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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Fuga da promessa e nostalgia do divino: a antropologia de Dom Casmurro
de Machado de Assis como tema no diálogo entre teologia e literatura
Douglas Rodrigues da Conceição
São Bernardo do Campo, outubro de 2003
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Fuga da promessa e nostalgia do divino: a antropologia de Dom Casmurro
de Machado de Assis como tema no diálogo entre teologia e literatura
por Douglas Rodrigues da Conceição
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães Dissertação de mestrado apresentada em
cumprimento às exigências do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião,
para a obtenção do grau de Mestre.
São Bernardo do Campo, outubro de 2003
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães Presidente – UMESP
Universidade Metodista de São Paulo
______________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet UMESP
Universidade Metodista de São Paulo
______________________________________
Prof. Dr. Eli Brandão da Silva UEPB
Universidade Estadual da Paraíba
Dedicatória
“Aos meus pais, Jacira da Silva R. da Conceição e Ary Paulo da Conceição, cuja ausência
se fez dor em minha vida durante este ano. A vocês, eternos amigos, quero tributar este trabalho como prova do meu eterno amor e
gratidão... A dor que sinto na saudade é a certeza da
presença eterna de cada um de
vocês...”
Agradecimentos
- Agradeço incondicionalmente ao professor Antonio Carlos de Melo Magalhães pela oportunidade de ter recebido preciosas orientações durante a pesquisa.
Agradeço também por ter partilhado de sua amizade e beleza humana; e, sobretudo, por ter
estado ao lado de um brilhante teólogo.
- À Elaine da Conceição, minha esposa e companheira, por ter suportado minha ausência... Não imagino minha vida fora
da sua vida... Devo-te muito!
- Aos meus filhos Ramon e Júlia, porque neles encontrei inspiração para prosseguir.
-À Helena da Silva Santos, minha avó, por dedicar seu tempo a mim.
- Ao professor Etienne Alfred Higuet pelas palavras de força e afeto nos momentos
de angústia e solidão.
- Ao professor Lauri Emílio, pelo atencioso acompanhamento como coordenador e professor da pós-graduação em Ciências da Religião.
- Ao professor Carlos Sepúlveda, docente da UFRJ, pela
ajuda no início da caminhada.
- Agradeço à CAPES e ao IEPG pelas bolsas de pesquisa.
- Aos amigos Moisés Martins, Jorge Antonio, Ana Maria Fonseca (IEPG), Leia Alves (secretária da pós-graduação),Elton Mendes, Josias da Costa,
Manoel Moraes, Maria de Fátima Muniz, Andréa Pedro, Marco Antonio e Daniele Cristina,
pela força e carinho demonstrados. - Ao amigo Luiz Antonio, Bibliotecário chefe da Academia Brasileira de Letras, pela
confiança e amizade à primeira vista.
- Especialmente ao Deus desconhecido de Nietzsche, porque também é o meu Deus.
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Fuga da promessa e nostalgia divino: a antropologia de Dom Casmurro de Machado de Assis como tema no diálogo entre teologia e literatura. Dissertação de mestrado. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2003.
SINOPSE
A ocupação principal deste trabalho residiu no diálogo entre a teologia e a literatura, primordialmente no interior do romance machadiano Dom Casmurro. Esta dissertação preconizou a antropologia emergente no romance machadiano em questão, como lugar das reflexões de cunho teológico. Para pauta de discussões, foram trazidas obras referenciais, que se apresentaram como o estado atual da questão acerca do diálogo entre teologia e literatura. A sustentação teórica deste trabalho se deu com apropriações conceituais de Paul Ricoeur, Antonio Carlos de Melo Magalhães e Gerard Genette. Portanto, o objetivo deste trabalho se delimitou na demonstração das relações entre o Deus que se revela e o humano machadiano, a partir do caráter antropológico do romance Dom Casmurro. A promessa e o caráter paratextual do capítulo em que ela é narrada, conduziram todas as análises realizadas, que culminaram na observação do antropológico como tema central do romance. Defendemos que a quebra das relações estabelecidas entre o humano machadiano e o Deus da promessa estabeleceu a instalação de um mundo desencantado diante da existência e da realidade do protagonista do romance, Bento Santiago.
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Flight from the promise and nostalgia for the divine: the anthropology of Dom Casamurro de Machado de Assis as a theme in the dialogue between theology and literature. Dissertação de mestrado. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2003.
ABSTRACT The principle concern of this research resides in the dialogue between theology and literature, primarily in terms of the novel Dom Casmurro, by Machado. The dissertation takes the emergent anthropology in the machadian novel under consideration as a space of theological reflection. In terms of the general discussion, referential works are presented that describe the current state of the question regarding the dialogue between theology and literature. Theoretical support for the research is provided through the appropriation of concepts in Paul Ricoeur, Antonio Carlos de Melo Magalhães and Gerard Genette. Nonetheless, the objective of this research is limited to the demonstration of the relations between the God that reveals himself and the machadian human, based on the anthropological character of the romance Dom Casmurro. The promise and the para-texual character of the chapter, in that it is narrated, guide the analyses realized, which culminates with the observation that the anthropologic is the central theme of the novel. We defend that the rupture of relations established between the machadian human and the God of the promise, expressed in the existence and reality of the protagonist of the novel, Bento Santiago, established a disenchanted world.
