FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA …. Lusilene... · seringueiro, sindicalista e...
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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM NÍVEL DE MESTRADO MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
LUSILENE MARIANO DE SÁ RITZEL
PÓS-COLONIALISMO NA LITERATURA SOBRE A AMAZÔNIA: UMA
ANÁLISE DA OBRA UM VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR, DE
LUIS SEPÚLVEDA
Porto Velho-RO
2016
LUSILENE MARIANO DE SÁ RITZEL
PÓS-COLONIALISMO NA LITERATURA SOBRE A AMAZÔNIA: UMA ANÁLLISE
DA OBRA UM VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR, DE LUIS SEPULVEDA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos Literários, do Departamento de Línguas Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Orientador: Dr. Hélio Rodrigues da Rocha Linha de Pesquisa: Literatura, outros Saberes e outras Artes (LSA)
Porto Velho-RO
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES
Ritzel, Lusilene Mariano de Sá. Pós-colonialismo na literatura sobre a Amazônia: uma análise da obra Um velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Estudos Literários) – Núcleo de
Ciências Humanas, Universidade Federal de Rondônia/UNIR.
Orientador: Prof. Dr. Hélio Rodrigues da Rocha
1. Pós-colonialismo. 2. Amazônia equatoriana. 3. Romance Latino-
Americano.
Bibliotecária responsável:___________________________
LUSILENE MARIANO DE SÁ RITZEL
PÓS-COLONIALISMO NA LITERATURA SOBRE A AMAZÔNIA: UMA ANÁLLISE
DA OBRA UM VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR, DE LUIS SEPÚLVEDA.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Estudo Literários da linha de pesquisa Literatura e
Outras Artes.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Presidente e Orientador
Professor Dr. Hélio Rodrigues da Rocha
Universidade Federal de Rondônia – UNIR
______________________________________________
Membro titular (membro externo)
Professor Dr.
Universidade
______________________________________________
Membro interno
Professor Dr.
Universidade
______________________________________________
Suplente
Professor Dr.
Universidade
Porto Velho
2016
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Para esta pesquisa foi analisado o romance latino-americano Um velho que lia romances de amor (1998), do escritor chileno Luis Sepúlveda, visando compreender os discursos sociais que circulam na obra e como as personagens são representadas simbolicamente. O presente estudo buscou promover diálogos entre literatura e os estudos pós-coloniais, contextualizando a representação do nativo e do estrangeiro a partir do viés pós-colonial fundamentados por Alfredo Bosi (1992), Aníbal Quijano (2005), Frantz Fanon (2005, 2008), Aimé Césaire (1978) e Alberto Memmi (2007). Os aportes teórico-metodológicos utilizados permitem, sobretudo, reflexões sobre identidade, cultura, alteridade, subjetividade, subalternidade, colonialismo e pós-colonialismo. Como resultados, identificamos que a representação das personagens em Um velho que lia romances de amor revelou a Amazônia equatoriana como sendo um espaço de conhecimentos múltiplos e culturas hibridas. Contudo, a visão pós-colonialista se reflete na composição da personagem central – o velho, pela busca da reflexão sobre si mesmo e conhecimento de outros. PALAVRAS-CHAVE: Pós-colonialismo. Amazônia equatoriana. Romance Latino-Americano.
ABSTRACT
For this research was analyzed the novel Latin American An old man who read novels of love (1998), of the Chilean writer Luis Sepúlveda, aiming to understand the social discourses that circulate in the work and how the personages are represented symbolically. The present study sought to promote dialogues between literature and post-colonial studies, contextualizing native and foreign representation from the postcolonial bias based on Alfredo Bosi (1992), Aníbal Quijano (2005), Frantz Fanon (2005, 2008) ), Aimé Césaire (1978) and Alberto Memmi (2007). The theoretical-methodological contributions allowed, above all, reflections on identity, culture, alterity, subjectivity, subalternity, colonialism and post-colonialism. As results, we identified that the representation of the characters in An old man who read novels of love revealed the Ecuadorian Amazon as being a space of multiple knowledge and hybrid cultures. However, the post-colonialist view is reflected in the composition of the central character - the old, by the search for reflection on oneself and knowledge of others. KEY WORDS: Post-colonialism. Ecuadorian Amazon. Latin American Romance.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Contracapa da Obra de Sepúlveda ............................................................. 10 Figura 2 Capa da obra traduzida em português e capa da obra em espanhol .......... 11
Figura 3 Capa em DVD do Filme. ............................................................................. 12 Figura 4 A Amazônia ................................................................................................. 16 Figura 5 Representação dos povos indígenas .......................................................... 30 Figura 6 Representação do homem branco (colonos e garimpeiro) .......................... 30 Figura 7 Habitantes de El Idilio na caçada a onça .................................................... 53
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 CAPÍTULO I – “(DES)CONHECIDO” MUNDO VERDE 1.1 Visões da invenção da Amazônia ....................................................................... 16 1.2 Amazônia, Isolamento e identidades ................................................................... 23 CAPÍTULO II – REPRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS EM UM VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR 2.1 El Idilio: (re)construção de sujeitos e identidades .............................................. 31 2.2 Amazônia equatoriana: configuração dos espaços ............................................ 43 CAPÍTULO III – A PRODUÇÃO DO EU E DO OUTRO A PARTIR DO VIÉS POS-COLONIAL 3.1 Pós-colonialismo e literatura pós-colonial ........................................................... 53 3.2 A (in)visibilidade dos nativos: representação indígena no romance .................... 57 3.3 Aniquilação da identidade dos nativos e da Amazônia: representação dos estrangeiros no romance .......................................................................................... 64 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 74
10
INTRODUÇÃO
Uma série de quebradas o levou até uma zona de vegetação frondosa, povoada de vespeiros e favos de abelhas laboriosas […]. Quando enveredou pela mata, produziu se um silêncio que durou várias horas, até que as aves se acostumaram com sua presença. Um velho que lia romances de amor – Luis Sepúlveda
Como moradora da região amazônica e leitora apaixonada por histórias,
relatos, contos, poemas e lendas que compõem o imaginário dessa região,
interessei-me por uma investigação sobre como são construídas e/ou constituídas
as diversas traduções/representações da Amazônia, identificando-me, sobretudo,
com a obra Um velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda.
De acordo com informações retiradas da contracapa do livro, o romancista
Luis Sepúlveda nasceu em 04 de outubro de 1949, em Ovalle, no Chile, uma
pequena aldeia no Norte do país. É escritor e jornalista. Desde 1997 reside em
Gijón, na Espanha. Durante um período de sete meses, Sepúlveda viveu no
Equador no seio da comunidade dos índios shuar, participando numa missão de
estudo da UNESCO, que tinha como objetivo estudar o impacto da colonização na
forma de vida deste povo. Viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Paraguai e Peru.
Figura 1. Contracapa da obra de Sepúlveda. Fonte: Um velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda.
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O objeto de estudo desta dissertação é a tradução da obra publicada
primeiramente em espanhol, Um velho que lia romances de amor (1998), título
‘original’ Un viejo que leía novelas de amor (1989), tendo sido traduzido para mais
de 35 idiomas e atingindo 20 anos depois da sua publicação a cifra de 18 milhões de
exemplares vendidos.
Figura 2. Capa da obra traduzida em português e capa da obra em espanhol. Fonte: Um velho que lia romances de amor (1998, capa), de Luis Sepúlveda. Ilustração de
Ettore Bottini. Obra em espanhol - Un viejo que leía novelas de amor (1989, capa). Disponível em: http://www.fnac.pt/Un-Viejo-que-Leia-Novelas-de-Amor-Luis-Sepulveda/a248818. Acesso em: 12 mar. 2015.
Na obra, Sepúlveda narra uma pequena novela, de leitura rápida, e nos
convida a várias e enriquecedoras releituras. O romance revela uma Amazônia
capaz de seduzir por sua natureza literária, visto que apresenta a fauna e a flora da
região caracterizada de beleza e descrição detalhada. O narrador inicia como se
imagina que deva principiar uma jornada Amazônia adentro: descrevendo, com
respeito, pincelando a alma com a beleza da selva do lado equatoriano. O cenário
não poderia ser mais apropriado para o ponto de partida, que o vilarejo de El Idilio1
às margens de um rio na Amazônia Equatoriana, local em que os estrangeiros
chegaram em busca do El Dorado, agregando novas culturas, criando assim outros
novos traços de poderosa originalidade.
1 Conforme preservado na narrativa de Sepúlveda as palavras El Idilio e El Dorado não receberão
destaques.
12
A obra Um velho que lia romances de amor foi levado ao cinema em 2001,
dirigido pelo australiano Rolf de Heer2 e interpretação de Richard Dreyfuss.
Figura 3. Capa em DVD do Filme. Fonte: Filme O velho que lia romances de amor (2001). Disponível em: https://filmow.com/o-
velho-que-lia-romances-de-amor-t40845/ficha-tecnica/. Acesso em 12 mar. 2015.
O curto romance foi dedicado por Sepúlveda ao grande defensor da Floresta
Amazônica, Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes.
Nas obras, O empate contra Chico Mendes (1990) do amazonense Márcio Souza e,
O mundo em chamas (1990) do jornalista norte-americano Alex Shoumatoff
encontramos relatos dos conflitos silenciosos contra Chico Mendes que resultaram
em grandes tragédias, como seu assassinato em Xapuri, Estado do Acre, no dia 22
de dezembro de 1988 ao denunciar esquemas de latifundiários da região. Esse líder
seringueiro, sindicalista e ativista ambiental, lutou pela preservação da Floresta
Amazônica e suas seringueiras nativas. Desde sua morte Chico Mendes passou a
ser considerado um mártir da floresta.
Em Um velho que lia romances de amor, podemos sentir a influência de Chico
Mendes em toda poética que se observa através do discurso preservacionista ditado
pelo personagem central, Antonio Bolivar Proãno, o velho que astuciosamente
sobrevive em meio a selva com os índios jivaros e shuar. Nesse sentido, podemos
identificar as múltiplas vozes e diferentes linguagens que circulam no texto. Por se
tratar da análise da linguagem utilizada pelo narrador, procuramos construir uma
2 Título original The old man who read love stories. Ano de produção 2001 (estreou mundialmente nos
cinemas em 7 de março de 2001). Duração 115 minutos. Disponível em: <https://filmow.com/o-velho-que-lia-romances-de-amor-t40845/ficha-tecnica/>. Acesso em: 12 mar. 2015.
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leitura da prática discursiva instituída pelo olhar do estrangeiro, verificando a relação
de alteridade/autoridade para poder, assim, comprovarmos a suposição da
possibilidade de estabelecer uma relação dialógica entre as diversas representações
dos personagens.
O presente estudo visa verificar se, há traços comuns e diferenças
significativas com a representação das personagens na referida obra por meio da
análise de enunciados das personagens e suas respostas aos eventos do pós-
colonialismo que as circunda, permeia e pode-se, verificar, presume-se, certo tom
ainda colonial.
Esta pesquisa está voltada para a averiguação da prática discursiva sobre as
representações sociais, econômicas e identitárias das personagens nativas da
Amazônia e das personagens estrangeiras, que figuram na obra de Luis Sepúlveda.
Como tema principal existe a questão do discurso colonizador e/ou
descolonizador que oscila entre a alteridade e autoridade sugeridas no decorrer dos
relatos do narrador, nos enunciados dos personagens, nas construções sociais
numa zona de contato entre nativos e estrangeiros e nas diversas descrições da
fauna e flora locais. Assim, o tema central da pesquisa é a leitura e a construção de
uma análise de cunho pós-colonial a partir de recortes da referida obra.
A pesquisa foi elaborada em torno da necessidade de conhecimentos
científicos e a partir de reflexões surgidas nos estudos de literatura brasileira e
estrangeira que têm como tema a Amazônia. É preciso saber o que pensam sobre o
homem amazônico; urge clarificar o discurso sobre o Outro, o diferente, o exótico, o
estranho, o nativo.
A escolha desse romance se justifica não apenas pela abrangência
geográfica, que revela a natureza da Amazônia reconstruída literariamente, mas,
especialmente, pela forte influência que o pós-colonialismo, ao que parece, tem
exercido a partir de 1980 e ainda está exercendo sobre as comunidades pós-
coloniais e a subsequente intervenção do sujeito nativo, representado no romance.
Esta pesquisa, portanto, está fundamentada no conhecimento empírico sobre
a imagem do homem e de representações imagísticas da Natureza, que grande
parte dos brasileiros e estrangeiros tem sobre a região, de como se constituem e
como são vistos pelo nosso Outro. Assim, procuramos embasamento teórico no pós-
colonialismo e dos Estudos Culturais. Buscamos também, através de uma leitura
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mais aguçada, os efeitos discursivos para interpretarmos de forma mais objetiva o
discurso colonial e ou pós-colonial construído na obra em estudo.
Em teóricos como Mary Louise Pratt (1999), Stuart Hall (2009), Edward Said
(1996), Albert Memmi (2007), Homi Bhabha (1998), entre outros, nos apoiaremos
nas ideias sobre cultura, imperialismo, colonial, colonizado, colonizador, colonialismo
e identidade cultural, esperando contribuir não apenas com o universo acadêmico,
como também com demais comunidades.
Para maior compreensão deste trabalho apresentamos a partir de três
capítulos a representação do estrangeiro e do nativo que configuram o imaginário da
Amazônia equatoriana. No primeiro discutimos as múltiplas visões sobre a invenção
da Amazônia, bem como a espacialidade nas narrativas amazônicas. Segundo
Mendes (2008) o estudo sobre o espaço amazônico é necessário, pois permite
maior compreensão de suas narrativas, contudo, em meio a esse cenário, cria-se
uma relação entre o homem e o espaço que ocupa.
No segundo capítulo, a temática gira em torno da construção das
personagens. A Amazônia em Um velho que lia romances de amor é espaço em
(re)construção, onde as mais diferentes personagens se encontram para constituir
esse palco mágico. Protegidas ou isoladas pela imensidão das águas e do verde, as
histórias são construídas uma a uma, moldando a face do que seria a Amazônia
equatoriana. Esse cenário é composto pelo consultório do dentista, delegacia, casa
do velho e indígenas que se unem pelo rio, que leva e traz o necessário à
sobrevivência do homem em meio à floresta.
Como componente desse espaço há o consultório do dentista sinônimo do
poder; as embarcações que surgem simbolizam a esperança do El Dorado que,
desde séculos, reluz no imaginário ocidental esse mito da riqueza incalculável
prometida a quem encontrar o seu caminho; que por sua vez, leva a constituição do
personagem solitário, o Velho. Em contrapartida, são agraciadas pelas leituras dos
romances de amor que lhe faziam esquecer as barbáries humana, ou seja, o Velho
lia para suportar as dores e a saudade da esposa falecida.
Ainda no segundo capítulo, a partir da constituição dos Estudos Culturais
explorados por Homi Bhabha (1998) e Stuart Hall (2009) destacamos as relações
que nascem dos processos de identidade ou hibridização cultural e que levam a
formação de múltiplas identidades na obra estudada.
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No tocante ao terceiro capítulo, analisamos os aportes teóricos que norteiam
as discussões sobre literatura pós-colonial. Inicialmente destacamos o que é o pós-
colonialismo, assim como algumas características das literaturas Pós-coloniais.
Mostra-se ainda, como rompem os paradigmas no que diz respeito ao olhar que se
tem sobre o colonizado. Um olhar crítico subverte a ordem de inferioridade sempre
atribuída a ele, para então observar o quanto há de força, de determinação e astúcia
do colonizador.
Nesse capítulo será feita ainda a leitura detalhada do romance amazônico em
estudo, bem como de suas personagens a partir do viés pós-colonial com os
estudos de Alfredo Bosi (1992), Aníbal Quijano (2005), Frantz Fanon (2005, 2008),
Aimé Césaire (1978) e Alberto Memmi (2007).
Portanto, a leitura desse trabalho dissertativo, além de tecer diálogo com o
pós-colonialismo consiste em apresentar o universo das culturas indígenas,
sobretudo, destacar a representação do estrangeiro e do nativo que compõem
imaginário da Amazônia equatoriana.
