.

Entre outras coisas, os frankfurtianos denunciaram o que seria uma moderna fe-tichização da razão, mostrando que, à medida que a ciência e a técnica passaram a ser decisivas na forma de condução da vida humana, elas também passaram a se constituir instrumentos de dominação. Assim, a razão torna-se instrumento de dominação da natureza, com um espírito e um objetivo não muito diferentes das antigas práticas mágicas.

A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exem-plo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”. Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a ma-neira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar, na Natureza, é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la. (CHAUÍ, 2000, p. 283)

Em um segundo momento, a razão instrumental já não é mais utilizada so-mente para a conquista da natureza, mas também passa a estabelecer as formas de organização social.

Segundo Horkheimer e Adorno, o impulso para a dominação nasce do medo da perda do próprio eu – medo que se revela em toda situação de ameaça do sujeito em face do desconhecido. Nesse sentido, o mito e a ciência têm origem comum: controlar as forças desconhecidas da natureza, a multiplicidade incontrolada do sensível. Para isso, o mito tem um procedimento peculiar na medida em que o sacerdote da tribo mimetiza gestos de cólera ou apaziguamento com relação às

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potências naturais. Um diálogo comunicativo existia, ainda, entre a natureza e os homens, que se permitiam estar assustados por forças desconhecidas.

Que fez a ciência moderna? Transformou a natureza em um “gigantesco juízo analítico”, obrigou-a a falar a linguagem do número, matematizando-a, formali-zando-a. Em outras palavras, se o Iluminismo pretendeu desmistificar a natureza, desenfeitiçá-la pelo recurso da razão explicativa e dominadora dos fenômenos naturais, o resultado foi, segundo Adorno e Horkheimer, “uma triunfante des-ventura” (MATOS, 1995, p. 45-46).

Embora irracional sob o ponto de vista dos valores humanos, toda forma de dominação (e, nos casos extremos, o totalitarismo) acaba sendo justificada pelos ideais da cientificidade. Por isso, à medida que a ciência se torna instrumental, deixa de ser utilizada como via de acesso ao conhecimento e se converte em instrumento de dominação de uma classe sobre outras.

Outro conceito posto em circulação pelos frankfurtianos foi o de indústria cultural. A expressão foi cunhada por Adorno e Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento (1947), em oposição ao que se concebia como cultura de massas, para se referir aos produtos culturais veiculados nos modernos meios de comu-nicação. Com efeito, para eles tais produtos não nascem espontaneamente do povo. Antes, são especialmente programados para o consumo das massas, dessa maneira se estabelecendo uma estreita relação entre produção e consumo, o que faz com que seus bens se assemelhem a qualquer outra mercadoria industrial. Por isso, para a indústria cultural é indiferente se esse produto é de conteúdo eru-dito ou popular desde que, como em qualquer processo industrial, seja dirigido para o consumo massivo. Eis como Adorno sintetiza o conceito:

Indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. [...] Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos seguindo um plano, produtos adaptados ao consumo. [...] A indústria cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori e imutável. (ADORNO, 1986, p. 92)

A apropriação da arte pela indústria cultural e sua consequente transforma-ção em mercadoria aponta para um consumidor forjado no próprio sistema in-dustrial. Servindo-se tanto da “arte superior” quanto da “arte inferior”, a indústria cultural retira-lhes o sentido original para tornar a primeira mais acessível, por meio de uma estandardização, e a segunda mais “limpa”, purificada de suas ex-cessivas relações com as classes populares.

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Principais expoentes

Walter Benjamin e a melancoliaWalter Benjamin é a figura mais expressiva e enigmática da Escola de Frank-

furt, tanto por sua obra – em que vibram as centelhas do gênio – quanto por sua vida, abreviada de maneira trágica. Filho de uma abastada família de co-merciantes judeus, Benjamin nasceu em Berlim, em 1892. Desde a adolescência, manifestou simpatia pelas ideias socialistas, escrevendo artigos para o órgão de um movimento juvenil de esquerda, ao mesmo tempo em que também era in-fluenciado pelas ideias de Nietzsche. Seu amigo Gerschom Scholem, que o co-nheceu em 1915 e de quem se tornou muito próximo – quer pelo gosto comum pela arte, quer pelo interesse pela religião judaica –, traçou um impressionante retrato espiritual de Walter Benjamin ao relatar que nessa época ficou impres-sionado com a profunda sensação de melancolia de que o amigo parecia estar permanentemente possuído.

Em 1917, ao casar-se, Benjamin mudou-se para Berna, na Suíça, em cuja uni-versidade apresentou uma dissertação intitulada O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Três anos depois, já de volta a Berlim, sobreviveu como crí-tico literário e tradutor, publicando em 1921 uma tradução dos Quadros Parisien-ses, do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867).

No ano seguinte, foi convidado a publicar As Afinidades Eletivas de Goethe, seu pri-meiro grande ensaio na revista Novas Contribuições Alemãs, convite feito pelo poeta e dramaturgo Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), que dirigia esse periódico.

Em 1928, Walter Benjamin viu truncadas suas esperanças de uma carreira acadêmica quando a Universidade de Frankfurt recusou sua tese As Origens do Drama Barroco Alemão por considerá-la pouco convencional. Então, Benjamin passou a se dedicar mais do que nunca à crítica em jornais e às traduções, es-crevendo ainda numerosos ensaios. Foi nessa época que verteu para o alemão o clássico Em Busca do Tempo Perdido, do francês Marcel Proust (1871-1922). Além disso, é desse período um grande projeto de filosofia da história, cujo título seria Paris, capital do século XIX, e que no entanto nunca completaria.

A década de 1930 lhe trouxe não poucos infortúnios: a morte dos pais, a se-paração de sua esposa e a implantação do totalitarismo nazista. Sob o domínio de Hitler, porém, ainda conseguiu publicar alguns trabalhos menores, recorrendo

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a pseudônimos. Depois de uma estadia na Itália, em 1935 refugiou-se em Paris, onde os membros emigrados do Instituto de Pesquisa Social o acolheram, dan-do-lhe condições para produzir alguns de seus mais importantes trabalhos, como A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica (1936). Em 1940, o ano da sua morte, escreveu o seu último texto, Teses sobre o Conceito de História, conside-rado por alguns o texto mais revolucionário desde Marx.

Com a invasão da França pelas tropas nazistas, em 1940, Walter Benjamin tentou fugir para a Espanha, com a intenção de embarcar para os Estados Unidos, onde já se encontravam muitos companheiros do Instituto de Pesquisa Social. Todavia, em 27 de setembro, na fronteira franco-espanhola, foi preso pela polícia da cidade. Informado de que seria entregue à Gestapo, esse homem cujo cérebro era um vulcão e seguidas vezes tinha crises depressivas engoliu uma cápsula de cianureto que trazia consigo. Quando chegou a notícia de que podia seguir viagem, o veneno já tinha cumprido a sua função.

Herbert Marcuse e a rebelião juvenil Também de origem judaica, Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 1898. Partici-

pou de um conselho de soldados durante a revolução de Berlim, em 1918, experiên-cia que o marcaria profundamente. Estudou filosofia em Berlim e depois em Fribur-go, onde também estudou literatura alemã contemporânea e economia política.

Em 1922, defendeu a tese O Romance de Arte Alemão, inspirado por Hegel e pelo Georg Lukács (1885-1971) da fase pré-marxista.

Casou-se em 1924 e no ano seguinte publicou seu primeiro trabalho, um le-vantamento bibliográfico sobre Friedrich von Schiller (1759-1805).

Em 1927, obteve o doutorado em filosofia com uma tese sobre Hegel – essa tese, reformulada, seria publicada com o título de A Ontologia de Hegel e o Fun-damento de uma Teoria da Historicidade (1932) e lhe valeu ser feito assistente de Heidegger, em Friburgo.

Com a ascensão do nazismo, Marcuse migrou para a Suíça em 1933 e no ano seguinte foi para os Estados Unidos, começando então um período de profícuo trabalho com Adorno e Horkheimer, também exilados na América.

Dessa época resultou uma grande quantidade de ensaios que constituem o germe das ideias que Marcuse desenvolveria mais tarde: o incontrolado incre-mento da tecnologia, o racionalismo dominante nas sociedades industriais e a

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consequente repressão às liberdades individuais, acompanhado do aniquila-mento das potencialidades humanas. Em vez do proletariado tradicional, coop-tado tanto pelo fascismo quanto pelo stalinismo, Marcuse vislumbra nos novos excluídos do sistema, nas minorias étnicas e nos outsiders1, a nova vanguarda revolucionária.

Durante a conflagração mundial, Marcuse colaborou para o esforço de guerra trabalhando no Departamento de Estado americano. Em 1950, quando Adorno e Horkheimer retornaram à Alemanha, Marcuse preferiu permanecer nos Estados Unidos, lecionando Ciência Política na Universidade Brandeis. São desse período dois dos seus mais representativos livros:

Eros e Civilização, em que funde marxismo e pisicanálise para propor uma revolução tanto social quanto sexual;

Marxismo Soviético, em que critica o marxismo oficial.

Assim, seu nome começou a ser conhecido nos meios de esquerda e sua fama aumentou com a publicação de O Homem Unidimensional (1964), atacando vio-lentamente as características repressivas e irracionais do Estado pós-industrial moderno, o Welfare State ou Estado do Bem-Estar Social, por ele considerado Warfare State, Estado Beligerante.

Em 1967, Marcuse passou uma temporada na Alemanha em um curso na Uni-versidade Livre de Berlim e assim conheceu Rudi Dutschke, o famoso ícone estu-dantil alemão, que se tornou muito próximo do velho intelectual, fundamentan-do suas lutas sobre as ideias de Marcuse. Com essa ligação, rapidamente o nome do professor ganhou projeção internacional – projeção esta que só se acentuaria com as revoltas do mês de maio de 1968, em Paris.

Em junho de 1968, Marcuse retornou a Berlim, onde os estudantes se en-contravam amotinados na Universidade Livre. Não foi um encontro tranquilo e Herbert Marcuse saiu do anfiteatro da universidade debaixo tanto de aplausos quanto de vaias.

De volta aos Estados Unidos, Marcuse passou a lecionar na Universidade da Califórnia, sempre na cadeira de Filosofia e Ciência Política.

Líder da juventude revolucionária (embora esta muitas vezes o queria ainda mais radical), chegou a ser ameaçado de morte pela Ku Klux Klan2, que o chamou

1 Outsiders (“aquele que está do lado de fora”) são indivíduos que não se inserem em qualquer grupo determinado, assim apresentando uma identidade marginal.2 Fundada no final do século XIX, nos Estados Unidos, a Ku Klux Klan é uma organização de extrema direita, racista, que prega a supremacia dos brancos e a segregação dos negros.

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de “asqueroso cão comunista”. Mas a imagem de Marcuse que é veiculada na imprensa com mais frequência é a de um senhor tranquilo, com roupa informal, conversando amigavelmente com seus alunos. Morreu em 1979.

Horkheimer e a razão instrumental Max Horkheimer nasceu em Stuttgart, em 1895, filho de um rico industrial

judeu. Por meio de seu amigo Friedrich Pollock (1894-1970), aproximou-se dos demais intelectuais junto aos quais fundaria, em 1924, o Instituto de Pesquisa Social. Em 1931, sucedendo Carl Grunberg, tornou-se diretor da instituição. Três anos depois, contudo, com a ascensão do nazismo, foi obrigado a buscar asilo, como os demais colegas. Transferiu-se então para os Estados Unidos, onde lecio-nou na Universidade de Columbia até o final da década de 1940, quando retor-nou a Frankfurt com o objetivo de reorganizar o Instituto.

A maior parte dos escritos de Horkheimer encontra-se nas páginas da Revista de Pesquisa Social. Entre os mais importantes contam-se:

Inícios da Filosofia Burguesa da História (1930);

Um Novo Conceito de Ideologia (1930);

Materialismo e Metafísica (1930);

Materialismo e Moral (1933);

O Problema da Verdade (1935);

Teoria Tradicional e Teoria Crítica (1937).

Esse último e antológico ensaio marca uma aproximação maior com o mar-xismo, já que Horkheimer, nem antes nem depois, manifestaria afinidade intensa com esta escola, ao contrário de seus companheiros do Instituto.

Em 1955, veio a lume seu clássico Eclipse da Razão, em que ele faz um severo diagnóstico do pensamento ocidental à luz da barbárie da Segunda Guerra. É quando aparece de maneira articulada e clara, pela primeira vez, a crítica da razão instrumental.

Horkheimer faleceu em Nuremberg, em 1973.

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Adorno e a dialética negativa Filho de um próspero atacadista de vinhos, judeu convertido ao protestantis-

mo, e de uma cantora lírica italiana, Theodor Wiesengrund-Adorno nasceu em 1903, em Frankfurt, onde realizou os seus primeiros estudos.

Na adolescência, estudou música com uma meia-irmã por parte da mãe e com o compositor Bernhard Seklese.

Aos 18 anos de idade, ingressou na Universidade Johann Wolfgang Goethe, na sua cidade natal, cursando as disciplinas de Filosofia, Música, Psicologia e Socio-logia. Aluno brilhante, concluiu rapidamente seus estudos, em 1924, com o tra-balho A Transcendência do Objeto e do Noemático na Fenomenologia de Husserl.

Nessa mesma época, travou conhecimento com Walter Benjamin e Max Horkheimer.

Em 1932, escreveu o ensaio A Situação Social da Música, tema sobre o qual ainda se debruçaria muitas outras vezes.

No ano seguinte, foi publicada sua tese sobre Kierkegaard.

Com a ascensão dos nazistas ao poder, Adorno foi obrigado a refugiar-se na Grã-Bretanha, onde lecionou na Universidade de Oxford, permanecendo nela até 1937, quando se transferiu para os Estados Unidos.

Além da Dialética do Esclarecimento (1947), escrita em parceria com Horkhei-mer, foi também nos Estados Unidos que Adorno realizou, em cooperação com um grupo de pesquisadores, um estudo considerado posteriormente um modelo de sociologia empírica: A Personalidade Autoritária (1950).

Na década de 1950, Adorno pôde retornar à terra natal e reorganizar o Instituto de Pesquisa Social, junto com Horkheimer. Com a aposentadoria deste, Adorno tornou-se o seu novo diretor. Entre as obras desse período, destacam-se:

Para a Metacrítica da Teoria do Conhecimento: Estudos sobre Husserl e as An-tinomias Fenomenológicas (1956);

a trilogia Ensaios de Literatura (1958-1965);

Dialética Negativa (1966);

Teoria Estética (1968);

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Três Estudos sobre Hegel (1969).

A filosofia de Adorno, uma das mais complexas do século XX, fundamenta-se na dialética, por meio da qual ele tenta desvelar as sombras do Iluminismo. A razão instrumental, segundo ele, bloqueou a emancipação do ser humano ao se colocar ao serviço de uma civilização obcecada pela técnica. Como os filósofos não lograram transformar o mundo, diz Adorno, cabe ainda tentar interpretá-lo. E foi o que fez esse severo professor alemão, servindo-se de uma erudição avas-saladora e das armas de uma dialética negativa. Embora crítico do marxismo oficial, Adorno nunca se afastou de seu horizonte de irradiação.

Faleceu em 1969.

Habermas e a razão comunicativa Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf, na Alemanha, em 1929. Aos 25

anos de idade, licenciou-se com O Absoluto e a História, uma tese sobre Schelling (1775-1854). Entre 1956 e 1959, foi assistente de Adorno no Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt. Em 1961, publicou a famosa obra Entre a Filosofia e a Ciência: o Marxismo como Crítica.

Depois de ter lecionado Filosofia e Sociologia na Universidade de Frankfurt, transferiu-se para Nova York, tornando-se professor da New York School for Social Research.

Em 1972, transferiu-se para Starnberg, na Baviera, assumindo a direção do Instituto Max-Planck.

Em 1983, voltou a lecionar na Universidade de Frankfurt, onde se aposentou em 1994.

Todavia, Habermas continua atuante, por meio de palestras, artigos na im-prensa e uma obra a que não deixa de acrescentar sempre novos títulos.

Na esteira de seus antecessores da Escola de Frankfurt, o principal eixo de sua produção é a crítica ao tecnicismo e ao cientificismo – que, a seu ver, limitaram o campo de atuação da razão humana ao conhecimento objetivo e prático. Supe-rando o pessimismo estrutural de seus mestres e introduzindo uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é considerada a sua obra mais significativa, Teoria da Ação Comunicativa, em que concebe a razão e a ação comunicativas – uma comuni-cação livre, racional e crítica – como alternativa à razão instrumental oriunda do Iluminismo.

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Luzes, razão e educação Além desses nomes apresentados como os principais expoentes, muitos

outros intelectuais de relevância atuaram ou gravitaram em torno da Escola de Frankfurt, como o economista e sociólogo Friedrich Pollock (1894-1970), cofun-dador do Instituto, cujos trabalhos iniciais utilizaram o conceito de capitalismo de Estado para explicar o regime econômico da União Soviética; e o psicanalista Erich Fromm (1900-1980), um dos pioneiros do encontro entre marxismo e psi-canálise, para ficarmos apenas em dois nomes.

Atualmente, o Instituto de Pesquisa Social é dirigido por Axel Honnetk, nas-cido em 1949, um ex-aluno de Habermas que tem chamado a atenção para o vigor de suas ideias – o que demonstra que a luz que brilha no facho da Escola de Frankfurt, herdeira e continuadora do portentoso legado filosófico alemão, está longe de se apagar.

Entre numerosas outras áreas, essa luz tem iluminado as discussões sobre educação, questionando o conceito de ensino-aprendizado herdado do Ilumi-nismo e problematizando a civilização que se originou do Século das Luzes. O objetivo desse confronto entre Escola de Frankfurt e a educação não é, evidente-mente, apagar o que ainda resta de luz em nossa sociedade, mas sim combater as sombras dessa tradição, para que a luz da razão – não a razão instrumental, mas a razão comunicativa – possa resplandecer amplamente, redirecionando os caminhos de nossa civilização em nosso ameaçado planeta azul.

Textos complementares

Na teoria marxista da sociedade(HORKHEIMER, 1990, p. 7-8)

1. Na teoria marxista da sociedade, a ciência está incluída entre as forças humanas produtivas. Como condição da mobilidade média do pensamento, que evoluiu com ela nos últimos séculos, além do mais na forma de conhe-cimentos simples sobre a natureza e o mundo humano, aos quais mesmo nos países desenvolvidos têm acesso os membros das classes mais baixas, e não em última instância como parte do poder espiritual dos cientistas, cujas

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descobertas influem decisivamente na forma da vida social, ela possibilita o sistema industrial moderno. Na medida em que se apresenta como um meio de gerar valores sociais, quer dizer, formulada em métodos de produção, também representa um meio de produção.

2. O fato de a ciência como força produtiva e meio de produção cooperar para o processo de vida da sociedade não justifica, de forma alguma, uma teoria pragmática do conhecimento. Na medida em que a fecundidade de um conhecimento desempenha um papel no tocante à sua enunciação da verdade, cabe entender, no caso, uma fecundidade imanente da ciência, e não uma conformidade a considerações extrínsecas. O exame da veracidade de um juízo é algo diferente do exame de sua importância vital. Em nenhum caso os interesses sociais têm de decidir sobre uma verdade, mas valem os critérios desenvolvidos em conexão com o progresso teórico. Sem dúvida, a própria ciência se modifica no processo histórico, mas referência a isso nunca pode valer como argumento para a aplicação de outros critérios de verdade que não aqueles que correspondem ao nível de conhecimento no grau de desenvolvimento alcançado. Ainda que a ciência esteja compreen-dida na dinâmica histórica, ela não deve ser destituída do seu caráter próprio e utilitariamente mal interpretada. De certo, as razões que condicionam a recusa da teoria pragmatista do conhecimento e do relativismo em geral não conduzem de modo algum à separação positivista entre teoria e prática. De um lado, não são independentes dos homens nem direção, nem métodos da teoria, nem o seu objeto, a realidade mesma; de outro lado, a ciência é um fator do processo histórico. A separação entre teoria e prática é, ela própria, um fenômeno histórico.

A realização da liberdade e da razão(MARCUSE, 1969, p. 262-263)

A realização da liberdade e da razão exigem uma alteração total dessa situação. “A dependência universal, esta forma natural de cooperação histó-rico-mundial entre indivíduos, será transformada, por essa revolução comu-nista, no controle e no domínio consciente daqueles poderes que, produzi-dos pela ação dos homens uns sobre os outros, até agora se impuseram aos homens e os governaram como poderes inteiramente alheios a eles”.

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Ademais, já que a situação dominante que “até agora” prevaleceu consti-tui uma negatividade universal que, onde quer que seja, afeta todas as es-feras da vida, sua transformação requer uma revolução universal, isto é, uma revolução que pudesse, em primeiro lugar, revogar a totalidade das condi-ções dominantes, e, em segundo lugar, substituí-la por uma nova ordem uni-versal. Os elementos materiais da revolução total devem apresentar-se de modo que a convulsão não se prenda a condições específicas da sociedade existente, mas à própria “produção de vida” nela dominante, à atividade total na qual ela se funda. Este caráter total da revolução é necessário por força do caráter totalizante das relações capitalistas de produção. “O intercâmbio universal moderno só pode ser controlado por indivíduos [...] quando con-trolado por todos os indivíduos”.

A convulsão revolucionária que acaba com o sistema da sociedade ca-pitalista põe em liberdade todas as potencialidades de satisfação geral que se haviam desenvolvido neste sistema. Por isso Marx diz que a revolução comunista é um ato de “apropriação” (aneignung), significando que, com a abolição da propriedade privada, os homens devem obter a posse autêntica de todas as coisas que até então estiveram fora do seu alcance.

A apropriação é determinada pelo objeto a ser apropriado, isto é, pelas “forças produtivas que foram desenvolvidas em uma totalidade e que só existem dentro de um intercâmbio universal [...] ” A universalidade que já existe no presente estado da sociedade será transposta para uma nova ordem social, em que, entretanto, ela terá um caráter diferente. A vontade universal não mais agirá como uma força natural cega, desde que o homem consiga submeter as forças produtivas disponíveis “ao poder dos indivíduos reunidos.” O homem, então, pela primeira vez na história, passará a considerar conscientemente “todas as premissas naturais como criações dos homens”. A luta do homem contra a natureza obedecerá a um “plano geral” formulado por indivíduos “livremente associados”.

A apropriação é, portanto, determinada pelas pessoas que se apropriam. A alienação do trabalho cria uma sociedade dividida em classes que se opõem. Qualquer esquema social que leve a cabo uma divisão de trabalho, sem levar em conta as aptidões e necessidades dos indivíduos ao lhes assinalar as funções, tende a acorrentar a atividade do indivíduo a forças econômicas exteriores. O modo de produção social (o modo como é mantida a vida do todo) circuns-creve a vida do indivíduo e atrela toda sua existência a relações prescritas pela

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economia, sem considerar suas aptidões e carências. A produção de mercado-rias sob um sistema de livre competição agravou esta condição. As mercadorias distribuídas ao indivíduo para a satisfação das suas necessidades são tidas como equivalentes ao seu trabalho. Este lhe foi prescrito por sua posição no processo social da produção, posição que, por sua vez, lhe foi imposta pela distribuição dominante de poder e riqueza.

Na opinião dos sociólogos(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 113-114)

Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva for-necia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação téc-nica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contempo-rânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. Os edifícios monumentais e lumino-sos que se elevam por toda parte são sinais exteriores do engenhoso pla-nejamento das corporações internacionais, para o qual já se precipitava a livre iniciativa dos empresários, cujos monumentos são os sombrios prédios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades. Os prédios mais an-tigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem slums e os novos bangalôs na periferia da cidade já proclamam, como as frágeis cons-truções das feiras internacionais, o louvor do progresso técnico e convidam a descartá-los como latas de conserva após um breve período de uso. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, desti-nam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem- -no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como pro-dutores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organiza-dos. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do

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particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se deli-near. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.

Atividades 1. Assinale V (verdadeiro) com respeito aos representantes da Escola de Frank-

furt ou F (falso) em relação aos nomes que não pertenceram à escola.

Max Horkheimer )(

Theodor W. Adorno )(

Max Webber )(

Herbert Marcuse )(

Georg Lukács )(

Jacques Derrida )(

Jürgen Habermas )(

Walter Benjamin )(

Hermann Hesse )(

André Gorz )(

2. Quais são as principais influências da Escola de Frankfurt? Quais são os pen-sadores e correntes de pensamento que estão em sua base?

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3. Qual é a relação da Escola de Frankfurt com a herança do Iluminismo?