Sumário INTRODUÇÃO.........................................................................................................10 CAPÍTULO I TEOLOGIA E LITERATURA EM DIÁLOGO: CAMINHOS E DISCUSSÕES
1.1. Tensões, convergências e fronteiras: o diálogo entre
a teologia e a literatura...............................................................................................13
1.1.2. Tensões entre teologia e literatura.........................................................16
1.1.2.1. Tensão entre teologia e literatura: Europa dos séculos XIX
e XX....................................................................................................17
1.1.2.2. A arte literária: inimiga da religião........................................20
1.2. “Deus no espelho das palavras”: possibilidades de aproximação........................23
1.2.1. Deus como personagem literário: uma leitura em Jack Miles..............23
1.2.2. Onde estão as verdades sagradas? Leituras em Harold Bloom.............27
1.2.3. A teologia nas redes da literatura: a antropologia nos romances de
Jorge Amado...................................................................................................30
1.2.4. Caminhos e métodos para o diálogo entre teologia e literatura:
leituras em Antonio Magalhães.......................................................................34
1.2.4.1 O método da correspondência: a proposta de “Deus no
espelho das palavras”.........................................................................38
1.3 A literatura machadiana diante do diálogo entre teologia e literatura..................41
1.3.1. Caminhos para um diálogo entre teologia e literatura..........................41
1.3.2. Os romances no diálogo entre teologia e literatura...............................42
1.4. Um pouco da arte romanesca machadiana...............................................45
CAPÍTULO II TEMAS E VOLTAS EM TORNO DA OBRA MACHADIANA: CAMINHOS PARA A ANTROPOLOGIA 2.1 Nota biográfica......................................................................................................47
2.2 Nos rastros Pascal: leituras em “A filosofia de Machado de Assis” de
Afrânio Coutinho........................................................................................................50
2.2.1 Pascal na literatura do mestre dos contos...............................................52
2.2.2 Pascal no texto de Machado?.................................................................53
2.3. A festa simbólica e a explosão antropológica na literatura machadiana.............58
2.3.1 A festa dos símbolos: Capitu como “belle dame sans merci”................61
2.4. A religião na obra machadiana ...........................................................................64
2.5. Caminhos para a antropologia ............................................................................67
2.51. Da ficção ao nível da referência: o mundo do texto em Paul
Ricoeur ...........................................................................................................67
2.5.2. Personagens: traços do antropológico ..................................................71
2.5.3. A promessa: os paratextos de Genette em ação....................................72
CAPÍTULO III NA LITERATURA UMA ANTROPOLOGIA: A DISCUSSÃO TEOLÓGICA EM DOM CASMURRO 3.1 Literatura, antropologia e teologia........................................................................75
3.1.1.Na ficção: a religião e o homem............................................................76
3.1.2. Notas antropológicas.............................................................................78
3.1.2.1.Um homem que se relaciona com Deus..................................78
3.1.2.2. Um homem que se relaciona com outros homens..................78
3.1.2.3. Capitu e Bentinho: seres que se amam...................................79
3.1.3. Notas preliminares................................................................................80
3.2. Entre a promessa e a vida: a negação de Deus....................................................81
3.3. As amarguras da vida: o silêncio de Deus...........................................................86
3.4. Um mundo caótico...............................................................................................90
CONCLUSÃO...........................................................................................................94 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................99
INTRODUÇÃO
A proposta de diálogo entre a teologia e literatura configura no mundo
contemporâneo as infinitas possibilidades de inter-relação entre os saberes. Portanto,
vivemos, hoje, um momento de nossa história onde a quebra e a substituição de
modelos e paradigmas tornaram-se cada vez mais constante.
No Brasil, o crescente espectro do debate entre a teologia e a literatura
demonstra a procura por estas interlocuções. Nos últimos anos tivemos,
sensivelmente, um avanço nas discussões acerca da interface teologia e literatura. É,
portanto, a partir desse encontro nostálgico entre elas, que ouvimos a ressonância das
convergências temáticas.
Temas que outrora eram tidos como de exclusividade da teologia, agora, são
vistos, a partir de uma outra perspectiva, no âmbito dos textos literários. Temas como
Deus, homem, fé e Igreja, ainda estão e sempre estiveram sob a égide das
interpretações da tradição teológica clássica, todavia, ao aproximarmos a teologia da
literatura, percebemos que estes mesmos temas, dentro do tecido literário, são
também de certa forma os intérpretes das muitas faces da realidade humana. Os
contos, os romances e as poesias revelam formas de estar no mundo.
Para a construção desse trabalho afirmaremos que a possibilidade de leitura
teológica de um texto – bíblico ou literário – dá-se no interior dos próprios textos.
Com isso, concebemos com muitas reservas o princípio da natureza divina da
linguagem.
O texto que será trazido para a pauta de discussões é o romance Dom
Casmurro, de Machado de Assis. Nosso pressuposto acerca desse romance, diante da
interlocução entre teologia e literatura, reside na afirmação do seu caráter
antropológico como ponte e mediação das análises teológicas.
No primeiro capítulo do nosso trabalho traremos algumas discussões que
representam o estado atual da questão acerca do diálogo entre teologia e literatura,
com a proposta de apresentar algumas contribuições e caminhos já traçados no
debate.
Primeiramente, demonstraremos uma situação exemplar dos conflitos entre
arte e religião e religião e arte, a partir do contexto europeu. Neste mesmo bloco
tentaremos, com a apresentação de alguns trabalhos produzidos no interior da crítica
literária norte-americana, discutir alguns pontos das correntes teológicas e literárias –
enraizadas em nossa tradição -, que se ocuparam com a cristalização dos temas
clássicos da teologia no interior dos textos bíblicos, como também a cristalização das
interpretações que fizeram dos textos literários um monopólio da crítica dos poetas e
escritores, respectivamente.
No segundo bloco, discutiremos a importância dos romances diante da
possibilidade de reflexão teológica a partir de uma obra literária. A partir desse ponto
traçaremos um caminho que deixará rastros na literatura, antropologia e finalmente
na teologia.
Portanto, para admitirmos a possibilidade de reflexão teológica a partir do
romance Dom Casmurro, afirmaremos que tal obra apresenta-se, diante do nosso
olhar, a partir de uma perspectiva temática. Perseguiremos a antropologia como tema
fundamental para as análises que empreenderemos no terceiro capítulo.
No segundo capítulo, intentaremos um diálogo com três representantes da
crítica literária machadiana, a fim de que a nossa compreensão da antropologia como
tema central em Dom Casmurro, seja vista como tema transversal na obra do autor
de Brás Cubas.
Neste mesmo capítulo traçaremos, com apoio teórico, o caminho que nos
conduzirá ao romance e ao tema fundamental no interior da obra. Para tanto,
buscamos o conceito de mundo do texto em Ricoeur; o conceito de valor teológico e
consistência teológica em Antonio Magalhães e, por fim, a idéia de paratextualidade
em Gerard Genette. Portanto, entraremos no texto a partir dos referenciais
anunciados.
No terceiro capítulo, dedicaremo-nos ao encontro entre o antropológico e o
teológico que se dá no interior do literário. Esse encontro dar-se-á pelo capítulo
intitulado A PROMESSA. A partir desse momento procuraremos demonstrar as
relações entre o humano e o Deus, como também as relações entre o Deus e o
humano.
Admitiremos que o Deus da promessa apresenta-se, do ponto de vista das
personagens, como o controlador e mantenedor do mundo e da vida dentro romance.