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CAPÍTULO I
“(DES)CONHECIDO” MUNDO VERDE
Figura 4. A Amazônia – Cena do Filme. Fonte: Filme O velho que lia romances de amor (2001). Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=0jFKNScmf0w. Acesso em: 15 jun. 2015.
Neste capítulo contextualizaremos para nosso leitor aspectos relevantes do
processo de invenção da Amazônia, deste modo, destacamos os relatos de
viajantes como recursos significativos na disseminação da cultura amazônica. Estes
relatos, além de descrever a poética do imaginário Amazônico também contribuíram
para a invenção da Amazônia, instrumentalizando o sensível paralelamente a uma
racionalidade compreensivo-interpretativa de novas realidades. Sobretudo os
viajantes revelavam a região como um lugar exótico, manancial de inesgotável
riqueza e mistério, enfocando essencialmente a relação entre o homem e o espaço
amazônico que ocupa. Por outro lado, ao apresentarmos a Amazônia na narrativa
estudada deixaremos de lado as tentações do exotismo e nos apoiaremos no
conceito do narrador sobre a região equatoriana caracterizada como El Idilio, um
vilarejo na Floresta Amazônica onde o instinto de sobrevivência e as diferenças
culturais se entrelaçam.
1.1 VISÕES DA INVENÇÃO DA AMAZÔNIA
Nada está totalmente organizado em compêndios na cultura amazônica. É preciso errar pelos rios, tatear no escuro das noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos pela várzea, vagar pelas ruas das cidades ribeirinhas, enfim, procurar na vertigem de um momento que se evapora em
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banalidades, a rara experiência do numinoso. Experimentar o frêmito de um caminhar errante que vai descobrindo com decoro a irrupção perene da fonte da beleza. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário – João de Jesus Paes Loureiro
Das representações da Amazônia, muitas foram construídas por viajantes de
diferentes épocas e nacionalidades. Dos inúmeros relatos que surgiram a partir dos
séculos XV e XVI sobre a representação do espaço amazônico e de expedições de
naturalistas europeus e americanos no século XIX podemos destacar Charles-Marie
De La Condamine, Walter Hardenburg, Henry Major Tomlinson e outros. Desde
então, a região Amazônica tem sido compreendida como terra incógnita, pela noção
de exotismo, estranhamento, ou mesmo encantamento, nestes termos, o imaginário
sobre paraíso e inferno verde também passaram a definir essa região.
Os relatos de viagem, assim como apresentado por Gondim (1994) foram
instrumentos de ação do imperialismo agindo no imaginário das sociedades e
reinventando o imaginário popular europeu sobre os outros mundos. Jean Cousin,
em 1488 foi o primeiro viajante a visitar a região que hoje denominamos Amazônia.
Viajantes penetravam pelo rio-mar do desconhecido mundo verde em busca de
lendas, mistérios e curiosidades. Em 1499 Américo Vespúcio também visitou o rio
Amazonas, chegando a retornar nessa região por volta de 1501. Outro viajante que
se aventurou pela busca do El Dorado foi Francisco de Orellana (1541-2) que seguiu
em uma expedição europeia pelo grande rio, que passou a ser denominado pelos
espanhóis como “das amazonas”, assim como descreve La Condamine em Viagem
na América Meridional descendo o rio das amazonas (2000):
Comumente se crê que o primeiro europeu que fez o reconhecimento do rio das Amazonas foi Francisco d’Orellana. Ele embarcou bem perto de Quito, em 1539, no rio Coca, que mais abaixo toma o nome de Napo; deste ele veio ter a um outro maior, e, deixando-se derivar sem outro guia mais que a correnteza [ ...]. O encontro que ele diz ter feito quando descia, de algumas mulheres armadas, das quais um cacique índio lhe tinha dito que desconfiasse, foi a origem do nome rio das Amazonas. [...] o próprio Orellana diz no seu relato que foi descendo o Maranhão que descobriu as Amazonas, o que é decisivo. De fato, este nome lhe foi sempre conservado até hoje, há mais de dois séculos, pelos espanhóis, para todo o seu curso, e desde as cabeceiras do alto Peru. Contudo, os portugueses estabelecidos desde 1616 no Pará, cidade episcopal situada próximo da boca mais oriental desse rio, não o conheciam aí
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senão pelo nome de rio das Amazonas, e mais acima pelo de Solimões, e transferiram o apelido de Marañón, ou de Maranhão em seu idioma, a uma cidade e a uma província inteira, ou capitania, vizinha à do Pará. Usarei indistintamente o nome de Maranhão, ou de rio das Amazonas. (LA CONDAMINE, 2000, p. 41-42).
Conforme exposto por Mendes (2008), durante a expedição Orellana é
surpreendido por mulheres guerreiras:
[...] Durante a viagem, Orellana avistou, nas margens do rio, grupos de índias com arcos e flechas nas mãos, julgando ter encontrado o reino das Amazonas de que tanto ouvira falar. E o nome Amazonas foi dado para o rio e para a floresta. [...] Elas formavam um grupo de mulheres que montavam a cavalo, manejavam o arco e a flecha com grande perícia e viviam sozinhas, nunca admitindo a presença dos homens nas suas terras. A essas mulheres dava-se o nome de Amazonas, em língua grega significa sem teta; uma vez que elas queimavam a teta direita para não terem estorvo ao atirar com o arco; e os aventureiros que ousavam embrenhar-se em regiões desconhecidas, só de pensar que podiam encontrá-las, tremiam de medo, pois era certo e sabido que não escapavam com vida. (MENDES, 2008, p.20).
Na concepção de Leandro Tocantins, em O rio comanda a vida (1973, p. 50-
51) encontramos registros de que:
O Amazonas já nasceu historicamente de uma lenda. Defendida por uns, La Condamine à frente, desmentida por outros, o certo é que Orellana, visionando sob as flechas selvagens atiradas das margens do rio o corpo desnudo de mulheres guerreiras, foi o primeiro tecelão civilizado das lendas amazônicas, seguido por Walter Raleigh e a corte dos invencioneiros românticos e cobiçosos das Manoas e Eldorados.
Na narrativa de La Condamine (2000) ele apresenta o drama da expedição
envolvendo outros viajantes em busca do El Dorado como Pedro de Úrsua e Aguirre:
Em 1560, Pedro de Úrsua, enviado pelo vice-rei do Peru a procurar o famoso lago de Ouro de Parima, e a cidade de El Dorado, que se criam vizinhos das margens do Amazonas, chegou a este rio por um afluente que vem do lado do sul, de que falarei a seu tempo. O fim de Úrsua foi ainda mais trágico do que o de Orellana, seu predecessor. Úrsua pereceu às mãos de Aguirre, soldado rebelde que se fez proclamar um rei. Este desceu a seguir o rio, e depois de longa rota que não está ainda bem esclarecida, tendo levado a toda parte a morte e a pilhagem, acabou por ser esquartejado na ilha da Trindade. (LA CONDAMINE, 2000, p. 43).
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Mais adiante, La Condamine descreve os perigos da expedição de
Raleigh, que ao buscar as maravilhas exóticas e curiosidades, coloca à prova
sua própria vida:
É nesta ilha, a maior do mundo conhecida, ou antes é nesta nova Mesopotâmia, formada pelo Amazonas e pelo Orinoco, ligados entre si pelo rio Negro, que se procurou longo tempo o suposto lado dourado de Parima, e a cidade imaginária de Manoa del Dorado, procura que custou a vida a tantas pessoas, e entre outras, Walter Raleigh, famoso navegador, e um dos mais belos espíritos da Inglaterra, história trágica e assaz conhecida. (LA CONDAMINE, 2000, p. 91).
Segundo Mary Louise Pratt (1999) em Os olhos do império, La Condamine
chegou via Amazonas em 1744, assim como foi aclamado por sua inédita jornada
amazônica, tornando-se mais tarde o principal porta-voz da expedição em toda a
Europa. Mais adiante, Pratt relata que “[...] a expedição de La Condamine marca a
inauguração de uma era de viagens científicas e exploração do interior que, por seu
turno, sugere mudanças na concepção que tem a Europa de si mesma e de suas
relações globais”. (PRATT, 1999, p. 54-55). Sobretudo, os relatos de viagem
descritos por La Condamine são apresentados por Pratt, como expedição científica
internacional, cujo ‘corpus’ ilustra o múltiplo perfil dos relatos de viagem nas
fronteiras de expansão da Europa no século XVIII.
Hélio Rocha (2016a), ao traduzir a obra O paraíso do diabo, de Walter
Hardenburg (2016), apresenta-o como um jovem que:
[...] veio para a América do Sul em busca de aventuras (e, como a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré procurava trabalhadores), juntamente com seu amigo Perkins, Hardenburg deixa Buenaventura, na Colômbia e, numa jornada a pé subindo o rio Putumayo, rede fluvial que deságua no Brasil, rumo ao Atlântico. Todavia, a aventura se transforma em desventura e juntos testemunham a catástrofe, de modo traumático, como não poderia deixar de ser, dos indígenas da Amazônia. (ROCHA, 2016a apud HARDENBURG, 2016a, p. 09).
Na descrição de Rocha, identificamos o que os viajantes relatavam como
sendo o “inferno” na região amazônica, as relações de conflitos, massacres, mortes
e sangue derramado. Com isso, nota-se que a expressão paraíso e inferno
estiveram sempre presentes nos relatos dos viajantes que na região passaram.
Assim como segue a descrição de Hardenburg (2016, p. 134): “É um inferno. Não é
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de admirar que a vegetação seja tão luxuriante, porque o solo tem sido adubado
com o sangue de tantas vítimas inocentes da ganância e rapacidade bestial desses
monstros vis que deviam ser os mais ricos na terra!”.
Por outro lado, Neide Gondim, no livro A invenção da Amazônia (1994), revela
a Amazônia pela ideia do paraíso, assim como os viajantes descreviam, uma vez
que eram atraídos por suas riquezas:
As imagens do Paraíso Terrestre, a fonte da eterna juventude, a riqueza adquirida sem esforço físico, as monstruosidades corporais, as fantásticas descrições da flora e fauna, as amazonas solitárias e mesmo o reino de Preste João, em muitos casos sinônimo de Grão Cã, de uma certa maneira, acompanharam os marujos, grumetes e almirantes na travessia das fronteiras líquidas do antimundo. (GONDIM, 1994, p. 42).
Contudo, os relatos dos viajantes descreviam a região Amazônica como um
ligar desconhecido, partindo dessa compreensão a Amazônia era entendida como
um lugar repleto de plantas e animais exóticos, de modo que o nativo era visto como
parte dessa configuração de espaço. Esta construção pode ser identificada nos
relatos de Gondim (1994) quando o frei dominicano Gaspar de Carvajal,
expedicionário de Francisco Orellana, nos idos de 1541-2, descia com sua comitiva
do Peru ao oceano Atlântico, e ao contemplar o rio Amazonas pensou haver
encontrado as Amazonas mulheres guerreiras e temidas da mitologia grega, desde
então a Amazônia tem sido alvo de mitos e lendas, que tem influenciado a sua
própria concepção. Nessa perspectiva, podemos dizer que a Amazônia representa
um processo de constante invenção, seja para justificar sua exploração, seja para
arguir sobre sua preservação e conservação.
Conforme Mendes (2008), a Amazônia é uma ideia originada a partir dos
discursos das crônicas e narrativas de viagens, passando a ser representada do
modo como foram ‘inventadas’ e constituídas através dos conceitos de identidade
cultural da região e dos sujeitos que nela habitam.
Sobre a invenção da Amazônia Hélio Rocha (2011, p. 3) afirma que:
Logo, quando de seu “nascimento” ou “invenção”, a Amazônia passou a ser associada a uma região de imensidões verdejantes, rios serpenteando infinitamente entre as barrancas solitária, e seres exóticos dançando eternamente sob a luz do luar; um lugar de barbárie e antropofagia; espaço ordenado, portanto, pela relação
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dicotômica: Paraiso/Inferno, Éden/Hades, Eldorado/Caldeirão; certos relatos de viagens foram construídos nessa perspectiva representacional [...]. Civilização versus não-civilização passou a ser a referência central, nesses registros discursivos, para marcar os limites entre o humano e o não-humano, o cultural e não-cultural, o civilizado e o bárbaro e assim sucessivamente. [...] Essa imagem primitivista que foi constituída da Amazônia ajuda a manter uma consciência planetária de que ali é o “fim do mundo”. (ROCHA, 2011, p. 3).
Sobre essas representações o autor compreende como uma espécie de
perversão discursiva, em que o nativo deve questionar até que ponto ele foi
‘moldado’ por essas construções e, principalmente, se interrogue em que medida ele
mesmo contribuiu com certa representação de si mesmo e de seu território. Com
isso, destacamos a presença do nativo nesse cenário verde que se (in)visibiliza,
mostrando o diálogo entro o velho Bolivar e os índios shuar:
- Como somos? – Perguntavam-lhe. - Simpáticos como um bando de micos, tagarelas como os papagaios bêbados e gritalhões como os diabos. Os shuar recebiam as comparações com gargalhadas e sonoros peidos de contentamento. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 30).
Observa-se que os shuar cultivam a representação de si mesmos, tal como
apresentados por Bolivar, nesse sentido, assim como formulado por Pratt (1999, p.
33) ao empreender “[...] a representação de si mesmos de forma comprometida com
os termos do colonizador”, utiliza-se o conceito de auto-etnografia. Segundo Pratt,
esse conceito consiste na colaboração e apropriação parcial da linguagem do
colonizador.
Ao apresentar a leitura dos viajantes, Pratt (1999) desenvolve ainda, o
conceito de “zona de contato”, o espaço de encontros coloniais utilizado pela autora
para falar relações construídas entre os viajantes e os povos visitados. Conforme a
autora, dos relatos de viagem e do contato direto entre o viajante e os povos
visitados, algumas mudanças são postas em movimento, tanto no plano material,
quanto no plano intelectual. Pratt vê nesse processo a possibilidade de movimento
de ambas as partes, entendendo que é impossível ficar inativo diante do outro. As
maneiras como as sociedades mais simples viram o europeu, e se apropriaram do
que lhes era oferecido variou conforme a realidade de cada local.
22
A Amazônia se constitui a partir das histórias fantásticas representadas pela
aura mítica manifesta em expressões lendárias, assim como a fabulação sobre o El
Dorado (GONDIM, 1994). Em O mar e a selva: relato de um inglês na Amazônia de
Henry Major Tomlinson (2014) com tradução de Hélio Rocha, podemos identificar
verdadeiros cofres mágicos cheios de representações da Amazônia, de certa
maneira, representam essa modalidade de percurso que se abre à emoção:
Antes do nascer do sol, não era fácil perceber para onde tínhamos vindo. Eu via um país fantasmagórico e indeterminado, mas como pensávamos que era auspicioso e observável e sua tranquilidade um conselho, navegávamos adiante lentamente e em silêncio, como um ladrão numa entrada. Alguns penhascos estavam próximos uns dos outros de cada lado do navio. Os penhascos podiam ser o resíduo da noite. A noite tinha se precipitado do céu, que estava límpido e resplandecente. (TOMLINSON, 2014, p. 130).
Assim como revelado por Tomlinson, os relatos de viajantes, eram
constituídos de um conhecimento maravilhado, que confere uma alma expansiva do
“Eu” aos temas objetivamente analisados e oferecidos ao conhecimento do outro.
Conforme Loureiro (1995, p. 9) os relatos de viagem “estabelecem, ao lado de
uma relação entre o conhecimento e a realidade conhecida, uma relação da
sensibilidade com a aparência formal e significante do que está sendo conhecido”.
Para o viajante, a Amazônia se constitui não somente em um espaço geográfico,
mas, sobretudo cultural, onde o mítico e o mágico configuram o imaginário ilimitado.
Neste sentido, Steinbrenner (2007) propõe que ao descrever a Amazônia o
viajante descreve o olhar de outrem (descobridor), passando a revelar algo que até
então não havia sido estabelecido como conhecimento. No entanto, ao revelar o
desconhecido retoma o conceito da descoberta, ou seja, a Amazônia é constituída
pelo imaginário do viajante a partir do momento em que ele relata a região em sua
natureza e paisagem.
