FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO … · Nossa pesquisa baseou-se na paradoxal...
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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP
BOLIVIANAS EM SP: ESCRAVAS DA MODA
Yasmim Nóbrega de Alencar – [email protected] Prof. Dra. Carla Diéguez - [email protected]
Este artigo é resultante de estudos desenvolvidos como atividades de bolsa de pesquisa em graduação que compõe o Projeto Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da FESPSP, sob orientação da Profa. Dra. Carla Diéguez. Aconteceu entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São Paulo. A metodologia aplicada consistiu de levantamento e análise bibliográfica, consulta a dados oficiais, entrevistas semiestruturadas e compilação de materiais contendo denúncias na internet. Partiu da seguinte problematização: qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho escravo de mulheres bolivianas em empresas têxteis brasileiras localizadas em São Paulo? Por conseguinte, desenvolveu assunto abordando o tema do trabalho análogo à escravidão desenvolvido por mulheres bolivianas em dois bairros da capital (Brás e Bom Retiro) em reflexões acerca das experiências de bolivianas escravizadas e/ou que sabem de relatos de vivências de outras bolivianas. Contrapondo o trabalho escravo ao conceito de trabalho decente e estabelecendo relações do primeiro com a influência da moda, representada pela indústria têxtil e suas terceirizadas exploradoras de imigrantes na produção de mercadorias. Concluímos que há uma relação intrínseca entre moda e escravidão de bolivianas na indústria têxtil paulistana. Isto se expressou nas denúncias encontradas na internet, em dados oficiais e na fala de entrevistadas seduzidas pelas "roupas de marca", apesar de muitas destas serem fruto de sua exploração. Buscamos compreender essa contradição sob a ótica feminista e o pensamento sociológico do trabalho, para entender como se dá a questão da desigualdade de gênero no mundo do trabalho. Entrevistas revelaram a existência de mulheres bolivianas explorando outras da mesma etnia. Entendemos que parte da indústria da moda precisa escravizar mulheres bolivianas para produzir suas mercadorias, na medida em que se mantém quando seduz mulheres a consumirem tais produtos (incluindo as próprias bolivianas), criando, assim, um ciclo de consumo que se vale da lógica capitalista, onde o lucro é a máxima do empresariado e o valor da força de trabalho escravo é utilizado para o seu fim. Desta forma, mulheres seduzidas pela indústria da moda e seu consumo de marcas equivalentes a um status social privilegiado servem como engrenagens, azeitando a estrutura empresarial e fazendo girar a economia capitalista, através de uma convergência entre trabalho escravo e consumo.
Palavras-chave: mulheres, bolivianas, trabalho, escravo, decente, moda.
BOLIVIANAS EM SÃO PAULO: ESCRAVAS DA MODA
Yasmim Nóbrega de Alencar – [email protected]
Profa. Dra. Carla Diéguez – [email protected]
Introdução Este artigo é resultante de estudos desenvolvidos como atividades de
bolsa de pesquisa de iniciação científica em graduação que compõe o Projeto
Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da FESPSP, sob orientação da Profa. Dra.
Carla Diéguez. Aconteceu entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São
Paulo.
Nossa pesquisa baseou-se na paradoxal realidade de trabalho escravo
vivenciada por mulheres bolivianas em oficinas de costura do Centro velho da cidade
de São Paulo. Buscamos refletir sobre o papel social da mulher e aproximá-lo do
fetiche que a Moda e suas mercadorias exercem sobre mulheres produtoras e
consumidoras.
A história de vida dessas pessoas bolivianas é marcada pela desigualdade
social que impulsiona a imigração boliviana a sair da Bolívia, em condições
desumanas (existem relatos de imigrantes que vieram nos chamados “trens da morte”,
em condições de transporte extremamente arriscadas), para chegar ao Brasil com o
sonho pueril de uma vida melhor e mais próspera que a vivenciada em sua terra natal.
Sabemos que nos últimos anos a problemática da exploração da força-de-
trabalho de imigrantes bolivianos (as) em São Paulo tem sido desvelada. E veio à
tona, inclusive, em grandes veículos midiáticos da Capital e do país. Isto tem exposto
o problema e sua gravidade para toda a população brasileira; além de ter chamado
atenção das autoridades públicas.
Neste ínterim, várias ações do Estado e suas polícias, no sentido de dirimir
o problema da exploração bolivianas, têm sido realizadas na região paulistana onde se
concentram possíveis oficinas de costura clandestinas. Tais ações ficaram conhecidas
como “batidas policiais” que surpreenderam os exploradores (há informações de que
são coreanos e bolivianos envolvidos em esquemas, inclusive, internacionais) que
conduzem este fluxo migratório, desde o seu país de origem até aqui, para ser
1 Pesquisadora orientanda, estudante de Sociologia e Política, na FESPSP. 2 Professora orientadora da pesquisa.
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utilizado como mão-de-obra barata e escrava nestas oficinas insalubres, em sua
maioria. A situação é complexa e apesar de estarem combatendo a existência e a
proliferação destes espaços de exploração clandestinos, ainda há vários funcionando.
São muitas as questões que envolvem este tema da exploração de
imigrantes bolivianos (as), em São Paulo. No entanto, esta pesquisa se propôs a
concentrar seus esforços no recorte de gênero. Na busca de compreender como se dá
a exploração das mulheres bolivianas submetidas ao trabalho em condições análogas
às da escravidão, nos dias de hoje.
Principalmente, este foco se deve ao fato de a temática do trabalho
decente em contraponto ao trabalho escravo estar sendo trabalhada e refletida por
órgãos internacionais, como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e pelo
Estado brasileiro (Ministério do trabalho e outros) sob o ponto de vista da opressão de
gênero. Uma vez que o papel socialmente construído da mulher a coloca num patamar
desprivilegiado na Divisão sexual do trabalho, em nossa sociedade que,
historicamente, privilegia condições de vida e trabalho melhores para homens em
detrimento de mulheres. Assim, nossa análise estará, de certa forma, sob o olhar de
crítica feminista para que consigamos pautar a opressão de gênero vivida pelas
mulheres bolivianas.