É, portanto, nos braços desse Deus que D. Glória entrega seu filho por ocasião de seu
nascimento.
Bentinho foi prometido à Igreja, todavia não quer cumprir o legado da
promessa de sua mãe. Em sua infância, Bentinho recorre sempre aos céus como
refúgio de seus pedidos a Deus. Esse menino sempre recebe das mãos de Deus os
seus pequenos pedidos, porém a cada pedido acumula dívidas com os céus, por não
pagar as ínfimas promessas.
Inclinados a ler o texto machadiano sob o aspecto da manutenção do mundo
organizado por parte Deus, defenderemos, portanto, que o romance recolocará em
cena um homem vivo; um homem que quer debruçar-se nos braços da vida e longe
das amarras da vida monástica. Este homem é o homem que decretou a morte do
Deus controlador; do Deus da Igreja; do Deus da promessa. Torna-se importante
entender que o romance Dom Casmurro dança conforme os acordes da modernidade
que se instalava no Rio de Janeiro do século XIX.
Por isso, buscaremos demonstrar que a morte Deus no romance desvela um
mundo desencantado diante da vida de Bentinho. As consternações da vida tornam-
se inevitáveis num mundo sem Deus. Bentinho é o sujeito que quer se achar num
mundo onde a presença do transcendente, enquanto sinônimo do Deus da Igreja, foi
substituída pela busca da felicidade.
Capítulo I
TEOLOGIA E LITERATURA EM DIÁLOGO: CAMINHOS E DISCUSSÕES
“Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição (vejam que digo poetas!), para que o falar sobre Ele preserve
a sacra irredutibilidade que sacerdotes e teólogos deixaram escapar de suas mãos.”
Kurt Marti, Carinho e dor, 1979
1.1. Tensões, convergências e fronteiras: o diálogo entre a teologia e a literatura
Seria pretensão de nossa parte tentar nas próximas linhas apresentar a história
e os fundamentos de separação entre teologia e literatura no Ocidente, pois tal
trabalho ultrapassaria os limites da nossa pesquisa. Somos capazes de afirmar que
consideramos intrínseca a relação entre elas1. Por isso, partiremos de um momento
onde é possível ver o reencontro entre teologia e literatura. Um reencontro marcado,
talvez, pela mesma nostalgia que o Odisseu carregou em seu íntimo por dez anos.
Hoje, ao observarmos a aproximação entre as fronteiras dos saberes e as
interlocuções entre os discursos das ciências, o diálogo entre a literatura e a teologia
marca sua presença. Teologia e literatura voltam a se encontrar, no cenário
acadêmico contemporâneo, na condição de interlocutoras.
1 O distanciamento que há entre teologia e literatura – visto que nossa preocupação primeira é uma tentativa de aproximação para uma possível reflexão teológica -, tem sua origem, para Antonio Magalhães, em Tertuliano, Agostinho e Jerônimo, posto que viam na filosofia uma importante interlocutora para a reflexão teológica. A arte e a religiosidade popular da época eram descartadas como possibilidades reflexão teológica. Os textos poéticos, ao contrário da revelação, nada mais são do que invenção humana ambígua; os poetas trabalham com a mentira como pressuposto fundamental por lançarem mão da aparência para dizer coisas relacionadas às verdades da vida. Esse recurso foi considerado uma forma de se distanciar daquilo que a palavra de Deus defendia como regra e princípio. Cf. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo, p. 57.
A teologia ao segregar-se das artes e do mundo ao longo da história acena
para os limites entre o sagrado e o profano; o secular e o religioso; literatura sacra e
literatura profana, ao circunstanciar a possibilidade de diálogo entre ela e a literatura.
A literatura tida como profana, inadequadamente, durante muito tempo, foi
concebida como a arte que só fala das coisas que não são verdades. Todavia, “a
verdade da literatura não pertence ao domínio do real histórico de sua trama. Ela faz
apelo à hermenêutica, à interpretação; o artista mostra, por sua obra simbólica, uma
certa compreensão ou interpretação da vida”2.
A nossa reflexão acerca da literatura, como ponto de partida obriga-nos a
admitir que ela, ao longo da história do Ocidente, teve diferentes usos e papéis.
Atribuíam, por exemplo, à literatura o papel de falar das coisas que não são verdade,
contudo cremos que a ficção ou a poesia - como expressões incondicionais da
literatura - recoloca em cena a vida, o homem vivo, com suas questões, seus sonhos,
seus problemas e seus sentimentos em face do mundo da natureza, em face dos
outros homens e diante de si mesmo.3
O autor de obra literária não pode simplesmente ser concebido como alguém
que detém procedimentos para produzir textos literários, mas, alguém que pode
despertar uma compreensão da existência humana no mundo. Diria Antonio
Manzatto:
“... podemos dizer que a verdade literária, a verdade que a literatura comporta, não é do mesmo gênero que a verdade histórica, mas sim da ‘verdade da história’, pois trata-se da compreensão do sentido da vida, do ser humano no mundo. Assim, mesmo uma invencionice, uma ficção, de certa forma uma mentira, pode ser o veículo de transmissão da verdade, ou de uma verdade, já que se trata aqui não de um conhecimento científico, mas da transmissão do sentido da vida: e isso pode ser feito através de uma narração, de uma história, de uma parábola.”4
Antonio Carlos de Melo Magalhães afirma que “o trabalho dos poetas e
autores, dentro do que passou a ser considerado como literatura, foi, quase sempre,
colocado na esfera da motivação estética e não da hermenêutica, servindo, portanto,
mais para momentos de fruição e devaneio do que para os de análise e reflexão.”5 A
2 Antonio MANZATTO. Teologia e literatura; reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado, p. 21. 3 Antonio MANZATTO, op. cit., p. 63. 4 Ibid., p. 23. 5 Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 49.
postulação de Antonio Magalhães recoloca uma outra questão crucial diante do
diálogo entre teologia e literatura: qual a concepção de literatura que se perpetuou em
nossa tradição? Não nos ocuparemos neste trabalho com esta problemática, mas
transitaremos por ela de maneira sutil.