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Para produzir filosofia Marcuse, no livro O Homem Unidimensional, ataca as características repressi-

vas do Estado pós-industrial moderno, afirmando que nesse Estado as pessoas são conduzidas a pensar e expressar um único tipo de pensamento. Na sua vida, no seu círculo de amizades, entre os seus colegas de magistério e entre seus alunos, você percebe isso? Todos pensam de maneira mais ou menos uniforme ou há brechas nas quais é possível pensamentos alternativos?

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Era dos extremos: as duas faces da moeda O século XX foi pródigo em escolas filosóficas. Basta citar algumas

para nos darmos conta de que esse breve século, como a ele se referiu Eric Hobsbawm1, foi rico em correntes de pensamento: o intuicionismo de Henri Bergson (1849-1941), a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a filosofia da mente, o estruturalismo e seus derivados: o pós-estruturalismo, o desconstrucio-nismo e seu último rebento, o pós-modernismo. Tudo isso para não falar de renascimentos, remakes (refeituras, novas versões) ou prolongamen-tos de escolas surgidas anteriormente, como o neotomismo de Jacques Maritain (1882-1973), o neokantismo, o neo-hegelianismo, o positivis-mo lógico do Círculo de Viena, e o marxismo, com sua multiplicidade de correntes e subcorrentes. Além disso, a psicanálise, oriunda da medicina – Freud (1879-1939), era médico – fermentou a reflexão filosófica com novos dados e questionamentos.

Todavia, há duas escolas que foram de grande importância no século passado e sobre elas seria extremamente útil que nos debruçássemos.

Uma delas, mais discreta, representa de certa forma o espírito que en-formou boa parte do século XX e continua presidindo este novo século, cujas características ainda não demonstram nenhum corte significativo com relação ao século anterior: o pragmatismo.

A outra foi a corrente mais popular do século XX e um dos raros casos da história moderna em que a filosofia extrapolou os limites dos debates acadêmicos e de especialistas, atingindo uma parcela significativa da po-pulação ocidental: o existencialismo.

1 Para Hobsbawm, no livro Era dos Extremos: o Breve Século XX, o século inicia-se efetivamente com o começo da Primeira Guerra, em 1914, e se encerra com a queda do Muro de Berlim, em 1989.

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As duas faces do século XX se fazem representar nessas duas escolas: tanto o seu lado mais prático e objetivo quanto o lado subjetivo e romântico. Eficiência e autenticidade, método e decisão, utilidade e náusea, progresso e revolução – ou seja, pragmatismo e existencialismo – caracterizam paradigmaticamente esse século a que Hobsbawm chamou de “a era dos extremos”.

Pragmatismo: origens e paternidade Nietzsche disse “pensando em si, que alguns homens nascem póstumos”.

Com efeito, não só na arte, cujo exemplo emblemático foi Vincent van Gogh (1853-1890) – que em vida vendeu apenas uma tela –, mas na filosofia também temos um rol de filósofos de reconhecimento póstumo, como Giambattista Vico (1668-1774) e, em parte, Espinosa (1632-1677), Schopenhauer (1788-1860) e Nietzsche (1844-1900). Esse último, se atingiu a fama ainda em vida, já não dis-punha de lucidez para gozá-la.

Outro filósofo igualmente póstumo – originalíssimo e antecipador de ten-dências, só que, ao contrário de Nietzsche e Schopenhauer, nunca maldisse a sua sorte, apesar de ter vivido grande parte de sua vida na pobreza – foi o norte- -americano Charles Peirce (1839-1914), considerado o criador do pragmatismo e da semiótica.

Filho de Benjamin Peirce (1809-1880), na época um dos maiores matemá-ticos de Harvard, Charles Sanders Peirce estudou nessa mesma universidade, licenciando-se em Ciências e doutorando-se em Química. Além disso, era mate-mático, físico e astrônomo, tendo estudado também Filologia, Psicologia e His-tória. De um certo modo, não há um ramo das ciências da época para o qual sua curiosidade não o tenha levado. Não satisfeito, Peirce dominava cerca de dez idiomas.

Todavia, as áreas às quais dedicou a maior parte de suas energias são a lógica e a filosofia. Nos moldes do positivismo, propôs aplicar a esta última os méto-dos de observação e experimentação característicos das ciências experimentais. Quanto à lógica, Peirce a concebia dentro do campo de uma teoria geral dos signos, ou, como ele a denominou, semiótica. Do impressionante número de cerca de 80 mil manuscritos que produziu durante a vida, até agora foram publi-cadas aproximadamente 12 mil páginas.

Em 1878, Peirce publicou “Como tornar nossas ideias claras”, artigo que é consi-derado o primeiro esboço de uma teoria pragmatista. William James (1842-1910)

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Pragmatismo e existencialismo

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refere-se a esse texto como a um marco, elaborando a partir do que dele infere a sua doutrina do pragmatismo. Peirce tentou repudiar o pragmatismo que James lhe atribuía, chamando a sua filosofia de pragmaticismo para acentuar a diferença. Portanto, o pragmatismo, como sistema e como método filosófico, embora tendo suas origens em Peirce, a sua paternidade deve ser creditada a William James.

Ao contrário de Peirce, William James, irmão do célebre romancista Henry James (1843-1916), teve uma longa e destacada carreira em Harvard, onde lecio-nou Psicologia e Filosofia. Seu livro Princípios de Psicologia (1890) é, ainda hoje, uma referência obrigatória sobre o tema. Embora a reflexão filosófica não tenha sempre ocupado o centro de sua atenção, ele é tido como um dos maiores fi-lósofos dos Estados Unidos e, sem dúvida alguma, o mais popular, talvez por ter sido o primeiro a expressar a energia e o vigor dessa grande e jovem nação emergente: “Comparado à filosofia de Peirce, o seu pensamento é bem menos profundo; mas, devido à sua personalidade e posição, James exerceu uma in-fluência muito mais ampla sobre o pensamento filosófico, particularmente na América” (RUSSELL, 2002, p. 402).

Suas principais contribuições para o pragmatismo se encontram nos livros:

Pragmatismo: um Nome Novo para Velhas Formas de Pensar (1907);

O Significado da Verdade (1909);

Ensaios sobre o Empirismo Radical (1912), em que sustentou, entre outras coisas, que o significado das ideias só se encontra no plano de suas conse-quências, que todo juízo é válido segundo a eficácia com que se persegue seu fim, e que a verdade é, antes de tudo, “verificação”.

Conforme o título de seu livro de 1907, William James não considerava a perspectiva pragmatista como inteiramente nova. Portanto, existem antece-dentes, alguns bastante remotos, como o sofista Protágoras (480-410 a.C.), para quem “o homem é a medida de todas as coisas” – um postulado fundamental do pragmatismo.

Conforme o referido artigo inaugural, Peirce já percebia, entre os antigos, analogias com o estoicismo e, entre os modernos, muito se insistiu na influência exercida de um lado por Kant e, de outro, do empirismo inglês de Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753), Hume (1711-1776) e Stuart Mill (1806-1873). Com efeito, se o empirismo e o pragmatismo são fenômenos anglo-saxônicos, o pri-meiro é britânico e o segundo, em uma evolução daquele, é estadunidense.

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Pretensão e certeza Mas em que consiste o pragmatismo? Em primeiro lugar ele é um método.

Como consequência desse método, também é uma teoria da verdade. Manifesta uma posição extremamente oposta ao racionalismo e uma perspectiva centrada no conceito de vontade.

Para o racionalismo – que tem sua origem em René Descartes (1596-1649), do “penso, logo existo” – o pensamento se antecipa à vontade e o mundo da verdade é absoluto e eterno. Conhecendo-o ou ignorando-o, nada altera sua essência. Ou seja, o racionalismo postula a preexistência do mundo, como ver-dade, ao pensamento – que somente reflete esse mundo.

Para o pragmatismo, ao contrário, o que é prévio é a vontade. O conhecimen-to é concebido como profundamente modificador da realidade e, consequente-mente, a construção da verdade deve corresponder à construção da realidade. Conhecimento e ação convertem-se, desse modo, em termos equivalentes.

Ademais, o pragmatismo rejeita o conceito de verdade tanto como correspon-dência quanto como coerência: para ele, uma afirmação será verdadeira apenas na medida em que conduza ao êxito. Verdadeiro e falso têm caráter prático e somente na prática encontram significado.

Acerca do sentido com que se emprega o termo prática, distinguem-se três interpretações.

A primeira sustenta que uma afirmação é verdadeira quando, e apenas quando, responde a uma utilidade prática, entendida essa palavra no sen-tido mais restrito. Em outros termos, será verdadeira a proposição que cor-responda aos interesses materiais do indivíduo que a emite e no momento em que a emite. Nesse caso, verdadeiro é sinônimo de oportuno. Dois e dois poderão ou não ser quatro, dependendo dos interesses de quem o afirma.

A segunda interpretação principia por distinguir entre pretensão de verda-de e verdade verificada. Assim, uma verdade inicialmente pretendida como tal é verificada quando seu conceito se ajusta à experiência sensorial. A proposição “o fogo queima” é verdadeira na medida em que se comprove a experiência de ser queimado pelo fogo.

A terceira interpretação de prática é mais sutil: uma afirmação é verdadei-ra na medida em que cumpre três condições:

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estar de acordo com a realidade e com os objetos da experiência;

estar de acordo com aquelas verdades absolutas e inquestionáveis, como “um mais um é dois” e “o azul é distinto do amarelo”;

estar de acordo com o conjunto de verdades já verificadas.

Quando uma verdade resiste a essas três condições, sua verificação estará cumprida e ela passa do estado de pretensão ao estado de certeza.

Ética, religião e educação pragmáticas Centrado na análise do significado da experiência, o pragmatismo não pode-

ria deixar de atingir os setores da ética e da filosofia da religião.

Na ética pragmatista, as noções de bem, dever e mérito não se revestem de sentido próprio, não são universais nem autoevidentes. Serão verdadeiras, con-tudo, na medida em que proporcionem uma direção fecunda para a vida e asse-gurem maior desenvolvimento da personalidade. Em outras palavras, na moral pragmatista, bem é aquilo que proporciona resultados concretos como bem- -estar, harmonia e o aprimoramento das potencialidades do indivíduo.

O mesmo se dá na apreciação pragmatista da religião. No que concerne à existência de Deus, William James nunca aceitou a validade das provas conven-cionais, considerando-as liquidadas pela crítica kantiana. Admitiu como válido, porém, o recurso da análise da experiência religiosa e, especialmente, dos fenô-menos de conversão. Na medida em que da conversão resulta uma indiscutível vantagem para o indivíduo, em termos de expansão vital, James considera válida a experiência. Religião “verdadeira”, portanto, é aquela, e toda aquela, que conduz a resultados positivos, sejam estes o aumento da sensação de bem-estar, a me-lhora da socialização do indivíduo, a superação de problemas psíquicos etc.

Não é muito diferente quando se aplica a filosofia do pragmatismo à educa-ção. Um bom projeto pedagógico é aquele que produz resultados – os quais, por sua vez, são definidos pelo indivíduo e/ou pela sociedade (poderão também ser definidos pela coletividade ou pelo Estado, em regimes planificados). Se eu quero aprender uma língua ou uma técnica, um bom método será aquele que, da maneira mais eficiente, irá me levar a esse objetivo – o domínio dessa língua ou dessa técnica.

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Em uma sociedade como a nossa, regida pelo mercado, os resultados serão definidos por esse mercado: um bom processo de ensino-aprendizado é aquele que leva os educandos a inserirem-se eficientemente no mercado de trabalho. Cabe questionar – sob o ponto de vista da utilidade da construção de uma nação ou do desenvolvimento das potencialidades humanas, ou ainda à luz da sobrevi-vência da espécie humana – se isso é suficiente.

Eis como Will Durant avalia o pragmatismo jamesiano:

[...] a maneira de pensar de James, senão a sua substância, era específica e inigualavelmente americana. A volúpia americana pelo movimento e pela aquisição infla as velas de seu estilo e seu pensamento e lhes dá uma motilidade2 esperançosa e quase aérea.[...]O novo teste da verdade era, evidentemente, antigo: e o filósofo honesto descrevia o pragma-tismo modestamente como “um novo nome para velhas maneiras de pensar”. Se o novo teste significa que verdade é aquilo que foi testado pela experiência e pelo experimento, a resposta só pode ser: “É claro.” Se significa que a utilidade pessoal é um teste da verdade, a resposta não pode ser outra: “É claro que não”; utilidade pessoal é apenas utilidade pessoal; só a utilidade permanente universal constituiria a verdade. (DURANT, 2000, p. 469-470)

Depois de James Depois de James, o bastão da escola esteve nas mãos de:

George Herbert Mead (1863-1931), que procurou explicar a psicologia so-cial por meio da evolução do eu;

John Dewey (1859-1952), que, preferindo o nome de instrumentalismo, desenvolveu as ideias de James no campo da educação, defendendo uma pedagogia fundada no ensino pela prática.

De certa forma, o pragmatismo dominou o cenário norte-americano até por volta da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), eclipsando-se depois. Recente-mente, experimentou um ressurgimento com Richard Rorty (1931-2007).

Fiel aos seus princípios “pragmáticos”, o pragmatismo manteve sempre uma suspeita em relação à filosofia – demasiado abstrata e especulativa – e concen-trou-se em disciplinas cujas “utilidades práticas” se revelavam mais mensuráveis, como a Educação e a Psicologia. Se hoje, na filosofia, é pouco revisitado, o prag-matismo continua relevante nos estudos psicológicos e pedagógicos.

Se o sucesso de uma doutrina não se mede tanto pela frequência com que seu nome ou seus expoentes são citados, mas sim em que medida o seu espírito 2 Motilidade: o mesmo que mobilidade.

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permeia a sociedade e as relações dos indivíduos, podemos afirmar, com toda certeza, que a corrente filosófica surgida de Peirce e James é vitoriosa: não há dúvida de que vivemos em uma sociedade pragmática.

Existencialismo: “uma mística do inferno” Poucas são as correntes filosóficas e os filósofos que em vida se tornaram

populares para além da academia e dos especialistas. Sócrates (470-399 a.C.) e Voltaire (1694-1778) podem ser contados entre estes. Mas, se o primeiro não foi muito além de Atenas e das colônias sob sua influência, o segundo, sem dúvida, gozou de uma grande popularidade não só na França como também na Europa Iluminista e na América colonial às vésperas das guerras de independência. É verdade que Karl Marx (1818-1883) e Auguste Comte (1798-1857), durante suas vidas, foram igualmente reverenciados e atraíram legiões de admiradores. Toda-via, a influência do autor do Manifesto Comunista, durante sua existência, nunca foi muito além de um círculo de militantes profissionais e operários sindicaliza-dos, ao passo que o séquito de fiéis do fundador do positivismo também nunca excedeu uma pequena e esotérica elite. A fama de nenhum deles se equipa-ra à de Jean-Paul Sartre (com exceção talvez de Voltaire, mas este, como viveu em uma época anterior aos grandes meios de comunicação de massa e em um mundo menos globalizado, sai prejudicado na comparação).

Amado e odiado, reverenciado e execrado, cultuado e anatematizado, Sartre se converteu, no pós-guerra europeu, em um ícone, quase um popstar de uma nova postura existencial. E o existencialismo que ele propugnava e representava se tornou moda não apenas entre os frequentadores dos cafés de Saint-Germain- -de-Près, em Paris, mas em todos os bares esfumaçados frequentados por jovens intelectuais, seja no Greenwich Village (Nova York) ou na Vila Madalena (São Paulo). Para se ter uma ideia do furor causado pelo existencialismo, basta apreciarmos o juízo negativo de alguns pensadores contemporâneos ao movimento:

O filósofo francês Henri Léfèbre, referiu-se às ideias do mais eminente filósofo existencialista, Jean-Paul Sartre, como uma “metafísica de merda”. Por sua vez, seu compatriota Jacques Ma-ritain (1882-1973), católico, classificava a filosofia de Sartre de uma “mística do inferno”. No Brasil, o pensador Tristão de Athayde escrevia: “Sartre, sem dúvida, é detestável”. O escritor russo Ilya Ehrengurg (1891-1967) não fez por menos: confessou que inicialmente Sartre lhe inspirara piedade, para depois lhe despertar desprezo. Finalmente, o papa Pio XII, na encícli-ca que dedicou às correntes filosóficas modernas, destacou o existencialismo como uma das doutrinas que mais ameaçavam os fundamentos da fé cristã. (PENHA, 1983, p. 9-10)

Além de toda essa ácida reação em considerável parcela do meio especiali-zado, o existencialismo é efetivamente uma das poucas escolas filosóficas que

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logrou extrapolar o gueto dos estudiosos e atingir e homem e a mulher da rua. Testemunho disso é uma famosa marcha carnavalesca de Braguinha e João de Barro, Chiquita Bacana, composta em 1949, cuja última estrofe diz: “existencialis-ta, com toda razão / só faz o que manda o seu coração.”

No princípio, a existência A ontologia tradicional, de Platão (427-347 a.C.) a São Tomás de Aquino

(1225-1274), distingue, na estrutura do ser, dois princípios ou elementos cons-titutivos: a essência e a existência.

A essência corresponde ao que Platão denomina ideia e Aristóteles (383-322 a.C.) forma. Cada ser é o que é na medida em que possui uma essência ou uma forma, isto é, um conjunto de características que o diferencia dos demais. Desse modo, a essência do ser humano é a humanidade; a do animal, a animalidade – e assim por diante. A essência, por definição, é universal, não caracteriza somente um indivíduo, mas todos os indivíduos da espécie ou gênero do qual ele faz parte.

Todavia, o conhecimento da essência não esgota a realidade dos seres com os quais se tem contado pelos sentidos, já que a essência, em si, não implica ne-cessariamente a existência. A ideia de humanidade não envolve a existência dos seres humanos em geral, nem daquele homem ou desta mulher em particular, da mesma forma que a ideia de gnomos não significa necessariamente a exis-tência daqueles pequenos seres que vivem debaixo de cogumelos. A essência, portanto, é o ser potencial, o ser meramente possível. O que realiza a potência ou a possibilidade é a existência.

Por outro lado, a diferença entre essência e existência corresponde a de co-nhecimento intelectual e conhecimento sensível. Este último apreende seres concretos, realmente existentes, ao passo que a inteligência intelectual permite apreender ideias de seres tanto reais quanto ideais. O fato de que eu posso con-ceber um duende ou um marciano não significa que eles realmente existam ou tenham que existir.

Ao contrário das filosofias essencialistas, o existencialismo parte do pres-suposto de que a existência precede a essência, tanto em relação à realidade quanto em relação ao conhecimento. Em outras palavras, as ideias ou essências não existem anteriormente às coisas, nem na mente de Deus nem na mente dos seres humanos. As ideias ou essências são as próprias coisas, quando considera-das em sua universalidade. Ora, não existindo uma essência anterior à existência,

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o ser humano pode construir livremente, a partir de suas escolhas, a sua própria existência. Ou, como dizia Sartre, o ser humano está condenado à liberdade.

Kierkegaard: uma vida atormentada e solitária A despeito do juízo severo do papa Pio XII em relação ao existencialismo, ele

teve origem, modernamente, com um cristão – e um cristão singularmente fer-voroso, ainda que nem um pouco submisso: o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Foi ele que cunhou a expressão existencialismo e pela primeira vez colocou o foco da reflexão sobre a existência humana. É verdade que houve an-tecessores ao longo da história da filosofia, como Sócrates, que deslocou o pen-samento do mundo natural para o mundo humano e o problema moral, não se limitando a pensar, mas vivendo as consequências de seu pensamento; Santo Agostinho (354-430), que no seu livro Confissões inaugurou a interioridade e a subjetividade do eu; e Blaise Pascal (1623-1662), que, situando-se na mesma vertente, refletiu, antecipando Heidegger, sobre a autenticidade da vida ante a iminência da morte.

No entanto, geralmente Kierkegaard é apontado como o fundador da filoso-fia existencial. Se o existencialismo é uma filosofia surgida a partir da existência, da concretude da vida, Kierkegaard, com sua vida atormentada e solitária, é um exemplo perfeito desse modelo.

A existência de Kierkegaard Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, capital da Dinamarca, em 5

de maio de 1813. Foi o último dos sete filhos de um comerciante viúvo com a sua governanta. Só ele, e um irmão, que se tornou bispo luterano, é que sobreviveram à infância. Além disso, Sören Kierkegaard sempre teve um relacionamento parti-cularmente conflituoso com seu pai, que tentava lhe impor sua visão de mundo.

Em 1830, ingressou na Universidade de Copenhague para estudar Filosofia e Teologia, porém os estudos lhe aborreciam e ele levou uma vida de dândi3, uma vida mundana e boêmia.

Em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regine Olsen, de quem se tornaria noivo três anos depois, sua vida experimentou uma significativa mu-dança. Seus textos se tornaram mais profundos e seu pensamento, mais religioso.

3 Dândi (do inglês dandy) é o indivíduo que dá uma excessiva importância a sua aparência física, trajando-se de maneira refinada e até extravagan-te. De certa forma, o dandismo pode ser visto como um protesto e uma reação aos princípios da burguesia ascendente

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Concluindo o curso de Teologia em 1840, no ano seguinte ele apresentou sua tese de doutorado, Sobre o Conceito de Ironia. E então se deu a segunda grande mudança de sua vida: em vez de pastor e pai de família, Kierkegaard escolheu a solidão – para ele, a única maneira de viver com autenticidade sua fé. Contra todas as expectativas, rompeu o noivado e viajou para a Alemanha, onde teve aulas com Schelling (1775-1854).

De volta a Copenhague, em 1843, publicou A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844, Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Em 1845, As Etapas no Caminho da Vida. Em 1846, o Post-Scriptum a Migalhas Filosóficas. Na maior parte desses textos, Kierkegaard está tentando, cifradamente, explicar a Regine as razões da sua decisão.

Polêmico, ele não poupou críticas à igreja oficial da Dinamarca por seu cristia-nismo de fachada. Ao mesmo tempo, Kierkegaard tornou-se motivo de chacota em um semanário satírico da capital.

Em 1849, ele publicou Enfermidade Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo, em que analisa a deterioração geral do sentimento religioso.

Em março de 1855, Regine Olsen, já casada, mudou-se de Copenhague acompanhando Fritz Schlegel, seu marido, nomeado governador das Índias Ocidentais dinamarquesas. Em 2 de outubro do mesmo ano, Kierkegaard sofreu um colapso na rua e foi levado para o hospital. Morreu um mês depois, em 11 de novembro, recusando os sacramentos. Seu enterro foi surpreendentemente concorrido. Um grupo protestou contra a hipocrisia da Igreja, que o reinvindica-va como seu membro ao sepultá-lo em campo santo. Seus poucos bens foram legados a Regine Olsen.

Verdade e vida Contudo esteja presente nas grandes filosofias, a noção de existência só ganha

destaque, assumindo a plenitude de sua significação, com Kierkegaard. Pole-mizando com Descartes, o filósofo dinamarquês afirmou: “Quanto mais penso, menos sou, e quanto menos penso, mais sou”. Na perspectiva kierkegaardiana, a fórmula cartesiana deve ser invertida: não existo porque penso, mas penso porque existo.

Todavia, pensar a existência não corresponderia a negá-la naquilo que ela tem de irredutível? Kierkegaard, porém, não teme pensar o paradoxo, a contra-dição, pois o paradoxo, para ele, é a paixão do pensamento. Ainda mais do que

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paradoxo, Cristo é o escândalo absoluto, o Deus feito homem e morto na igno-mínia de uma cruz.

Combatendo os sistemas filosóficos em geral e o hegelianismo em particu-lar, que tudo pretendem incluir e absorver em sua estrutura conceitual, e com-batendo também a Igreja oficial, com seus “sacerdotes funcionários”, que desfi-guram o cristianismo, Kierkegaard apela para o extraordinário, para aquilo que, recusando a submeter-se à ordem do rebanho, procura uma comunhão direta com Deus, uma relação absoluta com o absoluto.

Em busca de um cristianismo autêntico e em defesa do valor imensurável do indivíduo, Kierkegaard enaltece a existência sobretudo no que ela tem de irrepe-tível e misterioso, inassimilável pelo pensamento. Existir, ensina ele, é escolher e apaixonar-se, vivendo na tensão entre a finitude da existência e a infinitude do transcendente divino. A verdade não é mais a objetividade, mas a subjetividade. O problema agora não está mais em encontrar a verdade, mas uma verdade pela qual se possa viver e morrer. A verdade só se torna verdadeira quando o ser humano dela se apropria, transformando-a em vida.

Os três estágios da existência Enquanto modos de ser da existência humana, Kierkegaard distingue três es-

tágios: o estético, o ético e o religioso.