Colhemos informações sobre o processo migratório da população boliviana
para o Brasil e notícias de casos de oficinas de costura em São Paulo que utilizavam
trabalho escravo de bolivianas e bolivianos para entender de que forma as mulheres
bolivianas se inserem nesse meio e como interagem nesta situação. Também
realizamos levantamento bibliográfico e leitura crítica acerca do tema.
No tocante às percepções das próprias mulheres bolivianas exploradas,
buscamos ouvi-las e refletir sobre como apreendem a situação e de maneira se
relacionam com a moda que produzem e muitas vezes não tem condições
socioeconômicas para consumirem.
Foram entrevistadas dez mulheres bolivianas que residem no Centro (e
imediações) de São Paulo. Algumas trabalham em oficinas de costura, outras já
trabalharam. Há ainda as que relataram conhecer compatriotas submetidas ao
trabalho escravo. E houve um caso inusitado de uma senhora boliviana que
esmiuçaremos na parte referente à descrição do trabalho de campo e o perfil das
entrevistadas.
Consideramos que reflexões críticas sobre o tema do trabalho escravo no
Brasil, bem como a luta para que se assegure o trabalho decente para toda a classe
trabalhadora, não podem deixar de abordarem o este problema sem recortá-lo em
termos de gênero. Para que sejam visibilizadas as questões pertinentes às mulheres
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trabalhadoras, neste âmbito. Mais adiante aprofundaremos o assunto e
estabeleceremos relações entre gênero, trabalho escravo, trabalho decente, moda e
sobre como as mulheres bolivianas se amalgamam neste grande caldeirão capitalista.
Desenvolvimento
Qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho
escravo de mulheres bolivianas em empresas da indústria têxtil brasileira, localizadas em São Paulo?
Esta indagação nos estimulou a pesquisar sobre as relações entre trabalho
escravo, moda e mulheres bolivianas no contexto brasileiro. Responder a esta
indagação nos levou a pesquisar sobre o tema e abrir um canal de escuta sobre a
realidade de trabalho de algumas das mulheres que vivenciam, vivenciaram ou
conhecem bolivianas vítimas de exploração em oficinas de costura localizadas na
cidade de São Paulo, precisamente no Centro velho.
Nossa abordagem partiu, propositalmente, do recorte de gênero para
pensar acerca dos efeitos do trabalho escravo em contraponto ao trabalho decente no
Brasil, potencializados pela moda e suas mercadorias.
Segundo o Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo ao de
escravo é aquele que ocorre com condições degradantes de trabalho
(incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos
fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva
(em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que
acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa
no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e
psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um
débito e prendê-lo a ele).
Para estabelecermos e compreendermos esta relação, socioeconômico e
politicamente complexa, imersa no mundo do trabalho e envolvida intimamente ao
modo de produção e distribuição capitalista de mercadorias, faz-se necessário antes
resgatarmos um pouco dos fatores históricos que nos levam a entender o processo
migratório do povo boliviano para o Brasil; como se dá a opressão das mulheres na
sociedade e consequentemente no mercado de trabalho como um todo e
conceituarmos nossa discussão a partir das definições de trabalho escravo e trabalho
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decente, adotadas por órgãos nacionais e internacionais que regulam e defendem
Direitos Humanos e trabalhistas.
Para desenhar a trajetória das mulheres bolivianas que entrevistamos, foi
necessário, sobretudo, ouvi-la. Por isso, empregamos metodologias qualitativa (um
pouco de História de vida) e quantitativa (coleta de dados através de questionários
semiabertos aplicados com dez pessoas – mulheres bolivianas residentes em São
Paulo capital).
Em se tratando das metodologias empregadas, em A arte de pesquisar, a
antropóloga Mirian Goldenberg diz que A integração da pesquisa quantitativa e qualitativa permite que o pesquisador faça um cruzamento de suas conclusões de modo a ter maior confiança que seus dados não são um produto de um procedimento específico ou de alguma situação particular. Ele não se limita ao que pode ser coletado em uma entrevista: pode entrevistar repetidamente, pode aplicar questionários, pode investigar diferentes questões em diferentes ocasiões, pode utilizar fontes documentais e dados estatísticos. (GOLDENBERG, 2011, p.62)
Por isso, também foram consultados sites oficiais do Governo brasileiro e
da Organização Internacional do Trabalho, bem como outros que abordam questões
referentes ao trabalho escravo. Além de sites nos quais constavam reportagens com
denúncias de casos de violação de direitos humanos de mulheres bolivianas em São
Paulo, entre anos 2013 e 2014, para que confrontássemos os dados e a realidade
vivida pelas entrevistadas. Assim, desenvolvendo uma reflexão sobre a exploração de
mulheres no universo amplo do mundo do trabalho escravo; presente em vários países
do globo e atingindo fortemente pessoas imigrantes, como é o caso daquelas
abordadas nessa pesquisa que tem sua origem geográfica na Bolívia.
Entrevistá-las não foi tarefa fácil, já que muitas delas se afastavam quando
abordadas para responder questionário ou mesmo falar da vida. Dentre os fatores
identificados logo no início da pesquisa, podemos destacar: condições muitas vezes
ilegais nas quais se encontravam ou se encontram as entrevistadas, receio de se
aproximar e responder qualquer coisa para uma estranha com prancheta na mão,
pressa e indisponibilidade até porque o companheiro disse para que recusassem
responder. Por isso, precisamos fazer várias visitas aos territórios delimitados para
trabalho de campo e muitas tentativas para as entrevistas obterem o êxito desejado.
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Algo que nos fez compreender o quanto a pesquisa precisa estar sensível ao contexto
no qual pretende se inserir e sempre de maneira respeitosa com o público-alvo.