A Amazônia, portanto, na concepção de Steinbrenner é uma “invenção” termo
usado inicialmente em 1974 pelo professor Armando Mendes em seu livro A
invenção da Amazônia, depois assumido por Gondim (1994), uma invenção,
apontada de forma unânime a partir do olhar de fora para dentro do viajante.
Partindo dos pressupostos de Gondim (1994), a invenção da Amazônia se
deu a partir das construções ideológica de um território, que compreende um
conjunto de mitos e fabulações das quais os europeus inventaram a América. Nesse
23
caso, se a América foi inventada e não descoberta cabe ao enunciador dar
continuidade a essa invenção em seu imaginário.
1.2 AMAZÔNIA, ISOLAMENTO E IDENTIDADES
A ocupação da Amazônia, tal como se apresenta nos dias atuais, tem suas
raízes fincadas numa trajetória histórica marcada por exploração e conquista. Do
mesmo modo, existe a crença do El Dorado e no Reino das Amazonas que
alimentou no passado, e ainda no presente, a conquista e a ocupação dessa região,
compreendida pelas terras do norte do Brasil e, também, por parte dos territórios da
Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, antigas Guianas e Venezuela. Sobretudo,
devemos considerar que a Amazônia foi e continua sendo um componente
importante no enredo de sua história; são muitos os que se dirigem para o seu
interior movido pelo sonho mítico da abundância, da riqueza e da liberdade
(ARAGÓN et al., 2009).
É em busca de sonhos como estes que a narrativa Um velho que lia
romances de amor, conta a história de Antonio José Bolívar Proãno e Dolores
Encarnación del Santísimo Sacramento Estupiñán Otavalo que insatisfeitos com o
modo de vida, o qual viviam só com o indispensável, e angustiados com os
comentários maldosos de que a mulher não consegui engravidar, se aventuram em
um plano de colonização para se instalarem na Amazônia equatoriana com
promessas de que receberiam grandes extensões de terra e ajuda técnica do
governo. As promessas de ter uma vida abundante de prosperidade conduzem o
casal a uma nova realidade na selva:
Ali, após breve trâmite, entregaram-lhes um papel pomposamente selado que os oficializava como colonos. Destinaram-lhes dois hectares de terra, um par de facões, algumas enxadas, uns sacos de sementes devoradas pelo caruncho e a promessa de um apoio técnico que nunca chegaria. O casal se encarregou de construir precariamente uma cabana, e em seguida lançaram-se a limpar o mato. Trabalhando do alvorecer ao entardecer, arrancavam uma árvore, uns cipós, umas plantas que na manhã seguinte viam crescer outra vez, com um vigor vingativo. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 28).
A vida do casal na Amazônia reflete a realidade de outras personagens
históricas destacadas pela literatura, como por exemplo, Coronel Labre apresentado
24
na obra do escritor Hélio Rocha (2016b) e Ferreira de Castro na obra do escritor
Abrahim Baze (2012) que também se instalaram nessa região em busca de
prosperidade, assim como passaram por adversidades quanto à adaptação e
sobrevivência no universo verde da Amazônia. Segundo Hélio Rocha (2016b),
Coronel Labre se instalou às margens do rio Purus nos anos de 1871, e mais tarde
fundou, organizou e governou uma cidade nos trópicos amazônicos. Conforme
Abrahim Baze, entre 1911 e 1914 Ferreira de Castro viveu em condições penosas
no Seringal ‘Paraíso’, à margem do rio Madeira, o qual participou junto aos
trabalhadores florestais, no corte de seringa e extração da boracha.
As dificuldades enfrentadas por estas, e outras personagens, deve-se ainda a
dois elementos distintos, ao isolamento que distancia essa região em seu sentido
local, cuja à principal via de penetração, o rio Amazonas e o gênero de ocupação se
afirmou como ralo, linear, ao longo dos rios. E a constituição de identidades, as
quais são estabelecidas pela configuração de diferenças culturais, com a presença
dos brancos (estrangeiros, colonos e garimpeiros) e povos nativos (indígenas).
A este território Aragón et al. (2009) atribui um peso considerável, de modo
que a ocupação da Amazônia Andina tornou-se rarefeita na encosta leste, cuja
dificuldade de acesso está representada por uma colossal barreira florestal,
permeada pelos mais diversos impactos da natureza, como por exemplo, chuvas,
enchentes, insetos, doenças, dentre outros, que por sua vez, constituem esse
espaço de isolamento, conforme segue:
Ao chegar a primeira estação das chuvas, suas provisões se acabaram e não sabiam mais o que fazer. […]. isolados pelas chuvas, por esses vendavais que não conheciam, consumiam-se no desespero de saber-se condenados a esperar um milagre, contemplando a incessante enchente do rio arrastar em sua passagem troncos e animais inchados. Começaram a morrer os primeiros colonos. Uns por comer frutas desconhecidas; outros, atacados por febres rápidas e fulminantes; outros desapareciam na alongada pança de uma jiboiaçu […]. Sentiam-se perdidos, numa luta estéril com a chuva que a cada investida ameaçava carregar a cabana, com os mosquitos que em cada pausa do aguaceiro atacavam com uma ferocidade sem igual, apossando-se de todo o corpo, picando, sugando, deixando ardentes víbices e larvas sob a pele […]. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 28-29).
A região amazônica mostra-se traiçoeira aos novos habitantes, a
sobrevivência na selva é perigosa, revelando uma natureza revoltada com a
25
presença dos colonos. A relação conflituosa entre natureza e homem confirma o
desconhecimento do homem sobre a natureza amazônica que aos poucos foram
sendo dizimados por doenças, ataques de animais perigosos e pela própria força da
natureza. Nas várias formas de contato com a Amazônia se torna um espaço único,
mítico, vago e irrepetível, em que o próximo e distante, perto e longe, o tocável e
intocável se aproximam. Segundo Loureiro (1995, p. 30): “O isolamento que recobre
a Amazônia é constituídos de mistérios, distância e intemporalidade, que a impede
de intercambiar seus bens culturais, contribui para que se acentuasse sobre ela uma
visão folclorizante e primitivista”.
Neste sentido, por se tratar de uma cultura fundada por homens que vivem
num mundo imaturo, Euclides da Cunha (2008), no início deste século, no prefácio
do livro Inferno Verde acrescentar que a cultura amazônica percorre em vias de
completar-se, como “[...] numa imensa página do Gênesis ainda inacabada”, para
lembrar a clássica expressão de Para Euclides da Cunha (1975), por um lado a
gênesis ainda em formação, e por outro, inferno já formado: A Amazônia selvagem
sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros
tempos da Colônia, as mais importantes expedições […] rumavam de preferência às
suas plagas desconhecidas […]. (CUNHA, 1975, p. 32).
Ao definir cultura, Said (1995) afirma ser uma forma de identidade, ou seja,
um modo de diferenciar o “nós” do “eles”, é o saber e o pensamento de cada
sociedade, associada a ideia de nação e de estado:
'Cultura' designa todas aquelas práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos econômicos, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de seus principais objetivos. Incluem-se aí, naturalmente, tanto o saber popular sobre partes distantes do mundo quanto o conhecimento especializado de disciplinas como a etnografia, a historiografia, a filologia, a sociologia e a história literária. (SAID, 1995, p. 12).
Sobre questões relativas ao homem amazônico, nas diversas tentativas de
reconstrução positivada de sua identidade, outros termos foram apropriados e
legitimados: como por exemplo, o caboclo, o nativo, o ribeirinho, o indígena, povos
da floresta, povos tradicionais etc., deste modo, ao definir cultura amazônica do
nativo, nos deparemos com a seguinte afirmação:
26
[…] ela será entendida como expressão da sociedade que constitui a Amazônia contemporânea à da ocidental. Uma cultura dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua realidade. Uma cultura que, através do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda. (LOUREIRO, 1995, p. 30).
Ainda na perspectiva de Loureiro (1995), o caboclo faz parte da cultura
amazônica, que por sua vez, apresenta profunda relação com a natureza,
contribuindo para consolidar poeticamente o imaginário. Nesse contexto, é o homem
amazônico, que desvenda os segredos do mundo, através da utilização dos mitos.
Entende-se aqui a cultura amazônica como aquela que:
[…] melhor se expressam, mais vivas se mantêm as manifestações decorrentes de um imaginário unificador refletido nos mitos, na expressão artística propriamente dita e na visualidade que caracterizam suas produções de caráter utilitário – casas, barcos etc. O interior – expressão que designa o mundo rural, embora inclua vilas e povoados – é o lugar das tensões próprias dessa sociedade onde os grupos se acham mergulhados numa ideia vaga de infinitude, propiciadora da livre expansão do imaginário. (LOUREIRO, 1995, p. 56).
Alberto Rangel (2008), em sua obra ficcional, atribui a Amazônia a expressão
intitulada Inferno verde, aonde apresenta a região amazônica como um grande
desafio para a ação do homem:
Inferno é o Amazonas... inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto, com a imagem da amada das terras d’onde veio carinhosamente resguardada na alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos estupradores. Mas, enfim, o inferno verde, se é a geena de torturas, é a mansão de uma esperança: sou a terra prometida às raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e providas de dinheiro; e que, um dia, virão assentar no meu seio a definitiva obra da civilização [...]. (RANGEL, 2008, p. 163).
Em Inferno verde, Rangel reconhece a convivência harmoniosa entre o nativo
e a Amazônia, contudo critica a ambição desenfreada dos exploradores. Hélio
Rocha (2012) em Microfísica do imperialismo nos faz um questionamento sobre o
modo como visualizamos as representações estrangeiras dos espaços amazônicos,
sua geografia e suas comunidades. Refere-se a essas representações como:
27
Representações que geram desconforto e resistência por parte do viajado, o nativo. Essas representações empregam o tempo verbal como eterno tempo atemporal, transmitindo uma impressão de constante mormaço, lentidão, letargia, monotonia, inercia e degeneração dos sujeitos amazônicos. Todo esse sistema de escrita, criado e mantido como representação do ‘real’ amazônico, parece conflagrar uma discussão ainda maior sobre as diferenças e as diversidades culturais suas marcas identitárias, sua autossuficiência para gerir sua história e sua própria diferença e as diferenças e interdependências culturais do mundo. (ROCHA, 2012, p. 36).
Nesta, Loureiro (1995) enfatiza que a constituição do imaginário amazônico
nos leva a compreender a flanar pela cultura amazônica:
Sob a liberdade que o devaneio permite, o espaço é quase com que absorvido pelo tempo, assumindo uma leveza que compensa as duras fainas e jornadas na floresta ou nos rios. São inúmeras essas envolvendo atitudes de contemplação operativa, em que o real e o imaginal se interpenetram livremente. […] cada segmento desse vasto espaço unitário é um espaço natural reconstruído socialmente e por isso único, ao mesmo tempo em que igual e integrado ao espaço universal. (LOUREIRO, 1995, p. 57).
Mendes (2008) enfatiza que a Amazônia é local de novas relações identitárias
e transitórias, portanto marcadas pela relação com outras culturas, tem a ver com
registro de determinadas matrizes de pensamento e de comportamentos que estão
secularmente registrados na memória social dos grupos humanos e que gozam da
condição de durabilidade e persistência no tempo.
Seguindo a concepção de Mendes, destacamos que:
Na América Latina, a abrupta interpenetração e coexistência de culturas estrangeiras na Amazônia geraram, entre outras coisas, o hibridismo. Essa terminologia se desenvolveu com o intuito de designar novos processos e produtos resultantes das ordens simbólicas, como forma de contribuir para a formação dos países latino-americanos no final do século XV. Sobretudo, a noção do híbrido emerge na crítica teórica a partir da problematização da questão da representação, a partir dos pressupostos de autores como Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Edward Said. [...] O termo híbrido, hibridismo e hibridização até o século XIX eram palavras e noções quase que exclusivamente circunscritas ao âmbito da biologia e da antropologia, além de serem atribuídas de sentido negativo. No entanto, no final do século XX, elas passaram a ocupar destaque nas Ciências Naturais, Letras e Estudos Culturais. (MENDES, 2008, p. 60-61).
28
No livro Um velho que lia romances de amor, o registro dessa hibridização se
faz da observação do percurso das personagens no romance para que seja formado
um “outro” olhar, assim como, de observar as culturas em que estão inseridas,
enfatizando as identidades e suas fragmentações, as redes de dependência, e as
transformações culturais. Para Stuart Hall (2009, p. 43):
As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis, estão naufragando […]. Por todo o globo, os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais […].
Homi Bhabha (1998) em seu livro O local da cultura afirma que o terreno de
elaboração de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos de
identidade é denominado de in-between ou ‘entrelugar’. Bhabha refere-se aos limites
de fronteiras culturais entre os postos inovadores de colaboração e contestação, no
ato de definir a própria ideia de sociedade.
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. [...] ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. (BHABHA, 1998, p. 27).
De acordo com Mendes (2008) o entrelugar, assim como apresentado por
Bhabhba, corresponde a tempo e espaços múltiplos que vão se confrontar
permanentemente: presente e passado, modernização e tradição, tecnologia e
natureza, conforme mostra:
Ao estabelecer esse confronto, a noção de entrelugar traz à tona uma espécie de reordenação política e cultural do mundo, correspondente a um remapeamento baseado na superação de vários pilares da modernidade cultural, dentre os quais podemos destacar a dialética da dependência cultural, a distinção entre original e cópia, a oposição entre tradição e novidade. O conceito de entrelugar vai ser particularmente relevante para entender o que acontece com a contemporaneidade periférica, uma vez que ele surge dos embates vividos nas margens dos cânones culturais. Por outro lado, embora a ideia de periferia sugira uma centralidade já proclamada obsoleta, a cultura periférica emerge no contemporâneo como o instrumento principal da desestabilização do centro. (MENDES, 2008, p. 63).
29
As relações identitárias são constituídas pela pluralidade de diversos
cruzamentos culturais, de modo que os povos amazônicos estão inseridos em um
processo progressivo de diferenciação e transformação. Conforme Bhabha (1998)
essas relações abrem o espaço de construção de novos sujeitos, nos entrelugares
onde a diferença se faz e se refaz incessantemente.
30
CAPITULO II
REPRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS EM UM VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR
Figura 5. Representação dos povos indígenas. Fonte: Cena do Filme – O velho que lia romances de amor (2001). Disponível em:
https://www.youtube.com/ watch?v=0jFKNScmf0w. Acesso em 12 mar. 2015.
Figura 6. Representação do homem branco (colonos e garimpeiros). Fonte: Cena do Filme – O velho que lia romances de amor (2001). Disponível em:
https://www.youtube. com/watch?v=0jFKNScmf0w. Acesso em 12 mar. 2015.
Neste capítulo, apresentamos a Amazônia em Um velho que lia romances de
amor como um espaço em (re)construção, onde as mais diferentes personagens se
encontram em El Idilio para constituir esse palco mágico. Deste modo,
apresentamos as personagens do velho Bolivar, seu amigo dentista, o delegado
Babosa e povos indígenas jivaros e shuar. Apresentamos ainda, a configuração dos
espaços como o consultório do dentista, a delegacia, a casa do velho.
Trabalharemos com os conceitos de identidade elaborados pelos teóricos dos
Estudos Culturais, fundamentados por Homi Bhabha (1998) e Stuart Hall (2009) na
31
intenção de observar as relações que nascem dos processos de identidade e
hibridização cultural que levam a formação de múltiplas identidades no espaço da
Amazônia equatoriana.
2.1 EL IDILIO: (RE)CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS E IDENTIDADES
A narrativa Um velho que li romances de amor se passa em El Idilio3, vilarejo
às margens de um rio na Amazônia equatoriana. A época é o presente. Luis
Sepúlveda caracteriza o El Idilio como um lugar perdido na imensa floresta em que:
“As pessoas aguardavam a chegada do barco sem outra esperança que a de ver
renovadas suas provisões de sal, gás, cerveja e aguardente […]” (SEPÚLVEDA,
1998, p. 8). O livro apresenta personagens híbridas que habitam o entrelugar, as
frestas de uma sociedade em formação e transformação.