No estágio estético, o indivíduo vive em permanente aventura e disponibi-lidade emocional, sob o domínio dos sentidos e dos sentimentos. Convencido de sua irrestrita liberdade, vive procurando extrair o máximo de cada instante, entregando-se a toda sorte de prazeres e sensações, visto que tudo é fugaz e passageiro. Três personagens representam esse estágio:

o judeu errante, nostálgico da pátria perdida e em busca de uma transcen-dência que sempre se afasta;

Fausto, o aventureiro do conhecimento, sempre insatisfeito em sua busca intelectual;

Don Juan, o aventureiro erótico, igualmente insatisfeito em sua ânsia de satisfação.

Essa insatisfação do estágio estético leva ao desespero. Para Kierkegaard, porém, o desespero não é algo negativo – aliás, a superioridade do ser humano

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sobre o animal está justamente na sua capacidade de se desesperar. E é esse desespero que o fará atingir o estágio ético.

No estágio ético, o indivíduo descobre que não pode ignorar as exigências do mundo exterior, com suas normas e convenções. Trata-se de aceitar uma tábua de valores, de distinguir o bem do mal. A vida não é um jogo e por isso cada um é responsável por seus próprios atos e escolhas. No entanto, esse estágio não logra proporcionar a existência pela qual anseia e que só é alcançável no último estágio – o religioso.

O estágio religioso é o ponto culminante do desenvolvimento existencial, em que o indivíduo alcança uma relação íntima com o Criador. Em Temor e Tremor, Kierkegaard analisa o salto necessário entre o estágio ético e o religioso por meio da conhecida passagem bíblica sobre o sacrifício de Isaac (Gênesis, 22); depois de, na velhice, dar um filho a Abraão, o único de sua mulher Sara, Deus exige desse patriarca o sacrifício desse filho: “Abraão tem de escolher entre as exigências racionais e éticas e a ordem divina, entre a transgressão e a obediên-cia. Certo da onipotência de Deus, Abraão repudia a ética e a razão e escolhe a fé” (PENHA, 1983, p. 25).

Assim como Nietzsche, Kierkegaard também foi um pensador “póstumo”, re-cebendo o verdadeiro reconhecimento só após a sua morte. No entanto, a re-percussão fora das fronteiras dinamarquesas só ocorreu no século XX, primeira-mente na Alemanha e depois – nas décadas de 1920 e 1930 – na França. Coube sobretudo a Heidegger, talvez o maior filósofo do século XX, tomar, aprofundar e imprimir novos rumos à filosofia da existência herdada do atormentado e soli-tário pensador dinamarquês.

Heidegger: o filósofo da Floresta Negra Martin Heidegger nasceu a 26 de setembro de 1889, em Messkirch, um vila-

rejo da Suábia, ao sul da Alemanha, nas proximidades da Floresta Negra. Filho de um modesto sacristão católico, foi com o auxílio de uma bolsa de estudos que conseguiu frequentar, em 1903, o liceu de Constança.

Em 1909, ingressou no seminário jesuíta de Friburgo, onde se interessou pelos místicos alemães e pelo filósofo escolástico João Duns Scoto (1266-1308).

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Em 1914 concluiu seu doutorado e dois anos depois habilitou-se para o ma-gistério na Universidade de Friburgo.

Em 1919, já rompido com o catolicismo, Heidegger tornou-se assistente de Edmund Husserl (1859-1938), o fundador da fenomenologia.

Em 1923, assumiu uma das cátedras de filosofia da Universidade de Marburgo, onde seu nome começou a se projetar sobretudo pelas interpretações pessoais que dava a pensadores pré-socráticos como Heráclito (540-470 a.C.) e Parmêni-des (530-460 a.C.).

Em 1927, publicou seu mais célebre trabalho, O Ser e o Tempo, marco inicial do existencialismo contemporâneo.

No ano seguinte, substituiu Husserl na Universidade de Friburgo, sendo eleito reitor pelos professores em 1933, ano da ascensão de Hitler ao poder (um pouco antes, Heidegger havia se filiado ao Partido Nazista, desfiliando-se apenas com o fim da Segunda Guerra). Em seu discurso de posse, ele saudou o novo regime, expressando suas esperanças em uma “completa revolução da existência ger-mânica”. É dessa mesma época o seu distanciamento em relação a Husserl, que era judeu (em uma nova edição de O Ser e o Tempo, em 1941, Heidegger retirou a dedicatória a Husserl). Todavia, desligou-se do cargo de reitor dez meses depois, permanecendo na instituição apenas como professor. Até o término do conflito mundial, ele vive isolado em sua casa, nas montanhas da Floresta Negra.

Com a derrota da Alemanha, Heidegger foi proibido de lecionar em universi-dades alemãs, situação que perdurou até o início da década de 1950. Nesse perío-do, sobretudo com Sartre, o existencialismo ganhou o mundo, tornando-se, pelo menos até o começo dos anos 1960, a principal moda intelectual. A tortuosa e oblí-qua terminologia heideggeriana, quase tão obscura quanto a de Hegel, inundou o universo acadêmico e, não raro, as conversas de botequim entre os intelectuais.

Não obstante, Heidegger levou uma vida relativamente isolada até a morte, em Friburgo, no dia 26 de maio de 1976. Nunca se retratou do seu apoio ao nazismo. Provavelmente, o orgulho – resultante da consciência de ser o maior filósofo da Alemanha do século XX – impediu que ele reconhecesse o seu erro.

Além de O Ser e o Tempo, entre as suas obras se destacam O que é Metafísica (1929), Holderlin e a Essência da Poesia (1936), Sobre a Essência da Verdade (1943), O que Significa Pensar (1954), Identidade e Diferença (1957) e Heráclito (1970).

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Em busca do ser Segundo Heidegger, o sentido da pergunta pelo ser foi perdido e caiu no es-

quecimento. Refletindo sobre a pergunta, constata-se que o ser humano é o único que a faz: os animais não indagam pelo sentido de sua existência. A analítica da existência humana (assim Heidegger denominava sua filosofia) deverá ser, portan-to, como que a introdução da teoria ou filosofia do ser. Ao descrever o existente que é o ser humano, Heidegger, conforme a tradição existencialista, observa que sua essência consiste em existir, e que o Dasein4 é a sua possibilidade de realização, isto é, a concretização possível da essência.

Por esse motivo, qualquer descrição do existente deve partir da realidade co-tidiana – já que ser e estar no mundo é a determinação fundamental da existên-cia. Com esse objetivo, Heidegger procederá a um exame do mundo, do ser, e do ser no mundo.

O mundo não corresponde à soma dos objetos que o compõem, mas é uma totalidade, já implícita em cada objeto. O Dasein o apreende, primeiramente, de modo prático, como um “complexo de utensílios”, o qual, por seu turno, pres- supõe o Dasein e os objetos que o constituem.

A análise do ser em suscita, por sua vez, o problema do espaço, mostrando que o Dasein espacializa o mundo em vista de suas preocupações. Se o mundo está implícito no sujeito, existir significa existir com, ou coexistir. Na existência cotidiana, que Heidegger identifica com a existência inautêntica, o Dasein se confunde com “todo mundo”, dissolvendo sua originalidade e sua responsabili-dade nesse anonimato. Lançado à sua revelia no mundo, o Dasein está sempre à mercê do medo e da angústia.

Sempre incompleto, o Dasein é essencialmente projeto, consciência de suas potencialidades e propósito de realizá-las no mundo. Tal projeto constitui-se, ba-sicamente, em interpretação, explicação e expressão: a interpretação determina a consciência do Dasein; a explicação, a estrutura das coisas; e a expressão, a linguagem.

A linguagem, que revela a estrutura “dialogal” do Dasein, remete ao cotidiano, dominado pelo “falatório”, no qual simplesmente se repete o que todo mundo diz.

4 Mergulhar na filosofia de Heidegger é como adentrar uma densa floresta, em cujo solo mal chegam os raios do sol. Com efeito, esse filósofo é conhecido por seu hermetismo, por seu texto eivado de metáforas e neologismos. Uma anedota diz que ele só entendeu O Ser e o Tempo quando leu sua tradução em francês. Não obstante, ele afirmava, não sem malícia, que só era possível filosofar em grego e em alemão. Dasein (pronuncia-se dazáin) e outros termos por ele utilizados não têm uma conceituação simples e inequívoca. Todavia, há uma definição para Dasein no Dicionário Houaiss é: “no existencialismo heideggeriano, o modo de existência específico do ser humano, que se define fundamentalmente pela angústia diante da morte e do vazio, pela liberdade na projeção do futuro e pelo poder de interrogar o Ser de todas as coisas”. E também foram propostas algumas traduções, meramente aproximativas: “ser-aí”, “ser-no-mundo” e “existir” – esta última, pelo filósofo espanhol Julián Marias (1914-2005).

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Normalmente encoberta pela preocupação, a angústia revela a estrutura do Dasein como o ser que se projeta, o ser que está no mundo, o ser que é o estar-aí.

Mergulhado na inautenticidade, o ser humano é, no entanto, capaz de desco-brir a verdade, isto é, a temporalidade essencial de sua existência ou, na terminolo-gia heideggeriana, sua condição de ser-para-a-morte. Ao revelar a temporalidade e a mortalidade do Dasein, a angústia abre espaço para a existência autêntica. Ora, projetando-se na direção do futuro, o Dasein temporaliza sua existência, simulta-neamente revelando a historicidade e a transcendência que lhe são inerentes.

A meta em direção à qual o existente se transcende é o próprio mundo, en-quanto unidade e totalidade. Projetando-se, o Dasein organiza e cria o mundo – não apenas produz objetos, mas sobretudo porque lhes confere significação.

A transcendência, por seu lado, explica a liberdade como desligamento e ne-gação das coisas, e a verdade como revelação ou descobrimento do ser. Ade-mais, a transcendência – ou melhor, a capacidade de transcender – é a própria liberdade, o fundamento último, o abismo além do qual não é possível retornar.

Ao denunciar o esquecimento e a perda do ser, sustentando que a metafí-sica esgotou suas últimas possibilidades, e que o domínio do mundo e do ser humano pela ciência e pela técnica é agora total, a filosofia da existência de Heidegger – a “analítica do ser” – empenha-se em pressentir uma nova era nas relações do ser humano com o ser. Lançando mão de um léxico originalíssimo, com o qual pretendia patentear a ruptura com a tradição ocidental, Heidegger foi – não obstante seu estilo oracular e obscuro –, principalmente por meio do clássico O Ser e o Tempo (1927), um dos maiores intérpretes da crise da humani-dade contemporânea, desalojada de suas certezas ancestrais e dos novos ídolos (a ciência, a técnica) – com os quais intentara preencher os nichos vazios. No entanto, a popularização do existencialismo ainda teria que esperar outra con-flagração mundial para que, transposta para o lado ocidental do Reno, na França, se tornasse a maior moda filosófico-intelectual do último século.

Sartre: de bombeiro a incendiário Popularidade maior que a de Sartre não foi desfrutada por nenhum outro fi-

lósofo do século XX. Em parte porque não raro assumiu posições polêmicas (des-concertando tanto seus admiradores quanto seus detratores), em parte porque não recusou se servir dos meios a sua disposição (como a imprensa e a literatura) para divulgar suas ideias e suas lutas: Sartre foi ao mesmo tempo um jornalista brilhante e um romancista e dramaturgo não menos bem-sucedido.

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Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, no dia 21 de junho de 1905, filho de Jean- -Baptiste Sartre e Anne-Marie Schweitzer. Dois anos depois, com o falecimento do pai, ele e a mãe se mudaram para a casa dos avós maternos, em Meudon, nos arredores da capital.

Leitor precoce e de grande imaginação, aos dez anos quis se tornar escritor, recebendo de presente aquela que viria a se tornar seu instrumento de trabalho por toda a vida: uma máquina de escrever.

Fez seus estudos secundários em Paris, no Liceu Henri IV, onde conheceu o futuro escritor Paul Nizan (1905-1940) e o futuro sociólogo Raymond Aron (1905-1983).

De 1922 a 1924, no curso preparatório do liceu Louis-le-Grand, sentiu desper-tar o interesse pela filosofia, influenciado sobretudo pela obra de Henri Bergson, então em voga.

Aos 19 anos de idade, ingressou no curso de Filosofia da Escola Normal Supe-rior, onde não chegou a ser um aluno brilhante, mas era muito interessado.

Foi nessa instituição que, em 1929, Sartre conheceu Simone de Beauvoir (1908-1986), que viria se tornar sua companheira por toda a vida. Os dois nunca formaram um casal tradicional, antes mantiveram um casamento “aberto”, ali-mentando simultaneamente outros relacionamentos, sobre os quais não manti-nham segredo. Apesar de estrábico e de baixa estatura, Sartre sempre fez sucesso com as mulheres.

Concluído o curso de Filosofia, Sartre prestou o serviço militar em Tours, na função de meteorologista, após o que foi nomeado para uma cadeira de Filoso-fia em uma escola secundária do Havre. O romance que escreveu nessa época, A Lenda da Verdade, foi recusado por todos os editores.

Fascinado pela fenomenologia de Husserl, que lhe foi apresentada por Ray-mond Aron, Sartre obteve uma bolsa de estudos e permaneceu um ano em Berlim, onde tomou contato com a obra de Heidegger.

De volta à França, em 1936, publicou A Imaginação e A Transcendência do Ego, trabalhos marcados pela influência da fenomenologia.

Em 1938, veio à luz o romance no qual vinha trabalhando há tempo, A Náusea, e no ano seguinte uma coletânea de contos, O Muro, e um ensaio, Esboço de uma Teoria das Emoções.

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Em 1940, lançou mais um ensaio, O Imaginário, que, como o anterior, serve-se do método fenomenológico.

Todavia, nesse meio tempo foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial e Sartre, convocado a servir como meteorologista, caiu prisioneiro dos alemães em junho de 1940. Encerrado no campo de concentração de Trier, Alemanha, aproveita o ócio para escrever. Libertado em abril do ano seguinte, aliou-se à Resistência – o grupo insurgente que combatia as forças de ocupação alemãs – e fundou com Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) o grupo Socialismo e Liberdade, pro-duzindo panfletos clandestinos contra a ocupação alemã. E foi nessa época que conheceu Albert Camus, de quem se tornaria amigo até 1952, quando houve um rompimento entre eles.

Em março de 1943, foi encenada As Moscas, a primeira peça teatral de Sartre, na qual, de uma maneira cifrada, o autor incentivava a luta contra as forças de ocupação alemãs. No mesmo ano, Sartre publicou O Ser e o Nada, o grande clás-sico do existencialismo, um volumoso estudo filosófico iniciado em 1939.

Com a libertação da França e o término da guerra, Sartre fundou, novamente com Merleau-Ponty, a revista Os Tempos Modernos, na qual colaboraram Ray-mond Aron e Albert Camus, entre outros.

Assim, começou o momento mais prolífico da carreira literária de Sartre, ao mesmo tempo em que ele era alçado à posição de ícone intelectual da juventude desiludida que irrompia dos escombros da guerra. Diante das múltiplas incom-preensões que o existencialismo sofria, ele proferiu a palestra O Existencialismo é um Humanismo, em seguida transformada em livro, na qual apresenta o significa-do ético do movimento.

Acreditando na força da literatura, lançou a trilogia Os Caminhos da Liberdade, composta pelos romances A Idade da Razão (1945), Sursis (1947) e Com a Morte na Alma (1949). Também escreveu numerosas peças.

Política Se antes da guerra Sartre era praticamente apolítico, depois dela se aproxi-

mou do Partido Comunista, filiando-se em 1952. Todavia, a intervenção soviética na Hungria, em 1956, levou-o a romper com a agremiação, o que fez por meio do artigo “O Fantasma de Stalin”.

No entanto, segundo suas palavras, não deixou de se considerar um “compa-nheiro de estrada dos comunistas”. Certa feita, chegou a escrever em um de seus artigos que “todo anticomunista é um cão.”

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Em 1957, defendeu enfaticamente a independência da Argélia, ao contrário do franco-argelino Camus, que assumiu uma postura dúbia. Em artigos e con-ferências, Sartre denuncia a tortura praticada na Argélia pelo exército francês. Então, grupos de direita pediram sua prisão.

Nos anos seguintes, Sartre continuou aliando teoria e práxis. Em 1960, pu-blicou um extenso trabalho, a Crítica da Razão Dialética, precedido pelo ensaio Questão de Método. Nesses textos, ele procurou unir o existencialismo ao marxis-mo, que para ele era a “filosofia insuperável de nosso tempo, quer dizer, nenhu-ma outra filosofia poderia ir além do marxismo, pois as circunstâncias que lhe deram origem ainda não foram superadas” (PENHA, 1983, p. 116).

Entre numerosas viagens aos países do Terceiro Mundo, Jean-Paul Sartre foi a Cuba e encontrou-se com os líderes Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Ma-nifestou solidariedade aos vietcongues em sua luta de guerrilhas contra a inter-venção dos Estados Unidos.

Em maio de 1968, como não podia deixar de ser, apoia a rebelião juvenil em Paris – ao contrário, por exemplo, de Raymond Aron, que ficou do lado do status quo.

Confirmando suas inclinações polêmicas, em 1964 – no mesmo ano em que lançou o pungente As Palavras, memórias de sua infância –, Sartre recusou o Prêmio Nobel de Literatura.

Para quem pensava que sua carreira literária havia terminado, em 1971 ele sur-preendeu seu público com O Idiota da Família, um extenso estudo (mais de mil páginas) sobre Flaubert.

E seu engajamento também não arrefece: apesar da velhice e do avanço da ce-gueira, o filósofo mais famoso do mundo era visto nas esquinas de Paris, mesmo nas manhãs mais gélidas, vendendo exemplares do jornal A Causa do Povo, de extrema esquerda, ou então em cima de um tonel, discursando aos trabalhado-res grevistas da Renault. Assim, sua militância ainda era capaz de acender o furor dos setores mais reacionários: em 1975, Sartre recebeu uma carta com ameaças de morte. Ao contrário de boa parte dos intelectuais (que geralmente são incen-diários na juventude e se convertem em complacentes bombeiros na velhice), com os anos Sartre foi ficando cada vez mais radical.

Desse modo, não foi à toa que no dia 16 de abril de 1980, um dia depois do seu falecimento, a multidão de cerca de 50 mil pessoas que acompanhou o féretro de Jean-Paul Sartre pelas ruas era em sua maioria composta de jovens. No final do

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seu livro de memórias A Cerimônia do Adeus, Simone de Beauvoir afirma que “As cinzas de Sartre foram levadas ao cemitério de Montparnasse. Todos os dias mãos desconhecidas depositam em seu túmulo buquês de flores frescas.”

A vida como projeto secundárioSartre levou às últimas consequências o pressuposto de que a existência pre-

cede a essência. Ora, quando se considera um objeto produzido pelo ser humano – um vaso de cerâmica, por exemplo –, percebe-se claramente que a ideia do vaso precede a sua fabricação. Quando se concebe um Deus criador, pensa-se analo-gamente no artesão que, antes da criação, concebeu previamente uma ideia de tudo aquilo que iria criar. Mas se Deus não existe, argumenta Sartre, a essência do ser humano não pode preceder sua existência. Com efeito, há pelo menos um ser que existe antes de ser possível defini-lo por um conceito: o ser humano, que primeiramente existe e somente depois se define. Mera possibilidade de ser, o ser humano se define pelo que faz, pela série de seus atos.

Definindo-se pelo que faz, o ser humano é, antes de tudo, um projeto que vive a si mesmo subjetivamente. Impelido a projetar sua vida, é responsável por aquilo que faz. Ao escolher, escolhe-se – e, escolhendo-se, escolhe consigo todos os seres humanos, na medida em que cria uma imagem do ser humano tal como julga que deva sê-lo.

Escolhendo toda a humanidade no ato de se escolher, não pode evitar a an-gústia, o sentimento de sua total e profunda responsabilidade. Se Deus não existe, tudo é permitido, como dizia Dostoievski, e assim o ser humano está condenado a ser livre, extraindo de si mesmo os valores e as normas de sua conduta. O senti-mento de abandono e solidão no mundo significa que o ser humano, irremissivel-mente condenado à liberdade, escolhe, ele próprio, o seu ser. Ele não tem escolhas – a não ser a escolha.

Assim, o ser humano não é nada mais que aquilo que se projeta ser, e esse é o primeiro princípio do existencialismo. O ser humano é um projeto que vive subjetivamente. Com isso, Sartre quer dizer que, quando nasce, o ser humano não é nada, não existem ideias inatas que possam conduzi-lo ao longo da vida. Em primeiro lugar, o indivíduo existe e só depois, a partir das suas escolhas e das consequências dessas escolhas, ele vai adquirindo uma “essência”. Portanto, a essência humana só aparece como decorrência dos atos humanos: são meus atos que constroem e definem quem eu sou.

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O desespero, continua Sartre, significa que o indivíduo conta apenas consi-go mesmo ou com o conjunto de probabilidades que tornam possíveis os seus atos. Agir sem esperança é agir sem contar com os outros indivíduos, já que eles, além de estranhos, são igualmente livres e igualmente contam apenas com eles mesmos. Ademais, não há uma natureza humana, uma essência ou substância comum a que se agarrar.

Assim, o ponto de partida do existencialismo sartreno é a subjetividade que apreende a verdade absoluta da consciência na intuição de si mesma. Contudo, nessa subjetividade existencial o indivíduo não atinge apenas a si mesmo, mas também aos outros indivíduos, como condição de sua existência. O que se revela então é a intersubjetividade, na qual o indivíduo decide o que é e o que são os outros. Não há natureza, mas condição humana. Efetivamente, o ser humano é sempre “situado e datado”, de modo que o conteúdo de sua situação varie no tempo e no espaço. A liberdade não se exerce abstratamente, mas dentro de determinadas coordenadas espaço-temporais que podem ser assumidas ou re-jeitadas pelo ser humano.

Porque Deus não existe e também não existe natureza humana universal, o ser humano, jogado no mundo, a sós consigo, é compelido a elaborar seus pró-prios valores. A vida, a princípio, não tem sentido. Antes de ser vivida, a vida não é coisa alguma, não apresenta valor algum, é simplesmente um “em-si”, como uma couve-flor ou um cachorro. Desse modo, é o ser humano que dá sentido à vida, projetando-a para além de si, e o valor que lhe é dado se confunde com esse sentido, isto é, com essa “direção”. Dessa forma, o em-si se transforma no “para-si”, a vida passa a ter um propósito, diferente das plantas ou dos animais, que fazem apenas o que está inscrito em seu DNA.

Consequentemente, longe de um mero e radical individualismo, o existencia-lismo está assentado sobre a consciência de que a realização de uma existência humana autêntica consiste em projetar-se para fora e além de si, em transcen-der-se, orientando a sua subjetividade na direção daquilo que a ultrapassa, ou seja, o horizonte dos outros seres humanos. Sob essa óptica, o existencialismo é um humanismo e sua irredutível subjetividade não é contrária a projetos coleti-vos, como o do marxismo.

Outros existencialistasAlém de Sartre e Heidegger, muitos outros filósofos no século XX se identifi-

caram ou foram identificados com a filosofia da existência.

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Dentre aqueles que, na esteira de Kierkegaard, trilharam o caminho do exis-tencialismo cristão, podemos citar o espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), o alemão Karl Jaspers (1883-1969) e o francês Gabriel Marcel (1889-1973).

Entre aqueles que, em uma linha ateísta, flertaram em maior ou menor medida com o marxismo, encontramos a companheira de Sartre, Simone de Beauvoir (1908-1986), autora do livro O Segundo Sexo (1949), deflagrador do feminismo contemporâneo; o franco-argelino Albert Camus (1913-1960), autor de O Mito de Sísifo (1942); e André Gorz (1923-2007).

É bom frisar, no entanto, que nem todos esses autores aceitaram a etiqueta de existencialistas que neles foi afixada, mas de certa forma eles gravitaram em torno das premissas e dos problemas da filosofia da existência.

Textos complementares

O desespero(KIERKEGAARD, 1964, p. 266)

O desespero será uma vantagem ou uma imperfeição? Uma coisa e outra em pura dialética. A só considerarmos a ideia abstrata, sem pensar num caso determinado, deveríamos julgá-lo uma enorme vantagem. Sofrer um mal destes coloca-nos acima do animal, progresso que nos distingue muito mais do que o caminhar a pé, sinal de nossa verticalidade infinita ou da nossa es-piritualidade sublime. A superioridade do homem sobre o animal está, pois, em ser suscetível de desesperar, a do cristão sobre o animal natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar-se.