Devido a estas implicações na abordagem, durante trabalho de campo,
fomos pensando e construindo outra maneira de realizar qualquer aproximação nos
locais onde realizamos a pesquisa: não abordá-las com prancheta na mão, tentar
conversar trivialmente antes de entrar no mérito da pesquisa, buscar adquirir alguns
dos produtos que vendiam algumas delas (doces de macarrão, típicos da Bolívia;
bolsas e outros acessórios com estampas e costura bolivianas) e demonstrar simpatia
para construir a confiança necessária para que se expressassem sem medo de sofrer
qualquer consequência, posteriormente.
O Brasil tem se tornado um dos refúgios para o qual recorrem imigrantes
de países vizinhos com condições socioeconômicas menos favoráveis. Dentre estes,
destacamos a Bolívia, país de origem das nossas entrevistadas. É um dos lugares dos
quais partem pessoas em direção à nação brasileira buscando emprego,
sobrevivência, qualidade de vida. E São Paulo é um dos destinos escolhidos por
imigrantes bolivianos cheios de sonhos e expectativas de viver melhor que em sua
terra natal.
No entanto, já é sabido que, quando chegam ao território brasileiro, muitas
destas pessoas se deparam com situações nada condizentes com aquilo esperado e
sonhado, como é o caso de mulheres e homens bolivianos que são submetidos ao
trabalho em condições análogas às da escravidão, em oficinas de costura clandestinas
de São Paulo. Aconteceram casos nos quais as pessoas já partiam de seus países
aliciadas para o trabalho escravo no Brasil, por conterrâneos, sem sequer saberem
que estavam sendo enganadas pelos seus futuros patrões.
O combate ao trabalho escravo no Brasil tem se fortalecido desde que o
Estado brasileiro e a OIT firmaram memorando de entendimento que previa o
estabelecimento de um programa de cooperação técnica para a promoção de uma
Agenda Nacional de Trabalho Decente. Esta foi lançada em Maio de 2006.
Podemos destacar, dentre ações e iniciativas para a erradicação do
trabalho no Brasil e no mundo, as seguintes:
• Agenda Hemisférica do Trabalho Decente (AHTD) – em 2006
Agenda Nacional do Trabalho Decente no Brasil (ANTD) – em 2006
Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente (PNETD) – em 2010
I Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente – em 2012
Agendas estaduais de trabalho decente
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Em Nas costuras do trabalho escravo, de Camila Lins Rossi, o cotidiano da
exploração de bolivianas e bolivianos é esmiuçado em situações que demonstram
suas fragilidades no ambiente de trabalho opressor e inseguro. Segundo a autora: (...) As oficinas, segundo contam os imigrantes, funcionam em porões ou em locais escondidos, porque a maior parte delas é ilegal e não tem permissão para funcionar regularmente. Por isso, para que os vizinhos não percebam, para não levantar suspeitas da polícia, para evitar que a confecção seja descoberta e denunciada, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho dos motores, música boliviana toca o tempo todo. (ROSSI, 2005, p.23 )
Segundo o CAMI (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante), existente em
São Paulo, atualmente há cerca de duzentos mil bolivianos morando na cidade. Nem
todos estão em situação legal, algo que favorece às suas explorações em oficinas de
costura clandestinas. Nestes lugares, tais imigrantes são subjugados e mantidos sob
cárcere privado, por necessitarem de trabalho e terem de se submeter a trabalhos
informais. Muitas vezes são vitimados nesta informalidade por exploradores da força-
de-trabalho boliviana que lhes pagam salários irrisórios e ainda criam situações de
endividamento e chantagem para ficarem presos numa situação típica do trabalho
escravo ou degradante.
O Governo Federal brasileiro, em sua Agenda Nacional de Trabalho
Decente, afirma ser uma de suas prioridades a promoção do Trabalho Decente como
condição fundamental para superar a pobreza, reduzir desigualdades sociais, garantir
um desenvolvimento sustentável e a governabilidade democrática no Brasil. Contudo,
as ações pautadas nesta Agenda necessitam de esforços conjuntos, em todas as
esferas do Estado, somando esforços com a sociedade civil, para que se consiga
erradicar o trabalho escravo em todas as suas formas. Trata-se de um problema que
atinge todo o mundo e necessita ser combatido firmemente pelo Poder público e
denunciado pela população sem hipocrisias.
Em nossas reflexões, partimos da ideia do trabalho decente para
contrastar a realidade triste ainda vivenciada por mulheres bolivianas (e outras vítimas
em todo mundo) que é o trabalho análogo ao da escravidão.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “o trabalho
decente é considerado como aquele adequadamente remunerado, exercido em
condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”.
Segundo entendimento do escritório da OIT (Organização Internacional do Trabalho),
“trabalho decente é um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições
de liberdade, equidade, segurança, sem quaisquer formas de discriminação e capaz
de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.” Estas duas
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definições se complementam ao que concerne o entendimento do trabalho que
emancipa e contribui para o desenvolvimento saudável e produtivo da pessoa
humana. Ambas podem ser levadas em consideração quando nos voltamos para a
questão da exploração de mulheres bolivianas em São Paulo. Principalmente, porque
a segunda definição inclui o termo discriminação bastante significativo nas relações de
poder do ambiente de trabalho ainda mais degradante para mulheres, negros,
indígenas e imigrantes.
Geralmente, as vítimas bolivianas têm seus documentos de identificação
(passaportes) retidos. Houve uma série de denúncias da Organização Não-
Governamental Repórter Brasil nos últimos anos para descoberta e fechamento de
locais onde exploradores de pessoas bolivianas ilegais as exploravam e as
chantageavam retendo seus passaportes, em São Paulo. Isto é asseverado pelo fato
de não possuírem o Direito legal à permanência no Brasil, apesar do CAMI estar
desenvolvendo várias ações para legalização de imigrantes em São Paulo.
Em março de 2013, segundo matéria publicada no site UOL, feita pelo
jornal Folha de S. Paulo (disponível
em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1251172-28-bolivianos-sao-resgatados-de-
oficina-de-costura-na-zona-leste-de-sp.shtml), o Ministério do Trabalho e Emprego,
durante fiscalização realizada na região da Zona Leste de São Paulo, desvelou mais
uma quadrilha que explorava grupo de bolivianos e bolivianas. Os auditores fiscais
encontraram os(as) estrangeiros (as) em um sobrado no Bairro Belenzinho, no
momento em que confeccionavam roupas das marcas Emme e Luigi Bertoli. A
empresa GED era a responsável mas se disse “enganada” ao contratar a prestadora
de serviços que explorava mão-de-obra boliviana no local.