No referido romance, os corpos das personagens expõem marcas da
diversidade em relação ao lugar. Na narrativa, a Amazônia é o espaço em
(re)construção onde as mais diferentes personagens se encontram, protegidas ou
isoladas pela imensidão da água e do verde. Assim, personagens as quais
chamaremos de estrangeiros (gringos), e brancos como o dentista, delegado,
viajantes, colonos e garimpeiros estão em local de passagem porque vêm para
Amazônia com o objetivo de ganhar dinheiro, fazer fortuna, sem a intenção de se
estabelecer na região. Por outro lado, há as personagens indígenas, os jivaros e os
shuar, os quais são apresentados neste trabalho investigativo como os nativos, uma
vez que, são povos oriundos da Amazônia equatoriana.
Neste contexto, assim como as personagens em Um velho que lia romances
de amor, as culturas também apresentam dificuldades de encontrar o seu local
dentro do espaço amazônico, devido à suas multiculturas. Corroborando com esse
pensamento Stuart Hall (2003), afirma que a identidade permanece sempre
incompleta, uma vez que a identidade é móvel, em processo de formação contínua,
mantendo relação intrínseca com o lugar onde o sujeito está e mantém interação, ou
seja, por onde ele passa, nessa perspectiva:
3 Uma terra de tal forma isolada que apenas uma pequeníssima e precária embarcação fluvial assegura o transporte de habitantes, medicamentos e dos visitantes, assim como a comunicação com o exterior. Disponível em: https://mundiverso2011.files.wordpress.com/2011/12/lidiane_brito_ ficha_ de_leitura.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2015.
32
A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2003, p. 43).
Apresentamos a seguir uma breve retrospectiva sócio-cultural da trajetória
das personagens desde seus locais de origem, colocando em foco, a princípio, o
velho Bolivar e o processo de adaptação dele na Amazônia.
Antonio José Bolivar Proaño e Dolores Encarnación del Santíssimo
Sacramento Estupiñán Otavalo, ficaram comprometidos aos 13 anos, e casaram-se
dois anos depois:
Conheceram-se crianças em San Luis, um povoado serrano vizinho ao vulcão imbadura. Tinham treze anos quando foram prometidos um ao outro, e depois de uma festa celebrada dois anos mais tarde, da qual quase não participaram, inibidos com a ideia de estarem comprometidos numa aventura maior que eles, aconteceu de estarem casados. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 26).
Quatro anos depois, após a morte do pai de Dolores, a quem ela prestava
cuidados, o narrador descreve que o casal herdou “[...] uns poucos metros de terra,
insuficientes para sustento de uma família, além de alguns animais domésticos que
sucumbiram com os gastos do velório” (SEPÚLVEDA, 1998, p. 26-27). Descobriram,
entretanto, que não podiam ter filhos. Inconformados, aceitam uma proposta do
governo sobre um plano de colonização da Amazônia, com promessas de
receberem terras e ajuda técnica em troca de povoar territórios disputados ao Peru e
mudam-se para a Amazônia equatoriana, instalando-se em El Idilio:
Levaram duas semanas para chegar ao porto fluvial de El Dorado. Fizeram alguns trechos se caminhão, outros simplesmente caminhando, cruzando cidades de costumes estranhos, como Zamora ou Loja […]. Depois de outra semana de viagem, dessa vez numa canoa, com os membros entorpecidos pela falta de movimentos aportaram num cotovelo do rio. A única construção era uma enorme cabana de zinco que servia de escritório, celeiro de sementes e ferramentas e
33
moradia para os recém-chegados colonos. Isso era El Idilio. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 28).
Bolivar é um velho rijo, simples e sábio, amigo do dentista. É um velho de
aproximadamente sessenta anos, sabia ler, mas não escrever. Somente rabiscava
seu nome em época de eleições, quando tinha que assinar algum papel oficial. No
entanto, como esses eventos ocorriam esporadicamente, pouco se lembrava de
como assinava o nome. É um homem das montanhas equatorianas que foi para El
Idilio há uns quarenta anos. Ele e a mulher eram colonos e não conseguiam fazer a
lavoura vingar na Amazônia. Desse modo, os agricultores do lugarejo iam sendo
dizimados pela selva, até que os shuar índios da região vieram ajudá-los a
sobreviver naquele ambiente hostil. Mesmo assim, a mulher de Bolivar não resistiu e
morreu de malária. Com a morte da mulher, Bolivar se depara com a seguinte
situação:
[...] não podia voltar ao povoado serrano. Os pobres perdoam tudo menos o fracasso. Era obrigado a ficar, a permanecer acompanhado apenas das lembranças. Queria se vingar daquela região maldita, desse inferno verde que lhe arrebatara o amor e os sonhos. Sonhava com um grande fogo que transformasse a Amazônia inteira numa pira. E descobriu, em sua impotência, que não conhecia a selva bem o suficiente para poder odiá-la. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 30).
A Amazônia, como está representada em Um velho que lia romances de
amor, é um lugar de interações e interpretações múltiplas. Ao estudar a Amazônia
em Coronel de Barranco, de Cláudio de Araújo Lima, a pesquisadora Mendes (2008,
p. 44) afirma que a região é um local de novas “relações identitárias e transitórias,
portanto marcadas pelo nomadismo sempre, que se deixam interpenetrar pela
pluralidade de diversos cruzamentos culturais”.
Partindo deste contexto, nota-se que as diferenças culturais oriundas destas
relações identitárias constituem a personagem de Bolivar, que ao chegar à Floresta
Amazônica tem seus interesses ou mesmo seus valores culturais modificados, assim
como sua vida passa por uma completa (re)construção, o qual abandona o lugarejo
onde vivia em El Idilio e se junta aos índios shuar, desenvolvendo uma nova forma
de se comportar e agir. Bolivar passa vários anos com eles, ganha um grande amigo
índio, Nushiño, que o ensina os segredos da vida na selva. Conforme o narrador,
Bolivar era como os shuar, mas não era um deles, e durante o tempo que conviveu
34
com os índios, Bolivar adquiriu os seguintes conhecimentos de sobrevivência na
selva:
Aprendeu o idioma shuar participando com eles das caçadas. Caçavam antas, pacas, capivaras, catetos, pequenos javalis de carne saborosíssima, macacos, aves, répteis. Aprendeu a usar zarabatana, silenciosa e eficaz na caça, e a lança ante os velozes peixes. Com eles abandonou seus pudores de camponês católico. Andava seminu e evitava o contato com novos colonos, que o viam como a um louco. Antonio José Bolivar Proaño nunca pensou na palavra liberdade, e a desfrutava na selva como queria. Por mais que tentasse reviver seu projeto de ódio, não deixava de sentir-se bem naquele mundo, até que foi esquecendo esse ódio, seduzido pelos desafios daquelas paragens sem limites e sem donos. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 30).
As relações estabelecidas entre Bolivar e os índios shuar podem ser
compreendidas a partir do pensamento de Bhabha (1998, p. 21), o qual afirma que
“o reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação, ao
reencenar, este introduz outras temporalidades culturais [...] na invenção da
tradição”, afastando assim, o contato com uma identidade original ou a uma tradição
recebida. Desta forma, observamos que Bolivar passa a se identificar com os índios,
bem como, se torna um protetor da floresta. Do mesmo modo, segundo Mendes
(2008, p. 45) “[...] ao preservar traços fundamentais como linguagem e histórias
particulares do passado, o sujeito busca se proteger da assimilação unificadora e
homogeneizante do seu novo “lugar””.
Na narrativa, Bolivar representa o homem “branco”, no entanto ele se
confunde e/ou se mistura aos autóctones e lá introduzem os seus “dizeres” e os
seus “fazeres”. Negociam sempre, mantendo uma relação amigável entre si,
enfrentando juntos as adversidades e colaborando mutuamente uns com os outros,
criando, a partir da margens, uma rede “invisível” de poder na Amazônia, a partir dos
compadrios:
Ao vê-lo totalmente recuperado, os shuar se aproximaram dele com presentes. Uma nova zarabatana, um feixe de dardos, um colar de pérolas de rio […]. Sem deixar de homenageá-lo, pintaram-lhe o corpo com os tons furta-cores da jibóia e lhe pediram que dançasse com eles. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 32).
35
Na passagem em destaque observamos os embates de fronteira acerca da
diferença em cada personagem, pois Bolivar percorre o vilarejo em El Idilio junto aos
estrangeiros e garimpeiros, assim como adentra a selva, na companhia dos índios.
Da mesma forma, os índios jivaros percorre El Idilio junto os estrangeiros
garimpeiros e colonos, e a selva, seu local de origem. Para Tomaz Tadeu da Silva
(2000), a compreensão da identidade ocorre a partir da análise da diferença, visto
que “As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa
marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de
representação quanto por meio de formas da exclusão social”. (2000, p. 39).
Corroborando com essa premissa, Stuart Hall (2003) expõe que o
deslocamento e a ocupação no espaço, evidencia-se o pensamento que afirma a
construção da identidade como um processo inconsciente, e não inato existente no
momento do nascimento. Na visão de Hall, a identidade permanece sempre
incompleta, em processo de formação contínua, mantendo relação intrínseca com o
lugar onde o sujeito está e por onde ele passa.
Trazendo novamente Hall ao diálogo, “A identidade é realmente algo formado,
forjado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do nascimento [...]”. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo’ formada. (2003, p. 38)
Ao analisar como as identidades se formam, é possível observar que elas são
constituídas da relação com outras identidades. Como expressa Homi Bhabha
(1998):
As diferenças sociais não são simplesmente dadas à expectativas através de uma tradição cultural já autenticada; elas são signos da emergência da comunidade concebida como projeto – mesmo tempo uma visão e uma obstrução – que leva alguém para “além” de si para retornar, com um espirito de reconstrução [...]. (BHABHA, 1998, p. 22).
A relação marcante entre os homens da terra e os homens de “fora”,
evidencia-se em muitas passagens durante o enredo de Um velho que lia romances
de amor, mas atinge sua culminância na cena em que certo dia, um grupo integrado
por cinco aventureiros (estrangeiros) mataram dois shuar, entre eles, Nushiño. “Um
deles morrera com a cabeça destroçada pela chumbada a curta distância, e o outro
agonizava com o peito aberto. Era seu compadre Nushiño” (SEPÚLVEDA, 1998, p.
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36). Bolivar acabou com o assassino, mas não da forma recomendada pelo ritual
shuar. Por isso, os índios pensaram que a alma do amigo morto ficaria vagando para
sempre, sem paz nem descanso.
Nunca tivera uma arma de fogo em suas mãos, mas ao ver como o homem levava a mão ao machete intuiu o lugar preciso em que devia por o dedo, e a denotação provocou um revoluteio de pássaros assustados. Assombrado com a potência do disparo, aproximou-se do homem. Recebera a dupla chumbada em pleno ventre e se contorcia de dor. […] ao dar as primeiras braçadas, sentiu que o infeliz já estava morto. […] Ele não era um deles, mas era como um deles. Por isso devia tê-lo liquidado com um dardo envenenado, dando-lhe antes a oportunidade de lutar como um valente; assim, ao receber a paralisia do curare, toda a sua coragem permaneceria em sua expressão […]. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 38).
Em consequência, Bolivar não era mais bem-vindo entre os shuar, de modo
que: “Poderia passar pelas aldeias shuar, mas não tinha direito a permanecer”.
(SEPÚLVEDA, 1998, p. 38). Desse modo, voltou para El Idilio, onde aos poucos
assumiu o papel de guardião contra as feras selvagens, que atacavam o gado para
vingar-se da devastação trazida pelos “civilizados”:
No início os moradores o evitam, olhando-o como um selvagem ao vê-lo embrenhar-se na floresta, armado com a escopeta, uma Remington de 1914 herdada do único homem que, de maneira equivocada, matara, mas logo descobriram o valor de tê-lo por perto […]. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 38).
A partir de então, descobre sua paixão pelos romances. Os livros eram-lhe
trazidos pelo amigo, o dentista Rubicundo Loachamín, duas vezes por ano, nas suas
viagens para arrancar os dentes das populações pobres das margens dos rios
Zamora, Yacuambi e Nangaritza. Bolivar lia romances de amor, e em cada uma de
suas viagens o dentista o provia de leitura. Porém, Boliviar sempre explicitava suas
preferências, como histórias de sofrimentos, amores desventurados e finais felizes:
- São tristes? Perguntava o velho. - Para morrer de tanto chorar – assegurava o dentista. - Com pessoas que se amam de verdade? - Como ninguém jamais amou. - Sofrem muito? - Quase não pude suportar – respondia o dentista (SEPÚLVEDA, 1998, p. 21).
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Conforme o narrador, Bolivar sabia ler, tornando-se a partir de então ser o
possuidor do antídoto contra a o peçonhento veneno da velhice, do mesmo modo,
os romances apreciados por ele falavam do amor com palavras tão bonitas que às
vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana e a solidão na selva:
[…] Lia lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz como se as saboreasse e, ao ter dominada a palavra inteira, a repetia de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa e, dessa maneira, se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas. Quando uma passagem lhe agradava especialmente, ele a repetia muitas vezes, todas as que achassem necessárias para descobrir como também a linguagem humana podia ser bela […]. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 25).
Por intermédio dessa passagem nota-se como Bolivar passa a romper com as
identificações fixas, passando a se transformar em uma interação simbólica a partir
das leituras dos romances, os quais lhe faziam esquecer-se da solidão na selva. De
acordo com Mendes (2008, p. 46) “[...] as velhas e estabilizadas identidades estão
em declínio, fazendo surgir às novas identidades fragmentadas e não unificadas,
vistas como parte de um processo mais amplo de mudança [...]”. No entanto,
notemos que a personagem do velho Bolivar está em um lugar de trânsito no
romance, percorrendo espaços marcados pelo hibridismo cultural, neste sentido,
Homi Bhabha (1998) afirma que o próprio ato de ir além promete o futuro, porém
sem um retorno no presente, tonando-se por sua vez um processo desconexo e
deslocado. Já Stuart Hall (2003, p.13) esclarece que:
[...] os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.
Deste modo, destacamos a personagem de Bolivar que diante as dificuldades
na selva passa a agir como um shuar, percorrendo a floresta e colocando em perigo
sua própria sobrevivência:
Com os shuar aprendeu a deslocar-se pela selva pisando com o pé inteiro, olhos e ouvidos atentos a todos os murmúrios e sem deixar de agir o facão em momento algum. Num instante de descuido cravou-o no chão para ajeitar a carga de frutos e, ao tentar pegá-lo
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novamente, sentiu as presas ardentes de uma equis entrarem em seu pulso direito. Conseguiu ver o réptil, de um metro de comprimento, afastar-se traçando xx no solo – daí lhe vem o nome – e agiu com rapidez. Saltou brandindo o facão com a mesma mão atacada e cortou-o em várias fatias, até que a nuvem de veneno tapou-lhe os olhos. Às cegas, procurou a cabeça do réptil e, sentindo que sua vida se esvaía, caminhou em busca de uma aldeia shuar. Os indígenas o viram chegar cambaleando. […] e conseguiu mostrar a cabeça do réptil antes de perder os sentidos. Despertou depois de vários dias […]. (SEPÚLVEDA, 1998, p.31).
Ao discutir o papel das personagens, Mendes (2008, p. 62) afirma que é
necessário compreender “[...] suas constituições através de um entrelugar, que é
fruto do deslocamento; é o espaço intersticial; é zona intermediária entre o Mesmo e
o Outro; é um estado de duplo pertencimento”. Por isso, o velho Bolivar se vê
obrigado a criar estratégias de sobrevivência e superação das dificuldades
encontradas em meio à Floresta Amazônica, que é local de passagem, passando,
portanto, a se adequar às novas situações.
Na narrativa em estudo, destaca-se ainda a personagem do dentista, o doutor
Rubicundo Loachamín, que visitava El Idilio duas vezes por ano para atender aos
seus pacientes, viajava no Sucre, um navio muito velho, cujo seu propósito era
carregar cargas pequenas e abastecer El Idilio com mantimentos.
O doutor Loachamín é apresentado no romance como o dentista que odiava o
Governo:
Todo e qualquer governo. Filho ilegítimo de um imigrante ibérico, herdou dele uma tremenda raiva a tudo que soasse a autoridade, mas os motivos daquele ódio se perderam em alguma farra da juventude, de tal maneira que suas fanfarrices de anarquista se transformaram numa espécie de verruga moral que o tornava simpático. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 07-08).