Em resposta à pergunta sobre que conceito de literatura sobreviveu em nossa
tradição, Tzvetan Todorov diria que se chega mais facilmente a uma definição
funcional que uma definição estrutural do que seja literatura6. No Ocidente, as
definições de literatura são as que definem literatura em relação ao seu caráter de
ficção e à estética.7
Pensar a literatura dessa forma é, acima de tudo, reduzi- la a um mero objeto
serviçal dos homens; tanto para os que se ocupam com o labor da escrita, quanto para
os que se ocupam com o sabor da leitura. Portanto, poderemos perguntar o que é que
só a literatura e nenhuma teologia conceitual será capaz de dizer e expressar
eficazmente?8 Sabemos que a literatura mantém profundas relações com o belo,
contudo seu papel diante da vida não se reduz à esfera do devaneio e da estética.9 Na
literatura, a beleza e a verdade podem conviver, de tal maneira que uma não exclua a
outra.10
6 Cf. Tzvetan TODOROV, Les genres du discours, p. 15. Citado por Antonio Manzatto, op. cit., p. 15. 7 Antonio MANZATTO. Loc. cit. 8 Jean-Pierre JOSSUA; Johann Baptist METZ. Teologia e literatura (editorial). Concilium, p. 4. 9 Em oposição a essa concepção, concordamos com Antonio Manzatto quando diz que a literatura não fala somente apenas à razão, mas ao ser humano todo inteiro: compreende-se e sente-se o que o autor nos diz, vêem-se suas imagens, sentem-se cheiros e gostos ao ler uma obra literária. A literatura comunica-se coma razão e como os sentidos humanos. Por isso diz-se que ela não é feita para ensinar, mas para deleitar. Entretanto, ela busca também ‘sensibilizar o leitor, dando-lhe uma visão mais ampla dos problemas do mundo, uma vez que o compromisso da literatura é com a alma humana, porque a função artística é registrar a vivência do homem, com suas angústias, glórias e prazeres’. É exatamente nesse sentido que, diante de uma obra literária, tem-se vontade de dizer: ‘É verdade!’. Por sua coerência interna, essa obra torna-se convincente, não no sentido de persuasão retórica, mas como simples representação. Se é verdade que a arte não constitui como tal sem belo, da mesma forma o belo revela novas formas do ser e não se opõe necessariamente à verdade. Cf. Op. cit., p. 26. Sobre as questões acerca do conceito de literatura, cf. Terry EAGLETON, “Teoria da literatura: uma introdução”, p. 19. Citado por Eli Brandão. In O Nascimento de Jesus Severino no auto de natal pernambucano. Nesta obra, Eagleton retoma a complexidade do fenômeno literário, a fim de observar mais detidamente o que é especificamente o literário e o não literário. Essa dificuldade nasce do fato de muitas obras serem estudadas como literatura, todavia muitas outras não. Para se ter um conceito mais límpido do que vem a ser literatura é preciso, em primeiro lugar, definir o que é literário ou não. “Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta.” 10 Op. cit., p. 27.
1.1.2. Tensões entre teologia e literatura
As tensões entre teologia e literatura iniciam-se no centro do debate acerca da
natureza da linguagem. Por exemplo, o Cristianismo só aplica o princípio da origem
divina da linguagem aos textos canonizados. Dessa forma, os textos literários são
encarados como fantasias e falsificação. Os textos dos poetas, segundo a tradição
teológica, são tecidos dentro do discurso literário, ao passo que os textos concebidos
como sagrados foram “revelados” e por isso são textos oficiais e canônicos. Portanto,
é possível perceber que vários aspectos, sobretudo o aspecto religioso dos textos
considerados literários, foram rejeitados ao longo de nossa tradição.11
Vários caminhos poderiam servir de resposta a esta concepção, todavia Paul
Ricoeur afirma que por um movimento de transcendência, toda obra de ficção projeta
para fora dela mesma um mundo que se pode chamar o mundo da obra; assim a
epopéia, o drama, o romance projeta sob o modo de ficção maneiras de habitar o
mundo que ficam à espera de uma retomada pela leitura, capaz por sua vez de
fornecer um espaço de confrontação entre o mundo do texto e mundo do leitor12.
É neste ponto que residem os problemas de interpretação. É claro que não se
pode usar posturas hermenêuticas arbitrárias, todavia isto não que dizer que não se
possa desenvolver caminhos hermenêuticos “lógicos” e “éticos”, a fim de que estes
sirvam de objeto de exploração do mundo do texto, como também de chave
decifradora dos símbolos13 ali representados. Antonio Magalhães afirma que “o texto
literário não é uma mera reprodução da experiência, mas também não pretende ser
um sistema explicativo rígido, intocável e sobrepujador de novas experiências”. 14
A teologia como ciência 15 e como disciplina que dialoga com outras ciências,
não deixa de ser teologia, não perde sua identidade e não se deixa levar por serva de
outras ciências. O diálogo da teologia com outras ciências ou artes, não exige dela a
11 Críticas da estética à religião e críticas da religião à estética, cf. Karl-Josef KUSCHEL. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários, p. 13-21, sobretudo p. 23. Kuschel faz inicialmente uma avaliação da tensa relação entre religião e literatura a partir do contexto europeu, mais especificamente do contexto alemão. Para ele, ainda mais antiga que a tradição da crítica estética à religião é a crítica religiosa à arte, já cultivada da forma veemente pelos Padres da Igreja. Quanto à crítica teológica à estética, Kuschel aponta para o dinamarquês Sören Kierkegaard. A arte para kierkegaard não passaria de um jogo descomprometido sem seriedade existencial, um exercício estético sem ethos, poesia sem anseio de veracidade. 12 Paul RICOEUR. Tempo e Narrativa II, p. 13. 13 Tratando-se da literatura machadiana, antecipamo -nos em ressaltar a tese de Luis Marobin, livre-docente da UFRGS. Cf. Luiz MAROBIN. Símbolos, arquétipos e mitos em Machado de Assis, p.63-161. 14 Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 129 15 Sobre o conceito de teologia como ciência, cf. Antonio MANZATTO, op. cit.,p. 5.
perda de sua identidade. “O teólogo continua sempre teólogo e analisa, como teólogo
e a partir da experiência de fé, a importância teológica que podem ter os dados
científicos e artísticos”16.
A literatura, por sua vez, também mantém sua autonomia como arte17. Ela não
se diminui por emprestar seus temas às outras ciências. A literatura se interessa por
tudo que é humano, de tal modo que se pode dizer que a literatura é tão grande
quanto o humano.