Este trabalho em condições degradantes acontece, principalmente, no
contexto da indústria têxtil e suas terceirizadas (oficinas de costura de pequeno porte,
muitas clandestinas como a já mencionada). Todas estas empresas que exploram
mão-de-obra imigrante de diversas nacionalidades compõem a lista suja do trabalho
escravo identificadas nos Relatórios do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Em outubro de 2013, o site O Globo, apresentou uma notícia sobre o
estudo da Walk Free Foundation que criou o Índice de Escravidão Global,
classificando 162 países de acordo com a proporção de escravos contemporâneos em
relação à população. Inclusive, mencionou que o problema também atinge países ricos
como a Suíça e Suécia. Cerca de 29 milhões de pessoas estão escravizadas no
mundo, atualmente, segundo o relatório da fundação mencionada.
Neste ínterim, faz-se imprescindível refletirmos acerca das novas
configurações da Divisão Sexual do Trabalho, já que parte significativa das pessoas
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submetidas a trabalhos em condições análogas às da escravidão, no Brasil e no
mundo, são mulheres. Além das mulheres também ocuparem uma grande fatia dos
trabalhos informais e precarizados e encontrarem dificuldade para ascender em suas
carreiras profissionais em vários contextos de trabalho por não haver, sobretudo,
equidade salarial, respeito e valorização pelo trabalho que desempenham com afinco.
Neste ínterim, As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 109)
Por isso, as iniciativas a nível estatal que pretendem erradicar o trabalho
escravo ou degradante no Brasil consideram o recorte de gênero fundamental e
imprescindível para que se fortaleçam lógicas e práticas voltadas para o trabalho
decente e capazes de fomentar a igualdade entre trabalhadores e trabalhadoras. Mas
esta desigualdade no ambiente de trabalho é reflexo da desigualdade de gênero
presente na maioria das relações sociais e estruturada no seio da sociedade brasileira.
Por conseguinte, consideramos que as relações de gênero implicam
análises de relações de poder, no mundo do trabalho. Já que ainda não há equidade
salarial e de condições de trabalho entre homens e mulheres.
Sabemos que as categorias analíticas gênero e classe interagem e
contribuem para a opressão das mulheres na Divisão Sexual do Trabalho. E, neste
caso das mulheres bolivianas em São Paulo, esta opressão se materializa nos
produtos da moda que elas produzem em condições de trabalho análogas às da
escravidão.
É um desafio descontruir a lógica machista nas relações de trabalho e em
todas as relações que permeiam a sociabilidade, uma vez que isto interfere
diretamente na vida das mulheres, sobrecarregando-as de trabalho, desvalorizações e
pressões cotidianas que implicam relações de poder sempre desfavorecedoras para
elas.
Neste ínterim, consideramos imprescindível discutir a oposição simbólica
entre moda e trabalho escravo. A moda que tem sua Indústria a todo vapor em todo o
mundo, lucrando bastante na medida em que vende seus produtos (e a simbologia
impressa neles e suas marcas renomadas) provenientes de mão de obra escravizada
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de mulheres bolivianas em São Paulo, bem como de várias outras, de nacionalidades
diferentes noutras partes do globo, como, por exemplo, no Vietnã.
Mas como se dá esta oposição? De que forma a moda, que tem todo o seu
glamour expresso nos desfiles nos dias de hoje, oprime e explora mulheres mundo
afora?
Define-se moda, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,
como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, ideia, capricho e das interinfluências do
meio; uso passageiro que regula as formas de vestir, calçar, pentear etc. Arte e
técnica do vestuário; maneira, feição, modo. Esta palavra que a designa deriva do
francês MODE, que por sua vez, deriva do latim MODUS. Cujo significado é medida,
moderação, limite, maneira ou gênero. Em inglês, se diz “fashion” para falar em moda.
Ou seja, ela implica valores e não somente adornos ou vestimenta. Ou melhor, ela tem
a ver com o valor simbólico atribuído a estas peças de roupas, calçados e adereços
que são resultado de trabalho escravo.
Este valor simbólico dos produtos da moda está presente no imaginário da
sociedade e é alimentado pela própria moda, em seu sentido mais abrangente já
mencionado. Valor expressivo no mercado capitalista (e ao qual se atribui status social
– as bolivianas entrevistadas chamam “chique” usar roupas “de grife” e não
estabelecem ligação entre estas roupas caras que produzem e a exploração a que são
submetidas para produzi-las, de prontidão; apesar de sentirem na pele seus efeitos e
admitirem que, mesmo achando “lindas as roupas que são caras e que não podem
comprar”, são exploradas porque isto é visível/inegável nas suas vidas) que é
direcionado para marcas da moda patentearem.
Outrossim, podemos entender a moda atual como um sistema de
instituições e (...) Em este sentido, quero advertir que la moda no debe ser entendida como lo externo, lo material que envuelve um cuerpo (KONIG, 2002) sino como aquello que se erige como símbolo cultural a través de uma estrutura o sistema. Asi, mientras hacer ropa implica um processo de manufactura de objetos materiales, hacer moda estraña uma construccion ideologia (KAWAMURA, 2006). (GOMÉZ, 2008, p.4)3
Neste contexto, concebemos, assim, a moda como fenômeno social total
que emerge de lógicas de consumo e produção capitalistas, alimentados por imagens ,
símbolos e a comunicação destes através de mecanismos que expressam, em roupas,
sapatos e adereços, nos sujeitos, as diferenças e afinidades compartilhadas, as
3 Tradução livre: “Neste sentido, quero advertir que a moda não deve ser entendida como o externo, o material que envolve um corpo (KONIG, 2002) sim como aquilo que emerge como símbolo cultural através de uma estrutura ou sistema. Então, enquanto fazer roupas implica um processo de manufatura de objetos materiais, fazer moda envolve uma construção ideológica (KAWAMURA, 2006). ”
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hierarquias simbólicas (a luta de classes não escapa à moda) e desejos de
reconhecimento (nossas entrevistadas almejam ter “sucesso na vida” e isto implica
viver, morar, comer e se vestir melhor, “como pessoas ricas se vestem”).
