Fundação do convento do desterro

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Fundação do convento do Desterro Desde março do ano de 1748, madre Jacinta começou a admitir algumas companheiras em seu retiro da chácara das Bicas, em Matacavalos (atual rua do Riachuelo), no Rio de Janeiro. Quando completaram o número de quatro, em 22 de outubro seguinte, com a entrada de Inácia Catarina, começaram a reza do Ofício Divino em coro, jamais interrompido desde então até hoje, segundo afirma a tradição. Persuadida de que o governador lhe havia de edificar o convento, mandou madre Jacinta pedir a Sua Senhoria Ilustríssima se dignasse conceder-lhe audiência. Gomes Freire de Andrade não lhe permitiu incomodar-se, foi à chácara. Entrou, olhou tudo e não pôde conter as lágrimas. Ao sair, disse a Jacinta: "Minha filha, intento fazer-te um convento." E sem demora pôs mãos à obra. Nos seguintes dias, indo visitar o bispo D. Antônio do Desterro, falou-lhe na vida tão louvável das devotas donzelas, e o prelado mostrou grande desejo de ver e examinar tudo. Ajustaram dia, e na carruagem do governador foram juntos à chácara. O bispo mostrou-se grandemente satisfeito e, ao terminar esta visita, combinaram que se encarregaria ele do Breve Pontifício e das licenças régias, e Gomes Freire cuidaria do material e da construção do convento. Era tanta a pobreza que nem assentos tiveram para um pouco de descanso; sentaram-se nos ladrilhos da escada, à saída, depois de terem visitado a casa. Apesar de seus grandes desejos de começar imediatamente as obras, foi o governador obrigado a adiar seu intento porque lhe ocorreu uma viagem a Minas no exercício de seu cargo. Antes de partir, entregou ao coronel Alpoim cem mil réis, e era o que possuía em dinheiro na ocasião, ordenando que, durante sua ausência, se fossem lavrando a conduzindo para a chácara da Bica os portais, degraus e mais obras de cantaria. De Minas, pouco depois, escreveu a Alpoim mandando que não desse começo à construção, pois se lembrara de que melhor situado ficaria o convento no morro do Desterro, junto à ermida, e por conseguinte esperasse sua volta. Ao chegar, significou o general à madre Jacinta sua intenção de transferir o convento para o Desterro e anexá-lo à ermida de Nossa Senhora. O nobre governador não impunha, mostrava apenas seu desejo. Jacinta consentiu. Logo o general, com a atividade e energia com que sempre procedeu, manda fazer os preparativos necessários e convida para lançamento e bênção da primeira pedra o bispo, que condescendeu e prestou-se a tudo, talvez com esperança de mais tarde realizar seus intentos, que eram fundar um convento de franciscanas e não de carmelitas. No dia 24 de junho de 1750 realizou-se com esplendor a cerimônia, ao som das salvas, formando em vistosa parada as tropas. A pedra fundamental foi colocada no lugar onde se construiu a portaria.

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Fundação do convento do desterro

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Fundação do convento do Desterro

Desde março do ano de 1748, madre Jacinta começou a admitir algumas

companheiras em seu retiro da chácara das Bicas, em Matacavalos (atual rua

do Riachuelo), no Rio de Janeiro. Quando completaram o número de quatro,

em 22 de outubro seguinte, com a entrada de Inácia Catarina, começaram a

reza do Ofício Divino em coro, jamais interrompido desde então até hoje,

segundo afirma a tradição.

Persuadida de que o governador lhe havia de edificar o convento, mandou

madre Jacinta pedir a Sua Senhoria Ilustríssima se dignasse conceder-lhe

audiência. Gomes Freire de Andrade não lhe permitiu incomodar-se, foi à

chácara. Entrou, olhou tudo e não pôde conter as lágrimas. Ao sair, disse a

Jacinta: "Minha filha, intento fazer-te um convento." E sem demora pôs mãos

à obra.

Nos seguintes dias, indo visitar o bispo D. Antônio do Desterro, falou-lhe na

vida tão louvável das devotas donzelas, e o prelado mostrou grande desejo de

ver e examinar tudo. Ajustaram dia, e na carruagem do governador foram

juntos à chácara. O bispo mostrou-se grandemente satisfeito e, ao terminar

esta visita, combinaram que se encarregaria ele do Breve Pontifício e das

licenças régias, e Gomes Freire cuidaria do material e da construção do

convento. Era tanta a pobreza que nem assentos tiveram para um pouco de

descanso; sentaram-se nos ladrilhos da escada, à saída, depois de terem

visitado a casa.