As relações entre teologia e literatura podem desenvolver um diálogo que não
desconheça as diferenças e as identidades próprias entre elas, portanto, surge a partir
daí uma aproximação profícua. Tudo que é humano interessa à literatura, o mesmo
acontece com domínio religioso do homem. Deus, fé, Igreja, relações entre o homem
e Deus, que são objetos de análise teológica, também estão presentes nos textos
literários. Portanto, se há uma tensão histórica cultivada diante da possibilidade de
diálogo entre elas, as afinidades temáticas reavivam, a priori, uma possível
aproximação.
A seguir traremos à pauta de discussões um momento exemplar das tensões
entre teologia e literatura. A obra de Karl-Josef Kuschel, “Os escritores e as
escrituras: retratos teológico-literários”, indicar-nos-á este momento específico
dentro do contexto europeu.
1.1.2.1. Tensão entre teologia e literatura: Europa dos séculos XIX e XX
Se por um lado afirmamos que o problema da natureza da linguagem é a
causa do distanciamento histórico entre a teologia e a literatura, por outro lado
concordamos com Karl-Josef Kuschel ao destacar o século XIX como marco de
tentativa de reconciliação.
Em “Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários”, Kuschel
retoma, sobretudo no primeiro capítulo, o que denomina ser a tensa relação entre a
religião e a literatura. Ele afirma inicialmente que “já é lugar-comum afirmar que
religião e literatura encontram-se em uma relação de tensão constante e até mesmo
hostil, ao menos desde o fim da identidade entre cultura burguesa e cristandade.”18
16 Ibid., p. 39. 17 Ibid., p. 13. 18 Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 13.
O crítico alemão aponta o século XIX como o lugar primeiro das tentativas de
“reconciliação” entre teologia e literatura. Ele aponta para o movimento romântico
(inicialmente com Schlegel, Eichendorff, Brentano e Annete von Droste-Hülshoff).
Todavia, os esforços de fazer retroceder o processo de secularização (que marca a
época, segundo A. Schöne), e de restabelecer a religião cristã como elo obrigatório e
integrador para a unidade da cultura, fracassam – afirma Kuschel- não apenas os
românticos, mas também a segunda onda programática de “literatura cristã” na
primeira metade do século XX. 19
A preocupação fundamental de Kuschel está na análise das decorrências
pendentes da dicotomia cultural entre religião (cristianismo) e cultura (literatura).
Portanto, o trabalho deste teólogo alemão centra-se nas questões que vão da crítica
estético- literária à religião, como também em sua contra-mão: questões que vão da
crítica religiosa à estética. E para tanto, Kuschel elegeu como foco de leitura quatro
grandes autores: Gottfried Benn, Bert Brecht, Hermann Hesse e Reinhold Schneider.
Gottfried Benn, marcado por um certo tipo de pessimismo, traz consigo a
idéia de que Deus representa muito pouco enquanto princípio estilístico. Em um de
seus relatos biográficos, Benn expressa de forma latente a perda do que é metafísico,
sobretudo ao fazer alusão à Primeira Guerra Mundial. 20
Kuschel deduz o seguinte do pensamento de Benn: “(...) Deus, isto é, com
convicções religiosas e com piedade eclesiástica, não se pode fazer boa poesia.
Mente piedosa, comprometimento devoto? Eis aí o inimigo do bom estilo, a perda da
boa literatura.”21 Para Benn, arte é hoje a única forma possível de transcendência.22
O ambiente religioso que vivera Benn quando criança ecoa em seu íntimo,
todavia não oferece nenhuma resistência diante de sua crítica à religião. Para Benn,
apenas a arte permanece e cria comprometimento.23 Sistematicamente, poderíamos
dizer que Gottfried Benn é um dos autores que representam a crítica estético- literária.
19 Loc. cit. 20 ‘O homem interior em frangalhos, ainda mais esfarrapado que o exterior, por vermes e granadas: apodrecido, azedo, gaseado, e no emaranhado da bagagem algumas palavras oxidadas’... ‘Os deuses, mortos, os deuses da cruz e do vinho, ainda mais que mortos: mau princípio estilístico, quando a gente se torna religioso, abranda a expressão. Cf. Op. cit., p.17. 21 Loc. cit. 22 Essa foi a resposta de Benn por ocasião de uma pesquisa de opinião organizada por Harald Bauer sobre o tema “A fé dos literatos – depoimentos sobre a vivencia religiosa. Participaram dessa pesquisa (Döblin, Barlach, Claudel, Hesse, Thomas Mann, R. Rolland, e. Toller). Cf. Op. cit., p.18. 23 Op. cit., p. 19.
Suas analises expressam a perda das esferas religiosas diante da vida humana e
simultaneamente a substituição pela arte literária.24
Com intenção de comemorar o 65º aniversário de Alfred Döblin, reuniu-se
um grupo de artistas alemães. Entre eles estavam Thomas Mann, Helene Weigel,
Bert Brecht, Fritz Kortner e outros.
Döblin deixara de contar aos amigos que durante a perseguição nazista, deu-
se na catedral de Mende um encontro profundo com o crucificado. Döblin percebe
então que é chegado o momento de anunciar aos amigos e sob ao palco. Seu discurso
trouxe certa perplexidade entre os convidados. Brecht afirma: ‘E no final Döblin fez
aquele discurso contra o relativismo moral e a favor de parâmetros rígidos de
natureza religiosa, com que feriu os sentimentos irreligiosos da maioria dos que
estavam na comemoração.’25 Tempos depois Bert escreve o poema “Incidente
lamentável”:
“Quando um de meus deuses mais excelsos completou seu 10.000º aniversário Tratei e ir festejá- lo com meus amigos e alunos, E eles dançaram e cantaram diante dele e lhe declararam coisas escritas. Havia um clima bom. A festa chegava a seu fim. Foi então que o deus festejado subiu à plataforma que pertence aos artistas E declarou em alto e bom som Diante de meus amigos e alunos em suor Que ele havia padecido de uma iluminação e a partir de então Se tornara religioso e em um impulso incontrolado, Desafiador, colocou sobre a cabeça um chapéu de padre carcomido por traças, Caiu de joelhos sem pudor e entoou Desavergonhadamente uma canção religiosa e atrevida, ferindo assim Os sentimentos irreligiosos de seus ouvintes, entre os quais Também havia jovens. Há três dias Não ouso aparecer diante de meus amigos e alunos, Tamanha é minha vergonha.”26 Vale ressaltar as quatro postulações de Kuschel acerca do texto de Brecht:
24 O artista para Benn opõe-se ao mundo todo. Vive em um vazio impiedoso, o que também possibilita tirar a conclusão inversa: quem crê – no sentido religioso, eclesiástico – já terá encontrado consolo diante da impiedade do mundo, já terá conseguido um lugar quente e confortável para si, estará gozando de um estado de salvação cujo equivalente literário é a literatura edificante. Haveria uma alternativa? A resposta de Benn é a seguinte: a arte é hoje a única forma de transcendência. Cf. Op. cit., p. 18. 25 Cf. BRECHT, B., Arheittsjounal. Bd. II (1942-1955). Citado por Karl-Josef Kuschel, op. cit ., p. 20. 26 Cf. BRECHT, B., Gesammelte Werke, vols. I-XX. Citado por Karl-Josef Kuschel, op. cit., p. 21.