Assim, há uma infinita vantagem em poder desesperar, e, contudo, o de-sespero não só é a pior das misérias, como a nossa perdição. Habitualmente a relação do possível com o real apresenta-se de outro modo, porque, se é uma vantagem, por exemplo, poder-se ser o que se deseja, maior ainda é sê-lo, isto é, a passagem do possível ao real é um progresso, uma ascensão.

Com o desespero, pelo contrário, há uma queda do virtual ao real e a margem infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda. Não deses-perar é pois elevar-se. Mas a nossa definição é ainda equívoca. A negação,

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aqui, não se assemelha a não ser manco, não ser cego etc. Pois que, se não desesperar equivale à absurda ausência de desespero, e, progresso, neste caso, será o desespero. Não estar desesperado deve significar a destruição da possibilidade de o estar: para que um homem não o esteja verdadeiramente, é preciso que a cada instante aniquile em si a sua possibilidade. Habitual-mente, é outra a relação do virtual com o real. É verdade os filósofos dizerem que o real é o virtual destruído; sem grande exatidão contudo, pois que é o virtual plenamente realizado, o virtual agindo. Aqui, pelo contrário, o real (não estar desesperado), por consequência uma negação, é o virtual impo-tente e destruído; ordinariamente o real confirma o possível, aqui nega-o.

O desespero é a discórdia interna duma síntese cuja relação diz respeito a si própria. Mas a síntese não é a discordância, é apenas a sua possibilidade, ou então implica-a. De contrário não haveria sombra de desespero, e desesperar não seria mais do que uma característica humana, inerente à nossa nature-za, ou seja, que o desespero não existiria, sendo apenas um acidente para o homem, um sofrimento como uma doença em que se soçobrasse, ou, como a morte, nosso comum destino. O desespero está, portanto, em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza.

Transcendência(HEIDEGGER, 1964, p. 455)

Uma observação preliminar de ordem terminológica, deve regular o termo transcendência e preparar a determinação do fenômeno designado por este vocábulo. Transcendência significa transpassagem. Transcendente (transcen-dendo) é aquilo que realiza a transpassagem, que, transpassando, permane-ce. Trata-se, pois, de um acontecimento que é próprio de algum ente. De um ponto de vista formal, a transpassagem pode precisar-se como uma relação que se estende de alguma coisa para alguma coisa. Logo, à transcendência pertence aquilo para o qual esta transpassagem é orientada, o que designa, habitual –, ainda que impropriamente, como o transcendente. Enfim, em cada transpassagem alguma coisa é transpassada. Estes elementos estão tomados de fatos de ordem “espacial”, nos quais o termo em questão faz, de imediato, pensar.

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A transcendência, consoante a acepção terminológica que aqui esclarece-remos e justificaremos, designa alguma coisa que é própria do ser-aí humano e não como um modo de comportamento possível entre outros, de vez em quando realizado, mas como constituição fundamental deste ente anterior a todo comportamento. O ser-aí humano porque ser-aí que existe no espaço, possui por certo, como possibilidade entre outras, igualmente a de franquear no espaço uma barreira ou um fosso. Todavia, a transcendência é a transpas-sagem que possibilita alguma coisa tal como a existência, e por isso também um mover-“se”-no-espaço.

Se elegemos para o ente atual que somos nós mesmos e que compre-endemos como ser-aí o título de sujeito, então se pode dizer que a trans-cendência designa a essência do sujeito, que ela é estrutura fundamental da subjetividade. Jamais o sujeito começa por existir como sujeito para, até no caso de que se tenham apresentado objetos, transcender em seguida igualmente, mas que ser-sujeito quer significar: ser-ente em transcendência e como transcendência. Jamais pode discutir-se o problema da transcendên-cia como se se buscasse decidir a questão: a transcendência pode ou não corresponder ao sujeito? Isto é, a compreensão da transcendência implica que está decidido se no conceito temos alguma coisa assim como a subjetivi-dade, ou então só aceitamos, por assim dizer, um sujeito truncado.

Humanismo(SARTRE, 1964, p. 507)

Mas há outro sentido do humanismo que significa, no fundo, isto: o homem está continuamente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo- -se fora de si mesmo que faz existir o homem e, por outro lado, é visando fins transcendentais que pode existir; sendo o homem este próprio rebaixamen-to, está no âmago e no centro deste rebaixamento. Não há outro universo senão este universo humano, o universo da subjetividade humana. Esta união de transcendência, como constitutiva do homem – não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de rebaixamento – e da subjetividade no sentido de que o homem não está fechado em si mesmo, mas presente sempre num universo humano, é o que chamamos humanismo existencialis-ta. Humanismo porque recordamos ao homem que não há outro legislador senão ele mesmo, e que é no desamparo que decidirá de si mesmo; e porque

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mostramos que não é voltando para si mesmo, mas buscando fora de si um fim que é tal ou qual libertação, tal ou qual realização particular que o homem se realizará precisamente enquanto humano.

Atividades 1. Além das diferenças evidentes, existem pontos de contato entre as doutrinas

do pragmatismo e do existencialismo? Quais são?

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2. Relacione a primeira com a segunda coluna conforme a relação entre o filó-sofo e a teoria.

a) Martin Heidegger

b) Charles Sanders Peirce

c) Jean-Paul Sartre

d) Kierkegaard

e) Willian James

Enquanto modos de ser da exis- )(tência humana, distingue três es-tágios: o estético, o ético e o reli-gioso.

No que concerne à existência de )(Deus, admitiu como válida a aná-lise da experiência religiosa.

Sempre incompleto, o )( Dasein é es-sencialmente projeto, consciência de suas potencialidades e propósi-to de realizá-las no mundo.

Considera-se o seu artigo “Como )(tornar nossas ideias claras” a ori-gem do pragmatismo.

O existencialismo é um humanis- )(mo e sua irredutível subjetividade não é contrária a projetos coleti-vos.

3. A respeito das seguintes proposições, assinale com P aquelas que dizem res-peito ao pragmatismo e E as que dizem respeito ao existencialismo.

É em primeiro lugar um método e, em consequência deste, uma teoria )(da verdade, manifestando uma posição extremamente oposta ao ra-cionalismo e uma perspectiva centrada no conceito de vontade.

Parte do pressuposto de que a existência precede a essência, tanto em )(relação à realidade quanto em relação ao conhecimento.

O ser humano está condenado à liberdade. )(

Projetando-se em direção do futuro, o )( Dasein, temporaliza sua exis-tência, revelando ao mesmo tempo a historicidade e a transcendência que lhe são inerentes.

Uma afirmação é verdadeira apenas na medida em que conduz ao )(êxito.

Mera possibilidade de ser, o ser humano se define pelo que faz, pela )(série de seus atos.

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Para produzir filosofia Para conversar em pequenos grupos e depois discutir com a turma: a socie-

dade atual favorece mais as atitudes referentes à filosofia pragmatista ou exis-tencialista?

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Os homens se humanizam trabalhando juntos para fazer do mundo, sempre mais, a

mediação das consciências que se coexistenciam na liberdade.

Ernani Maria Fiori

Filosofia para quê?Em uma sociedade pragmática como a nossa, cujos interesses se con-

centram nos conhecimentos que podem produzir algum resultado ime-diato, sobretudo se mensurável em termos monetários, a filosofia não raro se afigura como absolutamente irrelevante. Nas faculdades, os cursos de filosofia estão entre os menos disputados, não se veem empresas dispu-tando profissionais da área e ela mal consta nos currículos das escolas.

Não obstante tudo isso, ainda que de modo sub-reptício, a filosofia está por trás de tudo. Ela está tanto nas grandes decisões pessoais, conduzin-do nossas escolhas e opções morais, quanto nas políticas das nações, no Direito, nos projetos pedagógicos, nos editorias dos jornais, nos conceitos de humano e de mundo. Conforme o filósofo Karl Jaspers, “[...] a filosofia é imprescindível ao homem. Está sempre presente e se manifesta nos provér-bios tradicionais, em máximas filosóficas correntes, em condições dominan-tes, quais sejam, por exemplo, a linguagem e as crenças políticas”. (JASPERS, 1977, p. 13)

Crise e filosofiaAs grandes crises da história sempre foram acompanhadas ou seguidas

de uma rica produção filosófica:

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a queda de Roma suscitou a grande síntese filosófica de Santo Agostinho;

o aparecimento da burguesia e o início do crescimento dos centros urbanos na Idade Média ocorreram a par do surgimento da filosofia escolástica;

a Reforma Protestante, as grandes descobertas ultramarinas e a economia mercantilista prepararam o caminho para as filosofias racionalistas e em-piristas da Idade Moderna;

a sociedade capitalista anglo-saxônica do século XIX criou as condições para a filosofia pragmatista;

as duas guerras mundiais, no século XX, ensejaram no continente europeu o existencialismo.

Com base nisso, é visível a relação entre crise e filosofia. Ora, muitas vezes as ex-periências de crise – tanto pessoais quanto civilizacionais – produzem aquilo que os gregos chamavam de thaumásia, isto é, pasmo, espanto, sentimento este que para eles estava na base da atitude filosófica. Para os gregos, a capacidade de espanto, de pasmo, era essencial para despertar no sujeito as condições para o surgimento da reflexão filosófica. Somente quem se espanta é capaz de refletir criticamente sobre o objeto que lhe causou espanto. Da mesma forma que as grandes mudanças ou convulsões sociais produzem crises nas sociedades e nas nações, as situações-limite em nossa vida – a experiência de perda por meio da morte de algum ente querido, a doença, as surpresas ocasionadas pelo acaso, a sensação de desamparo – provocam crises a nível pessoal.

De certa forma, a crise desencadeada por essas situações-limite desnuda aos nossos próprios olhos nossa verdadeira condição de seres frágeis e desprotegi-dos. Essa revelação leva-nos a enxergar a realidade como um problema e, sendo um problema, ela exige, de imediato, uma solução. Em outras palavras, a crise, convertida em problema, desperta a reflexão, isto é, o “ato de retomar, recon-siderar os dados disponíveis, vasculhar numa busca constante de significado” (SAVIANI, 1980, p. 23). Segundo Demerval Saviani, quando essa reflexão se torna radical, rigorosa e global, nasce a filosofia.

Assim, percebe-se que a filosofia é, em primeiro lugar, uma atitude e uma tarefa, das quais se originam, secundariamente, as filosofias: para haver a filosofia como sistema, como um corpo de doutrina, é necessário em primeiro lugar que haja filo-sofia como atitude. Antes da filosofia hegeliana, por exemplo, houve um indivíduo, chamado Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que soube problematizar as crises que,

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como todo ser humano, surgiram em seu caminho. Tendo como fonte primeira a crise, que suscita o espanto e o pasmo, a filosofia é uma tentativa de dar respos-tas aos problemas colocados por ela, isto é, uma tentativa de fundamentar a ação com vistas à transformação da realidade. Depois de Karl Marx, discípulo rebelde de Hegel, a filosofia deixou de ser inteiramente contemplativa e teórica, e se tornou prática, não raro revolucionária, como ele escreveu na 11.ª tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”

Nesse sentido, seria correto afirmar que a filosofia é algo ocasional, irrompen-do na história somente uma vez ou outra, nos momentos de crise? Não, pois a história é vista cada vez mais como uma longa e contínua cadeia de crises em que, evidentemente, há momentos cruciais, mais dramáticos e dolorosos, como as grandes conflagrações, as catástrofes, as revoluções etc. O escritor irlandês James Joyce (1882-1941) afirmou certa vez: “A história é um pesadelo do qual eu quero acordar.” Acontece que não podemos acordar desse sonho/pesadelo. A história está aí, na rua, na esquina, em um avanço técnico, na banca de jornais, em uma nova moda, um novo adereço corporal. Por sua constante e inopinada novidade, a história está sempre a nos espantar, a nos pasmar, convidando-nos continuamente a uma atitude de reflexão e crítica. Consequentemente, a filoso-fia subjaz a tudo, já que ninguém consegue escapar ao mundo e à história, eter-nos produtores de crises. É verdade que essa filosofia nem sempre é consciente ou articulada, ou seja, radical, rigorosa e global, como os sistemas de pensamen-to produzidos pelos filósofos “profissionais”, mas ela está na base e na origem destes. Na verdade, essa afirmação ecoa o velho argumento de Aristóteles, con-forme exposto por Bochenski(1973, p. 23): “Ou se deve filosofar, ou não se deve filosofar. Se não se deve filosofar, isto só em nome de uma filosofia. Portanto, mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar”. Em outras palavras, precisa-mos da razão até para sermos irracionalistas: é necessário articular um discurso filosófico, um conjunto de argumentos, para negar a razão e a filosofia.

Não há como escapar à filosofia. É verdade que não é todo mundo que têm condições de produzir uma reflexão que atinja as raízes, com rigor metodológi-co, dispondo dos dados necessários a uma visão totalizante da realidade, prin-cipalmente se considerarmos que esses dados se avolumam e se tornam mais complexos à medida que se ampliam os domínios das ciências. Hoje em dia, com os modernos meios de comunicação, de maneira especial a web – a rede interna-cional de computadores –, houve um aumento vertiginoso do número de infor-mações acessíveis. Mas informação não é conhecimento, e conhecimento não é

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sabedoria. O conhecimento se processa quando somos capazes de assimilar as informações ao nosso alcance, organizando-as, catalogando-as. Contudo, para que o conhecimento se converta em sabedoria, isto é, em filosofia, é necessário uma visão de fundo, perspectivas mais amplas e critérios mais rigorosos – e isto só a filosofia pode fornecer. Todavia, cada um a seu modo, todos tentam, cons-ciente ou inconscientemente, com os recursos de que dispõem e os dados que têm à mão, dar uma resposta aos principais questionamentos que as crises da vida e da história fazem emergir no caminho.

E há ainda um aspecto que é importante frisar. “As interrogações são mais importantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interroga-ção” (JASPERS, 1977, p. 14). Por mais que o filósofo tente dar conta da realidade, ela é por demais complexa e dinâmica, não se deixando apreender facilmente na trama dos conceitos. E nem sempre é possível levar em conta todos os dados disponíveis ou escolher as informações capazes de conduzir ao âmago dos pro-blemas. Em todo caso, cada passo é importante para nos aproximarmos da re-solução do problema, ainda que cada resposta nos leve a novas interrogações – pois estas conduzirão a novas respostas e assim sucessivamente.

Filosofia e educação: isso dá samba? O estudo da relação entre filosofia e educação depara-se, já de início, com o

questionamento da pertinência de tal confrontação. Afinal de contas, para que se estudar uma disciplina tão abstrata e árida como a filosofia quando a educação é uma tarefa a princípio “prática”? No entanto, se pretendemos uma educação que não seja apenas mero espelho das práticas vigentes, mas antes instrumento de crítica e transformação da realidadade, a filosofia é indispensável. Afinal,

A fundamentação teórica é necessária para que seja superado o espontaneísmo, permitindo que a ação seja mais coerente e eficaz. Aliás, é bom lembrar que o conceito de teoria não se separa do conceito de prática, que é o seu fundamento. Isso significa que a teoria não deve estar desligada da realidade, mas deve partir do contexto social, econômico e político de onde vai atuar. (ARANHA, 1989, p. 44)

Aliás, o espontaneísmo – isto é, a prática desconectada de um suporte teórico – é um dos males de boa parte de nosso processo de ensino-aprendizagem, pois quando abrimos mão de teorias estamos, na verdade, servindo-nos de outra teoria, em geral mais antiga, inadequada para o nosso tempo. Para que a ação educativa seja eficaz, é necessária uma teoria atual e sempre disposta a sofrer os influxos da prática.

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Efetivamente, a filosofia nos permite um maior distanciamento para a avalia-ção dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam, desse modo problematizando a questão dos valores, pois

[...] somente assim é possível definir os valores e os objetivos que orientam a ação, pois não se pode teorizar sobre a educação em si, o homem em si, o valor em si. A partir da análise do contexto vivido, o filósofo irá indagar a respeito de que homem se quer formar, quais são os valores emergentes que se contrapõem a outros valores já decadentes.Por isso, o filósofo também avalia os currículos, as técnicas e os métodos, a fim de indagar se são adequados ou não aos fins propostos. Por outro lado, esse acompanhamento reflexivo impede que se caia no tecnicismo, um risco que existe sempre que os meios são supervalorizados. (ARANHA, 1989, p. 44)

Enfim, como a filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto acerca dos problemas, é inevitável que ela faça uma reflexão sobre o ato de educar. Por meio desse processo de reflexão busca-se fugir ao chamado espontaneísmo, possibilitando que nossa ação seja mais bem fundamentada, além de mais coe-rente e eficaz. Afinal, são tantas as questões que envolvem nossa docência que é impossível conferir sentido ao nosso ato de educar se não buscarmos o escopo do arsenal filosófico. Eis como um filósofo e educador contemporâneo apresen-ta algumas das questões pertinentes ao fazer pedagógico:

O que é Pedagogia? Qual é seu objeto? O que configura uma situação pedagógica? São questionamentos sobre os quais os educadores estão longe de ter um consenso. Entretanto, para trilhar um caminho que leve a clarear a especificidade do ato pedagógico, pode-se partir da afirmação de que a Pedagogia é a teoria e prática da educação e, portanto, seu objeto é a educabilidade do ser humano, ou melhor, o ser humano é um ser educado. Educar (em latim, educare) é conduzir de um estado ao outro, é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação. O ato pedagógico pode, então, ser definido como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto ao nível do intrapessoal, quanto ao nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos, visando provocar neles mudanças tão eficazes que os torne elementos ativos desta própria ação exercida. Presume-se, aí, a interligação no ato pedagógico de três componentes: um agente (alguém, um grupo, um meio social etc.), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, automatismos, habilidades etc.) e um educando (aluno, grupos de alunos, uma geração etc.). (LlBÂNEO, 1996, p. 97)

Com efeito, não existe educação fora do mundo. Educadores e educandos, instituições de ensino e políticas educacionais estão situados em precisas coor-denadas sociotemporais. O processo de ensino-aprendizado sofre necessaria-mente os efeitos da sociedade e da época em que está inserido. Em função dos problemas existentes em seu entorno, aparecem os problemas educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as múltiplas va-riáveis que determinam uma dada situação. Consequentemente, a “filosofia na educação”, como disciplina entre disciplinas, converte-se em “filosofia da educa-ção”, enquanto reflexão rigorosa, radical e de conjunto sobre os problemas que

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gravitam em torno da educação. A filosofia da educação tem por tarefa consi-derar tais problemas, não em si mesmos, mas nas suas relações com a realidade circundante.

Filosofar ou filosofar: eis a questãoDuas consequências decorrem desse fato.

A primeira delas é que todo educador deve filosofar. Ou, em outras palavras, todo educador necessariamente filosofa – ainda que não esteja cônscio desse fato. O problema é que nem sempre filosofa bem. Ou o educador produz um discurso filosófico próprio, crítico e articulado, ou ele apenas reproduz, não raro inconscien-temente, o discurso dominante. Daí a necessidade de o educador tornar conscien-te o seu filosofar, aprimorando-o e tornando-o rigoroso, radical e global.

A segunda consequência é que o educando também deve filosofar, ou seja, também ele, estimulado e municiado pelo educador, deve refletir sistematicamen-te, buscando as raízes dos problemas – seus e de seu tempo –, de modo a construir uma visão de mundo e adquirir criticamente princípios e valores que lhe norteiem a vida. Assim, os jovens, possuindo às vezes uma percepção não muito clara, mas particularmente aguda da crise, poderão receber o instrumental necessário para explicitá-la e analisá-la e, à luz dessa reflexão, agir sobre a realidade. Portanto, não há como fugir à filosofia. Sobretudo no campo da educação.

Atividades1. Leia com atenção a letra de música abaixo.

Bom conselhoChico Buarque

Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança

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Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio vento na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade

Nessa letra, Chico Buarque opera como que uma desconstrução de uma série de ditados populares que expressam, de certa forma, o senso comum. Vimos nesta aula que o educador, mesmo quando não pretende, está filosofando. Realmente, o educador não raro reproduz em seu falar e em seu agir o senso comum. Para evitar que ele seja um mero reprodutor inconsciente de uma filosofia, é necessário que mediante um processo de reflexão radical, rigoro-sa e global, passe a ser também um produtor (e um indutor, com relação aos seus educandos) de filosofia. Por meio de uma conversa com seus colegas, exemplifique alguns casos – sobretudo nas suas falas com os alunos – em que os professores estão na verdade reproduzindo conceitos e preconceitos da filosofia dominante. E o que é preciso fazer para que, à semelhança da letra supracitada, seja feita uma desconstrução crítica de tais conceitos.

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2. Explique a seguinte afirmação de Karl Jaspers: “As interrogações são mais impor-tantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interrogação.”

3. Qual a diferença entre filosofia na educação e filosofia da educação?

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A verdadeira moral zomba da moral.

Blaise Pascal

A refundação da éticaA ética tornou-se um dos temas candentes da atualidade em pratica-

mente todos os setores da vida pública e privada. Talvez isto se dê porque estamos a assistir – pelo menos aparentemente – a uma verdadeira crise ética, sobretudo nas instituições. Ou então porque, na sociedade atual, con-cepções de ética diversificadas, não raro antagônicas, entram em choque. Já vai longe o tempo em que um só paradigma ético regia de modo prati-camente consensual os valores da humanidade. No mundo ocidental, pelo menos desde o Renascimento, essa unidade foi quebrada.

E hoje, em uma época que muitos denominam de pós-moderna, com uma radical fragmentação dos valores, inexiste um chão comum, uma base de apoio a partir da qual se possa começar um diálogo.

Como consequência, encontramo-nos diante do desafio de estabele-cer as novas condições para uma refundação dos patamares éticos sobre os quais a humanidade possa se assentar. Daí a necessidade de se buscar respostas sobre a crise da sociedade atual, sobretudo no ambiente da edu-cação – o espaço por excelência de aprendizado e da vivência coletiva.

Sem dúvida, os valores que regem um grupo de esquimós na Groen-lândia diferem dos valores de uma tribo africana. Assim, a hierarquia de valores, a concepção de bem e mal, de lícito e ilícito, de certo e errado, sofre alterações significativas de povo para povo, de classe para classe, de grupo para grupo, e até mesmo de indivíduo para indivíduo. Mas como pensar uma educação que possa dar uma base moral de formação comum em um mundo tão dividido, com éticas às vezes tão divergentes? Como a escola deve trabalhar a ética? O que pode se esperar dos professores?

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Ética e moral É comum certa confusão entre ética e moral, como se esses termos fossem in-

tercambiáveis. Aliás, desde sua etimologia, ética e moral têm sentido semelhan-te, já que ambas estão ligadas aos hábitos, aos costumes. Ocorre, porém, que na filosofia há uma diferença fundamental entre esses conceitos.

A ética consiste na reflexão acerca dos valores. Ela faz a reflexão sobre os fundamentos da vida moral. A função de um filósofo que se dedica ao es-tudo da ética é discutir (refletir) se os valores morais de uma determinada época são éticos ou não.

Já por moral entendemos a prática dos valores, ou seja, o conjunto de re-gras ou normas de conduta próprias de uma dada sociedade, um grupo social ou um indivíduo. Conhecer como uma pessoa comporta-se frente às coisas é conhecer a sua formação moral. Em nossa filosofia de vida, a moral está presente. Um ator social destituído de qualquer padrão moral não existe: é o padrão moral que possibilita a sociabilidade das pessoas.

No entanto, nossa moral pode ser ética ou não. Como saber?

A máxima da qual devemos partir para saber se nossa ação é ética ou não é se ela produz a vida. Por isso, o pressuposto fundamental para sabermos se nossa moral é ética é considerarmos se esses valores, que fazem parte do meu funda-mento moral, promovem a vida.

Mas em que consiste um valor? Como nasce um valor em nós? Antes de qual-quer coisa, é necessário constatar que em todas as ações do ser humano estão presentes os valores.

O valor pode ser definido como a propriedade das coisas que são preferidas, julgadas superiores, desejáveis. Podemos considerar que um valor nasce a partir do instante que algo passa a ter alguma importância para o sujeito: o processo de significação do mundo é a gênese do mundo dos valores e, assim, a não- -indiferença constitui essa variedade ontológica que contrapõe o valor ao ser. Essa não-indiferença do homem frente ao mundo é o ponto de partida para o nascimento dos valores.

Como afirmamos, os valores surgem da significação das coisas. Por isso, podemos dizer que em cada valor existe certa dose de subjetividade. E o que isso significa?

Subjetivo, em filosofia, é tudo aquilo que depende do ponto de vista do sujeito.

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Ética e educação

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Por exemplo, se digo “isso é uma caneta azul”, estou falando de um conhecimento objetivo. É apenas um juízo de realidade. Agora, se digo “essa caneta azul é impor-tante porque a ganhei da minha namorada”, estou, agora, falando de um conheci-mento subjetivo.