Apesar de seus grandes desejos de começar imediatamente as obras, foi o

governador obrigado a adiar seu intento porque lhe ocorreu uma viagem a

Minas no exercício de seu cargo. Antes de partir, entregou ao coronel Alpoim

cem mil réis, e era o que possuía em dinheiro na ocasião, ordenando que,

durante sua ausência, se fossem lavrando a conduzindo para a chácara da Bica

os portais, degraus e mais obras de cantaria. De Minas, pouco depois,

escreveu a Alpoim mandando que não desse começo à construção, pois se

lembrara de que melhor situado ficaria o convento no morro do Desterro,

junto à ermida, e por conseguinte esperasse sua volta.

Ao chegar, significou o general à madre Jacinta sua intenção de transferir o

convento para o Desterro e anexá-lo à ermida de Nossa Senhora. O nobre

governador não impunha, mostrava apenas seu desejo. Jacinta consentiu. Logo

o general, com a atividade e energia com que sempre procedeu, manda fazer

os preparativos necessários e convida para lançamento e bênção da primeira

pedra o bispo, que condescendeu e prestou-se a tudo, talvez com esperança de

mais tarde realizar seus intentos, que eram fundar um convento de

franciscanas e não de carmelitas. No dia 24 de junho de 1750 realizou-se com

esplendor a cerimônia, ao som das salvas, formando em vistosa parada as

tropas. A pedra fundamental foi colocada no lugar onde se construiu a

portaria.

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Começaram as obras ativamente. Tão grande era o empenho do governador,

que geralmente todas as tardes, às duas horas, subia ao Desterro a dirigir o

trabalho e também - é de supor - a construção definitiva do aqueduto, que

passava por baixo do convento. No dia 24 de junho de 1751, justo um ano

após o lançamento da primeira pedra, transferiram-se as recolhidas para o

novo convento, ocupando a casa reedificada, anteriormente habitada pelos

capuchinhos e anexa à ermida. Mais tarde tornou-se a casa do capelão(*).

Gomes Freire demoliu a fachada da primitiva ermida com sua entrada

principal e abriu no fundo do novo templo três janelas no coro de cima e

meias janelas para o de baixo, o que tudo fechou com grades de ferro, "como

hoje se vêem", diz o cronista, acrescentando que entre a casa e o coro havia

um passadiço ou corredor fechado e coberto, por onde as recolhidas podiam

servir-se dos coros.

Sofrimentos e contradições

Chegado de Roma o Breve para a fundação, com data de 5 de janeiro de 1751,

verificou-se com grande surpresa ter sido impetrado para religiosas de Santa

Clara e não de Santa Teresa. Não se conformando com isso as recolhidas,

determinou o bispo entregar o caso a uma junta composta dos mais eminentes

teólogos que então havia em sua diocese para que, a modo de árbitros, o

examinassem e dessem definitiva sentença.

Julgaram todos contra a aceitação do Breve. Nem com essa decisão renunciou

D. Antônio às suas idéias. À vista disto, o governador, por amor à paz,

conservou-se arredio e não mais insistiu com o prelado, sem contudo deixar

de presidir às obras do convento, que se iam adiantando debaixo de sua

direção.

Estava Gomes Freire em preparativos de viagem, tendo de partir para o sul,

como plenipotenciário na questão dos limites entre as possessões das coroas

de Portugal e de Espanha. Madre Jacinta teve então a idéia de ir pessoalmente

a Lisboa falar ao rei D. José I, e por seu intermédio, impetrar da Santa Sé

novo Breve para a fundação debaixo da regra de Santa Teresa. Tendo o

general passado ampla procuração, em 17 de fevereiro de 1752, ao

desembargador João Alves Simões - "nosso fiel amigo do coração", como diz

a Madre Jacinta -, partiu para as Missões do Sul em 19 de fevereiro.

__________

(*) Em 1810, estando essa casa arruinada, construiu-se outra para o Capelão.

Notícia histórica do Convento de Santa Teresa. Rio de Janeiro, Edições Cartas

Marcos, s.d. pp.12-13.