Então, a placidez, a limpidez, a beleza estética, a importância pública e o
status social que a moda imprime nos sujeitos que a utilizam (há roupas para
determinadas classes sociais, porque a moda é uma camaleoa que se adapta para
vender seus produtos e suas ideias para pessoas com muito ou pouco poder
aquisitivo), a incorporam, costuma camuflar e desviar nosso olhar dos aspectos sujos
dos trabalhos escravos por trás dela. Assim, descola-se do caráter degradante do
trabalho que a produz gerando o seu próprio valor expressivo reprodutor de lucros em
mercadorias feitas de escravidão contemporânea e sangue imigrante.
Portanto, dizemos que a moda conota a esfera social e está entrelaçada
no imaginário coletivo com outras palavras como adorno, traje, vestido, estilo etc.
Remete a valores, normas, linguagem e enseja a distinção social e relações de poder.
Favorece a difusão de ideias implícitas nas suas mercadorias. O sistema da moda
implica bens materiais e sua lógica na produção e consumo destes. Ela expressa
diferenças e afinidades compartilhadas; desejos de reconhecimento e expressa
hierarquias simbólicas como já falamos.
Assim, a exploração das mulheres bolivianas através do sistema da moda
se dá também por meio de outras mulheres, estas de classes sociais mais
favorecidas, que consomem o construto ideológico da moda, materializado nos seus
produtos estilizados e dotados de valores simbólicos como: poder, felicidade, riqueza,
estilo, luxo, liberdade etc. Várias mulheres brasileiras (burguesas, de classe média e
até trabalhadoras) andam por aí vestidas com blusas costuradas em oficinas de
costura clandestinas de São Paulo, onde se lê “FREE”.
Nossas entrevistadas vivenciam a tripla jornada de trabalho na pele, como
a maioria das mulheres em nossa sociedade estruturada com relações machistas.
Trabalham exaustivamente nas oficinas de costura e continuam trabalhando ao
chegarem em casa. Isto quando não se trata daquelas que moram no ambiente de
trabalho e tem quase totalmente suprimidos os seus momentos de lazer.
Vale ainda ressaltar o machismo como entendimento equivocado de que
homens são superiores em relação às mulheres em nossa sociedade. Esta ideia se
converte em prática e oprime, violenta e massacra diariamente mulheres de todo o
mundo que, além de terem a responsabilidade de reproduzir a humanidade (e isto
significa que elas não têm opção e devem ter filhos e cuidar destes para que se
transformem em mais mão de obra para o capitalismo e seu mundo do trabalho) e
realizarem a manutenção dos lares. Isto se soma a infinitas jornadas que fazem da
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mulher trabalhadora (principalmente, quando também está inserida no mercado de
trabalho) escrava, já que sobram-lhe 15 min, em média para realizar uma atividade
que goste ou precise para se própria: o banho. Informação esta que pode ser
encontrada em pesquisas sobre mulheres brasileiras da Fundação Perseu Abramo.
Segundo pesquisa desenvolvida em 2011, com mulheres brasileiras, pela
mesma Fundação Perseu Abramo, a cada 2 minutos, 5 mulheres apanham no Brasil.
Este dado corrobora a realidade machista na qual a maioria das mulheres está
submetida, ainda nos dias de hoje, apesar dos avanços na luta das mulheres
desenvolvida pelos Movimentos Feministas presentes em diversos países.
Esta é a realidade vivenciada por nossas entrevistadas: são trabalhadoras
exploradas de diversas formas. Sentem a exploração, muitas vezes, vinda de todos os
lados, pois, após exaustivas horas de trabalho na oficina clandestina de costura, ainda
encontram tarefas domésticas à sua espera, quando chegam em casa e escutam seus
companheiros exigindo o jantar.
Neste sentido, o feminismo, enquanto corrente ideológico-política, tem
pautado, ao longo de décadas, a opressão de gênero nas relações de trabalho e nos
levado a refletir sobre os grilhões diários que asseveram a opressão das mulheres nas
bases da produção capitalista.
Em se tratando do papel social da mulher sob o olhar emancipador
contemplado nos eixos das políticas de Trabalho Decente: Se o primeiro e monumental empreendimento – a emancipação da humanidade e a criação de uma “associação livre dos indivíduos” – é um empreendimento dos homens e mulheres que trabalham, da classe trabalhadora, a emancipação específica da mulher em relação à opressão masculina é decisiva e prioritariamente uma conquista feminina para a real e omnilateral emancipação do gênero humano. À qual os homens livres podem e devem somar-se, mas sem papel de mando e controle.(ANTUNES, 2009, p.111)
Portanto, consideramos que o gênero, enquanto um dos marcadores
sociais da diferença (diferença essa que, no mundo do trabalho, acaba por se
configurar em desigualdades de oportunidade, de condições de trabalho, de
remuneração e outras opressões na vida de trabalhadoras exploradas), assevera a
exploração vivenciada pelas mulheres bolivianas que estão nas bases da Indústria
Têxtil brasileira e, por assim dizer, mundial.
Conclusão
Esta pesquisa buscou discutir o paradigma trabalho escravo na
contemporaneidade, atravessando-o pelo recorte de gênero e contrapondo-o à
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perspectiva do trabalho decente para refletir acerca das influências e impactos sociais
da moda na vida de mulheres bolivianas exploradas em oficinas de costura
clandestinas da cidade de São Paulo.
Nossa reflexão se construiu, sobretudo, a partir do canal de escuta aberto
com as mulheres entrevistadas para ouvirmos como estas percebem este paradigma,
como interagem, reagem e resistem às opressões no contexto dele.