A interação entre a personagem do dentista e as demais personagens da
obra não são nada harmônicas, conforme descreve o narrador, Loachamín
representa o servidor do estado que vai contra o governo. Ao atender os pacientes o
dentista transfere aos habitantes de El Idilio sua raiva e ódio contra o governo, nota-
se que ao agir desse modo Loachamín culpa a população do vilarejo por ele estar
naquele lugar distante, sem condições de trabalho. Os materiais e utensílios
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utilizados pelo dentista são improvisados, assim como mostra as condições e
precariedade da poltrona “portátil” do doutor:
[…] tratava-se de uma antiga poltrona de barbeiro com pedestal e as bordas esmaltadas de branco. A poltrona portátil precisava da fortaleza do capitão e dos tripulantes do Sucre para ser levantada e se fixava fincada sobre um estrado de um metro quadrado que o dentista chamava “o consultório”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 09).
Contudo, frente às dificuldades na selva a poltrona do dentista era
considerada toda uma instituição para os habitantes as margens do rio, que tinham
por aquela poltrona a esperança de ter a boca limpa para experimentar uma das
próteses do doutor. Por outro lado, o narrador caracteriza o dentista como um
médico desorganizado, cujos métodos primitivos de tratar dentes não conseguem
afastar-lhe a clientela por falta de alternativa, conforme segue a passagem:
Às vezes, um paciente soltava um grito que espantava os pássaros, e afastava as pinças com um safanão, levando a mão livre até o cabo do machete. - Comporte-se como homem, valentão. Já sei que dói e lhe disse de quem é a culpa. Não me venha com bravatas. Sente-se tranquilo e mostre que tem culhão. - É que o senhor está me arrancando a alma, doutor. Me deixe tomar um trago primeiro. - O dentista suspirou depois de atender o último sofredor (SEPÚLVEDA, 1998, p. 10).
Notemos que ao desprezar o governo e as instituições o dentista parece
distrair os pacientes dos movimentos das suas terríveis pinças, insultando-os
quando mostram falta de coragem para enfrentar as suas tenazes sem anestesia.
No entanto, destacamos a relação de amizade entre a Loachamín e Bolivar. A
convivência teve início quando Bolivar se tornou paciente do dentista, passando a
ser dono de uma bela placa de dentaduras. Quando Bolivar descobriu o gosto pelos
romances de amor procurou o dentista para lhe pedir o favor de trazer-lhe leitura:
Mas o doutor Rubicundo Loachamín não lia os romances. Quando o velho lhe pediu o favor de trazer-lhe leitura indicando muito claramente suas preferências […] o dentista sentiu que enfrentava um encargo difícil de cumprir. Pensava que ficaria ridículo entrando numa livraria de Guayaquil para pedir: “Me dê um romance bem triste, com muito sofrimento por amor e com final feliz”. Iam tomá-lo por um velho fresco, e encontrou
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a solução de maneira inesperada num bordel do cais. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 21).
Como dama de companhia Loachamín tinha Josefina, uma esmeraldeña, de
pele tersa como couro de tambor, natural de Esmeraldas, capital da província do
mesmo nome no Equador. Conforme o narrador, o dentista gostava de se deitar com
as negras, primeiro porque diziam palavras capazes de levantar um boxeador
nocauteado, e, segundo, porque não suavam na cama. A partir deste dia, Josefina
ficou incumbida de, a cada seis meses, selecionar dois romances para Loachamín
entregar a Bolivar.
Outra personagem interessante é o delegado, um sujeito obeso que suava
sem descanso, de tal modo que a transpiração em excesso o fizera ganhar o apelido
de Babosa4:
Os moradores do lugar diziam que o suadouro começou assim que ele pisou em terra após desembarcar do Sucre, e desde então não deixou de espremer lenços […]. Comentavam também que, antes de chegar a El Idilio, estava nomeado em alguma cidade grande da serra e que, devido um desfalque, o transferiram para esse canto perdido do oriente como castigo (SEPÚLVEDA, 1998, p. 15).
O delegado é representado no romance como a máxima autoridade de um
poder demasiadamente distante, sendo o único funcionário instalado em El Idilio
para provocar temor. Contudo, desde sua chegada à região, há sete anos antes, tem
sido odiado por todos:
Chegou com a mania de cobrar impostos por razões incompreensíveis. Pretendeu vender licenças de caça e pesca num território ingovernável. Quis cobrar direito de usufruto aos catadores de lenha que juntavam madeira úmida numa selva mais antiga que todos os Estados e, num arroubo de zelo cívico, mandou construir uma cabana de bambus para prender os bêbados que se negavam a pagar as multas por alteração da ordem pública. (SEPÚLVEDA, 1998, p.16).
Os habitantes de El Idilio odiavam o comportamento autoritário do delegado
que se apropriava da sua condição como máxima autoridade para subordinar a
4 Planta nativa do norte de África (Aloe succotrina e Aloe vera). Reconhecida como a espécie de
maior concentração de nutrientes no gel da folha. Disponível em: http://dicionarioportugues.org/pt/ babosa. Acesso em: 15 jun. 2015.
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população a partir da criação de leis absurdas e cobranças de impostos sem limites,
por esse motivo por onde passava provocava olhares de desprezo, assim como seu
suor imenso aumentava ódio dos moradores do vilarejo. O desejo de todos era que
sua mulher o matasse: “Desde alguma data imprecisa vivia com uma índia, em quem
batia selvagemente acusando-a de tê-lo enfeitiçado, e todos esperavam que a
mulher o assassinasse. Faziam até apostas a respeito”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 15-
16).
Ao contrário do delegado, consta que o antigo dignitário fora um homem
querido, cujo seu lema era viver e deixar viver. Ele tinha sido o responsável pela
vinda do barco e das visitas do correio e do dentista, porém, durou pouco no cargo,
pois certo dia teve uma briga com uns garimpeiros, e dois dias depois foi encontrado
morto, ficando El Idilio um par de anos sem delegado.
Dentre as ocupações executadas pelo delegado, ele também era o
responsável por administrar a provisão de cerveja. Porém, não bebia “pinga”
(cachaça) como os outros moradores, uma vez que acreditava que o Frontera lhe
provocava pesadelos, de modo que ele já vivia acossado pelo fantasma da loucura
por acreditar que sua mulher o teria enfeitiçado.
Como sequência da representação das personagens em Um velho que lia
romances de amor, destacamos a presença dos povos indígenas, especificamente
índios da Amazônia Equatorial denominados jivaro e shuar. Conforme descritos na
obra os jivaros5 são representados como o índio destribalizado relacionado à
transculturação. Já os shuar integrantes de um dos blocos dialetais, são
representados como o índio com forte elo de identidade cultural. Ao descrever os
índios shuar, o narrador apresenta as seguintes características: “[…] homens
seminus, de rostos pintados com polpa de urucum e adornos multicoloridos nas
cabeças e nos braços” (SEPÚLVEDA, 1998, p.29).
Na narrativa, tanto os índios jivaros quanto os shuar estabelecem contatos de
aproximação com os estrangeiros, colonos e garimpeiros. No entanto, observa-se
que os jivaros além de fazer uso de bebidas (cachaça e uísque) e utensílios dos
brancos passam a maior parte do tempo na companhia dos estrangeiros, servindo-
5 Conforme apresentado na narrativa de Sepúlveda o uso de “jivaro” e “shuar” são utilizados para enfatizar que ambos os grupos dialetais foram originados da etnia “Jivaro”, porém se afastaram do grupo. Na obra de Sepúlveda, Jivaro (com inicial maiúscula) é o indígena sul-americano que pertence a um povo de língua independente e, em número aproximado de oitenta mil indivíduos que vivem na vertente oriental dos Andes equatorianos.
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lhes como guias e seguidores, como por exemplo, servindo para conduzi-los em
canoas. Já os shuar, mesmo compartilhando destes espaços, mantinham-se mais
afastados. De modo que a aproximação mais frequente acontecia com os colonos,
que ao passarem por dificuldades no cultivo da terra e plantações, recebiam ajuda
dos shuar que ficavam compadecidos com suas dificuldades de sobrevivência:
“Deles aprenderam a caçar, a pescar, a levantar cabanas estáveis e resistentes aos
vendavais, a reconhecer os frutos comestíveis e os venenosos, e, sobretudo, deles
aprenderam a arte de conviver com a selva”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 29).
Dentre os índios shuar o narrador destaca Nushiño:
[…] um shuar também vindo de longe, tanto que a descrição de seu local de origem se perdia entre os rios e afluentes do Gran Marañón. Nushiño chegou um dia com um ferimento de bala nas costas, lembrança de uma expedição civilizadora dos militantes peruano. Chegou inconsciente e quase exangue, depois de penosos dias de navegação à deriva. Os shuar de Shumbi o curaram e, uma vez recuperado, permitiram que ele ficasse, pois a irmandade de sangue assim o permitia. […] Nushiño era forte. Dotado de uma cintura estreita e ombros largos, nadava desafiando os botos e estava sempre de excelente humor. (SEPÚLVEDA, 1998, p.33).
Os shuar eram simpatizantes do velho Bolivar, de modo que ele era
considerado compadre de Nushiño, no entanto, essa personagem foi assassinada
por um garimpeiro, e Bolivar teria que honrar a morte de Nushiño acertando o
garimpeiro com um dardo envenenado, porém ele fez isso como um “branco”,
utilizando uma arma de fogo, rompendo assim, com o rito de morte de Nushiño:
Por sua culpa, Nushiño não partiria. Nushiño permaneceria como um papagaio cego, chocando-se contra as arvores [...] Tinha se desonrado e, ao fazê-lo, ficava responsável pela eterna infelicidade de seu compadre. Sem deixarem de chorar, entregaram-lhe sua melhor canoa. Sem deixarem de chorar o abraçaram, entregaram-lhe provisões, e lhe disseram que desde esse momento não era mais bem-vindo. Poderia passar pelas aldeias shuar, mas não tinha o direito a permanecer. Os shuar empurraram a canoa e em seguida apagaram suas marcas da praia. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 38).
O narrador, também descreve outros ritos e segredos dos índios shuar:
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[...] homenagem diária às cabeças reduzidas dos inimigos mortos como guerreiros dignos e [...] entoavam os anents, os poemas-cantos de gratidão pela coragem transmitida, os votos de uma paz duradoura. [...] do festim generoso oferecido pelos velhos que decidiam ter chegado a hora de “partir”, e, quando estes adormeceram sob os efeitos da chicha e a natema, em meio a venturosas visões alucinadas que lhes abriam as portas de futuras existências já delineadas [...] e a cobrir seus corpos com dulcíssimo mel de chonta. No dia seguinte, entoando anents de louvor àquelas novas vidas, agora com formas de peixes, borboletas ou animais sábios [...].
Corroborando com a representação de ritos, assim como destacado na obra
de Sepúlveda, ao retratar sobre a simbologia da cultura indígena, Loureiro (1995)
esclarece que são imposições simbólicas trazidas por religiosos às populações
indígenas, as quais foram inseridas no imaginário indígena constituídos de novos
elementos e conteúdos que passaram a compor o processo de assimilação cultural
justapostos à base cultural indígena.
Partindo deste pressuposto, as diferenças cultuais apresentadas pelas
personagens do velho Bolivar, do dentista, do delegado Babosa e dos índios jivaros
e shuar, assim como foram destacadas neste capítulo, são compreendidas ainda, a
partir do pensamento de Bhabha (1998), o qual propõe o diálogo entre sujeitos
híbridos que faz emergir entrelugares, de modo que são construídos nas relações de
negociação com outras comunidades. Dessa forma, o hibridismo cultural emerge em
momentos de transformação histórica, constituindo-se em um processo constante de
hibridização, pois os valores provenientes das raízes destas personagens se
“chocam” com os valores adquiridos em “outros lugares”, o que implicará na
formação de uma identidade híbrida.
2.2 AMAZÔNIA EQUATORIANA: CONFIGURAÇÃO DOS ESPAÇOS
A região Amazônica é uma construção social, sua narrativa é formada por
viajantes e cronistas que a partir dos relatos de suas experiências individuais e
coletivas passaram a retratar o que seria a imagem da Amazônia. Deste modo, além
de contemplar a ideia de paraíso, os viajantes também acrescentavam sentido
geográfico ao espaço amazônico. Compreende-se assim, que o homem é um fator
geográfico por excelência, bem como é um modelador de paisagens, tornando-se
necessário à sua significação.
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Segundo Moreira (1958), mesmo quando o homem não configura a paisagem,
ele está implícito nela. Neste sentido, sem o homem, o espaço é somente uma
noção geográfica: “O homem não é um elemento acrescido à paisagem, uma sorte
de acessório destinado a ordená-lo ou completá-la, pois se assim fosse seria apenas
uma expressão decorativa na superfície do Planeta”. (MOREIRA, 1958, p. 11).
Partindo desta premissa, Luis Sepúlveda descreve o cenário da Amazônia
equatoriana e desenvolve a estruturação das personagens a partir do rigor como, a
qual a natureza está reconstruída literalmente. Na perspectiva de Mendes (2008):
A literatura sempre é expressão do homem e das relações que ele estabelece com o meio em que vive, com o seu espaço social. Esse espaço, na sociedade contemporânea, muitas vezes interfere no modo do homem de ser e de agir. Também o tempo é fator de influência, podendo levar o sujeito a descentrar-se e a perder a identidade. A literatura, então, registra essas situações e possibilita uma melhor compreensão do universo social, à medida que o leitor se encontra com ela. (MENDES, 2008, p. 85).
Na perspectiva de Loureiro (1995), a narrativa de Sepúlveda evidencia um
realismo mágico, uma vez que convida o leitor a mergulhar na profundidade das
coisas por via das aparências, a partir dessa percepção e reconhecimento
estabelece a criação pela via do imaginário estético-poetizante da cultura
amazônica, conforme mostra a passagem: “O céu era uma inflada pança de burro
que pendia ameaçadora a poucos palmos das cabeças. O vento morno e pegajoso
varria algumas folhas e sacudia com violência as bananeiras raquíticas […]”
(SEPÚLVEDA, 1998, p. 7). A narrativa densa e eficaz, que avança, revolve os fatos
sociais e as novas e dilacerantes realidades que foram impostas à região
amazônica, tornam-se presentes na narrativa das imagens cuidadosamente
cinzeladas por Sepúlveda.
Mais adiante Loureiro (1995) afirma que no âmbito de uma sociedade como a
Amazônia o homem encontra um lugar em um espaço tomado de uma forma
peculiar do olhar do homem da região, dessa forma, ao se constituir como espaço
delimitado de geografia e cultura, tornou-se também uma extensão ilimitada das
instituições do imaginário.
No pensar do escritor Roberto Lobato Corrêa et. al. (2007), não há como falar
em sociedade e espaço de forma separada, mas sim como formação sócio-espacial,
visto que o espaço é constituído por representações das relações sociais. Desta
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forma, ao descrever os espaços em Um velho que li romances de amor
apresentamos a seguinte configuração: o cenário do consultório do dentista, a
delegacia, a casa do velho e povos indígenas que se unem pelo rio. Entre as
descrições dos cenários, há a figura do homem, representado entre outras
personagens, pelos estrangeiros (gringos), viajantes, colonos e garimpeiros que
transitam em meio à floresta, entre El Idilio e a selva equatoriana. Nesses cenários
observam-se quão evidentes são as distinções de espaço e como se estabelecem
as formas de convivência entre as personagens.
Na narrativa, as personagens migram para a região amazônica em busca do
El Dorado movida pela ocupação e colonização de novas terras, assim como o
interesse pela exploração de ouro e caças proibidas. A lenda do El Dorado, assim
como descrita por Walter Raleigh6, era recorrente nos primeiros anos da conquista
da Amazônia, levando para a selva os europeus. Em virtude desse mito, muitos
aventureiros como os portugueses, franceses, holandeses e irlandeses encontraram
um destino trágico na sua busca, cujo objetivo era encontrar-se com os anseios, as
riquezas e a necessidade de sobrevivência dada à fartura da região.