Diversas são as formas de valor. Podemos falar de valores econômicos, lógi-cos, estéticos, religiosos, morais, éticos etc. Portanto, para conhecermos os valo-res das pessoas, precisamos conhecer a subjetividade delas.

A ciência que estuda os valores de uma determinada sociedade chama-se axio-logia, e surgiu no final do século XIX.

A ética através dos tempos A palavra ética vem do grego hexis e significa postura, atitude.

Assim, a ética pode ser definida como a disciplina filosófica que busca refletir sobre as posturas e atitudes dos seres humanos, isto é, os seus sistemas morais elaborados através dos tempos.

Conjuntamente, a ética pode ser entendida como o estudo sistematizado dos valores que sustentam um comportamento moral. “Tradicionalmente, ela é enten-dida como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas” (VALLS, 2005, p. 7).

Todos os povos elaboraram mitos para justificar as condutas morais. Na cul-tura ocidental, são familiares a figura de Moisés ao receber, no monte Sinai, a tábua da lei, e o mito narrado por Platão no diálogo Protágoras, segundo o qual Zeus, para compensar as deficiências biológicas dos seres humanos, conferiu- -lhes senso ético e capacidade de compreender e aplicar o direito e a justiça.

O sacerdote, ao atribuir à moral uma origem divina, torna-se seu intérprete e guardião. O vínculo entre moralidade e religião consolidou-se de tal forma que muitos acreditam que não pode haver moral sem religião. Segundo esse ponto de vista, a ética se confunde com a teologia moral.

Antiguidade clássica Na antiguidade clássica, a preocupação com o comportamento humano teve

início com os sofistas, que deslocaram a investigação sobre a natureza para as pri-meiras questões relativas à vida social, como Protágoras (486-404 a.C.) o expressou

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na célebre máxima “o homem é a medida de todas as coisas”; ou seja, “todo conheci-mento depende do que o indivíduo conhece, as qualidades do mundo variam com os indivíduos e no mesmo indivíduo” (LIMONGI, 1995, p. 12). Com efeito, coube a Protágoras o mérito de ter sido o primeiro a quebrar o vínculo entre moralidade e re-ligião. Para ele, os fundamentos de um sistema ético dispensam o recurso aos deuses e a qualquer força metafísica estranha ao mundo apreendido pelos sentidos.

Discordando dos sofistas, mas permanecendo no marco do homem como medida de todas as coisas, Sócrates (470-399 a.C.) sustentava a existência de um saber universal e válido que decorre da essência humana: o homem é essencialmen-te razão e é na razão que deveriam ser fundamentadas as normas e os costumes. Assim, a ética socrática é chamada de racionalista, sendo que quem age mal faz isso por ignorância do que é o bem e do que é a essência humana. De toda forma, Sócra-tes – por muitos considerado o fundador da ética ocidental – defendeu uma morali-dade autônoma, independente da religião e exclusivamente fundada na razão.

Apoiado na teoria das ideias transcendentes e imutáveis, Platão (427-347 a.C.) deu continuidade à ética socrática: a verdadeira virtude provém do verdadeiro saber, mas o verdadeiro saber é apenas o saber das ideias. Assim, em busca da natureza do bem moral, ele postula um princípio absoluto de conduta. Para ele, no mundo das ideias encontra-se a ideia de um bem superior, a partir do qual se deve estabelecer uma escala de valores com os bens menores. Dessa forma, a sabedoria não está necessariamente na posse do conhecimento científico, mas em uma vida virtuosa, com ordem, harmonia e equilíbrio.

Para Aristóteles (384-322 a.C.), a causa final de todas as ações é a felicidade. Em sua ética, os fundamentos da moralidade não se deduzem de um princípio metafísico, mas daquilo que é mais peculiar ao ser humano: razão e atuação. Para ele, só seria feliz o homem cujas ações fossem pautadas pela virtude, a qual pode ser adquirida pela educação. Além disso, analisando a organização das ci-dades gregas, Aristóteles não isola os bens, consciente de que o ser humano necessita de vários bens para alcançar a felicidade, tais como a força, a virtude, a riqueza, a beleza, a saúde e os prazeres sensíveis.

Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a ética está vinculada à pólis, ou seja, à política da cidade grega. Contudo, com a perda da autonomia das cida-des-Estado, a partir do século III a.C., surgiram novas escolas filosóficas, como o estoicismo e o epicurismo, que buscavam a realização moral do indivíduo fora dos contornos da política, desenvolvendo uma ética baseada nos ideais da paz interior e do autocontrole.

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Assim, para a ética de Epicuro (341-270 a.C.) a felicidade encontra-se no prazer moderado, no equilíbrio racional entre as paixões e sua satisfação. A ética dos estoicos, por sua vez, viu na virtude o único bem da vida e pregou a necessidade de viver de acordo com ela, o que significa viver conforme a natureza, que se identifica com a razão.

Idade Média Mais tarde, com o estabelecimento da cristandade, amálgama da tradição

judaico-cristã com o pensamento grego e a organização social romana, a ética retornou para o âmbito da religião. Tomás de Aquino (1226-1274), por exemplo, reelabora a ideia de felicidade da ética aristotélica colocando Deus como fonte dessa felicidade. A ética cristã medieval, centrando a perfeição na relação do fiel com Deus, imprime um prisma estritamente pessoal à moral. A determinação de costumes, a decisão sobre o bom e o mal, o justo e o injusto, passa a competir exclusivamente à Igreja, detentora do monopólio das normas da ação humana.

A partir do Renascimento Mais recentemente, a partir do Renascimento, o ser humano toma consciência

de suas capacidades racionais para o desvendamento dos segredos da natureza e começa a empregá-las também no campo da moral, substituindo uma cultura dependente de Deus e da autoridade da Igreja por uma cultura antropocêntrica e secular. Trata-se agora do período moderno da nossa história, que traz um novo projeto de vida para as nossas sociedades. A modernidade é um período no qual se acredita que o aprimoramento do ser humano vem da razão e da liberdade do homem. Segundo Raimundo dos Santos(2001, p. 83), “Natureza, homem e Deus, antes naturalmente unidos, são agora realidades distintas e domínios cognitivos separados”.

Immanuel Kant (1724-1804), em suas obras Fundamento da Crítica dos Costu-mes (1785) e Crítica da Razão Prática (1788), corroborando esta tendência, afirma que “o homem, capaz de conhecer, é ativo e está no centro tanto do processo cognitivo quanto do processo ético” (SANTOS, 2001, p. 82).

Até o século XVIII, de certa forma todos os filósofos aceitavam que o obje-tivo da ética era ditar leis de conduta. Kant viu o problema sob novo ângulo e afirmou que a realidade do conhecimento prático (comportamento moral)

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está na ideia, na regra para a experiência, no “dever ser”. A vontade moral é vontade de fins enquanto fins, fins absolutos. O ideal ético é um imperativo categórico, ou seja, ordenação para um fim absoluto sem condição alguma. Em outras palavras, é na razão prática, isto é, na razão aplicada às ações práti-cas, que o indivíduo torna-se capaz de estabelecer como deve agir, sobretudo indagando se o que ele admite como norma para sua conduta tem aplicação universal. A moralidade reside na máxima da ação e seu fundamento é a auto-nomia da vontade.

Georg Hegel (1770-1831), por sua vez, distinguiu moralidade subjetiva de mo-ralidade objetiva ou eticidade. A primeira, como consciência do dever, revela-se no plano da intenção. A segunda aparece nas normas, leis e costumes da socie-dade e culmina no Estado.

A partir do final do século XIX A partir do final do século XIX, bem como no decorrer do século XX, os filó-

sofos passaram a se posicionar contra a ideia de uma moral fundada em uma razão universal e abstrata: tornou-se mais importante encontrar o ser humano concreto, que pratica a ação moral. É nesse sentido que se pode compreender o esforço de pensadores tão diferentes como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Karl Marx (1818-1853), Sören Kierkegaard (1813-1855) e os filósofos existencia-listas do século XX.

O pensamento de Nietzsche se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais e instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, ele faz a crítica do pensamento socrático, que conduziu pioneiramente a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, foi assim que nasceu o homem fraco e desconfiado de seus instintos, em um processo que culminou com o cristianismo e promoveu a “domesticação” do ser humano. A moral cristã seria a moral do “rebanho”, geradora de sentimentos de culpa e ressentimentos, fundada na aceitação do sofrimento e na renúncia, tí-picos da moral dos fracos. Por isso, Nietzsche defende a transmutação de todos os valores, superando a moral comum, para que os atos do ser humano superior não sejam pautados pela mediocridade das virtudes estabelecidas. Para tanto, é preciso recuperar o sentimento de potência, a alegria de viver, a capacidade de invenção.

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Na atualidade Na atualidade, a ética retomou uma nova conformação política, tornando-se

uma expressão da capacidade comunicativa do ser humano, sobretudo quando se volta para a discussão de uma agenda de valores comuns. O filósofo alemão Jürgen Habermas, herdeiro da tradição da Escola de Frankfurt, tem sido uma refe-rência nesse debate. Para ele, a ética é fundamental para se construir espaços pú-blicos democráticos, em que o diálogo racional torna-se a base para a argumen-tação. Com a gestão colegiada da educação (segundo a qual, de uma maneira ou outra todos participam do processo pedagógico – dos pais aos alunos, e é claro, passando pelos professores – todos são ouvidos no planejamento da gestão es-colar) isso se torna fundamental – caso contrário, os espaços coletivos de delibe-ração perdem sua referência moral e distanciam-se dos valores democráticos.

A ética na educação É possível afirmar que a ética ilumina a consciência humana, sustentando e

dirigindo suas ações individual e socialmente. Os desejos e as necessidades, jun-tamente com os sentimentos, aspirações e pensamentos, compõem a singulari-dade da personalidade humana, mas é nas instituições que eles serão filtrados e suas realizações serão consideradas lícitas ou ilícitas.

Embora singular, o ser humano não vive ilhado, sentindo necessidade de com-partilhar sua existência com os demais indivíduos. Mas, por outro lado, a socie-dade é uma arena em que, frequentemente, as vontades singulares entram em conflito, não raro com violência. Os valores éticos, as normas de conduta seriam assim uma forma de harmonizar os vários interesses em jogo, arbitrando os em-bates, estabelecendo os princípios válidos para a atuação de cada indivíduo.

Nesse processo, a educação desempenha papel importante na reelaboração moral do ser humano e de sua comunidade: toda ação educativa, consciente e reflexiva mantém com a sociedade em que se insere uma relação dialética de concordância e crítica, assimilação e superação. A proposta de uma efetiva edu-cação moral, que proporcione aos educandos as condições para um real desen-volvimento moral, é um dos objetivos de praticamente todos os Projetos Políti-co-Pedagógicos. Para alcançá-lo é preciso, principalmente, que todas as áreas e disciplinas estejam articuladas. Nesse sentido, a ética pode oferecer uma media-ção eficaz, uma espécie de liame entre todos os campos do ensino e do saber.

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Reconstruindo a ética na escola: tarefas Mas como se insere a ética na escola? Em primeiro lugar, a ética encontra-se

nas próprias relações entre os agentes que constituem uma instituição de ensino: alunos, professores, funcionários e pais. Além disso, a reflexão sobre as diversas faces da conduta humana deve fazer parte dos objetivos maiores de uma escola comprometida com a formação para a cidadania – ou seja, a formação de cida-dãos interessados no bem público e não apenas indivíduos preocupados com as próprias carreiras. De fato, na escola pode se iniciar o processo de reconstrução de valores e normas na medida em que ela se constitui em um espaço público de discussão e debate.

Todavia, é preciso levantar uma questão prévia: pode-se chegar a um acordo a respeito da validade de normas que sejam aplicáveis por todos, ou seja, cujo cum-primento possa ser exigido de todos? Ora, a legitimação de uma norma ou lei não é feita por um sujeito supostamente mais iluminado, mas por todos os agentes do processo, de forma livre e competente para interagir e comunicar-se. Cabe à escola propiciar um ambiente em que se aprenda na prática a participar dessa forma de interação moral. Isso porque, na atualidade, entende-se cada vez mais que não se legitimam normas ou leis a partir de princípios transcendentes ou de autoridade, mas pela ação comunicativa que se movimenta no interior da pragmática históri-ca. Sendo assim, “o processo de validação argumentativa, livre e competente for-nece a base de aceitação universal da norma” (FREITAG, 1992, p. 245). Quando o debate é feito de forma democrática, respeitando todos que estão envolvidos e serão afetados pelas decisões, deve prevalecer o melhor argumento.

Ora, a educação formal é sistemática e organizada, prevendo o cumprimento de objetivos traçados por uma sociedade, com vistas a desenvolver nos educandos uma postura adequada à convivência social. Trazer a ética para o espaço escolar sig-nifica enfrentar o desafio de instalar no processo de ensino e aprendizagem, que se realiza em cada uma das áreas de conhecimento, uma constante atitude crítica de reconhecimento dos limites e possibilidades do sujeito e das circunstâncias, de pro-blematização de ações e relações de valores e regras que norteiam esses limites.

Todavia, é ilusório imaginar que a escola possa cumprir sua responsabilidade, no que tange à educação ética, encarregando apenas um professor de ética em alguma disciplina ou tema transversal: para que se obtenham frutos do traba-lho com a ética, é prioridade da instituição que sua práxis seja única, visando à

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coerência e a integridade como norma e constância, o que levará os discentes à conclusão de que se faz necessário um trabalho coerente, comprometido. Ade-mais, é necessário abrir o leque da discussão para colaboradores externos, como sindicatos, partidos políticos, representantes dos três poderes, agremiações reli-giosas e meios de comunicação.

Como a educação é um reflexo do cenário nacional, marcado por exclusão social, analfabetismo, repetências e evasão escolar, deve-se procurar constante-mente uma abordagem pedagógica que sirva como mediadora entre a dimen-são técnica (valorizada na educação tradicional) e a dimensão política (superva-lorizada nas tendências filosófico-pedagógicas críticas).

A ética vem então, veiculada junto à possibilidade de ser estabelecida uma ação pedagógica metodologicamente bem articulada com uma perspectiva crítica e transformadora, e passa, necessariamente, pela revisão de conceitos e valores morais como parte imprescindível da análise que cada indivíduo e cada organização deve desenvolver via postura reflexiva. (SOUZA, 2006, p. 117)

Para o perfeito êxito dessa postura, é preciso ter sempre em mente que o pro-cesso democrático de formação moral é um processo coletivo, em que a intera-ção e o debate devem se pautar em normas que evitem a desqualificação dos interlocutores como sujeitos éticos, autônomos e conscientes das contribuições que têm a oferecer.

Sem uma educação – e uma educação ancorada em princípios éticos – não se constrói um país, muito menos uma nação, pois se um país é uma determinada área geográfica unida politicamente, uma nação é um país com consciência não só geográfica, mas sobretudo cultural. Para uma eficiente refundação das bases morais e éticas, sobre as quais nossa sociedade possa se firmar, a escola torna-se um dos principais instrumentos na transmissão dos conteúdos fundamentais da vida em sociedade. É fundamental que a escola, mais que educadora de ética, transforme-se em fomentadora de ética.

Sem ética, rareia nossa capacidade de uma interação comunicativa e racio-nal isenta de manipulação ou exclusão. Sem escola, limitam-se e quase se extin-guem as chances de continuação de nossa civilização, pois ela é um espaço privi-legiado para a transmissão da memória da espécie. Para além de mera disciplina ou tema transversal, hoje a ética na escola não é opcional: é um imperativo, uma exigência para a criação de uma sociedade democrática e justa. Frente a essa necessidade, poderíamos afirmar que, sem a prática formativa da ética, a escola perde sua razão de ser.

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Texto complementar

Um retorno da filosofia ética(RUSS, 1999, p. 5-10)

Tudo parece anunciar, hoje, um retorno da filosofia ética: desenvolvimen-to de novas correntes de pensamento, renascimento do debate ético e mul-tiplicação das discussões. Assim, a reflexão axiológica e moral beneficia-se de um favor inédito. Bioética, ética dos negócios, vontade de moralização da coisa pública ou da política, ética e dinheiro etc.: tudo se passa como se os anos atuais fossem os de renovação ética, os dos “anos da moral”, aparecen-do o estandarte dos valores axiológicos como a referência última de nossas sociedades democráticas avançadas. Sim, a ética “está na moda” e a deman-da de moral parece crescer indefinidamente. Cada dia, um novo setor da vida abre-se à questão do dever. Exigência enigmática: quando cresce a demanda por ética, quando, de todas as partes e em cada esfera, proliferam as novas morais e os imperativos inéditos, o observador atento somente pode subli-nhar, contudo, o paradoxo inerente às nossas sociedades “pós-modernas” (as que evacuam as grandes narrações totalizantes). A ética, reivindicada em toda a parte, ancora dificilmente suas normas e valores em um lugar que os funde e os justifique. Ela parece mesmo, às vezes, não encontrável. [...] O fosso existente entre a exigência ética e o real trabalho fundador desemboca pois num paradoxo primeiro, numa separação entre a necessidade e a edifi-cação requerida, o qual começa apenas a se esboçar, há cerca de 20 anos.

[...]

Mas, dir-se-á, fala-se hoje de uma “ética dos negócios” ou de uma “ética da mídia”, éticas cuja significação parece bem pouco teórica, éticas práticas, éticas, às vezes, próximas da deontologia. Na verdade, essas novas colora-ções semânticas – a ética confundindo-se então com um conjunto de regras – não nos poderiam fazer esquecer do sentido primeiro e fundamental da ética, como metamoral e doutrina fundadora enunciando os princípios. Se o uso contemporâneo é, às vezes, ambíguo, não repelimos o significado origi-nal da ética. Os efeitos da moda não poderiam justificar o abandono de toda uma tradição filosófica. Se a moral, com efeito, pode designar um impulso

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criador, ela se solidifica em prescrições que a ética interroga, das quais sus-peita e põe eventualmente à distância. [...]

Como esclarecer as mudanças intervenientes, no curso dos últimos anos, no campo da ética e da moral? Tentamos apreender as mudanças interve-nientes, mas também o tom e o estilo das análises modificam-se. Ser-nos-á preciso levar em conta muitos fatores: a falência do sentido; a reincidência das ideologias e utopias; o triunfo do individualismo e, enfim, o aparecimen-to de novas tecnologias, engendrando um crescimento brutal dos poderes do homem, sujeito e objeto de suas próprias técnicas. É, evidentemente, da falência do sentido e do vazio ético que é preciso partir, primeiro, porque o “vazio ético” preludia, esperamos, uma formação axiológica inédita.

Atividades 1. “A ética, reivindicada em toda a parte, ancora dificilmente suas normas e valores

em um lugar que os funde e os justifique.” O que o texto complementar quer dizer com isso? Discuta com os colegas e depois registre suas conclusões.

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2. Em um mundo que perdeu sua base de sustentação moral, segundo o que se discutiu em aula, como é possível se elaborar um novo pacto ético?

3. Quanto à ética através dos tempos, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

Coube a Protágoras o mérito de ter sido o primeiro a quebrar o vínculo )(entre moralidade e religião.

Concordando com os sofistas, Sócrates negava a existência de um sa- )(ber universal e válido, decorrente da essência humana.

Para Platão, que se apoiava na teoria das ideias transcendentes e imu- )(táveis, a verdadeira virtude provém do verdadeiro saber, mas o verda-deiro saber é apenas o saber das ideias.

Analisando a organização das cidades gregas, Aristóteles isolou os bens, )(elegendo a virtude como o único bem digno de ser desejado.

Tomás de Aquino reelaborou a ideia de felicidade da ética aristotélica )(colocando Deus como fonte dessa felicidade.

A partir do final do século XIX, bem como no decorrer do século XX, )(os filósofos passaram a se posicionar contra a moral kantiana, fundada em uma razão universal e abstrata.

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Ética e educação

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Filosofia e formação humana na escola

No princípioDesde que existe filosofia e educação – e as duas nasceram pratica-

mente juntas na Grécia –, elas andam intrinsecamente entrelaçadas. Entre outras coisas, a filosofia reflete sobre o que é o ser humano e como se dá sua formação, enquanto a escola, sendo o espaço em que se processa o cerne da educação formal, é a instituição encarregada dessa formação. Com efeito, Aristóteles foi o preceptor de Alexandre Magno e os sofis-tas foram os primeiros, no Ocidente, a cobrarem por suas aulas. Sócrates morreu em função de seu projeto de educar a nova geração, projeto este que foi entendido por seus juízes como corrupção da juventude. Desde então, boa parte dos filósofos tem se debruçado sobre os problemas con-cernentes à educação, de modo que podemos afirmar que todo filósofo é também educador e todo educador não deixa de ser filósofo.

Todavia, filosofia e educação não são intercambiáveis. A educação, dentro de uma determinada sociedade, não é um fim em si mesma, mas antes um instrumento de manutenção (em uma perspectiva conservadora) ou de mudança social (em uma perspectiva transformadora). Cabe à filosofia elaborar os pressupostos e os valores norteadores que serão transmitidos por meio da ação educativa. Daí porque os vínculos que unem filosofia e educação são estreitos a ponto de às vezes as duas se confundirem.

A seguir, faremos algumas reflexões sobre a relação entre filosofia e for-mação humana na escola. Para tanto, iremos nos basear em Kant (que en-tendia claramente a educação como formação) e a ele somaremos alguns aportes de Marx, que nos ensinou que todo o produto da superestrutura (arte, religião, cultura etc., isto é, as produções imateriais do ser humano) está condicionado pelas coordenadas da infraestrutura (ou seja, suas rela-ções materiais de produção, as bases econômicas de sua vida).

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A educação como formação No âmbito da filosofia, frequentemente a educação é vista como formação.

Immanuel Kant(1996. p. 11-15) já dizia: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. [...] O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”. Sob esse ponto de vista, o ser humano necessita da educação, pois é ela que o constitui plenamente humano. Mais adiante, acrescenta: “É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação e que é possível chegar a dar aquela forma que em verdade convém à humanidade” (KANT, 1996, p. 17).

Mas que forma convém à humanidade? Haveria uma forma à qual se devem adaptar todos os seres humanos para o melhor desenvolvimento de suas po-tencialidades? Kant chega a falar mesmo em germes: “Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver, em proporção adequada, as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja sua destinação” (1996, p. 18). Esses germes não são destinados ao mal, pois, “no homem não há germes, senão para o bem” (KANT, 1996, p. 24). Cumpre à educação canalizá-los para o bem. Evidentemente, poderão ocorrer desvios, mas se isso acontecer, esses desvios serão devidos mais à falta de uma educação adequada, a qual incluiria o cuidado, a disciplina e a formação.

Quanto à formação, eis o que afirma o filósofo de Konigsberg: “O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disci-plina e a instrução” (KANT, 1996, p. 14). Assim, para Kant, a formação tem dois momentos:

o momento negativo, em que se impõe a disciplina que impede os defeitos;

o momento positivo, quando entram em cena a instrução e o direciona-mento.

O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado na ins-trução. Aqui surge a distinção entre o professor e o governante: o primeiro minis-tra a educação da escola; o segundo, a da vida.

Assim, a formação humana constitui a humanidade, pois há germes de hu-manidade que necessitam de desenvolvimento: “A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualida-des naturais que pertencem à humanidade” (KANT, 1996, p. 12).

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Mas qual é a humanidade que é o objeto dessa formação? Há uma em es-pecial, predefinida? Sim e não, é a resposta de Kant. Ao mesmo tempo que já existe uma humanidade em germe, existem também fins humanos que devem ser construídos conforme as circunstâncias.

E quais são esses fins? “Bons são aqueles fins que são aprovados necessaria-mente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um” (KANT, 1996, p. 27).

Por outro lado, não é simples essa tarefa de estabelecer os fins, mas esse é o dever da humanidade. Ao contrário dos animais, que realizam apenas o que está previsto em seus instintos, os seres humanos são obrigados “a tentar conseguir o seu fim; o que ele (o ser humano) não pode fazer sem antes ter dele um conceito” (KANT, 1996, p. 18).

Por outro lado, para Karl Marx e Friedrich Engels, a formação humana é uma construção coletiva e histórica que se dá a partir de elementos naturais dados, mas se concretiza nas relações materiais de produção: “O pressuposto de toda a histó-ria humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza” (1979, p. 27). Por sua vez, essa organiza-ção corporal condiciona aquilo que diferenciará os “homens dos animais, isto é, a produção dos seus meios de vida” (MARX; ENGELS, 1979, p. 27).