As entrevistas foram realizadas entre Maio de 2013 e Abril de 2014, em
bairros da cidade de São Paulo (Brás, Bom Retiro, Pari e Centro), com dez mulheres
bolivianas vítimas do trabalho escravo em oficinas de costura da capital paulistana ou
que conhecem vítimas e/ou histórias destas. Ocorreram todas durante o dia. Três
entrevistadas responderam aos questionários nos fins de tarde.
O questionário4 semiaberto utilizado nas entrevistas é composto por três
perguntas filtro, quinze perguntas abrangendo a temática em questão, distribuídas
em três baterias:
Motivações para imigração ao Brasil
Vida e trabalho no Brasil
Relações entre trabalho e moda
A maior parte das entrevistas aconteceu na Praça Kantuta, no Bairro do
Pari. Sete entrevistadas responderam aos questionários em domingos, durante o dia,
no decorrer da festa boliviana que acontece, tradicionalmente, na praça mencionada.
Outras três foram encontradas no Centro Velho da cidade, estações Armênia e Brás
de Metrô.
Dentre as dificuldades que encontramos no trabalho de campo, é
imprescindível destacar a resistência das entrevistadas para responder às perguntas
sobre trabalho e o quanto foi complicado encontrar mulheres que aceitassem ser
entrevistadas. Foram necessárias várias idas a campo para conseguir realizar o
trabalho de pesquisa. Muitas delas se negavam expressando certo receio nos rostos
quando me aproximava e dizia estar realizando uma pesquisa sobre mundo do
trabalho.
Em A arte de pesquisar, a autora Mirian Goldenberg, diz que Como qualquer relação pessoal, a arte de uma entrevista bem-sucedida depende fortemente da criação de uma atmosfera amistosa e de confiança. As características pessoas do pesquisador e pesquisado são decisivas. (GOLDENBERG, 2011, p.90)
4 Matriz do questionário consta nos apêndices, para consulta.
13
Em média, as entrevistas aconteceram de forma descontraída. No começo,
as entrevistadas demonstraram ser pessoas reservadas, mas, aos poucos, foram se
abrindo e contando sobre suas vidas, respondendo para além do questionário.
Neste ínterim, as entrevistas nas quais mais houve entrosamento entre
pesquisador e entrevistada foram as mais reveladoras e expressivas. As mulheres
contaram, cada uma a sua maneira, como trabalham muito, se divertem pouco,
costumam cuidar de seus filhos e sonham em ter um lar e um emprego melhor. Suas
histórias de vida pulsavam a cada lembrança e as saudades da Bolívia vinham à tona,
timidamente. Houve entrevistada que disse preferir o Brasil porque “aqui é quente” e
“se vive melhor que na Bolívia”. As perguntas que envolviam trabalho foram
respondidas com bastante cautela pela maioria das bolivianas jovens. Estas, estando
por pouco tempo no Brasil, temiam que fossem divulgadas informações acerca de
seus trabalhos em oficinas clandestinas de costura.
Em Os Sentidos do trabalho, o sociólogo do trabalho, Ricardo Antunes diz
que A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de trabalho duplamente, dentro e foda de casa, ou, se quisermos, dentro e fora da fábrica. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer, no espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si própria(...) (ANTUNES, 2009, p. 108)
Quando indaguei acerca das motivações que as trouxeram para o Brasil as
respostas variaram mas tinham muitas semelhanças entre si.
Merece destaque o fato de que a entrevistada 1, de vinte e cinco anos, disse
que decidiu vir ao Brasil porque tinha “trabalho certo, aqui”. Isto nos leva a pensar
sobre quadrilhas internacionais que aliciam jovens bolivianas e de outros países,
prometendo emprego e vida melhor noutros países, mas , na verdade, levando-as
para trabalharem como escravas contemporâneas.
É perceptível que, como as entrevistadas não vislumbram oportunidades de
emprego e melhoria da qualidade de vida na Bolívia, elas imigram muito jovens para o
Brasil com o sonho de uma “vida melhor”. Sobre quanto tempo já residem no Brasil, as
entrevistadas destoam entre si:
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Em se tratando da entrevistada 2, de oitenta anos de idade, residente no
Brasil há sessenta anos, posso dizer que foi a entrevista mais emocionante de todas.
Esta senhora se dispôs, gentilmente, a conversar comigo e contar sobre sua
trajetória de vida, momentos difíceis e experiências com trabalho em oficinas de
costura. Ela mencionou que veio para solo brasileiro ainda criança, com a ilusão de
“ganhar dinheiro”, trazida pelos pais e teve de morar em quartinhos apertados que
ficavam próximos às oficinas de costura onde sua mãe costumava trabalhar. Contou
ainda que chegou a cantar, profissionalmente e ganhou dinheiro cantando, algo que
lhe deu condições para não depender somente da costura. Lindamente, ela cantou
algumas das músicas que costumava cantar quando jovem. Momento em que a
entrevista ficou com um tom mais intimista e, apesar do barulho em volta, a
sensação era de silêncio e concentração. Conheceu algumas mulheres bolivianas
donas de oficinas de costura, em São Paulo, que exploravam e exploravam mulheres
conterrâneas, sem dó nem piedade. Até apontou-me uma tenda onde estava uma,
rodeada por seus empregados também bolivianos. Disse ainda que essa prática é
comum, pois microempresárias bolivianas, às vezes, trazem gente conhecida,
diretamente, da Bolívia para trabalhar em suas “confecções”, assim ela chamava as
oficinas de costura clandestinas.
Mudar para o Brasil não foi uma escolha fácil para essas mulheres. Oito
das entrevistadas vieram ao Brasil trazendo filhos e/ou acompanhada de seus
companheiros. Quando chegam ao Brasil, enfrentam a dura realidade de
informalidade em trabalhos degradantes e a ilegalidade por não possuírem vistos de
permanência no país. A maioria se submeteu a trabalhar em oficinas de costura para
15
sobreviver e alimentar seus filhos, enquanto os companheiros buscam trabalhos em
lanchonetes, restaurantes, bares e tentam ser vendedores ambulantes.