Os migrantes, representados pelo casal Bolivar e Dolores, vêm de lugares
diferentes, chegam a Amazônia com objetivos diversos e constituem-se híbridos
nesse novo universo em que são inseridos. Em sua maioria, os migrantes desejam
apenas explorar a região para depois voltarem aos seus locais de origem, como por
exemplo, as personagens dos garimpeiros a procura e ouro nas margens do rio e a
dos estrangeiros (gringos) em busca de animais para retirar a pele, os quais eram
uma ameaça a Natureza.
6 A narrativa da viagem de Walter Raleigh à Guyana aconteceu em 1595. De acordo com seu relato, “Foi Martinez quem batizou a cidade de Manoa com o nome de El Dorado e, como Berrio me informou, naquela ocasião, os guianenses e também os índios ribeirinhos, e outros naquela extensão de terra por onde viajei, são grandes beberrões. Nesse vício, acho que nenhuma nação pode se comparar a eles. Na época de suas festas mais solenes, quando o imperador reúne seus capitães, os que pagavam tributos e os governadores, comemoram com muita bebida. Todos que são escolhidos pelo imperador são forçados a tirar a roupa e seus corpos são untados por toda parte com uma espécie de bálsamo branco chamado curca, que existe em grande abundância e muito valorizado por eles, e considerado o mais precioso, do qual temos tido uma boa experiência. Quando estão todos untados, alguns servos do imperador, tendo preparado uma porção de ouro em pó fino, sopram-no através de canudos em seus corpos nus, dos pés à cabeça. E assim, cobertos de ouro, sentam-se para beber em grupos de vinte a cem pessoas; e continuam na bebedeira, às vezes, por seis ou sete dias. Isto também é confirmado por uma carta enviada da Espanha, que foi interceptada, e que o conde Robert Dudley disse-me que tinha visto. Esse costume, somado à abundância de ouro que viu na cidade, as imagens de ouro dos templos, os utensílios domésticos, as armaduras e escudos de ouro que utilizam nas guerras levou Martinez a batizar Manoa de El Dorado. Rhe discoverie of Guyana. Trad. Hélio Rocha (no prelo).
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Muitas são as formas de exploração pelos estrangeiros, colonos e
garimpeiros em meio à selva equatoriana: “Tanto os colonos como os garimpeiros
cometiam todo o tipo de erros estúpidos na selva. Depredavam-na sem
consideração, e isso fazia com que alguns animais se tornassem ferozes”
(SEPÚLVEDA, 1998, p. 38). Uma delas é a prática da caça, principalmente pelos
estrangeiros, que em uma tentativa de capturar pele de felinos, deixa uma onça
enfurecida ao matar seus filhotes, e enlouquecida ela passa a matar todos os
humanos que encontra, desenrolando o drama amazônico. Esse processo de
exploração faz com que as personagens ocupem apenas um local de fronteira,
espaço temporário e diversificado.
Mesmo em um lugar de fronteira, o velho Bolivar não rompe o elo com seu
lugar de origem, conforme Antonio Cornejo Polar (2000), migrar é se instalar em um
espaço e modificar à sua imagem e semelhança, porém sempre terá atrás de si o
acumulo de experiência referente à sua origem, assim como a dificuldade de se
referir à natureza das estações e das fronteiras que teve de conhecer; um lugar que
tanto causa o contentamento como o aterroriza.
Como componente desse espaço há o consultório do dentista e a delegacia,
os quais são constituídos como sinônimo do poder, visto que a coordenação desses
espaços é desempenhada por personagens que possuem um perfil tirano, repressor
e abusivo, típico de uma postura colonizadora, conforme nota-se no trecho: “Alguns
queriam retirar de suas bocas as mãos insolentes do dentista e responder-lhe com o
merecido palavrão, mas suas intenções se chocavam com os braços fortes e com a
voz autoritária do odontólogo”. (SEPÚLVEDA,1998, p. 08).
O consultório do dentista é lugar onde também ocorre a socialização dos
homens: “Os poucos habitantes de El Idílio mais um bando de aventureiros vindos
das redondezas se reuniam no cais, esperando a vez de sentar na poltrona portátil
do doutor Rubicundo Loachamím, o dentista [...]” (SEPÚLVEDA, 1998, p. 07). Era a
única assistência do governo com a saúde dos pobres instalados em El Idilio que:
“[...] recebiam o dentista com alívio, sobretudo os sobreviventes da malária
cansados de cuspir restos de dentes e ansiosos das próteses alinhadas sobre uma
toalha roxa de indiscutível ar cardinalício” (SEPÚLVEDA, 1998, p. 08). Os
atendimentos realizados duas vezes por ano caracterizam a falta de compromisso
do governo com a população da região.
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- No consultório mando eu, porra. Aqui se faz o que eu digo. Quando acabar podem me chamar de tira-dentes, remexe focinhos, apalpa-línguas ou com bem entenderem, e pode ser até que eu aceite um trago. Os que esperavam a vez mostravam cara de extremo sofrimento, e os que passavam pelas pinças extratoras tampouco tinham semblante melhor. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 09).
A delegacia é o espaço que representa a autoridade máxima na região.
Conforme a narrativa: “El Idilio permaneceu um par de anos sem autoridade que
resguardasse a soberania equatoriana daquela selva sem limites possíveis, até que
o poder central mandou o delegado”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 16).
A postura colonizadora do delegado é destacada na passagem:
O que eu lhe disse é verdade. Sua casa se levanta em terrenos do Estado, e você não têm direito de continuar aqui. E mais, eu deveria prendê-lo, mas somos amigos e, assim como uma mão lava a outra e as duas lavam a bunda, temos que ajudar um ao outro. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 61).
Observa-se que ambos os locais, consultório do dentista e a delegacia
constituem em espaços de dominação e subordinação, assim como o colonialismo,
dessa forma, a zona de contato estabelecida nestes espaços sociais são de culturas
distintas que ao se encontrarem, se chocam e se entrelaçam uma com a outra
(PRATT, 1999).
Na narrativa, o espaço corresponde ainda à casa do velho Bolivar,
caracterizada da seguinte forma:
Morava numa cabana de bambu de uns dez metros quadrados nos quais ordenava aos poucos móveis; a rede de juta, o engradado de cerveja que sustentava o fogareiro de querosene e uma mesa alta, porque quando sentiu pela primeira vez dores na costa soube que os anos lhe pesavam e decidiu sentar-se menos possível. Construiu então a mesa de pés compridos, e ela lhe servia para comer em pé e para ler seus romances de amor. [...]. Junto à porta pendia uma toalha desfiada e o sabão, com um cheiro penetrante de sebo, e lavava bem a roupa, os pratos [...]. De uma parede ao pé da rede pendia um retrato [...] nele se via um jovem casal. O homem era Antonio José Bolivar Proaño, trajava um impecável terno azul [...]. A mulher, Dolores [...] vestia roupas que [...] mostrava um a blusa ricamente bordada [...]. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 25).
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A partir da acepção de espaço, Antônio Dimas (1994) afirma que na narrativa
ficcional o espaço é um sistema de valores que se transforma permanentemente
pela ocupação da sociedade. É no espaço que as pessoas/personagens preenchem
suas necessidades, interagem umas com as outras, trocam experiências, constroem
saberes e conhecimentos, conforme mostra o trecho em que Bolivar aprende com os
shuar a rastrear serpentes venenosas:
Sabia cercá-las assoviando um tom agudo que as desorientavam até aproximar-se delas, até tê-las frente a frente. Então repetia com um braço os movimentos do réptil até confundi-lo, até passar da repetição a fazer ele os movimentos que o réptil repetia, hipnotizado. Então o outro braço agia certeiro. A mão agarrava pelo pescoço a surpresa serpente e a obrigava a soltar todas as gotas de veneno enterrando as presas na borda se uma cabaça oca. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 33).
Contudo, o espaço, prioritário, pode ser apreendido a partir da cena em que
os índios shuar, os senhores da floresta, trazem a bordo, o cadáver de um
americano trucidado. Entre os shuar e o branco, ora representados pelo delegado,
um sujeito prepotente e inepto. Há a ameaça de um conflito: os índios são acusados
de assassinar o americano. Tratava-se de um homem jovem, de no máximo
quarenta anos, loiro e de constituição forte.
- Vocês o mataram. Os shuar recuaram - Não. Shuar não matando. - Não mintam. Despacharam-no com uma facada. Vê-se claramente. - O gordo suarento sacou o revólver e apontou para os surpresos indígenas - Não. Shuar não matando – atreveu-se a repetir o que tinha falado. O delegado o fez calar dando-lhe um golpe com o cabo da arma. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 17).
Somente o velho Bolivar toma o partido deles. Tal qual um Sherlock Holmes7
amazônico, ele decifra nos estranhos ferimentos do gringo as garras de uma fêmea
de onça, que teve seus filhotes mortos pelo americano e agora, enlouquecida, mata
7 Personagem do detetive criando por Arthur Conan Doyle, mais conhecido em sua obra O Mundo
Perdido. Disponível em: http://seuhistory.com/hoje-na-historia/nasce-arthur-conan-doyle-o-pai-do-detetive-sherlock-holmes. 15 jun. 2015.
49
todos os humanos que encontra, passando a representar um perigo para a
população de El Idilio.
- Pense doutor. Tantos anos aqui e não aprendeu nada. Pense. O gringo filho da puta matou os filhotes e com toda a certeza feriu o macho. Olhe para o céu, vai desabar de tanto chover. Imagine a cena. A fêmea deve ter ido a caça para encher a pança e amamentá-los durante as primeiras semanas de chuva. Os filhotinhos não estavam desmamados, e o macho ficou cuidando deles. E assim entre as feras, e assim o gringo deve tê-los surpreendido. Agora a fêmea anda por aí enlouquecida de dor. Agora anda a caça do homem. Deve ter sido fácil seguir o rastro do gringo. O infeliz levava nas costas o cheiro de leite que a fêmea farejou. Já matou homem. Já sentiu e conheceu o gosto de sangue humano. [...] Deixe que os shuar partam. Têm que alertar sua aldeia e as vizinhas. […] Gringo filho da mãe! […] Caçar com as chuvas em cima, e com escopeta! Olhe as perfurações que têm percebe? O senhor acusando os shuar, e agora vemos que o infrator é um gringo (SEPÚLVEDA, 1998, p. 19-20).
A população faz uma caçada à onça, mas sente-se incapaz de continuar,
desse modo o delegado procura Bolivar, incumbindo a ele a dura tarefa de encontrar
a onça e matá-la. A onça continua a matar pelas redondezas, e Bolivar entra na
selva para caçar o animal, num grupo liderado pelo delegado. Bolivar não vai de boa
vontade, uma vez que, entende os motivos da onça e até simpatiza com eles, além
disso, não se dá bem com o delegado.
O delegado com seu jeito estúpido e arrogante só atrapalha. Assim, Bolivar
torna-se o líder natural do grupo. Ele acaba enfrentando sozinho, a onça. Primeiro, a
fêmea o leva a seu macho, que está ferido, sofrendo muito, ela parece ter atraído
Bolivar para que este dê o tiro de misericórdia em seu companheiro. Feito isso,
chega o momento do duelo entre a fêmea e o caçador. É o clímax do livro: Bolivar
vence, mas, longe de estar satisfeito, envergonha-se e chora: “O velho acariciou-a,
ignorando a dor do pé ferido, e chorou envergonhado, sentindo-se indigno,
envilecido, de nenhum modo vencedor dessa batalha”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 93).
Na narrativa, a ocupação do espaço amazônico é estabelecida pelo rio, que
se torna a única possibilidade de penetrar na floresta. Para Tocantins (1973) o
encantamento pela Amazônia impressiona logo à primeira vista pela água e pela
imensidão dos rios. Neste sentido, Mendes (2008) enfatiza que no espaço
amazônico o rio representa a única esperança da população, uma vez que o
atendimento a população vem pelo rio e chega de barco. As embarcações que
50
surgem simbolizam a esperança do El Dorado, uma vez que traz a mercadoria, a
solução dos problemas, o alimento, enfim, todos os constituintes de uma vida na
floresta.
Como via de penetração no rio, o barco é essencialmente necessário para o
transporte de gêneros, torna-se um veículo de mobilidade da riqueza na Amazônia.
Na obra, o barco ganha o nome de Sucre “um trambolho desconfortável”, cuja
finalidade era realizar pequenos embarques e transportar alimentos. É por ele que
chegam também os médicos e o atendimento de saúde:
Bem perto, a pequena tripulação do Sucre carregava cachos de banana verde e sacos de café em grão. De um lado do cais se amontoavam as caixas de cerveja, de aguardente Frontera, de sal, e os botijões de gás que cedo tinham desembarcado. O Sucre zarparia quando o dentista terminasse de consertar mandíbulas, navegaria remontando as águas do rio Nangaritza para desembocar mais tarde no Zamora e, depois de quatro dias de lenta navegação, atracaria no porto fluvial de El Dorado. (SEPULVEDA, 1998, p. 08).
Ainda na concepção de Mendes, “O rio integra o ambiente das personagens
ficcionais amazônicas, uma vez na região as personagens estão distantes de
quaisquer núcleos urbanos”. Do mesmo modo, pelas margens dos rios a vegetação
se faz variada e luxuriante. Em virtude de tanta beleza Bolivar construiu sua cabana
direcionada para o rio “A cabana estava protegida por um teto de palha trançada e
tinha uma janela aberta para o rio” (SEPÚLVEDA, 1998, p. 25). Assim, partindo dos
pressupostos de Tocantins (1973) o rio enche a vida de Bolivar de motivações
psicológicas, as quais são confirmadas na representação da janela, que era para
Bolivar o local escolhido para fazer suas leituras, o qual servia para comtemplar a
beleza do rio ao mesmo tempo em que apreciava os romances de amor.
Corroborando com a acepção sobre homem e ambiente, Loureiro (1995, p.
127) acrescenta que:
Se na alma do rio estão as encantarias – o lugar habitado pelos encantados; se nas margens estão as casas, as várzeas, os pássaros, as palmeiras – o mural da mata ou da floresta; se na epiderme dos peixes navegam os barcos; no corpo dos rio circulam os peixes. Como outras tatuagens do imaginário na pele das águas; eles avançam, mergulham, bóiam, nadam em ângulos, isolados ou
51
em cardumes, povoando em espécies e números impossíveis de contar os milhares de rios.
Neste contexto, Leandro Tocantins (1973), enfatiza que o rio impunha um
desfecho histórico às aventuras daqueles que acompanharam expedições e
viajantes a procura de descobertas. Por essa via, Loureiro (1995, p. 59) afirma que:
O homem da Amazônia percorre pacientemente as inúmeras curvas dos rios, ultrapassando a solidão de suas várzeas pouco povoadas e plenas de intocáveis tonalidades de verdes, da linha do horizonte que parece confinar com o eterno, da grandeza que envolve o espírito numa sensação de estar diante do sublime.
Leandro Tocantins (1982) enfatiza que o espaço físico, por sua vez, não é
uma existência dada para o homem, inerente ao planeta em que este se
desenvolveu. Até em suas expressões mais “naturais”, como as florestas e os rios, o
espaço físico não deixa de ser uma construção, que surge da interação com os
sujeitos. Neste sentido, destacamos o trecho final da obra em que Bolivar manifesta
essa interação com a natureza, ao mesmo tempo em que é formado um espaço
construído e produtivo na intervenção do homem sobre a natureza:
Com os olhos nublados de lágrimas e chuva, empurrou o corpo do animal até a beira do rio, e as águas o levaram selva adentro, até os territórios jamais profanados pelo homem branco, até o encontro do Amazonas, em direção às corredeiras onde seria destroçado por punhais de pedra, para sempre a salva das indignas animálias. (SEPULVEDA, 1998, p. 94).
Ao lançar o animal na água a personagem de Bolivar atribui um sentido
mágico na representação do animal, o qual permanecerá para sempre a salva das
atrocidades do homem branco. Assim como confirma Tocantins (1973, p. 280):
O rio, sempre o rio, unindo o homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.
Tocantins (1973) enfatiza ainda, que as águas na selva inspiram os
habitantes da floresta a criar sobre o rio um mundo fantasmagórico, e tudo aquilo
52
que é lançado no rio pertence à natureza pródiga, e cada geração que passa
transmite a outra a herança imaginativa.