1. A linguagem religiosa utilizada neste texto serve apenas para escárnio do
próprio texto. Bert ridiculariza a religião por meio da linguagem religiosa;
2. Brecht subverte o interesse de Döblin ao professar sua experiência
religiosa, pois os ofendidos pela confissão são os irreligiosos. Os
irreligiosos constrangem-se em seu próprio silêncio, enquanto religioso
manifesta-se sem pudor;
3. Brecht não encara a atitude de Döblin como algo na esfera patológica.
Döblin é visto como mais um que pede rendição diante da cruz. A religião
é vista como uma fraqueza;
4. Por fim, o texto traz consigo, tardiamente, as conseqüências de uma
história drástica de distanciamento entre religião e literatura.27
1.1.2.2. A arte literária: inimiga da religião
Mais antiga que a tradição da crítica estética à religião é a crítica religiosa à
arte.28 A arte literária pode tornar-se eticamente recriminável, do ponto de vista
teológico, ao trazer para seu interior representações deturpadas daquilo que a religião
postula como verdade sagrada sobre o homem, Deus e outros temas.
Alguns aspectos biográficos de Hermann Hesse são exemplos da crítica
religiosa à arte. Hesse tinha uma tradição missionária pietista-protestante, e residindo
em Tübingen, escreve os relatos de sua vida à sua família. Fascinado pela literatura,
Hesse inicia uma fase de escrita. Goethe, Schiller e Heine compõem algumas de suas
leituras.
Ensaiando seus primeiros escritos, Hesse envia a seus pais o poema “A
grande Valse de Chopin”. Eis o poema:
“Um salão claro à luz de velas E o tilintar das esporas e o dourado dos galopes! Em meus pulsos o sangue ecoa. Minha garota entrega-me a taça,- E vamos à dança.A valsa burburinha. Meu espírito efervescente, acalentado pelo vinho, Deseja todo prazer ainda intocado.”29
27 Op. cit., p. 22. 28 Op. cit., p. 23. 29 Cf. HESSE, H. Kindheit und jugend vor Neunzehnhundert, vol II. Citado por K-J. Kuschel, op. cit., p. 24.
A reação familiar advinda do envio do poema culmina na indicação de uma
coletânea de poemas intitulada “De Deus para Deus – Canções de uma poetisa
popular da Suíça”, de autoria da senhora Regula Erb. A resposta de Hesse à
indicação da coletânea se traduz numa crítica à lírica religiosa.
“Deus esteja com a arte, mesmo que até os suíços comecem a descobrir poetisas populares! Essa atividade parece estar vivendo uma época de florescimento. E ainda mais a lírica religiosa! O campo mais movediço que conheço, um caso totalmente perdido. Quanto mais lírico, menos piedoso – e vice-versa! Os herrnhuteranos trataram de assinar esse gênero. Peço desculpas! Mas a lírica religiosa, e em especial a lírica religiosa não-eclesiástica, protestante e pietista, já é desde o início algo tragicômico – embora isso não deva invalidar as pérolas de poetas como Gerhardt e Claudius... entendo que meu poema sobre Chopin não os agrade. Ele não tem nada de famoso. Mas o que Wagner para Nietzsche, Chopin o é para mim – ou talvez inda mais. Tudo essencial em minha vida anímica está ligado a essas melodias quentes e vivazes, a essa harmina picante, lasciva e nervosa, a toda essa música de Chopin, extraordinariamente íntima.”30
A mãe de Hesse, Marie Hesse, sente-se afrontada com os escritos do filho,
todavia não quer vê-lo mais longe. A carta escrita por Marie Hesse, em resposta ao
filho, expressa o reverso do poema de Brecht em relação ao pronunciamento de
Döblin. Portanto, este documento que apresentaremos a seguir, representa a
dicotomia entre religião e literatura, numa realidade pietista cristã, que acima de
tudo, conservou as críticas sobre a arte irreligiosa arrastadas por séculos.
“Seu julgamento sobre a lírica piedosa é muito severo. Mas isso não me deixa aborrecida; também não tira de mim o que já pude usufruir, nem o que ainda usufruo com abundância – graças a Deus! Esses poemas não foram escritos para que o mundo os admirasse; neles os sentimentos vêm do coração à boca, e neles os sons consagrados a Deus estão à disposição dos que aqui esperam, como estrangeiros e peregrinos, sem poder contentar-se com o que o mundo tema oferecer em termos de arte e sabedoria; eles são melodias da terra de origem. Pode até ser que os poemas de Gerhardt, Tersteegen, Arnold, Claudius, Hiller, Richter, Spitta, Woltersdorf e Zinzendorf tenham mesmo suas imperfeições na expressão e na forma, mas não o maná diário de minha alma. E se um dia for entoada lá no alto a canção de Moisés ou do cordeiro, então também eu espero poder cantar nesse coral com voz afinada. Isso será maravilhoso! Por enquanto, posso alegrar-me com cançõezinhas mais modestas, balbuciadas pelos filhos de
30 Cf. HESSE, H. “Brief an Johannes e Marie Hesse”, de 25-27/ 9/ 1897, in Kindheit und Jugend ..., op. cit., p. 205. Citado por K-J. Kuschel, op. cit., p. 25.