5
Houve também entrevistas feitas na entrada dos metrôs Armênia e Brás,
onde circulam muitos(as) imigrantes bolivianos(as), diariamente. Neste lugar, menos
ainda as pessoas se dispunham a responder o questionário, passando fugidias. Com
persistência, consegui entrevistar 2 jovens bolivianas.
Morar no ambiente onde trabalha pode ser uma armadilha, no caso dessas
mulheres. Uma vez que a oficina de costura insalubre e clandestina pode se
transformar numa prisão da qual não se consegue sair. Somente 3 das entrevistadas
residem em seus locais de trabalho:
É inevitável perceber que há uma opressão advinda da desigualdade social
na vida destas mulheres. Ou seja, aí uma combinação entre gênero e classe social
5 Observação importante: na legenda desta gráfico, lê-se SIM=SÓ e NÃO=ACOMPANHADA.
80%
20%
Você veio sozinha ou com familiares para o Brasil?
sim não
30%
70%
Você mora onde trabalha?
sim não
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favorecendo, minuciosamente, a exploração e opressão das mulheres bolivianas, no
contexto das relações sociais de trabalho. Apenas uma mulher possuía casa própria e
as demais pagam aluguel caro em um quarto úmido, pequeno, sem espaço para criar
filhos e viver, dignamente, em São Paulo:
Vale destacar que apenas uma das entrevistadas não pagava aluguel. Ou
seja, além de refletir sobre a realidade de opressão de gênero a qual estão
submetidas (sendo maioria nas oficinas de costura clandestinas e desempenhada até
tripla jornada de trabalho, além de cuidar dos filhos) essas trabalhadoras bolivianas,
não podemos descolar este fato da classe social desfavorável que compõem.
Uma delas estava com a filha de dez anos de idade. Esta entrevistada 6
reside em São Paulo há dois anos, mora em um quarto de cortiço com a criança,
trabalha mais de doze horas por dia em uma oficina de costura clandestina que fica no
Bairro do Bom Retiro, mas gostaria de ser vendedora:
90%
10%
Você paga aluguel?
sim não
80%
20%
Você já trabalhou um dia inteiro ou mais de um dia sem descansar?
sim não
17
Mais da metade das entrevistadas conhecia ou sabia de alguém que já
passou por uma situação de trabalho escravo em oficinas de costura na cidade de São
Paulo:
Para discutirmos a moda, precisamos entende-la para além da sua
externalidade expressa no material que pode envolver um corpo (vestimenta, adorno
etc), mas sim apreendê-la como símbolo cultural que penetra o imaginário coletivo e
implica numa lógica de consumo complexa.
Para entender como a moda interfere nas nossas vidas e, em especial, na
vida das mulheres bolivianas entrevistadas é , todavia, percebê-la como conotação da
esfera social tomada pelo poder simbólico das mercadorias que ela produz;
entrelaçando-se no imaginário coletivo com outras palavras, tais como: traje, adorno,
vestimenta, estilo etc, e, influenciando-o a ponto de favorecer à difusão de ideias
implícitas nas suas mercadorias.
Esta moda enseja em si, em termos de nicho de mercado, a dominação de
classes à qual está submetida a população imigrante que produz e reproduz suas
lógica e mercadoria. E é intrínseca a esta mesma moda, enquanto produtora de
mercadorias, a luta de classes que se sufoca em meio às explorações da mão de obra
imigrante em vários países do globo. Podemos destacar a realidade vivenciada pelas
nossas entrevistadas amalgamadas a todo o escopo simbólico do mundo da moda.
Em O poder simbólico, Pierre Bourdieu, diz que “o poder simbólico é , com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles
que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”(BOURDIEU,
2002, p. 7-8).
60%
40%
Você conhece mais pessoas que trabalham, assim, sem descansar?
sim não
18
Compreender que a moda, no contexto do capitalismo não se resume,
simplesmente, a um hábito, uma maneira de se vestir, uma coleção de roupas que são
necessárias para nossos corpos que, então, ficariam nus se elas não existissem é
negar os valores, as normas e a distinção social que ela enseja, em suas relações de
poder. O sistema da moda, dentro do âmbito do mercado capitalista, implica bens
materiais. Antes, é claro, a lógica da produção e consumo destes. E é na cadeia
produtiva, no mais baixo escalão, que estão inseridas as entrevistadas desta pesquisa
e outras milhares de mulheres mundo afora.
Em se tratando ao fetiche das mercadorias produzidas pela moda que é
resultado da exploração da mão de obra barata de mulheres bolivianas no Brasil e de
outras mulheres de vários outros países do mundo, podemos dizer que À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Como valor-de-uso, nada há de misterioso nela, quer a observemos sob o aspecto de que se destina a satisfazer necessidades humanas, com suas propriedades, quer sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em consequência do trabalho humano(...). (MARX, 2011, p.92)
Atualmente, a moda é um sistema de instituições que se retroalimentam. Ela
expressa diferenças e afinidades compartilhadas; desejos de reconhecimento e
hierarquias simbólicas.
Há um abismo entre as trabalhadoras bolivianas escravizadas e a moda
com suas “roupas de grife”, escravizando mulheres de todas as classes sociais em
padrões de beleza e vestimenta. Esta distância aumenta cada vez que mais uma
mulher é explorada e, simultaneamente, mais uma filial de alguma loja de roupas se
abre, dando mais lucros ao mercado de vestimentas.
O fetiche em torno das roupas, mercadorias imprescindíveis para a indústria
têxtil brasileira, é introjetado a cada propaganda que é feita para promover
80%
20%
Você gosta de moda?
sim não
19
determinada coleção que emerge das subterrâneas oficinas de costura. Falo das
mesmas oficinas de costura que exploram e exploraram as entrevistadas desta
pesquisa. Ou seja, não há produtos se não existem escravas das classes sociais
rebaixadas pelo capitalismo, em São Paulo ou em qualquer outro país onde a lógica
do trabalho decente ainda não tenha conseguido erradicar trabalhos degradantes.