Em Um velho que lia romances de amor, o entrelugar é a Amazônia, sua
floresta, lugares desconhecidos, misteriosos e até mesmo perigosos, principalmente
para os estrangeiros que se aventuram a caçar na selva, tornando-se presas fácies
para os animais ferozes. Para Bolivar, a floresta era o inferno verde que iria
domesticá-lo para que pudessem sobreviver dentro dela. No entanto, Bolivar é
despertado pelo encantamento da selva e torna-se o defensor da floresta.
53
CAPÍTULO III
A PRODUÇÃO DO EU E DO OUTRO A PARTIR DO VIÉS PÓS-COLONIAL
Figura 7. Habitantes de El Idilio na caçada a onça. Fonte: Cena do Filme – O velho que lia romances de amor (2001). Disponivel em:
https://www.youtube. com/watch?v=0jFKNScmf0w. Acesso em 12 mar. 2015.
Neste capítulo, inicialmente destacamos o que é o pós-colonialismo, assim
como algumas características das literaturas pós-coloniais como subalternidade,
alteridade, identidade, e outros. Mostra-se ainda, como rompem os paradigmas no
que diz respeito ao olhar que se tem sobre o colonizado, a partir dos aportes
teóricos de Alfredo Bosi (1992), Aníbal Quijano (2005), Frantz Fanon (2005, 2008),
Aimé Césaire (1978) e Alberto Memmi (2007) que norteiam as discussões sobre
literatura pós-colonial.
3.1 PÓS-COLONIALISMO E LITERATURA PÓS-COLONIAL
Pós-colonialismo é uma forma de pensamento que se constitui como
instrumento de análise das relações de dominação de uma nação ou povo com
maior poder sobre outras denominadas minoritárias, assim, busca explicar os
pressupostos teóricos culturais do colonialismo e imperialismo, além de questionar e
reinventar a percepção cultural (BOSI, 1992).
Trata-se de um movimento que se baseia no discurso colonial8, denominado
de "crítica pós-colonial" que teve início por volta da década de 70, tornando-se
8 Disponível em: http://literaturaeteoriadaliteratura.blogspot.com.br/2013/11/13-pos-colonialismo.htm
l?view=magazine. Acesso em: 14 set. 2016.
54
evidente a partir da década de 80 com primeira menção na obra A Reader’s Guide
to Contemporary Literary Theory (1985)9, em A Concise Glossary of Contemporary
Literary Theory (1992)10 e a obra The Empire Writes Back (1985)11.
O gênero se destaca pela sua temática central dada a oposição e o
inevitável antagonismo colonizador/colonizado, que se constituem como instrumento
de análise das relações de dominação de uma nação sobre a outra e da dominação
de uma classe com um maior poderio sobre outra de menor recurso, revelando as
formas de resistência e de afirmação de uma identidade que foge aos padrões
ocidentais, em politização notável na obra de seus precursores mais conhecidos:
Franz Fanon (2005), Albert Memmi (2007), Aimé Césaire (1978), Edward Said
(1995) e outros. Acerca das categorias produzidas por esses precursores durante o
domínio colonial europeu do mundo, destacamos as seguintes linhas de debate:
“estudos da subalternidade”, “estudos pós-coloniais”, “estudos culturais”,
“multiculturalismo”, entre outros.
Esses grandes precursores, com suas análises buscam mostrar essa quebra
de hegemonia através de uma ruptura do pensamento ocidental, que valoriza as
abordagens econômicas, sociais e culturais do Ocidente em detrimento do Oriente.
(SAID, 1996).
Segundo Memmi (2007) os estudos sobre a crítica pós-colonial têm,
portanto, os debates sobre o pós-modernismo, embora traga, também, uma
consciência de poder nas relações entre o Ocidente e as culturas do Terceiro
Mundo que o pós-modernismo estetizante negligenciou ou foi lento ao desenvolver.
Do ponto de vista pós-colonial, os valores e tradições ocidentais na literatura,
incluindo versões do pós-modernismo, são decorrentes de um etnocentrismo
repressivo.
Corroborando com estas reflexões Bhabha (1998, p. 26) afirma que “[...] a
pós-colonialidade, por sua vez, é um salutar lembrete das relações “neocoloniais”
remanescentes no interior da “nova” ordem mundial e da divisão de trabalho
multinacional”. Partindo desse pressuposto, Bhabha propõe a autenticidade de
histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistência.
9 SELDEN, Raman.; WIDDOWSON, Peter.; BROOKER, Peter. A Reader’s Guide to Contemporary
Literary Theory, 1985. (5th ed. 2005). 10
HAWTHORN, Jeremy (ed.). A Glossary of Contemporary Literary Theory (3rd edn, Arnold, London, 1998. A Concise Glossary of Contemporary Literary Theory is also available in paperback). 11
ASHCROFT, Bill.; GRIFFITHS, Gareth.; TIFFIN, Helen (eds).The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literature, 1985. (2nd edn, Routledge, London, 2002).
55
Em O Orientalismo produzido por Edward Said (1996) ele eclarece que os
"sujeitos coloniais" são confirmados em sua sujeição aos modos ideológicos
ocidentais, o papel hegemônico é reforçado ao mesmo tempo. No entanto, ao
desafiar o discurso ocidental, Said segue a lógica das teorias de Foucault: nenhum
discurso é fixo para todos os tempos, de modo que se torna tanto uma causa como
um efeito, assim como não só exerce poder, mas também estimula a resistência e
oposição.
Said (1996) refere-se ao universalismo eurocêntrico que ignora a construção
discursiva da superioridade europeia ou ocidental. A obra destaca a tradição
europeia do Orientalismo, de modo que enfatiza o oriente como o “Outro” e inferior
ao ocidente. Para Said o ocidente se torna a projeção daqueles aspectos ocidentais
que não são aceitos (crueldade, sensualidade, decadência, preguiça). Mas, ao
mesmo tempo e paradoxalmente, o Oriente é visto como um reino fascinante do
exótico, místico e sedutor.
A questão, como afirma Said, refere-se ao conhecimento não dominativo e
não coercitivo que pode ser produzido num ambiente profundamente inscrito na
política, nas considerações, nas posições e nas estratégias de poder, sendo que
muitas vezes estabelecido por discrepâncias e relações de superioridade, de
dominação e de um processo hegemônico muito complexo, já que as literaturas do
Oriente sofrem fortes influências das literaturas Ocidentais.
Os efeitos do pós-colonialismo descritos por Fanon (2007) faz minar os
postulados universalistas feitos em prol da Literatura pelos críticos humanistas. De
tal modo, o pós-colonialismo rejeita o universalismo, visto que, a cada vez que um
significado universal é reclamado a uma obra, as normas e práticas eurocêntricas
estão sendo promovidas a um status de superioridade. De acordo com Fanon, a
colonização sempre traz relações de poder que se encontram arraigadas nas
classes sociais da colonialidade. Isso cria certa hierarquia em cada nação. Os que
antes eram contrários a toda forma de exploração, agora assumem a língua, a
cultura do colonizador e tornam-se os exploradores.
Assim, a literatura pós-colonial busca mostrar romper com a hegemonia
através de uma ruptura do pensamento ocidental, que valoriza as abordagens
econômicas, sociais e culturais:
A colonialidade do poder e a dependência histórico-estrutural
56
implicam ambas as hegemonias do eurocentrismo como perspectiva epistemológica. No contexto da colonialidade do poder, a população dominada, nas novas identidades que lhes haviam sido atribuídas, foram também submetidas à hegemonia eurocêntrica como maneira de conhecer, na medida em que alguns de seus setores puderam aprender a língua dos dominadores. Portanto, o eurocentrismo não é exclusivamente a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos educados sob sua hegemonia. (QUIJANO, 2005, p. 74-75).
Os estudos Pós-coloniais, portanto, buscam questionar e analisar as culturas
do imperialismo e do colonialismo, assim como, reinventar a forma como o outro é
percebido nesse processo de pós-colonização. Nessa perspectiva, a teoria pós-
colonial se constitui a partir das manifestações identitárias de um povo já
descolonizado, que busca ter visibilidade e libertar-se das heranças que a
colonização trouxe.
Da mesma forma, os questionamentos quanto aos processos de colonização
trazem à tona debates sobre a influência e a dominação dos colonizadores sobre os
povos colonizados, no que diz respeito à cultura, à língua e à religião. Muitos
críticos consideram que as ex-colônias não podem ser consideradas livres dessas
influências do colonizador (FANON, 2007).
A influência de séculos de colonização, seja através da língua, seja através
da cultura e dos processos de globalização, está por distanciar cada vez mais as
ex-colônias de um processo de total independência. Pois, a grande jogada dos
países que colonizaram as nações consideradas de terceiro mundo é mascarar
seus verdadeiros interesses políticos e econômicos. Essa falsa independência das
ex-colônias se dá principalmente pela dependência dessas a um mercado
econômico que é altamente influenciado pelas projeções dos países de primeiro
mundo, sendo que essas ficam à mercê dessas grandes potências econômicas.
(CÉSAIRE,1978).
Neste contexto, a literatura pós-colonial destaca-se como uma forma de
revide das relações de poder, entre as literaturas produzidas pelos colonizadores,
que mascaravam as relações de dominação entre senhores e servos e pessoas de
etnias e gêneros diferentes. Da mesma forma, o pós-colonialismo tenta desmistificar
as ideologias e estereótipos produzidos pela literatura europeia.
57
3.2 A (IN)VISIBILIDADE DOS NATIVOS: REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NO
ROMANCE
Ao apresentarmos a cultura indígena na narrativa estudada, citamos Stuart
Hall, um dos principais autores a discutir o conceito de identidade dentro dos
Estudos Culturais a partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980. De
acordo com Hall, no livro A identidade cultural na pós-modernidade (2003), a
identidade costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os
mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados
e predizíveis.
Na concepção de Hall, a identidade é entendida como uma construção
discursiva constituída em dado momento histórico, dessa forma, ao se confrontar
com significações e representações culturais distintas se multiplicam em uma
variedade de identidades possíveis. Já para Bhabha (1998) a cultura é uma prática
desconfortável e perturbadora de sobrevivência que se resplandecente num
momento de prazer, de esclarecimento e/ou liberação. É dessas posições narrativas
que a Bhabha afirma ser uma prerrogativa pós-colonial, uma vez que afirma e
amplia o interior das margens dos espaços-nação, assim como através das
fronteiras entre nações e povos.
Partindo deste contexto, na narrativa em estudo destacamos a presença das
personagens indígenas denominadas jivaros e shuar cujas diferenças culturais são
destacadas no romance: “Os jivaros. Indígenas rechaçados por seu próprio povo, o
shuar, por considerá-los envilecidos e degenerados com os costumes dos
“apaches”, dos brancos”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 09).
Partindo dessa premissa, entendemos que ao implantar uma cultura a partir
da superioridade nas colônias, inicia-se o processo de transculturação. Contudo, é o
resultado dessa interferência que faz surgir sujeitos híbridos, como a representada
pelos shuar e as influências externas pelos jivaro. Segundo Edward Said, em Cultura
e Imperialismo (1995), todas as culturas estão mutuamente imbricadas, pois
nenhuma é pura e única. O autor conclui que todas são hibridas, homogêneas,
extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitísmo.
Corroborando com esta premissa, Canclini (2000) define cultura como um
processo em constante transformação. Segundo ele, todas as culturas possuem
formas próprias de organização e características que lhes são intrínsecas. Nesse
58
sentido, mesmo consideradas estranhas, devem ser respeitadas com o intuito de
naturalizar a cultura humana. Para autor o consumo é uma das principais
características da cultura contemporânea. Observamos assim, a identidade entre os
indígenas jivaros e shuar:
Havia uma enorme diferença entre um shuar altivo e orgulhoso, conhecedor das secretas regiões amazônicas, e um jivaro, como os que se reuniam no cais de El Idilio esperando por um resto de álcool (SEPÚLVEDA, 1998, p.10).
Neste sentido, ambos os povos indígenas jivaros e shuar rompem, como
assegura Stuart Hall (2003), com a constituição de identidades fixas. Corroborando
com este pensamento a pesquisadora Mary Louise Pratt (1999) afirma que no
encontro entre nativo e colonizador obtém-se uma nova visão de mundo, do mesmo
modo, é a partir das experiências provocadas por esse contato, entre culturas
diferentes, que Pratt conceitua o termo transculturação. Esse termo foi formulado
pela primeira vez em 1940, pelo etnólogo e antropólogo cubano, Fernando Ortíz, em
Contrapunteo cubano Del tabaco y El azúcar (1987), como forma de substituição das
expressões, tais como mudança cultural, aculturação, difusão, migração ou osmose
de culturas, por significarem pouco representativas desses fenômenos sociais que
produzem implicações culturais, causando impacto, nas diversas civilizações ao
longo dos tempos e da história (PEREIRA, 2006).
Na narrativa estudada, a representação das personagens indígenas jivaros e
shuar são determinadas pela transculturação. De acordo com Ortíz (1987) a
mudança de uma cultura à outra, a rigor, é indicada pelo termo aculturação, uma vez
que o processo também se caracteriza por perda ou desarraigo de uma cultura
anterior, podendo significar ainda uma parcial desculturação. Nesse sentido,
acarreta no surgimento de novos fenômenos culturais. A transculturação é um
processo no quais ambas partes de equação resultam modificadas, no qual emerge
uma nova realidade de civilização, de forma composta e complexa. Portanto, as
culturas originais transitam e contribuem para outra e nova realidade.
O teórico e crítico literário uruguaio Ángel Rama (1982), em seu livro
Transculturación narrativa em América Latina, apresenta uma serie de reflexões
teórico criticas que permite compreender a evolução da narrativa sobre
transculturação no século XX na América Latina.
59
As personagens indígenas jivaros são representadas no romance como índios
cujos interesses ou mesmo os valores culturais foram negociados, conforme
podemos destacar no trecho em que o narrador descreve a relação entre os índios e
os colonos: “Às vezes caçavam algum cateto para os colonos, e o dinheiro que
recebiam deles não tinham outro valor que o de troca por um facão novo ou um saco
de sal”. (SEPÚLVEDA, 1998, p.33). Nota-se que as personagens em foco são
obrigadas a se reconstruírem por meio de negociações.
De acordo com Bhabha (1998, p. 20-21), “[...] a articulação social da
diferença, da perspectiva da minoria é uma negociação complexa, em andamento,
que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momento
de transformação histórica”. A partir dessa análise, pode-se ressaltar e aferir valores
na narrativa em foco, o que é necessário para conhecer as identidades amazônicas
que se formam ao se atrelar as mais diversas culturas em um mesmo universo:
- Como são tapados! Ai, como são tapados! Pensem o que quiserem. A mentalidade selvática contagiou vocês. Nem Cristo tira vocês de sua ignorância. Ah, mais uma coisa: vão parando de me chamar de excelência. Desde que ouviram o dentista se agarraram com a palavrinha (SEPÚLVEDA, 1998, p.80).
Observamos que a expressão selvática é utilizada para reforçar uma
característica que é dominante na região Amazônica, de modo que aqueles tidos
como ignorantes, mesmo não pertencendo aos povos nativos também passam a ser
denominados como selvagens. Esta interação entre o Eu e o mundo exterior é
definida por Hall (2003), como reveladora da estrutura dos valores sociais projetados
na construção da identidade que preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’,
entre o mundo pessoal e o mundo público. Como exposto na narrativa: “É a selva
que se mete dentro de nós. Se não temos um ponto fixo aonde queremos chegar,
damos voltas e voltas” (SEPÚLVEDA, 1998, p. 74). Observa-se que os sentimentos
subjetivos são alinhados com os lugares objetivos ocupados pelas personagens
indígenas a partir do mundo social e cultural representados no romance.
Na perspectiva de Bhabha (1998, p. 46):
A presença do outro provoca o surgimento da estratégia da imitação pelo temor do que não pode ser apropriado nesse outro. A esse movimento de articulação entre a autoridade colonial e as formas de conhecimento 'nativo', por meio do qual um influencia o outro, modificando ambos, o autor dá o nome de hibridismo.