Deus. Creio com firmeza que as canções de Gerhardt e de Tersteegen fizeram um bem maior ao mundo do que as obras de Goethe, Schiller ou Shakespeare, ainda que eu também as tenha em conta como boas dádivas de Deus.”31
A clareza do documento acima reside numa leitura que prioriza alguns pontos
de interlocução. Segundo Kuschel, a postura fundamental diante do texto deve ser a
de considerar sensivelmente a existência de um mundo dividido em dois: de um lado
estão os filhos de Deus, num espaço da alma e dos sons desejados por Deus; do outro
lado estão arte e a sabedoria do mundo, criados para se admirar.32
Entende-se, de forma subjacente, a importância do segundo mundo para o ser
humano. O mundo transcendente é colocado em primeiro lugar, pois a verdadeira
glória está à espera do homem. As verdadeiras canções são a de “Moisés” e a do
“Cordeiro”. 33
À arte não é atribuído nenhum valor em si, posto que nada tem valor em si
neste mundo. A arte é um mero instrumento para alimentar a caminhada durante a
peregrinação do povo cristão devoto. Por isso, a arte dispensa qualquer esplendor.
Diante de Deus – verdadeira determinação do ser humano – a arte se vê radicalmente
relativizada.34
Somente a partir de uma convicção piedosa se pode relativizar tudo nesta
Terra em favor de Deus. É a partir desse principio que se contrapõe as canções
cristãs às obras de arte de autores como Goethe, Schiller e Shakespeare.35
Se para poetas como Benn e Brecht Deus era considerado ‘um péssimo
principio estilístico e a fé religiosa de um artista revela-se como um grande inimigo
da boa literatura, quem crê considera o bom precipuamente irrelevante e a arte uma
ameaça á fé mais profunda.36 Percebemos em Kuschel a preocupação em demonstrar
uma linha de tensão entre literatura e religião que por sua vez nos remete ao antigo
problema das origens da linguagem.
31 HESSE, M. “Brief an Hermann Hesse”, de 3/10/1897, in Kindheit und Jugend..., op. cit., p.207. Loc. cit. 32 Op. cit., p. 26. 33 Loc. cit. 34 Loc. cit. 35 Op. cit., 26-27. 36 Op. cit., p. 27.
1.2. “Deus no espelho das palavras”: possibilidades de aproximação
Nosso interesse neste ponto reside na proposição de fatores que podem ser
considerados como elos ou intersecções entre teologia e literatura. Partimos,
portanto, da seguinte afirmação: se as tensões entre teologia e literatura aguçam as
dimensões de seus mundos é porque há entre elas pontos convergentes, e ao mesmo
tempo, uma recusa em reconhecê- los. A teologia não quer ceder à literatura o seu
poder de falar sobre Deus, porém a literatura quer falar sobre Ele, e ao fazer isso
pode assumir o potencial de teologia.
Destacaremos algumas obras que substancialmente contribuíram para a
visualização de caminhos. Algumas obras não trataram diretamente do diálogo
teologia e literatura, mas apontaram questões fundamentais ao debate.
1.2.1. Deus como personagem literário: uma leitura em Jack Miles
Jack Miles37 em seu livro intitulado “Deus. Uma Biografia”, declara a
possibilidade de escrever “a vida do Senhor Deus como protagonista – e apenas isso
– de um clássico da literatura mundial; a saber, a Bíblia Hebraica ou Antigo
Testamento”38. A preocupação de Miles não está na tarefa dos historiadores, que
consiste em apresentar os rastros dos fatos, nem tampouco na dos filósofos ou
teólogos, mas na investigação literária da personagem central do Tanach, Deus,
considerando primordialmente sua biografia polifacética.39
Portanto, o trabalho de Miles não tem interesse filosófico, como o de negar a
existência de Deus, ou um interesse meramente teológico, assumindo a necessidade
de provar sua existência, mas o aspecto literário da Bíblia hebraica que apresenta
imagens de Deus, buscando então a essência estética dessa criação literária.
Jack Miles ocupa-se com a representatividade que esse personagem possui
diante do imaginário ocidental. A narrativa bíblica abriga o caráter ambíguo da
personalidade de Deus. Este longo trecho nos ajuda a entender um pouco mais o
trabalho de Miles:
37 Jack Miles é jornalista e editor-contribuinte da Atlantic Monthly e colaborador do New York Times. Ex-jesuíta, estudou na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e na Universidade Hebraica, em Jerusalém. É Doutor em línguas do Oriente Médio pela Universidade de Harvard. Foi professor titular da Universidade da Califórnia. 38 Jack MILES. Deus. Uma biografia, p.21. 39 Miles diz o seguinte: “Não procurei, como a teologia, afirmar nada de original sobre Deus enquanto realidade extraliterária. Cf. Loc. cit.
“A apreciação religiosa da Bíblia coloca como foco central e explícito a bondade de Deus. Judeus e cristãos adoram Deus como origem de toda virtude, fonte de justiça, sabedoria, misericórdia, paciência, força e amor. Mas implícita e perfeitamente foram se acostumando - e depois, ao longo dos séculos, também se apegando - a algo que podemos chamar de ansiedade de Deus. Deus é, como procurarei demonstrar neste livro, um amálgama de diversas personalidades num único personagem. A tensão de diversas entre essas personalidades faz com que Deus seja difícil, mas faz também que seja atraente, e até mesmo viciante. Ao emular conscientemente suas virtudes, o Ocidente assimilou de modo inconsciente essa tensão entre unidade e multiplicidade. No fim das contas, apesar do desejo que os ocidentais às vezes manifestam de um ideal humano mais simples, menos ansioso, mais ‘centrado’, as únicas pessoas que achamos satisfatoriamente reais são aquelas cujas identidades contêm diversas subidentidades aglomeradas num todo. Quando nós, ocidentais, procuramos nos conhecer pessoalmente, é isso que procuramos descobrir uns sobre os outros. Na cultura ocidental, a incongruência e o conflito interno não são apenas permitidos, chegam quase as ser exigidos. Pessoas meramente capazes de desempenhar vários papéis não correspondem a esse ideal. Elas têm personalidade – ou um repertório de personalidades – mas não têm caráter. Pessoas simples sem complicações, que sabem claramente quem são e assumem um papel determinado sem relutar, também não correspondem a esse ideal. Podemos admirar sua paz interior, mas no Ocidente jamais as imitaremos. Centradas ou centradas demais, elas têm caráter, mas pouca personalidade. Entendiam-nos como nós mesmos nos entenderíamos se fôssemos como elas. (...) A Bíblia insiste na unidade de um Deus mais que qualquer outra coisa. Deus é a rocha das idades, a integridade em pessoa. E, no entanto, esse mesmo ser combina diversas personalidades. Mera unidade (caráter apenas) ou mera multiplicidade (personalidade apenas) seriam bem mais fáceis. Mas, ele é ambas as coisas e assim a imagem do humano que dele deriva exige ambas as coisas. É estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo. Muitas objeções podem ser feitas a seu respeito e já houve várias tentativas de melhorá- lo. Muitas coisas que a Bíblia diz a seu respeito raramente são pregadas no púlpito porque, se examinadas mais de perto, seriam um escândalo. Mas, mesmo que só parte da Bíblia seja ativamente pregada, nenhuma de suas partes é contestada.Em qualquer página da Bíblia, Deus continua sendo o que sempre foi: o original da fé de nossos Pais, cuja imagem ainda vive dentro de nós como um ideal secular difícil mas dinâmico.”40
Este autor apresenta um problema entre o Antigo Testamento Cristão e
Tanach: a ordem do cânon. Para Miles tais obras são diferentes por não apresentar o