A partir daí, os pais do materialismo histórico delineiam os marcos da realiza-ção humana na história. Primeiramente, vem a produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades de “comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais” (MARX; ENGELS, 1979, p. 39). A satisfação dessas necessidades bási-cas, por sua vez, conduz a novas necessidades, que são consequentemente mais ampliadas. Decorre daí o processo de produção coletiva, o qual adquiriu, histori-camente, as mais diversificadas modalidades. Assim, os seres humanos vivem e tornam-se humanos no trabalho, isto é, nas relações materiais de produção, que implicam por seu turno, relações sociais. É no conjunto de tais relações que se constata “que o homem tem consciência” e que ela “é desde o início um produto social” (MARX; ENGELS, 1979, p. 43). A conclusão é lógica: “Vê-se aqui que os in-divíduos fazem-se uns aos outros, tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos” (MARX; ENGELS, 1979, p. 55), isto é, somos produtos de nossas relações interpessoais, de nossas redes sociais, de nossas condições de trabalho. O self-made-man, isto é, o “homem que se fez sozinho”, é uma ilusão, pois mesmo ele é resultado de seu meio. No caso, ele é fruto de uma ideologia individualista.

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Assim, para Marx e Engels a formação humana é solidária: ela se dá nas inte-rações sociais que incluem necessariamente as relações produtivas. Essas inte-rações sociais incluem a transmissão, para as novas gerações, “de uma soma de forças de produção” e de uma “relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos” que,

[...] embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias con-dições de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter especial. Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstân-cias. (MARX; ENGELS, 1979, p. 56)

Kant fala de uma humanidade constituída a partir dos “germes de humanida-de” e, concomitantemente, construída nas “circunstâncias”. Marx e Engels apon-tam as circunstâncias como configuradoras da humanidade, mas circunstâncias criadas – elas mesmas – pelos próprios humanos.

Também é importante constatar que, na tradição marxista, as circunstâncias – ou o conjunto das relações de produção – podem ser benéficas ou maléficas para a constituição dos humanos. Daí ser necessário, igualmente, avaliar as cir-cunstâncias, discutir os critérios para a definição do que é benéfico ou maléfico para a humanização do humano. Aqui a pergunta inicial se amplia: não apenas o que é formação humana, mas o que é formação humana boa – o que remete à questão antropológica básica sobre o que é o humano. Debruçar-se filosofica-mente sobre essa questão – o que é o ser humano e qual é o significado de sua existência – é uma das principais atribuições da filosofia da educação:

[...] impõe-se à filosofia da educação a construção de uma imagem do homem como sujeito fundamental envolvido na educação. Trata-se de delinear o sentido mais concreto da existência humana com relação às suas coordenadas de educabilidade. Como tal, a Filosofia da Educação constitui-se como uma antropologia filosófica, entendida como tentativa de construção de uma visão integrada do ser humano. (SEVERINO, 2004, p. 31)

A formação como humanização É a partir dessas premissas que é possível falar-se em formação humana, isto é,

o processo de autoconscientização por meio do qual um indivíduo se torna pessoa humana. Essa tomada de consciência é o que constitui a dimensão subjetiva, a qual exige o desenvolvimento de uma série de sensibilidades sociais: a sensibilidade para os valores morais (consciência ética), a sensibilidade para os valores estéticos (cons-ciência estética) e a sensibilidade para os valores políticos (consciência social):

Não bastam a integridade física, biológica, o bom funcionamento orgânico, as forças instintivas para uma adequada condução da vida humana. Sem a vivência subjetiva continuamos como

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qualquer outro ser vivo puramente natural, regido por leis predeterminadas, vale dizer, sem possibilidades de escolhas, sem flexibilidade no comportamento. (SEVERINO, 2002, p. 185)

Para Kant, “quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.” Para Edgar Morin, “o primeiro capi-tal humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão” (2005, p. 35). Assim, no ser humano não há dissociação entre o biológico e o cultural, entre o individual e o social:

Como não ver que o mais biológico – o nascimento, o sexo, a morte – é, ao mesmo tempo, o mais impregnado de símbolos e de cultura? Nascer, morrer, casar-se são também atos religio-sos e cívicos. Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, beber, dormir, defecar, acasalar-se estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, símbolos, mitos, ritos, prescrições, tabus, ou seja, ao que há de mais estritamente cultural. Nossas atividades mais espirituais (refletir, meditar) estão ligadas ao cérebro, e as mais estéticas (cantar, dançar) estão ligadas ao corpo. O cérebro, pelo qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, culturais. (MORIN, 2005, p. 53)

Nessa relação dialógica, a natureza e a cultura são contrários que se antagonizam e se completam, constituindo desse modo o mundo humano, que é biológico e cul-tural ao mesmo tempo. É nessa complexa relação que é formado o ser humano.

Mas o que vem a ser a formação? É processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém1 um ser cultural, uma pessoa. Para nos darmos conta do sentido desta categoria, é bom lembrar que ela envolve um complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser. É interessante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo, como que indicando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito. Nesta linha, afasta-se de alguns de seus cognatos, por incompletude, como informar, reformar e repudia outros por total incompatibilidade, como conformar, deformar. Converge apenas com transformar. (SEVERINO, 2006, p. 2)

Aliás, Kant já havia afirmado, em Antropologia de um Ponto de Vista Pragmáti-co, que “para indicar a classe do ser humano no sistema da natureza viva e assim o caracterizar, nada mais nos resta a não ser afirmar que ele tem um caráter que ele mesmo cria para si enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os fins que ele mesmo assume” (2006, p. 216).

Todavia, Kant não deixou de colocar o problema da relação entre liberdade e disciplina no processo formativo: “Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é necessário! Mas, de que modo cul-tivar a liberdade?” (1996, p. 34). A liberdade, a autonomia, é a grande meta for-mativa do processo educacional para Kant, só que uma liberdade corretamente dirigida, que se forma não de maneira mecânica, mas no embate entre os mais diversos desejos e tendências e as exigências sociais.

1 Do verbo devir (“vir a ser; tornar-se, transformar-se”): o indivíduo natural torna-se um ser cultural.

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É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constran-gimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem esta condição não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar a sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da socieda-de, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente. (KANT, 1996, p. 34)

É nesse jogo entre princípio do prazer e o princípio da realidade, para citarmos Freud, entre liberdade e necessidade, individualidade e sociabilidade, esponta-neidade e disciplina, que o indivíduo se forma e se torna realmente humano. Um ser humano criado na selva, longe de qualquer relação com outros indivíduos de sua espécie – o mito de Tarzan –, nada mais seria do que um primata com poucos pelos.

A escola como espaço privilegiado da formaçãoJá que o ser humano não nasce plenamente humano, mas se torna humano

por meio de um prolongado processo formativo, a escola – que é por excelência a instituição de formação – torna-se fundamental nessa tarefa de humanização do humano. É verdade que existem outras instituições que com ela dividem essa responsabilidade formativa: as religiões e seus sistemas de crença e culto, a famí-lia e, recentemente, os modernos meios de comunicação de massa.

Porém, a família – pelo menos a família nuclear como a conhecemos no Oci-dente nos últimos séculos – está em crise. E antes de prosseguir, vamos escla-recer o que é essa família nuclear: é a “célula” da família, formada por pai, mãe e filhos. O conceito de família nuclear opõe-se ao conceito de família extensa, isto é, aquela família, que além da “célula principal”, acolhe outros indivíduos, como avós, cunhados, agregados, empregados domésticos etc. Na verdade, o que talvez esteja em crise é a família nuclear, pois, com efeito, a família em si mesma é uma instituição elástica, que vai assumindo as mais variadas formas segundo mudam as condições sociais.

E da mesma maneira que a família nuclear parece estar em crise, as religiões e igrejas também não gozam do mesmo prestígio e autoridade que nas épocas pré-modernas.

Os meios de comunicação de massa ainda são muitos recentes para que se possa auferir sua capacidade de formação – e em uma sociedade voltada para o mercado, muitas vezes o que se percebe do efeito desses meios é negativo.

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Por tudo isso, cabe à escola, às instituições de ensino, a maior parte da res-ponsabilidade pela transmissão da cultura, pela formação do homem.

Com efeito, é nos cada vez mais longos períodos passados na escola que se dá – ou pode vir a dar-se – o processo de humanização do humano. A transmis-são da cultura e dos valores que são considerados válidos por uma determinada sociedade se efetua, portanto, de modo privilegiado na escola. E é aí que entra em cena o papel fundamental da filosofia:

Esta é uma tarefa impossível de se realizar na pura empiria do viver, desarmado. É preciso, então, um recurso que na sua culminação final, evidentemente, seja racional, com todas as limitações que este filtro tem, e que, afinal, é o único filtro que traduz o vivido e faz o feedback do pensar e do viver. Então, em outras palavras, é necessário filosofar para exercer a crítica cultural neste sentido pleno. (DI GIORGI, 1980, p. 77)

A formação humana é tematizada, por diversos motivos, pela filosofia e, em especial, pela filosofia da educação. No momento histórico em que vivemos, talvez seja esse um dos maiores desafios para a educação: poder contar com o apoio reflexivo e crítico da filosofia.

Texto complementar

A busca do sentido da formação humana(SEVERINO, 2008)

Na cultura ocidental, a educação foi sempre vista como processo de for-mação humana. Essa formação significa a própria humanização do homem, que sempre foi concebido como um ente que não nasce pronto, que tem necessidade de cuidar de si mesmo como que buscando um estágio de maior humanidade, uma condição de maior perfeição em seu modo de ser humano. Portanto, a formação é processo do devir humano como devir hu-manizador, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa – é bom lembrar que o sentido dessa categoria envolve um comple-xo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser. É relevante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo, como que indicando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito. Nessa linha, afasta-se de alguns de seus cognatos, por

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incompletude, como informar, reformar e repudia outros por total incompa-tibilidade, como conformar, deformar. Converge apenas com transformar. A ideia de formação é, pois, aquela do alcance de um modo de ser, mediante um devir, modo de ser que se caracterizaria por uma qualidade existencial marcada por um máximo possível de emancipação, pela condição de sujeito autônomo. Uma situação de plena humanidade. A educação não é apenas um processo institucional e instrucional, seu lado visível, mas fundamental-mente um investimento formativo do humano, seja na particularidade da re-lação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva. Por isso, a interação docente é considerada mediação universal e insubstituível dessa formação, tendo-se em vista a condição da educabilidade do homem.

Trata-se, sem dúvida, de um objetivo que soa utópico e de difícil conse-cução à vista da dura realidade histórica de nossa existência. No entanto, foi sempre um horizonte constantemente almejado e buscado. E ainda o conti-nua sendo mesmo diante das condições atuais da civilização, por mais que estejam marcadas pelo poder de degradação no mundo técnico e produtivo do trabalho: de opressão na esfera da vida social; e de alienação no univer-so cultural. Essas condições manifestam-se, em que pesem as alegações em contrário de variados discursos, como profundamente adversas à formação, o que tem levado a um crescente descrédito quanto ao papel e à relevân-cia da Educação, como processo intencional e sistemático. No entanto, essa situação degradada do momento histórico-social que atravessamos só faz aguçar o desafio da formação humana, necessária pelas carências ônticas e pela contingência ontológica dos homens, mas possível pela educabilidade humana. Quando se fala, pois, em educação para além de qualquer processo de qualificação técnica, o que está em pauta é uma autêntica Bildung, uma paideia, formação de uma personalidade integral.

Atividades 1. Segundo Kant, “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão

pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” Debata essas afirma-ções com os seus colegas e registre os resultados.

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2. Para Marx e Engels, “os indivíduos fazem-se uns aos outros, tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos.” Em outras palavras, o ser humano não se constrói sozinho, mas é construído socialmente em suas re-lações sociais, sobretudo em suas relações produtivas, isto é, as relações de trabalho. Essas interações sociais incluem a transmissão, para as novas gera-ções, “de uma soma de forças de produção” e de uma “relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos” – e essa transmissão é feita pela educação. Quais são as consequências lógicas desses pressupostos na com-preensão da formação humana na escola?

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3. Nesta aula trabalhamos com conceituações de Kant e de Marx e Engels. Identifique suas origens assinalando com K quando provier do primeiro e M quando provier dos outros dois.

O homem é aquilo que a educação dele faz. )(

O pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência )(de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação com o resto da natureza.

Bons são aqueles fins que são aprovados necessariamente por todos e )(que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.

Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem )(disciplina ou educação é um selvagem.

Vê-se aqui que os indivíduos fazem-se )( uns aos outros, tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos.

O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação )(compreende a disciplina e a instrução.

As circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as )(circunstâncias.

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O processo do filosofar na Educação Infantil

Filosofia para crianças e filosofia com crianças

Há basicamente duas maneiras de se trabalhar filosofia no Ensino Fun-damental:

a filosofia para crianças, transmitindo uma série de conteúdos filo-sóficos aos educandos;

a filosofia com crianças, em que o educando aprende a filosofar a partir de vivências.

Além disso, por trás de toda prática pedagógica há uma epistemolo-gia1 subjacente, a qual pode ser dividida, a grosso modo, em três tipos elementares: a empirista, a apriorista e a construtivista.

Epistemologia empirista: aqui temos um professor diretivo, o qual, munido do conhecimento, transmite-o ao aluno, espécie de tábula rasa. Nesse caso, o educador sempre sabe o que o aluno deve apren-der e a sequência com que a aprendizagem deve se processar.

Epistemologia apriorista: nessa vertente, o educador não pode ser diretivo, pois o conhecimento já está presente no educando, bastando apenas que, com estímulos adequados, venha à tona.

Epistemologia construtivista: trabalhando com ela, teremos na in-teração educador-educando um processo de mútua construção do conhecimento: o professor estimula o aluno, respeitando as fases de seu desenvolvimento, e o educando, por sua vez, age sobre o objeto de conhecimento. É nessa ação, nessa interação com o meio, que o

1 Epistemologia é a reflexão geral em torno da natureza, as etapas e os limites do conhecimento humano, também sendo chamada teoria do conhecimento ou teoria da ciência. Grosso modo, pode ser entendida como a ciência da ciência.

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sujeito se desenvolve e aprende. E essa ação é modificadora do objeto – pois para conhecer um objeto é preciso agir sobre ele. Nessa perspectiva, desenvolvimento e aprendizagem estão interligados – porém, o desenvol-vimento precede a aprendizagem, pois ele “é um processo que se relaciona com a totalidade de estruturas do conhecimento” (PIAGET, 1972, p. 1).

Se por acaso formos aplicar, sob uma perspectiva construtivista, o método da filosofia com crianças, devemos ter em mente o respeito aos estágios básicos do desenvolvimento infantil, propondo que as reflexões e os interesses partam dos próprios educandos. Ora, a base da atitude filosófica é a capacidade de indagar, a capacidade de perguntar o quê, o como e o porquê das coisas, ideias e valores. Logo, um professor não ensina um aluno a filosofar, mas pode suscitar o pensa-mento filosófico a partir dos interesses e preocupações das crianças, dentro de cada fase do desenvolvimento infantil que elas estão atravessando.

Para as crianças o mundo é uma coisa nova, algo que desperta admiração – o que nem sempre acontece com os adultos, os quais costumam vivenciá-lo como uma coisa absolutamente normal. Nesse sentido, filósofos e crianças têm um ponto em comum: a capacidade de admiração perante o espetáculo sempre renovado do mundo. Por isso, devemos estar abertos e atentos às indagações das próprias crianças e não àquelas indagações que nós, adultos, supomos que deveriam ser as suas, pois as indagações de uma criança de cinco anos são totalmente diferentes das de uma criança de onze anos. Respeitar o processo de cada criança é, além de respeitar a sua individualidade e as questões que essa individualidade traz, respei-tar o seu nível de desenvolvimento. Um “erro” do ponto de vista do adulto pode não sê-lo na lógica da criança.

Filosofia e autonomiaOutro importante viés do processo do filosofar na Educação Infantil é o de-

senvolvimento da autonomia. Com efeito, filosofia e autonomia são temas que se entrelaçam, pois os pressupostos da filosofia com crianças são também os pressupostos da construção da autonomia do sujeito. Segundo Piaget, a auto-nomia é um processo de superação das fases anteriores que se caracterizam pela anomia2 e a heteronomia3. Assim, por meio das indagações a que a criança é desafiada a responder, o trabalho filosófico pode servir de precioso auxílio na

2 O conceito de anomia traduz-se, aqui, como sendo um estágio que envolve ações puramente motoras e individuais no qual a criança manipula objetos em função de seus próprios desejos e hábitos motores e não de regras sociais.3 A fase da heteronomia caracteriza-se pela incapacidade da criança para permitir a mudança de regras de um jogo, pois as considera sagradas, vindas dos pais. Estabelece-se uma forma de dependência da criança para com o adulto em relações que são pautadas mais pela coação e pelo respeito unilateral do que pela cooperação e pelo respeito mútuo.

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O processo do filosofar na Educação Infantil

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conquista da autonomia. Nesse sentido, podemos dizer que autonomia é uma construção que pressupõe a cooperação e o respeito mútuo.

Esse conceito contraria os modelos tradicionais na Educação Infantil, os quais se pautam pela ideia de um professor como o portador e o transmissor exclusivo do conhecimento, e um aluno que não é autônomo, pois experimenta uma de-pendência e uma receptividade meramente passiva, em uma espécie quase que perversa de heteronomia – isto é, aceitando sem questionamento os modelos e verdades que lhe são apresentados. Para Piaget:

A disciplina imposta de fora ou sufoca toda a personalidade moral, ou então, pelo contrário, a prejudica mais do que lhe favorece a formação; produz uma espécie de compromisso entre a camada exterior dos deveres ou das condutas conformistas e um eu sempre centralizado em si mesmo, porque nenhuma atividade livre e construtiva lhe facultou fazer uma experiência de reciprocidade com outros. (PIAGET, 1982, p. 68)

Se, por conta de suas consequências negativas para a socialização, o conheci-mento imposto de cima apenas consolida a heteronomia, quando é estimulado a estabelecer relações de cooperação o educando se educa para a autonomia e a liberdade. Dessa forma, ele aprende a julgar e a colocar o seu espírito crítico a serviço da razão autônoma, comum a todos os indivíduos, independentemente de ditames externos. Nesse sentido, todo o processo de ensino deve dirigir-se para a aprendizagem do pensar.

Todavia, é difícil aprender a pensar a partir de um modelo autoritário: o pensar supõe procurar por si próprio, criticar livremente, demonstrando seus pontos de vista de forma livre e cooperativa.

É, pois, condição indispensável da educação para a liberdade a educação do pensamento, da razão e da sensibilidade. Cabe à escola, por meio do trabalho da filosofia com crianças, propor aos alunos um espaço para o desenvolvimen-to de pesquisas, experiências, leituras e discussões, com isso evitando a imposi-ção de um ponto de vista unilateral, a saber, o do professor ou o da instituição de ensino. Propor essa educação, que favorece o livre desenvolvimento da ati-vidade intelectual, pressupõe acreditar que a cooperação, a pesquisa e as ativi-dades em comum são parte dos requisitos indispensáveis para a construção da autonomia.

Por outro lado, não se percebe essa mesma possibilidade de educação para a autonomia em uma concepção pedagógica diretiva, de cunho behaviorista4 – representada pela educação tradicional. Para uma epistemologia empirista, re-forçada por uma metodologia em que o professor se coloca como a autoridade 4 Behaviorismo (do inglês behavior = “comportamento, conduta”) é o conjunto de teorias psicológicas que postulam o comportamento como único, ou ao menos o mais desejável objeto da Psicologia. Os behavioristas afirmam que os processos mentais internos não são mensuráveis ou analisáveis, sendo, portanto, de pouca utilidade para a Psicologia. A crítica que se faz a essa corrente está no fato de ela simplificar a complexidade e os estímulos da mente humana.

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máxima e como detentor do monopólio do saber, o resultado é uma moral da obediência ou da heteronomia, que frequentemente conduz ao mais nocivo con-formismo social.

Uma sociedade real Como podem, pois, o professor e a escola como um todo, ajudar na constru-

ção da autonomia? É o próprio Piaget(1982, p. 203) quem fornece as pistas para uma resposta:

[...] isso depende antes de tudo da atitude do professor. Ele quer ter um papel de autocrata e transformar a classe em monarquia absoluta ou às vezes mesmo numa espécie de teocracia moral? Ele tem poder para tanto. Mas será que ele quer preparar cidadãos ao mesmo tempo livres e capazes de disciplina interior (por oposição à submissão externa e simplesmente conformista)? É preciso então inspirar-se de um ideal democrático já na escola, e não em palavras ou “lições”, mas na prática e na vida real da classe.

Encontramos, portanto, na proposta de Piaget da “escola ativa”, princípios muito semelhantes aos da filosofia com crianças. Nessa proposta, as matérias a serem mi-nistradas não devem ser impostas, mas redescobertas pelas crianças a partir de in-vestigação e de atividade espontânea. Essa atividade se oporia à pura receptivida-de e a escola se caracterizaria como o espaço apropriado para os alunos realizarem suas experiências e construírem seus conhecimentos. Isso pode ser desenvolvido basicamente a partir de três pontos.

Em primeiro lugar, a educação formaria um todo e cada atividade execu-tada pelos educandos, nas diferentes disciplinas, pressuporia um esforço do caráter e um conjunto de condutas morais, ao mesmo tempo em que ocorreria uma certa tensão da inteligência e uma mobilização dos interes-ses. Mesmo realizando atividades conteudistas de Português, Matemática, História ou qualquer outra semelhante, não poderiam assumir a postura de espectadores passivos, obedientes às leis morais do respeito unilate-ral, resumindo-se a trabalhar de acordo com as exigências do professor. Ao contrário, os alunos devem assumir uma postura diante do grupo com o qual interagem, baseados nos princípios da ajuda recíproca, do respei-to na discussão, do interesse e da objetividade que a pesquisa científica, exercida por intelectuais adultos, necessariamente pressupõe. Assim, a classe se transformaria em uma relação de trabalho, deixando evidente que vida moral e atividade escolar possuem profundos vínculos entre si.

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A segunda característica dessa escola seria a colaboração no trabalho, con-trariando a escola tradicional marcadamente individualista, em que a turma ouve o professor e reproduz para ele o saber memorizado, constituindo-se tão-somente em uma soma de indivíduos e não uma sociedade. A marca coletiva é fruto do trabalho da criança que toma iniciativas, constituindo-se como alguém que sabe cooperar e trocar pontos de vista. Se inicialmente ela é egocêntrica e heterônoma, com a realização de trabalhos em grupo, pesquisas e outras atividades, a criança se constituirá como um ser cada vez mais social. Se o respeito mútuo, além do respeito unilateral, é a base do desenvolvimento moral, então a cooperação é o procedimento mais fe-cundo de educação moral.

Por fim, há uma terceira característica dos procedimentos ativos especifi-camente morais, inspirados na noção do self-government5 e de “trabalho em grupos”. O trabalho em grupo seria feito a partir de pesquisas realiza-das em comum pelos alunos, com equipes ou com colegas de quem vão se aproximando espontaneamente, orientados e instigados pelo profes-sor. Assim, o trabalho em grupo contraria o propósito da escola tradicio-nal reforçadora da metodologia da transmissão, ou seja, aquela em que a classe ouve em comum, mas os deveres são executados individualmente pelos alunos. Essa metodologia, mais do que qualquer situação familiar, contribui para fixar o egocentrismo espontâneo das crianças. Por sua par-te, o self-government pressupõe a aprendizagem a partir da descoberta, ou seja, para apreender os conteúdos programáticos, o melhor método é a descoberta que educador e educandos fazem juntos, descobrindo, por meio de experiências ou da análise de textos, as leis ou regras próprias à matéria. Da mesma forma, para que as crianças possam adquirir o sentido da disciplina, da solidariedade e da responsabilidade, o professor, junta-mente com sua turma, deve vivenciar situações que permitam às crianças experimentar diretamente a realidade, discutindo em conjunto as leis que a constituem. Cabe às crianças, em acordo com o educador, organizarem essa sociedade que é a sala de aula, visto que a classe forma uma socie-dade real, baseada no trabalho em comum de seus membros. “Longe de preparar-se para a autonomia da consciência por meio de procedimentos fundados na heteronomia, o estudante descobre as obrigações morais por uma experimentação verdadeira, envolvendo toda sua personalidade” (PIAGET, 1982, p. 22).

5 O self-government sugerido por Piaget baseia-se nos princípios descritos por F. W. Foerster e Ad. Ferrière, significando “o governo das crianças por si próprias”.

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A diferença Com base nos pressupostos apresentados acima, salienta-se a importância

das proposições da filosofia com crianças. Vale dizer que, seja qual for o domínio a que se estende a educação, a filosofia busca dois pressupostos básicos.