60
Percebemos uma significação para o hibridismo cultural, assim como
apresentado por Néstor Canclini (2000), em que a tradição e modernidade se dão,
sobretudo no campo da cultura. Conforme o autor, o hibridismo é um fenômeno
elementar de fazeres culturais que se constituem a partir da interação entre práticas
oriundas de diferentes contextos históricos ou sociais. Desse modo, a partir de
processos de hibridação podemos analisar a unidade de culturas isoladas e
“resistentes” a partir da concepção de que somente a cultura do colonizador era
considerada como civilizada, por outro lado a cultura do colonizado mantinha-se em
negação e discriminação. Esse discurso vem sendo propagado durante séculos de
forma cruel e repressora:
[...] a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a acção colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e justificada por esse desprezo, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende; que o colonizador, para se dar boa consciência se habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como animal, tende objectivamente a transforma-se, ele próprio, em animal. (CÉSAIRE, 1978, p. 24-25).
Partindo deste pressuposto, notamos que Em Um velho que lia romances de
amor, o nativo, representado pelo jivaro deixa a condição de homem para se tornar
esse ser animalizado, objeto da colonização, assim como foi apresentado por
Césaire:
Os jivaros sorriam mostrando seus dentes pontiagudos, afiados como pedras de rio. - E você? Que diabos estão olhando? Algum dia vão cair em minhas mãos, seus micos – ameaçava o dentista. - Ao sentir-se mencionados, os jivaros respondiam contentes. - Jivaro bons dentes tendo. Jivaro muita carne de macaco comendo (SEPÚLVEDA, 1998, p.10).
Essa forma de negação e animalização são para Memmi (2007, p.122)
vivenciadas pelo nativo a partir do pensamento que o classifica como “O colonizado
não é isto, não é aquilo. Jamais é considerado positivamente [...]”. Já Bonnici (2000)
esclarece que:
61
Na teoria pós-colonial o Outro é o centro imperial, o discurso imperial, a metrópole. O Outro proporciona os termos através dos quais o sujeito colonizado fabrica sua identidade dependente. O Outro é também o aparato ideológico absoluto através do qual o colonizado começa a se ver e a ver o mundo ao redor dele. Portanto, o sujeito colonial existe no fitar e no olhar do outro e, sendo o poder colonizador como um fator maternal, introduz noções de pátria e de seus derivados em sua ideologia. No que diz respeito ao Outro simbólico, a obrigação do sujeito colonizado de perceber e aceitar a linguagem dominante o introduz no esquema de poder do colonizador, no qual ele descobre metaforicamente a Lei do Pai. É importante salientar que os dois pólos aparentemente exclusivos acontecem simultaneamente, ou seja, a construção do Outro dominante é um processo pari passu junto à construção do outro colonizado. (BONNICI, 2000, p. 133-134).
No livro Os condenados da terra, Frantz Fanon (2005) destaca os traumas
vivenciados pelos povos colonizados e a subordinação destes ao sistema colonial
francês. Segundo Fanon, a descolonização é algo violento, é o encontro de duas
forças congenitamente antagônicas que “[…] extraem sua originalidade
precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação
colonial” (FANON, 2005, p.26). Fanon acrescenta que a primeira confrontação
ocorre sob o signo da violência, e sua coabitação, nesse sentido, a exploração do
colonizado pelo colono é levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões.
Conforme ainda esse autor, esse processo de descolonização é necessário,
assim como não deve ser pautada somente nas lutas armadas, mas deve partir da
descolonização da realidade que os povos vivenciam e da quebra de paradigmas
subjacentes à colonização. Para o autor o que produz o colonizado é a ação do
colonizador, ao passo que quanto mais força e brutalidade este empregam contra o
colonizado, mas alimentará a violência e a desordem nessa nova sociedade. Já em
seu livro Peles negras, máscaras brancas, Fanon (2008) retrata a cerca da relação
movimentos entre o racismo e o colonialismo, assim como apresenta a relação com
o racismo e o condicionamento do negro ao branco. Sobretudo, Fanon propõe uma
análise sobre como se constitui as formas que a sociedade utiliza para ver o mundo
que o cerca.
Albert Memmi (2007), em seu livro Retrato do colonizado precedido pelo
retrato do colonizador enfatiza que as formas de colonização se constituem uma
deturpação das crenças e valores dos colonizados. Segundo Memmi, as formas de
colonização e os valores construídos durante esse processo refletem sobre as
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identidades hibridizadas.
Ao descrever o colonizador, Memmi (2007) desvela as vantagens que a
colonização trouxe para estes, vejamos:
Vai-se para a colônia porque as situações são asseguradas, os tratamentos elevados, as carreiras mais rápidas e os negócios mais frutuosos. Para o jovem diplomado ofereceu-se um posto, para o funcionário uma promoção, para o comerciante reduções de impostos, para o industrial matéria prima e mão de obra a preços insólitos. (MEMMI, 2007, p.22).
Nota-se que a ideia de um crescimento social e político se estabeleciam no
seio dessa nova sociedade colonizadora, nesse sentido, a máquina da colonização
era rentável aos olhos dos colonizadores. Enfim, tudo se resumia a lucro, riquezas e
à superioridade social que as colônias proporcionavam. Na narrativa estudada, a
busca por riquezas pode ser identificada na seguinte passagem:
Era um prospectador de pedras. Não andava atras de ouro como a maioria dos loucos que se aproximava destas terras, e afirmava que muito adentro se podiam encontrar esmeraldas. Lembro-me muito de tê-lo ouvido falar da Colômbia e das pedras verdes, grandes como um punho. (SEPÚLVEDA, 1998, p.75).
Alfredo Bosi (1992), em seu livro Dialética da colonização, afirma que a
colonização estava mais preocupada com a ideia de progresso e avanço do domínio
europeu, do que com os nativos das nações colonizadas. Bosi explora em seu livro
as estratégias da colonização e a falsa ideia de desenvolvimento econômico e
político das nações colonizadas. Assim como, esclarece que o colono incorpora,
literalmente, os bens materiais e culturais do índio, de modo que manifesta
interesse e desejo de tomar para si a força do seu braço, o corpo de suas mulheres,
as suas receitas bem sucedidas de plantar, cozinhar e de estabelecer a
sobrevivência, conforme mostra o trecho em que Bolivar se apropria da convivência
com os índios para a sobrevivência e adaptação na selva:
A vida na selva temperou cada detalhe de seu corpo. Adquiriu músculos felinos, que com o passar dos anos se tornaram rijos. Sabia tanto da selva quanto um shuar. Era tão bom rastreador quanto um shuar. Nadava tão bem quanto um shuar. Definitivamente, era como um deles, mas não era um deles (SEPÚLVEDA, 1998, p.34).
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Nota-se que são nos nativos quem proporcionam todo o conhecimento da
Amazônia para o viajante. De acordo com Pratt (1999), todo conhecimento advém
do nativo. Na perspectiva de Bosi (1992) a ocupação do território de outras nações
se deu de maneira fugaz e altiva, suplantando, assim, os sonhos, a língua e a
identidade nacional desses povos. Estabelece ainda o conceito de cultura como
algo que os povos cultivam, a partir de seus ancestrais. Conforme Bosi a forma
como a cultura se materializa esta relacionada aos ideais de determinado grupo,
mesmo que seja para benefício próprio ou de outrem:
Quem procura entender a condição colonial interpelando os processos simbólicos deve enfrentar a coexistência de uma cultura aos rés-do-chão, nascida e crescida em meio às práticas do migrante e do nativo, e uma outra cultura, que opõe á máquina das rotinas presentes as faces mutantes do passado e do futuro, olhares que se superpõem ou se convertem uns aos outros. (BOSI, 1992, p.35).
Neste sentido, compreender a situação colonial do colonizado torna-se,
assim, uma denúncia das mazelas sofridas por esses povos. Contudo, a ideia de
dominação de um grupo abonado sobre outro mais fragilizado decorre do sistema
colonial europeu, que durante séculos suprimiu e menosprezou a cultura e o que
era produzido por esse grupo minoritário.
Partindo deste pressuposto, Gayatri Spivak (2010), no livro Pode o subalterno
falar? afirma que a produção literária pós-colonial é caracterizada por propiciar uma
maior representatividade dos grupos minoritários no campo literário, uma vez que
até então eram mal representados nas literaturas europeias. Assim eram tidos como
subalternizados, ou seja, a margem da sociedade. Essa representação do subalterno
silencia a voz dos sujeitos. Do mesmo modo, o sujeito subalterno fica (in)visibilizado a
qualquer forma de representação, com isso, não pode falar e nem ser ouvido.
Para o ‘verdadeiro’ grupo subalterno, cuja identidade é a sua diferença, pode-se afirmar que não há nenhum sujeito subalterno irrepresentável que possa saber e falar por si mesmo. A solução do intelectual não é a de se abster da representação. O problema é que o itinerário do sujeito não foi traçado de maneira a oferecer um objeto de sedução ao intelectual representante. Na linguagem um tanto arcaica do grupo indiano, a questão que se apresenta é: como podemos tocar a consciência de um povo, mesmo enquanto investigamos sua política? Com que voz-consciência o subalterno pode falar? (SPIVAK, 2010, p.60-61).
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Spivak (2010) propõe a produção de uma narrativa na qual esses grupos possam
expor sua própria história, dando visibilidade à história real da colonização, pois, segundo
esta escritora, a representação desses povos subalternizados é a obliteração da
cultura desses povos frente a cultura europeia. Neste sentido, reafirmamos a
relevância da literatura pós-colonial para a visibilidade de produções com destaque
para os imigrantes, as populações indígenas, enfim, as populações que estão à
margem da sociedade.
3.3 ANIQUILAÇÃO DA IDENTIDADE DOS NATIVOS E DA AMAZÔNIA:
REPRESENTAÇÃO DOS ESTRANGEIROS NO ROMANCE
A descoberta da América é permeada de conquistas e derrotas, de
colonizações e descobertas dos outros. Do mesmo modo, o processo de
colonização da América Latina desde o início foi constituído por um cenário de
barbáries e extermínio de diversos povos colonizados. Como parte desse processo,
por volta do século XV, a Europa se aventurou a levar a fé católica a outras nações,
as quais consideravam não colonizadas, com o intuído de estabelecer a dominação
(TODOROV, 2003).
Assim, a ocupação da Amazônia pela via de exploração e dominação era
realizada por expedições transmitidas ao mundo em relatos de viagens. Os relatos
eram construídos por viajantes que confrontaram e enfrentaram o “(des)conhecido”
mundo verde. Como forma de se reafirmarem, os viajantes propagavam que os
povos nativos os tratavam com completa obediência.
Partindo desta premissa, na narrativa Um velho que lia romances de amor, o
trecho “Os jivaros, vestidos com farrapos de branco, aceitavam sem protesto a
alcunha imposta pelos conquistadores espanhóis" (SEPÚLVEDA, 1998, p. 10),
enfatiza a relação de obediência do nativo com o colonizador, sobretudo, a negação
do nativo (colonizado) pelo colonizador. Conforme Todorov (2003), os primeiros
colonizadores nomearam o colonizado como índio e o fizeram abandonar suas
origens, a ponto de negar a identidade, a cultura e a religião desses povos.
Consequentemente, os revoltosos a esse sistema colonial eram brutalmente
açoitados e mortos, o que levou ao extermínio de diversas etnias.
Neste contexto, citamos Hardenburg (2016, p. 134) que descreve os horrores
provocados pelas autoridades peruanas na região amazônica:
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Tribo após tripo de índios pacíficos e hospitaleiros dessas florestas desapareceu diante dos ataques da “civilização” peruana. Colombiano após colombiano foi vilmente assassinado por esses criminosos miseráveis, até que finalmente foram exterminados e os seus estabelecimentos, muito cobiçados pelo sindicato de crime, passaram para suas mãos.
Ao longo de séculos de colonização, o que restou foi a ideologia propagada
pelo colonizador, de que os povos nativos eram bárbaros e necessitavam de cultura,
religião e inovação mercantilista. A dominação colonial caracteriza-se como
opressora em relação ao colonizado, haja vista que inúmeras situações são criadas
para justificar o monopólio do colonizador:
Chegavam mais colonos, agora com promessas de desenvolvimento pecuário e madeireiro. Com eles chegava também o álcool desprovido de ritual e, em consequência disso, a degeneração dos mais frágeis. Mas, sobretudo, aumentava a peste dos garimpeiros, indivíduos sem escrúpulos vindos de todos os confins sem outro norte que o enriquecimento rápido. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 35).
De acordo com estudiosos da teoria Pós-Colonialista, a visão colonizadora
é formada a partir da negação do outro, do mesmo modo como a cultura, a tradição,
a língua, os costumes do outro também são negados. Albert Memmi apresenta em
seu livro Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (2007), a
ambivalência existente nas relações entre colonizador e colonizado. Segundo
Memmi (2007), os colonizadores pouco se importavam com a cultura, a língua, a
religião e a identidade cultural dos nativos, isso simplesmente era ignorado e
apagado. O que interessava era impor seus hábitos, sua língua, sua cultura e sua
religião. Tudo isso em nome do progresso. Do mesmo modo, a presença dos
estrangeiros na obra de Sepúlveda pode ser vista como negação dos índios jivaros,
reconhecidos pelos gringos como selvagens que roubam: “[…] Na segunda
acampada o jivaro fugiu com duas garrafas de uísque. Você sabe como são os
selvagens. Só pensam em roubar. […]”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 61).
Na narrativa estudada, ao se referirem aos povos indígenas, os estrangeiros
os chamavam de silvícolas, bem como lhes eram negado o direito a voz: “[…] Estes
silvícolas o mataram e depois o borrifaram com mijo de gado. […]. Os indígenas
quiseram replicar, mas o cano apontado para eles foi uma imperativa de guardar
silêncio”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 18).
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Observamos assim, tamanha brutalidade com os nativos, os quais são
representados na narrativa como povos sem o direito de serem ouvidos, de terem
sua cultura valorizada e de poderem assumir sua identidade cultural. A visão que se
tinha do colonizador era sempre do branco, bonito, bem vestido, conhecedor de um
aparato cultural, enquanto que a visão sobre o colonizado era um ser selvagem, não
civilizado e “sem cultura”: “Não sei o que tanto eles gostam nesses índios pelados.
[…]”. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 61). Nota-se, nesta passagem, que os índios são
considerados como degenerados, compreendidos no romance com não objetivos,
agressivos e ilógicos.
Estas personagens, na concepção de Said (1995) são denominadas de
subalternos, “[...] aqueles simplórios, ‘desprovidos de energia e de iniciativa’ e muito
dados a ‘adulterações de mau gosto’, intriga, simulação e maus tratos aos animais
[...]”. O colonizado, frente a tais subjugações, usa estratégias para resgatar sua
cultura e identidade, através da subversão da língua e da religião do colonizador.
Entretanto, o processo colonizador possui formas distintas, porém nota-se que a
cultura do nativo é negada, assim como, a Amazônia é aniquilada pelos estrangeiros
em Um velho que lia romances de amor:
Enormes máquinas abriam caminhos, e os shuar aumentaram sua mobilidade. Já não permaneciam os costumeiros três anos num mesmo lugar, para depois deslocar-se e permitir a recuperação da natureza. Entre estação e estação carregavam suas cabanas e os ossos de seus mortos afastando-se dos estranhos que apareciam ocupando as margens do Nangaritza. […] Os shuar se moviam rumo ao oriente buscando a intimidade das selvas impenetráveis. (SEPÚLVEDA, 1998, p. 35).
Os shuar são representados na narrativa como personagens que possuem
uma relação de proximidade, respeito e exaltação à natureza. Para ele, a selva não
é apenas o lugar onde vive, mas sua fonte de vida e sobrevivência e com ela há
uma interação sujeito/espaço. Em contrapartida, os estrangeiros como forma de
brutalizar e retroceder o cotidiano vivido pelos nativos destrói a selva em busca de
humanizar as relações de trabalho.
Esta destruição a selva e aos povos desta região é relatada por Hardenburg
(2016) ao descrever sobre a companhia de Julio César Arana, a Peruvian Amazon
Company, que criada na cidade de Iquitos foi expandida para a região amazônica
dada aos interesses de Arana na exploração das ricas florestas de borracha do