Falamos sobre os sentidos de trabalhar com as entrevistadas, sobre o
prazer com aquilo que se faz e perguntei a elas se usavam as roupas que faziam
maior parte do tempo de vida que tinham:
40%
60%
Você sabe quanto custa a roupa que você faz?
sim não
30%
70%
Você gosta de trabalhar com costura ou não tem outra opção de trabalho no Brasil?
sim não
20
Quando indaguei sobre o gosto pelas roupas que uma das entrevistadas de
27 anos de idade fazia, seus olhos até brilharam. Ela falou que trabalha com costura e
gosta disso. Já trabalhava com costura na Bolívia. Mas também, como várias outras
mulheres, não tem condições de comprar roupas caras e costuma “ir aos lojões do
Brás e comprar de camelôs as imitações das originais”. Apenas duas das
entrevistadas conseguiam comprar as “roupas originais”.
A entrevistada disse detestar trabalhar com costura e só faz esse trabalho
porque não tem opção. Acaba tendo que fazer outros “bicos” também, no único dia
que tem de folga (o domingo, quando vai à Praça Kantuta). Perguntei-lhe sobre as
“roupas de grife” que ela costurava, se sabia quanto custava uma peça, se as achava
bonitas, se gostaria de tê-las, se já havia visto desfiles de moda na TV com roupas
parecidas às que ela fazia, cotidianamente. As respostas foram interessantes:
Apesar de saber que leva muito tempo para fazer aquelas roupas e que são
vendidas a alto custo pelas lojas, metade das entrevistadas disse que adora as
20%
80%
Você usa as roupas que costura?
sim não
40%
60%
Você gosta do trabalho que faz?
sim não
21
marcas e que, como não pode comprá-las, vai a brechós e compra imitações delas.
Acham lindas os desfiles e veem muitos cortes parecidos com os seus. Disseram
ainda que adoram desfiles de moda e que já fizeram vestidos muito elegantes para
coleções de verão. Elas sorriram quando perguntei se algum dia sonharam em ser
estilistas ou modelos.
Em sua maioria, as entrevistadas foram simpáticas, responderam
solicitamente às perguntas, compartilharam suas lembranças de vida, mas se
recusaram a deixar contatos, exceto pela entrevistada 1.
Este trabalho de campo proporcionou um canal de escuta entre pesquisador
e entrevistadas. Através deste canal se pôde perceber as nuances e delicadezas de
quem vive submetida ao trabalho escravo contemporâneo e de que forma encara a
realidade na qual está envolvida, alimentando a indústria da moda com as roupas
produzidas em condições sub-humanas, mas resistindo, neste contexto, com
pensamentos, comportamentos e sensações contraditórias que refletem uma vida
confusa, mas em busca de paz e trabalho decente.
Portanto, foi necessário entender como a moda, enquanto produtora de
mercadorias fetichezadas pela lógica do mercado capitalista é concebida com a força
de trabalho escravizada destas mulheres bolivianas imigrantes; e, de que forma, ao
mesmo tempo, ela (a moda), de algoz, se transforma em sonho de consumo, com seu
valor de uso sublimado pelas vítimas que a alimentam de produtos de mão de obra
barata.
Por fim, consideremos, pois, que a moda exerce seu “poder quase mágico
que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica),
graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer
dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 2002, p.14).
Neste ínterim, as mulheres bolivianas entrevistadas disseram admirar as
roupas que produzem e querem possuí-las, abraçando o caráter simbólico destas,
inadvertidamente. Gostariam de consumi-las porque isto significa adquirir o status
50% 50%
Você já viu desfile de moda com roupas parecidas com as que costura, pela tv?
sim não
22
social que já não têm com o trabalho extremamente escravizador de seus cotidianos.
Ao invés de desenvolveram alguma rejeição às milhares de “roupas de grife” que
produzem, em cargas horárias exaustivas e ambientes de trabalho insalubres, vivem
alimentando seus fetiches em relação a estas mercadorias que produzem com muito
suor. Anseiam ascender socialmente para outra classe social e, desta maneira, terem
condições socioeconômicas para morar, comer e até se vestir melhor.
Quanto à moda que veem por aí, nos desfiles, nos shoppings, nos
programas de TV, elas consideram belas e “chiques”, mas só tem posses para adquirir
peças de imitação em brechós. Ou seja, a exploração de mulheres bolivianas em São
Paulo se alimenta também desta oposição simbólica escamoteada entre moda e
trabalho escravo. Precisamos, por isso, combater a lógica do trabalho escravo em
todas as suas nuances e articulações no âmbito da nossa sociedade fortemente
marcada pela opressão de classe e gênero capitalistas.
Apêndices RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
Estratégias metodológicas de pesquisa
MESES
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Levantamento, leitura e análise das referências bibliográficas; consulta a documentos oficiais sobre trabalho escravo e trabalho decente Definição do roteiro de entrevistas X X X X X X X X
Trabalho de campo X X X X X X
23
Entrevistas - aplicação dos questionários semiabertos (10) Coleta de notícias sobre casos de trabalho escravo no Brasil Elaboração de relatório de atividades desenvolvidas X X X X
Sistematização e análise de dados colhidos X X X X
Redação do artigo final X X X
Matriz do questionário semiaberto aplicado
24
Referências bibliográficas AENINGER, SOUCHAUD, Rosana y, Sylvain. Vínculos entre a Migração Internacional
e a Migração Interna: o caso dos bolivianos no Brasil. Organizado por la Comisión
Económica para América Latina y el Caribe, CELADE – División de Población, com el
apoyo y auspicio del Banco Interamericano de Desarrolho (BID). ONU: Brasília, 2007.
ALVES, Ubiratan Silva. Imigrantes Bolivianos em São Paulo: A Praça Kantuta e o
futebol. Tese de doutorado – UNICAMP, 2011.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação
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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5ª.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de
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subcontratação transnacional de força de trabalho boliviana para o abastecimento de
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GÓMEZ, Joan Jiménez. Tesina La moda y la classe social em la era del consumo.
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TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. São Paulo:
Sundermann, 2008.
26