O primeiro é o de não impor, pela via da autoridade, aquilo que a criança pode descobrir por si mesma.

Em seguida, para que isso de fato aconteça, é preciso que a escola crie um meio social apropriado, no qual a criança possa desenvolver as experiên-cias por ela desejadas.

A filosofia com crianças enseja uma comunidade de trabalho com alternân-cias entre o trabalho individual e o trabalho coletivo, a pesquisa, a dúvida e o desejo de aprender tendo em vista o fato de a vida social ter-se revelado cada vez mais indispensável ao desenvolvimento da personalidade – não apenas no que tange aos aspectos morais, como também, e sobretudo, aos intelectuais.

Dessa maneira, a filosofia pode ajudar as crianças a enfrentarem uma série de desafios e pressões sociais para os quais atualmente não são preparadas nas escolas de formação tradicional. Ela pode ajudar as crianças a pensarem sobre o valor de uma visão coerente do mundo; sobre as consequências de um saber dogmático diante da realidade e sobre todo um universo de categorias e hábitos de raciocínio que fazem parte do pensar humano. Como atividade ligada ao co-tidiano das pessoas, a filosofia oferece às crianças uma imensa possibilidade de constituirem um recurso adequado para que se tornem pessoas com um pensar mais complexo no sentido de serem mais críticas e criativas, mais preparadas para a reflexão sobre os fundamentos e as questões significativas do seu univer-so. Por fim, mas não por último, a filosofia pode ajudá-las a desenvolverem dis-posições afetivas e intelectuais que as auxiliem a percorrer um caminho metó-dico e problematizador de sua realidade social. Mais que memorizar conteúdos filosóficos, aprender a filosofar – isto é, a refletir criticamente e com coerência – é que fará a diferença na Educação Infantil de nossos futuros cidadãos.

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Texto complementar

A criança, o adolescente e o jovem(TELES, 1999, p. 11-13)

A criança, o adolescente e o jovem têm, pois, a natureza do filósofo e esta natureza, ao longo do tempo, tem sido sufocada exatamente pelas institui-ções educativas que já lhes entregam “respostas”, “verdades prontas”, “leis”, “normas”, “regulamentos”, “caminhos” que necessitam apenas ser decorados e introjetados. Assim, a natureza do filosofar, que se manifesta na criança pequena com os seus “por quês?” é mutilada já na infância.

Contemplando, porém, uma juventude apática, sem valores, despolitiza-da, alienada, com o raciocínio e a linguagem limitados (é claro que existem brilhantes exceções...) e sabendo que estes são os homens que vão construir o amanhã, educadores de visão compreenderam que alguma coisa estava errada e que precisávamos de novos caminhos.

A filosofia se propõe determinar o sentido dos acontecimentos e a ati-tude a assumir diante deles. Ela pode ajudar-nos a compreender o mundo como é, a procurar os caminhos que possam afastar deste mesmo mundo os abismos e o perigo de destruição, garantindo paz e progresso.

O que assistimos na atualidade? A predominância da violência, da indi-ferença, da hostilidade, do desamor, do individualismo, a ausência de cola-boração, de ordem, de respeito, de diálogo, de confiança, de sinceridade, de responsabilidade, de gratidão, de paz.

Não há dúvida que por detrás de muitas das dificuldades escolares, que já são apresentadas na infância, está a falta de habilidade de raciocínio. Porque esta é uma característica humana, não significa que não precise ser incenti-vada e exercitada.

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A filosofia leva à discussão reflexiva, lógica e analógica das ideias. Na verdade, é a única disciplina cujo objetivo é apenas o aprimoramento do pensar. Por isso é importantíssimo que a filosofia entre nos primeiros anos do currículo escolar.

Atividades 1. No Ensino Fundamental, quais são as diferenças entre filosofia para crianças e

filosofia com crianças? Discuta com os colegas. Na sua opinião, qual das duas possibilidades é a mais apropriada para essa faixa etária?

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2. Explique a afirmação abaixo.

Um professor não ensina um aluno a filosofar, mas pode suscitar o pensa-mento filosófico a partir dos interesses e preocupações das crianças, dentro de cada fase do desenvolvimento infantil que elas estão atravessando.

3. Qual é a relação entre filosofia e autonomia no processo do filosofar infantil? E o que é que Piaget tem a contribuir sobre esse tema?

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Gabarito

Convite à filosofia1. A resposta deve apresentar uma reflexão pessoal sobre o texto complemen-

tar e a citação de Marilena Chauí.

Tanto para Marilena Chauí quanto para Will Durant a filosofia difere da ciên-cia pela visão de conjunto: enquanto a ciência tem seu foco nas partes do todo, a filosofia se interessa na relação dessa parte com as demais partes. Por isso a primeira é analítica e a segunda é sintética. Não se confundindo com nenhuma das ciências em particular, mas ao mesmo tempo não deixando de lançar um olhar sobre todos os objetos dessas ciências, a filosofia tem por meta remontar “esse grande relógio que é o universo”, cujas peças foram se-paradas e analisadas minuciosamente pelas ciências. Sem essa visão ampla proporcionada pela reflexão filosófica, é impossível vislumbrar um significa-do para os fenômenos do mundo.

No entanto, a filosofia não pode ser dogmática, já que ela é consciente da contingência de suas proposições. Afinal, ela “sabe que está na história” e que, portanto, suas posições estão de certa forma condicionadas pelas coor-denadas históricas nas quais se insere.

2. 6, 1, 4, 2, 7, 3, 5

3. F, V, F, F, V

Para produzir filosofiaCada aluno deve ser incentivado a expor suas opiniões. Ao mesmo tempo, o

tutor deve levá-los a descobrir em que sentido essas ideias são reprodução ou não do senso comum. A partir disso, esse tutor deve conduzir os educandos a ar-riscar um pensamento que não fique na superfície, que busque um rigor e tenha uma visão abrangente.

A seguir um esboço do que poderia ser esse pensamento:

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A filosofia tem que ficar “arisca” ante tudo que é consensual em um determi-nado meio: esse tipo de pensamento é a doxa de determinada classe social que, acuada pela violência urbana, da qual não é isenta de culpa, pretende que a so-lução passa apenas pelo uso mais ostensivo dos aparelhos repressivos do Estado (polícia, Poder Judiciário).

Longe de soluções simplistas, a filosofia procura relacionar o fenômeno da violência a outros fenômenos da sociedade contemporânea, como a distribui-ção de renda e a ausência do Estado em significativos segmentos da sociedade.

É verdade que nem toda violência pode ser atribuída à essas causas: além da violência social, há violência racial, religiosa, de gênero (machismo, homofobia), que também está relacionada, de certa forma, àquela, e a violência de origem patológica.

No entanto, a reflexão filosófica vai mais além: ela tem que se interrogar sobre quais fatores em nossa sociedade são indutores de violência. Em uma socieda-de em que o principal valor é o da troca, não estaria aí o principal dínamo da violência?

Sócrates e a filosofia moral ocidental1. d, a, f, e, g, c, b.

2. Quanto ao primeiro exemplo, o aluno que faz o papel de Sócrates pode recor-dar que a educação, por mais importante que seja, não é a panaceia para to-dos os males, pois pode ocorrer que o mercado de um determinado país não tenha condições de absorver a demanda de todos os estudantes formados numa dada situação. É bom lembrar, além disso, que o nazismo surgiu em um país com altos índices de educação e cultura – a Alemanha. Portanto, sozinha a educação não garante um justo desenvolvimento social e humano em todas as ocasiões. Ela deve vir conjugada com outros fatores.

No segundo caso, a maiêutica é até mais fácil por que se cobra a realização da mulher na maternidade e não há uma cobrança (ou pelo menos ela não ocorre da mesma forma) de que o homem se realize na paternidade. A res-posta é simples: jogando toda a responsabilidade da educação da prole para a mulher, o homem permanece livre para buscar a sua realização onde lhe aprouver. Portanto, a afirmação de que a mulher só se realiza plenamente na

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Gabarito

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maternidade é de cunho machista, patriarcal (a sociedade erigida em torno da figura e da autoridade do pai) e androcêntrico (isto é, uma visão de mun-do que toma o ser humano masculino como medida e regra – andros vem do grego e significa exatamente o ser masculino).

A terceira afirmação, a de que artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua, é outra simplificação. Se muitas vezes o artista e às vezes até o cientis-ta é um nefelibata (isto é, alguém que vive nas nuvens), isso é frequentemen-te uma atitude de protesto perante uma sociedade mercantilista e tecnicista. Todavia, há não poucos artistas (e sobretudo cientistas) que fogem por com-pleto a esse estereótipo.

3. Um dos objetivos de Sócrates, por meio de seu método, era justamente fazer com que os seus interlocutores se libertassem do senso comum e chegas-sem às suas próprias conclusões a respeito dos processos da vida. A letra de Chico Buarque, por sua vez, é construída pela inversão de uma série de lugares-comuns. Essa é a função do filósofo, esse é o objeto do método de Sócrates: desconstruir o saber instituído, as verdades baratas do senso co-mum, e apontar para um novo jeito de ver e pensar as coisas.

Para produzir filosofiaVejamos um exemplo a partir de uma notícia publicada no site da Folha de S.

Paulo no dia 4 de junho de 2008.

Chefe de torturadores de jornalistas é policial civil e está foragido, diz delegado

(BELCHIOR, 2008)

O homem apontado pela polícia como o chefe da milícia que teria tor-turado uma equipe de reportagem do jornal O Dia na favela do Batan, em Realengo (Zona Oeste do Rio), é um inspetor da Polícia Civil, informou nesta quarta-feira o delegado Cláudio Ferraz, que investiga o caso. Identificado como Odinei Fernando da Silva, ele é lotado na 22.ª Delegacia de Polícia (Penha) e já é considerado foragido, segundo Ferraz, titular da Draco (Dele-gacia de Repressão ao Crime Organizado).

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Silva, conhecido também pelos apelidos de 01 ou Águia, também foi agente penitenciário, já respondeu por tentativa de homicídio e foi citado em relatório da Anistia Internacional sobre uso de brutalidade no sistema penitenciário, de acordo com Ferraz.

Já Davi Liberato de Araújo, o primeiro e único preso no caso, cumpria pena em regime semiaberto por receptação e foi apontado pela polícia como o se-gundo na hierarquia da milícia da favela do Batan.

Ambos, segundo o delegado Cláudio Ferraz, participaram de uma série de torturas à equipe de reportagem do jornal O Dia que estava infiltrada há 14 dias na favela do Batan realizando reportagem sobre a rotina dos mora-dores sob o mando da milícia.

Ao ser apresentado à imprensa, no fim da tarde desta quarta-feira, Araújo negou ter participado da sessão de tortura e afirmou que, na ocasião, estava dentro do presídio no qual cumpre pena. “Eu estava preso no dia, como posso ter participado se estava preso?”

Além do inspetor Odinei Silva, a possibilidade de outros policiais também fazerem parte da milícia é “muito grande”, de acordo com o titular da Draco. Ele disse ainda que um político também pode estar envolvido no grupo de segurança clandestina. Ainda não identificado, ele pode ser assessor do de-putado estadual Coronel Jairo (PSC), segundo Ferraz.

Nessa matéria percebemos, em primeiro lugar, uma intenção de imparcialida-de e objetividade, como é próprio do jornalismo contemporâneo. Todavia, o que chama a atenção, em uma leitura mais atenta, é a grande promiscuidade entre o poder público – políticos e policiais – e as chamadas milícias armadas do Rio de Janeiro. Como se sabe, essas milícias nasceram como uma reação aos grupos de traficantes, combatendo-os e cobrando propinas aos comerciantes locais em troca de “segurança”. De certa forma, elas sempre contaram com uma anuência velada do Poder Público, inclusive tendo sido elogiadas por representantes dos governos estadual e municipal. Nas entrelinhas dessa matéria, percebemos o quanto essas milícias são tão prejudiciais quanto o tráfico. Talvez até mais. Na medida em que elas gozam de certa simpatia de parcelas do Estado e de setores influentes da sociedade, seu aspecto de ilegalidade torna-se menos visível – e, portanto, mais danoso.

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Gabarito

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Esta é a função do filósofo: ler nas entrelinhas da notícia, desmascarar as con-tradições da sociedade e a superficialidade de suas leituras habituais. Se há tanta violência em nossa sociedade (aliás, na sociedade ocidental como um todo), isso se dá por uma insuficiência do poder repressor do Estado ou por uma causa mais profunda? Não seria tudo isso um sintoma de que as bases nas quais está assen-tada nossa sociedade estão profundamente doentes?

Platão e o nascimento da razão ocidental1. Várias são as interpretações possíveis desse mito de Platão. A primeira delas

é que esse homem que consegue sair da caverna é Sócrates. Com efeito, Só-crates, ao tentar mostrar aos seus concidadãos a possibilidade de um outro mundo, ou seja, de uma outra compreensão do mundo, baseada na razão, não foi compreendido, sendo condenado à morte por ingestão de cicuta.

Os indivíduos que vivem como se estivessem acorrentados são aqueles que vivem presos ao mundo dos sentidos, isto é, tomam por verdade somen-te aquilo que seus sentidos apreendem diretamente. Por esse motivo estão também presos à doxa, à opinião, ao palpite. No entanto, existem aqueles que procuram a episteme, a ciência, ou seja, a verdade para além daquilo que é primariamente apreendido pelos sentidos.

Muitos programas de televisão certamente poderiam ser considerados como representação dessa caverna. A vida de muitos brasileiros, que circulam em condomínios de luxo e em shopping centers, também está aprisionada pelas “cavernas” de seu ponto de vista, impedindo-os de ver a realidade como ela é à sua volta. Consumismo e individualismo de um lado, pobreza e ignorância de outro, são algumas das possíveis cavernas modernas, que nos mantêm presos à doxa, vivendo apenas no senso comum.

Esse mito também pode ser esclarecedor de nosso papel como educadores. Será que o que ensinamos para os nossos alunos está contribuindo para a sua autonomia e para que eles consigam sair do mundo das opiniões, do mundo da doxa? A educação deve ser libertadora de todos os condiciona-mentos sociais, preconceitos, superstições. Só assim ela pode nos impelir para fora de nossas cavernas.

2. e, f, c, a, d, b.

3. C

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Para produzir filosofia“Amor platônico”, na acepção comum, é toda a relação afetuosa entre elemen-

tos de gêneros diferentes em que se abstrai o elemento sexual, ou seja, é uma relação idealizada, muitas vezes guardada em segredo e não raro irrealizável.

Com efeito, para Platão, as ideias estavam em um plano superior à matéria. Assim, o sentido usual de “amor platônico” guarda muitas relações com o seu pensamento, para o qual a realidade, a materialidade, incluindo-se aí o amor concretizado, encontrava-se em um nível inferior ao mundo das ideias. No en-tanto, Platão nunca escreveu sobre o “amor platônico” como o definimos hoje. Aliás, Platão, como boa parte dos homens gregos de seu tempo, sentia um pro-fundo desprezo para com a mulher. Então, de certa forma, para ele, a paixão daquele que filosofa é o verdadeiro significado de “amor platônico”.

Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes1.

a) A família é uma associação constituída para suprir as necessidades coti-dianas dos seres humanos. Quando várias famílias se unem, e essa asso-ciação aspira a algo mais do que suprir as necessidades diárias, constitui- -se a primeira sociedade, a aldeia. Por sua vez, quando várias aldeias se unem em uma única comunidade, grande o bastante para ser autossu-ficiente ou para chegar perto disso, configura-se a cidade, ou o Estado. Tanto a aldeia quanto o Estado visam ao bem do ser humano, como é próprio a todas as comunidades. Todavia, o Estado, que segundo Aristó-teles é a forma mais elevada de comunidade, almeja o bem nas maiores proporções e excelência possíveis.

b) O Estado se origina precisamente da associação de comunidades meno-res, a saber, da associação de aldeias, que por seu turno são resultantes da associação de famílias.

c) O homem é um animal político porque lhe é natural a associação para obter o bem comum, isto é, a autossuficiência da comunidade.

2. V, F, V, F, F

3. E

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Para produzir filosofiaO processo de ensino-aprendizado não se dá desligado da realidade sociopo-

lítica. Quem está envolvido com a educação deve estar consciente disso. E mais: deve estar consciente que, segundo Aristóteles, a política não está circunscrita ao processo eleitoral ou a projetos partidários. Se a política visa ao bem comum, educadores e educandos devem crescer na consciência de que devem participar ativamente na consecução desse fim. O próprio processo do conhecimento já está inserido nesse fim. Todo autêntico conhecimento humano deve conduzir ao bem de todos. Em suma, ensinar e aprender são atos eminentemente políticos. E é bom lembrar que a educação pública, universal e gratuita é uma conquista du-ramente alcançada. Se ela ainda está incompleta (ou ameaçada), é porque ainda há muita coisa a fazer.

De Aristóteles à Renascença1. O primeiro texto, de Santo Agostinho, pertence à patrística; o segundo, de São

Tomás, à escolástica; e o terceiro, de Giordano Bruno, à Renascença. Pelo rigor da argumentação, os três podem ser catalogados como textos filosóficos, ou pelo menos com intenções filosóficas, isto é, com intenção de problematizar determinados assuntos a partir de uma argumentação racional mais ou me-nos rigorosa. Nesse sentido, o primeiro texto destoa um pouco, pois é extraído de Confissões, que não é propriamente um tratado filosófico, antes uma auto-biografia, mas a autobiografia de um homem instruído no saber filosófico de seu tempo, e um homem de fé. É verdade que o excerto citado não fala direta-mente de Deus ou de religião, mas o livro é a história da sua conversão.

Nesse ponto, esse texto e o segundo mantêm entre si muitas afinidades: são dois escritos de homens de fé. Todavia, o segundo, o texto de São Tomás, pretende provar a existência de Deus com base em argumentos racionais, o que é uma característica, dentro do espectro da filosofia cristã produzida na Antiguidade e na Idade Média, da escolástica – a qual, em comparação à patrística, dava igual ênfase, ou procurava dar, sobretudo no caso de To-más de Aquino, à fé e à razão. Outra diferença do segundo para o primeiro texto, é que o segundo está permeado das categorias aristotélicas. De fato, é ao tempo da escolástica que as obras de Aristóteles são redescobertas no Ocidente. A patrística, por sua vez, é mais influenciada pelo pensamento de Platão, embora no texto de Santo Agostinho essa influência não seja tão visí-

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vel. Em todo caso, Agostinho e Tomás de Aquino são representantes de dois momentos em que a filosofia andou ligada à Teologia. Com a patrística, era evidente uma subordinação da primeira à segunda. Na escolástica, tentou- -se uma harmonização entre os dois campos.

Por sua vez, o terceiro texto, de Giordano Bruno, é testemunha de um tempo em que esse casamento entre razão e fé já fora rompido. Com efeito, Giorda-no apresenta uma visão do universo – monista e panteísta – em pleno de-sacordo com a ortodoxia do cristianismo. Todavia, esse texto tem afinidades com os outros dois pelo estilo de argumentação racional. Essa é a caracterís-tica da filosofia: filósofos podem ter visões de mundo diferentes – e de fato o têm –, mas devem tentar exprimi-las sempre de maneira lógica, racional, didática, servindo-se para tanto dos instrumentos da razão e não os da auto-ridade.

2. F, F, V, V, F

3. Patrística (a, c, d, f, l, p, t); Escolástica (e, g, i, j, n, o, r); Renascença (b, h, k, m, q, s).

Para produzir filosofiaCom efeito, há vários discursos de natureza religiosa que circulam em nosso

tempo, quase todos se valendo dos meios de comunicação para divulgar as suas mensagens. Inclusive, há um gênero de literatura, conhecido como autoajuda, com bastantes pontos de contato com os discursos religiosos. Embora alguns desses discursos procurem servir-se de argumentos racionais para justificar as suas crenças, a maioria passa longe de qualquer racionalidade. Eles apelam ora para a autoridade (seja esta a autoridade da Igreja ou de um livro, como a Bíblia ou o Alcorão), ora para a emoção ou ainda para resultados práticos (cura, pros-peridade), nem sempre verificáveis ou explicados por uma única causa.

Espinosa: uma filosofia da liberdade1. Espinosa se situa em um período de transição (e que período não o é?). A

Idade Média já havia acabado e, no entanto, a religião – mais do que antes – era um assunto candente. Afinal, a Idade Moderna, mais do que a “idade das trevas”, é a época das guerras religiosas. Se na Idade Média os cristãos faziam guerra contra os muçulmanos do outro lado das fronteiras e contra os judeus

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do lado de cá dessas fronteiras, na Idade Moderna os cristãos, além daqueles dois alvos, digladiaram-se violentamente entre si. Portanto, a questão da re-ligião – e, por conseguinte, a questão de Deus – é um dos temas da filosofia dessa época, sobretudo em Espinosa, um judeu excomungado pelos rabinos, filho de judeus catolicizados, em um país protestante.

Outra semelhança de Espinosa com o período anterior, em especial a esco-lástica, é a forma altamente racional, silogística, de expor a sua filosofia, em muito aparentada com a Suma Teológica, de Tomás de Aquino.

Mas aqui cessam as semelhanças. Se na escolástica e em toda a filosofia do período medieval a reflexão teológica partia dos dados da fé, e tinha que se ater a eles sem contradizê-los, a metafísica espinosiana não é elaborada com base em nenhuma religião revelada, seja ela a cristã ou a judaica, mas tendo por base a razão pura. É uma religião racionalista e uma reflexão racionalista sobre a religião.

Aqui está a novidade da filosofia moderna em relação à filosofia anterior: a reflexão filosófica, mesmo quando aborda temas metafísico-religiosos, des-cola-se do argumento da autoridade (seja esta a Bíblia ou a Igreja). A filosofia e a razão se tornam plenamente autônomas e, a partir de então, Deus e a re-ligião encontram cada vez menos espaço e simpatia no discurso filosófico.

2. R, E, E, R, R, E, E

3. F, V, F, F, V

Para produzir filosofiaEm primeiro lugar, a liberdade – liberdade em relação às religiões instituídas,

os poderes estabelecidos, diante de todo e qualquer poder que queira ou possa cercear ou dirigir nossos pensamentos. Espinosa, como vimos, teve não poucas dificuldades com os religiosos (seus pais, com a Espanha católica; ele, com os rabinos e os pastores calvinistas na Holanda) e com os políticos.

Para se produzir filosofia é necessário um ambiente de liberdade de expres-são e pesquisa. Da mesma maneira, para uma prática libertadora do nosso fazer pedagógico, é imprescindível – tanto em escolas confessionais quanto em esco-las laicas – plena liberdade.

Em uma sociedade governada pelo valor de troca do mercado, sabemos que o preço da liberdade pode pôr em jogo nosso emprego. Espinosa, mesmo vivendo

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em condições de extrema modéstia, recusou uma cátedra numa universidade pú-blica para preservar sua liberdade. Estamos dispostos a correr esses riscos?

O Iluminismo e o Século das Luzes1. Iluminar significa, como é óbvio, “trazer a luz”, “dissipar as trevas”. O movimen-

to iluminista pretendia iluminar sua época, dissipar as trevas da sociedade. O luzeiro com o qual pretendiam fazer isso era a razão. Seus filósofos estavam convencidos de que a razão era suficientemente potente para iluminar as relações humanas e a configuração do Estado.

Mas o que eram essas trevas que eles queriam dissipar? É bom lembrar que, com exceção da Inglaterra (e mais tarde dos Estados Unidos e da França), todas as nações estavam submetidas a regimes monárquicos absolutistas. O absolutismo é um regime em que apenas uma pessoa – no caso, o rei – é detentor de todo o poder, isto é, o monarca é detentor do poder absoluto, sendo que o parlamento, o Poder Legislativo, não passa de um fantoche. O mesmo se diga do Poder Judiciário. Basta lembrar de uma ocasião em que o rei da França, ao deparar com Voltaire em um parque, e lembrando que ele havia escrito um texto ferino sobre a monarquia, mandou prender o filósofo. Em um regime constitucional, um chefe de Estado, ainda que se sinta profun-damente ofendido por alguém, não pode mandar prendê-lo: precisa entrar com uma ação na justiça contra o ofensor. Não era assim naquele tempo.

Portanto, o Iluminismo queria jogar luz nas instituições políticas e sociais, aca-bar com os privilégios dos nobres e do clero. É bom lembrar também que naquele tempo não se estava muito longe da Idade Média. Com exceção de alguns círculos esclarecidos, podemos dizer que a grande maioria da popula-ção ainda vivia com a mesma mentalidade teocêntrica e geocêntrica da Idade Média.

Assim, era função dos iluministas e intelectuais em geral esclarecer e ilumi-nar o povo com as luzes da razão e do entendimento.

Este é, portanto, o sentido da metáfora “iluminação, esclarecimento, clarifica-ção”: espalhar a luz da razão e acabar com a ignorância e a superstição.

2. O educador é, ou deveria ser, um “iluminista”, isto é, alguém imbuído da mis-são de disseminar as luzes da razão e exterminar as trevas da ignorância. Com efeito, é o uso da razão que nos distingue dos animais. O processo de

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ensino-aprendizado é um processo de esclarecimento, de iluminação inte-lectual. Os educandos não devem apenas aprender a ler ou a somar. Mais importante que distinguir uma oração coordenada ou saber usar o cálculo infinitesimal, é saber ler a realidade, para julgá-la à luz da razão e para agir sobre ela com o objetivo de transformá-la. Os ideais iluministas – que estão por trás dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Fran-cesa – ainda esperam ser inteiramente implantados.

3. V, V, F, V, F, F, V

Para produzir filosofia Só há uma solução: um ensino público, universal, gratuito, laico e de quali-

dade em todos os níveis. É claro que isto não deve impedir, pelos princípios da liberdade de escolha e de iniciativa (princípios estes igualmente iluministas), ins-tituições de ensino particulares e/ou confessionais. Mas o Estado deve garantir a todos, independente de condição social, religião ou etnia, condições educacio-nais de excelência. E essa educação deve formar cidadãos esclarecidos, críticos e conscientes. Só assim criaremos as bases para a construção de uma nação em que os ideais iluministas sejam muito mais do que meros slogans.

Immanuel Kant e o idealismo alemão1. Toda instituição de ensino tem um Projeto Pedagógico no qual, pelo menos

supostamente, estão implícitos os fundamentos filosóficos de sua concep-ção de educação. Ademais, esse Projeto Pedagógico está inserido em uma dada sociedade e em um determinado momento histórico que tem os seus próprios pressupostos filosóficos e educacionais. A filosofia nos deve levar a problematizar tais pressupostos.

Por exemplo, vivemos em uma sociedade pragmática em que determinados conhecimentos são considerados mais necessários e úteis que outros. Nin-guém duvida que exista uma hierarquia invisível nas escolas, nas quais Ma-temática é mais importante que Geografia, e Química mais importante que Educação Artística. Educamos para quê? Para formar cidadãos ou simples-mente mão-de-obra qualificada? Além disso, é necessário estarmos sempre revendo as condições de possibilidade dos conhecimentos que transmiti-mos. Afinal, conhecemos as coisas ou suas representações?

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A isso associa-se a segunda parte da questão: um ensino dogmático nada mais é que uma mera transmissão de conhecimentos estáticos, fórmulas, no-menclaturas, nomes das capitanias hereditárias. Ou mesmo um ensino que não questiona as pretensas autoridades que estabelecem o que é conteúdo do conhecimento.

Por outro lado, uma postura cética tornaria inviável qualquer possibilidade de aprendizado e conhecimento. Duvidar da possibilidade de conhecer é negar o conhecimento. Essa postura, felizmente, não é comum entre nossos educa-dores, aparecendo em um ou outro segmento da sociedade, enquanto o nos-so problema é uma herança demasiado positivista do conceito de educação.

O caminho que Kant aponta é uma possibilidade de solução: entre dogmatis-mo e ceticismo, buscar um conhecimento interrogante, humilde, nunca orgu-lhoso de suas posses.

2. Racionalismo, empirismo inglês e Iluminismo.

3. C

A dialética idealista e materialista1. Em primeiro lugar, é preciso frisar uma diferença de gênero literário. O tex-

to de Hegel é extraído de um tratado de filosofia e o texto de Marx de um manifesto. O primeiro, tem como destinatário especialistas em filosofia. O segundo, endereça-se a um público mais amplo, que compreende não-ini-ciados no jargão filosófico, sobretudo operários, os quais não possuem uma educação formal.

O primeiro pertence ao prólogo e tem por objeto introduzir as linhas gerais que serão abordadas no escopo do estudo, é uma espécie de ouverture, grande abertura de um tema solene, o espírito absoluto. O segundo, tem por meta a propaganda, isto é, propagar determinadas ideias, então inovadoras, servindo- -se para tanto de recursos retóricos; nem por isso abre mão de um certo rigor, já que o rigor argumentativo é um dos principais elementos de dissuasão.

O primeiro serve-se até de certa obscuridade, já que para o seu público – o público leitor de filosofia na Alemanha, e em especial o público leitor da filo-sofia de Hegel –, a obscuridade não deixa de ostentar os seus ares de profun-didade. O segundo, foge da obscuridade, já que é forçoso que seja claro e convincente.

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Gabarito

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Fora isso, há a diferença entre os gêneros literários dos dois textos: é bom lembrar que Hegel tinha fama – justificada – de difícil, de quase impenetrável, e o excerto o comprova sobejamente. Marx, que em outras ocasiões produziu textos de grande densidade, é conhecido por seus dotes literários (e orató-rios, nas assembleias operárias).

Mas a grande diferença se dá em um outro nível. Hegel fala do “céu”, do espíri-to absoluto, conceito não facilmente apreensível, abstrato, quase etéreo. Marx fala da “terra”, de coisas concretas, classes sociais, luta, indústria, mercadorias. Em outras palavras; Hegel é idealista e Marx, materialista.

Porém, há algo que os une: a dialética. Por trás dos dois textos percebe-se uma dinâmica – ainda que idealista em um e materialista no outro –, um movimento, um processo de vir-a-ser, de devir, de transformação: a dialética, ainda que uma seja uma espécie de dialética “do alto” e outra “de baixo”.

2. C

3. H, M, H, M, M, H

Para produzir filosofia Segundo Marx, a luta de classes é o motor da história nas sociedades de clas-

ses. Como estamos em uma sociedade de classes, não é necessário ser marxista para constatar que a luta entre as classes é um fenômeno que continua existin-do. Toda vez que ocorre uma greve e/ou uma repressão policial a trabalhadores em greve, estamos assistindo a essa geralmente oculta dinâmica da sociedade vir à tona. As ocupações de terra no campo e a constituição de milícias armadas por parte dos proprietários configuram-se em outra evidente manifestação de luta entre duas classes sociais. E a violência nas grandes cidades é, em grande parte, uma manifestação anárquica e apolítica dessas tensões sociais.

Schopenhauer: o mundo como representação1. V, F, F, V, V, F

2. Partindo da distinção kantiana entre o fenômeno e a coisa-em-si, isto é, entre o que nos aparece e o que realmente existiria, Schopenhauer conclui que o mundo, para mim, para cada um, não é mais do que uma representação, ou seja, uma síntese entre o subjetivo e o objetivo, entre a realidade exterior e a mente humana.

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Logo, não temos acesso ao mundo como ele é, mas somente ao mundo como ele nos aparece. Todavia, para ele, ao contrário de Kant, podemos abordar a coisa-em-si, a realidade por trás dos fenômenos, a qual seria a vontade, ori-gem metafísica de toda a realidade, que percebemos ativa em nosso ser, em nosso íntimo. Em outras palavras, o mundo é representação, ou melhor, o mundo é a representação que eu faço dele; mas o mundo também é von-tade, e essa vontade eu a experimento concretamente em mim, e a experi-mentando eu experimento algo da essência real do mundo.

3. Em um primeiro momento, o caminho para suspender a dor passa pela arte, ou seja, pela contemplação de objetos de arte: pinturas, poemas, concertos etc. Aliás, para Schopenhauer, a música é a mais alta forma de arte e a mais apta para nos libertar da dor. A libertação proporcionada pela arte, porém, não é completa. A arte significa apenas uma libertação passageira e não a supres-são da vontade.

Por isso, em um segundo momento, para uma libertação integral é necessá-rio que o ser humano suba ao nível de uma conduta ética que, visando ao bem, paute-se pela contemplação da verdade. Mas nem assim ainda se che-ga à felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais elevada e perfeita reden-ção somente pode ser atingida pela anulação da vontade, por meio da qual se mergulha definitivamente no nirvana. É como diz aquela letra de Renato Russo, inspirada diretamente pelos escritos budistas: “Tudo é dor, e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.” Para nos libertarmos do círculo vicioso da dor, precisamos fazer morrer em nós o desejo, a vontade, a qual nunca se satisfaz e, portanto, é fonte constante de frustração e dor.

Para produzir filosofia O aluno que está diante de nós, assim como eu, possui as suas representações

do mundo e, como tais, elas estão carregadas de subjetividade. Assim, nós, como professores, se desejamos ter êxito em nosso fazer pedagógico, precisamos co-nhecer quais são essas representações. Em outras palavras, se cada um possui subjetividade própria, é fundamental conhecer essas subjetividades para termos uma melhor interação com nossos alunos. Mais: não basta apenas conhecê-las, é necessário que tenhamos empatia por essas representações, isto é, que pos-samos representar o mundo por meio dessas representações ou, melhor ainda, que possamos olhar o mundo pelo filtro de seus olhos. Dessa forma, estaremos ca-minhando rumo a uma melhor interação e à construção partilhada do conheci-

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mento, uma vez que, como disse Guimarães Rosa, em uma frase popularizada por Paulo Freire, “professor é aquele que, de repente, aprende.”

O positivismo e o desenvolvimento da ciência1. Aqui as opiniões podem divergir – e é bom que assim seja. De fato, nunca se

dispõe de distanciamento suficiente quando se avalia sua própria época.

Por um lado, sob muitos aspectos, vivemos sob o peso da tradição positivis-ta: as disciplinas “positivas”, experimentáveis, gozam de maior prestígio social do que, por exemplo, as disciplinas humanas. Com algumas exceções: às ve-zes um psicanalista, em determinados círculos, é mais benquisto do que um farmacêutico; mas isso pode ser explicado também pela raiz “positivista” da Psicanálise, ao propor causas específicas para a explicação dos fenômenos da psique humana. Mas experimentemos imaginar a seguinte cena: em uma fa-mília de classe média, as duas filhas apresentam seus respectivos namorados aos pais; um é engenheiro elétrico e o outro é professor de Filosofia. Nem pre-cisamos perguntar qual dos dois genros será recebido com maior satisfação.

Por outro lado, há evidentes sintomas de uma fadiga da sociedade racionalis-ta da qual o positivismo foi o maior – e paradoxal – emblema. Por todo lado, irrompe uma série de práticas terapêuticas não necessariamente científicas, e o misticismo, desde algum tempo, está em voga (se é que alguma vez deixou de o estar). São sinais de que há pelo menos um descontentamento com o cientificismo idolátrico de nosso tempo. Todavia, ainda é cedo para se afirmar que já estamos ou nos abeiramos de uma fase pós-positivista.

Dissemos acima que o positivismo é o maior emblema desta época cientifi-cista, mas frisamos que ele é um emblema paradoxal. Paradoxal porque ao mesmo tempo em que exaltava a ciência e o espírito científico, na última fase de seu fundador, assumiu claramente as feições de um culto, com ritos e símbolos de caráter religiosos. Será isto um sinal de fraqueza ou sintoma da dificuldade do ser humano para se desfazer completamente de referenciais mítico-religiosos?

2. V, V, V, V, F, V, V

3. Para Comte o papel que ainda cabe à filosofia é o de sistematização das ciências, servindo-se para tanto do método positivo, ou seja, o método científico extraído das ciências experimentais. Assim, a filosofia se torna

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tributária das ciências experimentais. Em vez de estas se inspirarem na-quela, é aquela que se inspira nestas. A ela sendo vedados os caminhos da especulação metafísica, resta à filosofia o caminho mais modesto da classificação e da catalogação.

Nietzsche educador1. Aqui é necessário que não se tolha a liberdade dos alunos. É bom deixá-los

pensar e citar os nomes que lhe aprouverem. Caberá apenas ao professor, em conjunto com a classe, verificar se os exemplos elencados são coerentes. Isto é, não basta que o indivíduo tenha dito palavras “poéticas”, “bonitas”, “to-cantes”, mas em que sentido o que ele disse antecipava tendências futuras e problemáticas de épocas ainda na aurora.

2. F, V, V, F, V, F

3. Porque, segundo Nietzsche, os filósofos anteriores a Sócrates não divorciavam pensamento e vida. Para eles, sua filosofia era também um estilo de vida. Vivia- -se conforme se pensava, e pensava-se conforme se vivia. Todavia, a partir de Sócrates, essa harmonia se quebrou. O filósofo se outorgou a missão de “julgar a vida”, opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do filósofo crítico de todos os valores, apareceu o filósofo metafísico, que avaliava o mun-do real segundo sua conformidade com o mundo “ideal” – e essa avaliação quase invariavelmente era negativa.

Para produzir filosofia Aqui, há que dar toda a liberdade ao aluno, para que ele faça a experiência

de pensar as coisas sob um outro ângulo. Um por um, cada um vai explanando sua opinião, quais ídolos ele derrubaria, de que maneira ele reconstruiria o pro-cesso de ensino-aprendizado e a sociedade na qual ele se encontra inserido, e assim por diante.

A Escola de Frankfurt 1. V, V, F, V, F, F, V, V, F, F

2. Em primeiro lugar, a Escola de Frankfurt é herdeira e continuadora da tradição marxista. Como a Escola teve o seu primeiro e decisivo momento na Alema-

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nha e os seus representantes eram todos alemães, é natural que ela dialo-gasse com a tradição alemã, principalmente o idealismo alemão, no qual o ápice foi o sistema de Hegel. Outros filósofos e pensadores alemães também entrariam nesse diálogo, como Max Weber, Nietzsche e Heidegger. Além dis-so, a Psicanálise de Sigmund Freud viria a se tornar um dos mais importantes interlocutores dos frankfurtianos.

3. A relação do pensamento frankfurtiano com o Iluminismo é, no mínimo, con-flituosa, para não dizer dialética. Por um lado, em um período de ascensão do obscurantismo, por meio do fascismo e do stalinismo, os pensadores da Teoria Crítica vão buscar no Iluminismo as ferramentas da razão e do escla-recimento em seu combate pela sanidade da civilização ocidental. Por outro lado, eles questionam as consequências perversas do endeusamento da ra-zão, do fetichismo da ciência, que não deixa de ser uma das consequências do pensamento iluminista em nossa sociedade.

Para produzir filosofia Aqui, mais uma vez, não há uma resposta “certa” ou “errada”. É importante,

todavia, que os alunos expressem suas opiniões e dessa forma se aproximem de uma resposta em que há espaço, na análise de nossa sociedade atual, para gradações entre uma “unidimensionalidade” estrita e fissuras onde brotam pen-samentos alternativos.

Pragmatismo e existencialismo1. Em oposição ao racionalismo cartesiano, tanto pragmatismo como exis-

tencialismo constroem seus pensamentos a partir do real, do concreto, seja este a experiência (para o pragmatismo) ou a existência (para os exis-tencialistas).

Da mesma forma, ambos rejeitam a ideia de essência do ser humano: para os pragmatistas, o ser humano é o conjunto de suas práticas; e para os exis-tencialistas, o resultado de suas escolhas. Consequentemente, nem um nem outro acredita em uma verdade eterna e imutável.

2. d, e, a, b, c.

3. P, E, E, E, P, E

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Para produzir filosofia Vivemos em uma época e uma sociedade em que as pressões por resulta-

do e êxito são imensas. De acordo com isso, programamos nossas atividades, muitas vezes inconscientemente, em vista da pergunta: o que eu ganho com isso? Nossas escolhas, sobretudo educacionais, são condicionadas por esse pen-samento. O que eu ganho fazendo esse curso? Essa especialização poderá au-mentar meus rendimentos? O aprendizado dessa língua é necessário para que eu ganhe uma promoção? Ora, tudo isso favorece atitudes conforme o espírito do pragmatismo. Todavia, se nos rebelamos com o excesso dessas exigências, poderemos nos aproximar do existencialismo, fazendo escolhas baseadas em nossa liberdade, e tornando-nos responsáveis por elas.

Filosofia e educação1. É muito comum, em sala de aula, os professores expressarem os seus pontos

de vista sobre os mais variados assuntos. Todavia, não poucas vezes eles es-tão reproduzindo apenas o pensamento dominante. Por exemplo, quando se diz – para citar um dos ditados reproduzidos por Chico Buarque – que “quem espera, sempre alcança”, o que se está fazendo é somente incentivar o conformismo. Esperar o quê? – é a pergunta que deve ser feita. Digamos que determinada pessoa esteja esperando, isto é, desejando um aumento de salário. Se ela não fizer nada além de esperar, dificilmente vai obtê-lo. Se essa pessoa realmente deseja um aumento, deve, ao contrário do ditado, fazer algo mais do que simplesmente esperar: deve mostrar serviço, distri-buir currículos e, às vezes, solicitar o tal aumento ou mesmo aderir ou liderar uma greve. O mesmo vale para outros ditados ou bordões do senso comum, como “o trabalho dignifica”. Será mesmo que todo trabalho dignifica? E o tra-balho escravo? Dessas reflexões, que podem e devem ocorrer nas salas de aula, é que nasce a filosofia.

2. Quando possuímos respostas – ou julgamos que as possuímos –, não raro esta-camos, paramos, imobilizamos a nós mesmos no ponto em que estamos. São as dúvidas, as interrogações, as perguntas que fazem com que o conhecimento e a filosofia avancem, pois elas nos levam a investigar, a perquirir, a procurar, ou seja, elas nos levam a sair da posição em que nos encontramos – muitas vezes segu-ros de nossas “verdades”– para nos arriscarmos em busca de novas respostas. Quem está seguro e satisfeito de suas respostas é o dogmático, e com o dogmá-tico não há possibilidade de filosofia, sobretudo na área de educação.

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Gabarito

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3. Filosofia na educação é, sobretudo, incluir a disciplina de filosofia entre as demais disciplinas. É algo importante – apesar de que durante muito tempo a filosofia foi banida dos currículos escolares no Brasil. Se é a Matemática quem ensina a calcular e o Português quem nos familiariza com a norma culta da língua que falamos, é a filosofia quem nos ensina a pensar – e pensar é essencial tanto para o bem falar e escrever quanto para o raciocínio lógico exigido pela Matemática.

Além disso, a filosofia na educação pode ser compreendida como a inclusão transversal de temas e debates filosóficos no rol de disciplinas do currículo escolar. Assim, junto com as operações matemáticas, pode-se falar da lógica, ou de ética, em disciplinas como História e Geografia.

Já a filosofia da educação é quando se dá um passo a mais. Além de incluir a filosofia entre e nas disciplinas, a filosofia da educação exige que se analise criticamente todo o processo de ensino-aprendizado. É um recuo para que se dê um salto. Um recuo: a filosofia da educação pressupõe um distanciamento para que se possa analisar criticamente o processo no qual estamos inseridos. Um salto: uma vez operado esse distanciamento, são tomadas atitudes para que o processo possa seguir adiante, aperfeiçoado, aprimorado, purificado.

Ética e educação1. Ao mesmo tempo em que, em nossa sociedade moderna, a ética passa a ser

procurada em toda parte, a base comum que serviu de suporte à civiliza-ção ocidental, a tradição judaico-cristã e a cultura greco-romana – de onde a moral tirava suas normas – parece ter perdido sua antiga solidez. Em ou-tras palavras, quanto mais se precisa de ética, menos se tem referências para encontrá-la.

2. Hoje, a ética e a moral não podem ser impostas unilateralmente, pois cada grupo, ou mesmo cada indivíduo, possui a sua própria tábua de valores. As-sim, as normas básicas que devem permear uma sociedade devem ser defi-nidas com base em uma ampla discussão, na qual é assegurado de antemão a cada interlocutor o seu direito de participação e intervenção. É esse diálo-go, essa ampla circulação de ideias e essa ação comunicativa que devem as-segurar e gestar as normas de conduta que servirão de balizas à sociedade.

3. V, F, V, F, V, V

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324

Filosofia e formação humana na escola1. O ser humano é atualmente um ser mais de cultura do que de natureza. Solte

uma criança recém-nascida na selva. Digamos que ela sobreviva cuidada por lobos ou gorilas. Ela não seria muito mais do que um “lobo” ou um “gorila”. O mito moderno do Tarzan é falso, pois o Tarzan do cinema e dos gibis é ainda bastante humano.

Em outras palavras, somos o que somos pela cultura e pelos valores dessa cultura. E o principal veículo de transmissão dessa cultura e de seus valores é a educação. Não é à toa que, em uma sociedade cada vez mais comple-xa, somos obrigados a passar cada vez mais tempo nos bancos escolares, da pré-escola a pós-graduação. Daí a extrema importância da educação: é ela que nos faz “humanos”, que nos transmite os valores e informações que transformam o primata que nós somos em um ser altamente complexo e subjetivo.

2. O ser humano é produto de seu meio, mas não do meio natural e sim do meio social (que inclui, alterando-o, o natural) em que vive e no qual se pro-cessam suas relações produtivas. Assim, segundo Marx e Engels, toda eman-cipação cultural é ilusória se não forem alteradas as condições materiais de produção. Na sociedade capitalista, na qual os detentores do capital neces-sitam constantemente da reprodução das forças de produção (isto é, do trei-namento técnico da mão-de-obra), a educação consistirá basicamente na formação técnica da mão-de-obra. Como essa sociedade está passando para uma fase pós-industrial, em que setores não-industriais (serviços, cultura, la-zer etc.) aumentam cada vez mais sua participação na produção de riquezas, também se faz necessária uma formação “humana” na qual se incluam co-nhecimentos de vendas, marketing, educação etc. Ou seja, não só os cursos técnicos e tecnológicos, mas também cursos mais “complexos”, como Peda-gogia, Psicologia etc.

Se queremos uma sociedade mais humana, voltada para a satisfação de neces-sidades mais amplas e não apenas procurando atender demandas mercado-lógicas, é preciso repensar radicalmente a educação. Mas isso é possível sem que a base econômica da sociedade – isto é, a exploração da força de trabalho pelo capital – permaneça inalterada?

3. K, M, K, K, M, K, M

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Gabarito

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O processo do filosofar na Educação Infantil1. A filosofia para crianças se propõe transmitir aos educandos uma série de

conteúdos filosóficos, como os principais filósofos e seus sistemas de pen-samento. Aqui é importante o aluno saber distinguir, por exemplo, entre a filosofia de Platão e a filosofia de Aristóteles.

Na filosofia com crianças, por sua vez, o educando aprende a filosofar a partir de vivências, de dinâmicas e de exemplos tirados do cotidiano.

Um método não é necessariamente melhor do que o outro: tudo depende da prática pedagógica que orienta a instituição escolar, na qual há – eviden-temente – uma epistemologia subjacente. Se a epistemologia for empirista, tenderá a aplicar o primeiro método – a filosofia para crianças. Se for aprioris-ta ou construtivista, suas preferências a aproximarão do segundo – a filosofia com crianças.

2. Filosofia não se ensina, mas se aprende. Memorizar nomes de filósofos e sa-ber relacioná-los aos respectivos conteúdos de seus sistemas ainda não é fi-losofia. Conhecer as escolas filosóficas e seus principais representantes ainda não é filosofia. A filosofia é saber pensar de modo crítico, global e sistemático – e isso não se ensina, mas pode ser suscitado por meio de práticas e dinâmi-cas criativas, a partir dos próprios “interesses e preocupações das crianças”.

Contudo, é necessário sempre levar em consideração a fase de desenvolvi-mento em que se encontram as crianças, propondo – juntamente com elas – temas e debates, conforme o seu universo etário de preocupações e tam-bém conforme o seu ambiente e contexto sociocultural. Para uma criança de classe média, por exemplo, pode-se trazer ao debate o tema da violência, a partir de filmes, jogos e manchetes de jornal. Todavia, para uma criança oriunda de zonas de risco social, talvez já se possa abordar o tema a partir de dados da sua própria realidade social e familiar.

3. Filosofia e autonomia são temas que se entrelaçam, já que os pressupostos da filosofia com crianças são também os pressupostos da construção da au-tonomia do sujeito. A criança que aprende a filosofar, isto é, que aprende os rudimentos do pensamento crítico, global e sistemático, dá passos decisivos na conquista de sua autonomia, de seu amadurecimento como ser humano e sujeito.

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Para Piaget, por seu turno, a autonomia é um processo de superação das fases anteriores, as quais se caracterizam pela anomia (aqui considerada um estágio que envolve ações puramente motoras e individuais, no qual a crian-ça ainda não se submete às normas sociais) e pela heteronomia (caracteri-zada pela incapacidade da criança de permitir a alteração das regras de um jogo, pois as considera sagradas, vindas dos pais).

Desse modo, a filosofia pode servir de precioso auxílio na conquista da auto-nomia pela criança.

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Anotações

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