40 Ibid., p. 16-17.
mesmo modo de disposição textual. Miles afirma que sendo a ordem um elemento
crucial em termos literários, no caso, ela determina a distinção entre o Tanach e o
Antigo Testamento Cristão: enquanto neste ocorre um movimento que vai do silêncio
e do silêncio para o discurso; naquele opera-se um diferente movimento que vai da
ação para o discurso e do discurso para o silêncio.41
Eli Brandão fala da ordem do cânon cristão questionada por Miles
estabelecendo a seguinte comparação: “ supondo que fossem colocados em um só
volume os textos literários “Vidas secas” (Graciliano Ramos); “O quinze” (Raquel
de Queiros); e morte e “Vida Severina” (João Cabral de Melo Neto) e não fizesse
entre eles uma tal amarração literária da qual se derivasse um hipertexto...”42
Convicto de que o Tanach forma uma unidade literária, Miles ao longo dos
capítulos prossegue tecendo comentários com base na própria história de Israel,
procurando demonstrar a diversidade dos textos e a instabilidade do caráter do divino
e não do seu caráter imutável.
Apesar de suas afirmações acerca do Tanach e do Antigo Testamento, Miles
acredita que é possível falar de dois clássicos em vez de um, dadas as semelhanças
entre essas obras no que diz respeito ao seu protagonista. Vamos às palavras de
Miles:
“A ordem dos dois cânones importa, mas o simples fato de a ordem ser idêntica nos primeiros onze livros formativos indica que desde a juventude até o começo da idade adulta, por assim dizer. O Senhor Deus é compreendido da maneira idêntica no Tanach e no Antigo Testamento. Só em meia-idade e velhice é que ele é compreendido de maneira diversa (...) Mas não resta a menor dúvida de que o personagem, o próprio Deus, é mesmo em ambos os casos.”43
Percebemos que Miles estabelece, de certa forma, uma tensão positiva ao
processo de aproximação entre teologia e literatura. Se por um lado percebe-se que
há textos literários que abrigam temas fundamentais da fé, e que há um avanço nas
pesquisas que confrontam teologia e literatura por esse caminho, por outro lado
Miles apresenta o texto bíblico - o único sagrado no ocidente -, como um aglomerado
de textos arrumados, atribuindo- lhes então uma forma literária. Miles não apresenta
41 Ibid., p. 28. 42 Eli BRANDÃO, op. cit., p. 25-26. 43 Jack MILES, op. cit., p. 32.
uma proposta de dessacralização do texto bíblico, mas uma leitura da controvertida
personalidade do Senhor Deus.
Se nos permitirmos estabelecer comparações entre as manifestações acerca da
temática teologia e literatura no contexto europeu e norte-americano, concordamos
com Antonio Carlos de Melo Magalhães ao apresentar diferenças focais acerca do
debate. Para Magalhães, ao contrário do contexto europeu, os símbolos da fé – diante
da crítica norte-americana – são em grande parte, resultado da criatividade literária e
sensibilidade estética dos autores tornados canônicos pela Igreja44. Afirma
Magalhães:
“Se na escola européia a luta se dá para preservar a autonomia da literatura em relação à teologia, no contexto norte-americano, a tentativa é de colocar as bases da fé cristã nos marcos não da tradição cristã e do dogma eclesiástico, mas da produção literária, da beleza poética, da operosidade estética e da construção dos estilos literários refinados...”45
A obra de Miles representa uma importante contribuição ao debate entre
teologia e literatura sem que tivesse esta temática como pressuposto fundamental.
“Deus. Uma biografia” revelou conclusões positivas às discussões mais atuais sobre
o debate. Concordamos mais uma vez com Eli Brandão quando ele afirma os
seguintes pontos em torno da obra de Miles, como focos de discussão do tema
abordado: A retomada da figura de Deus como personagem e como figura humana;
O tratamento dado ao Tanach como texto literário; a tentativa de redefinir a
literatura; a tentativa de elaborar uma biografia de Deus; Por fim, análise
antropológica do personagem Deus.
Diante de Miles colocaremos alguns questionamentos, que por sua vez,
servirão de reflexão em nosso trabalho, todavia sem preocupação de tentativa de
resposta aqui: É possível ler e analisar textos sagrados como literários sem que isso
retire das comunidades de fé a dimensão sagrada desses textos? Há de forma
determinante uma distinção entre o que é literário e o não- literário?
44 Antonio MAGALHÃES, op. cit ., p. 46. 45 Ibid., p. 46-47.
1.2.2. Onde estão as verdades sagradas? Leituras em Harold Bloom46
Dos críticos norte-americanos, Harold Bloom ocupa a cadeira da erudição.
Em seu trabalho intitulado “O Cânone Ocidental”, Bloom intenta uma análise de 26
escritores, cujo foco é a apresentação das justificativas que os transformaram em
escritores canônicos da literatura. O centro do cânone é ocupado por Shakespeare.
Em “A angústia da influência: uma teoria da poesia”, o erudito autor
estabelece uma crítica com a finalidade de desidealização daquilo que tornou
normativo acerca do processo de influência e formação entre escritores.47
Todavia, é em “Abaixo as escrituras sagradas” que Bloom formula certas
postulações que nos interessam aqui. Um dos problemas abordados por ele toca mais
uma vez no que se denominou, no ocidente, literatura secular e literatura profana.
Bloom inicia o primeiro capítulo de sua obra estabelecendo uma espécie de
confronto entre dois autores fortes48: J e Homero.49
“O autor primacial J, mais antigo do que seu ilustre rival, a hipótese de Homero, constitui uma diferença que produziu uma diferença avassaladora sobredeterminando em demasia a todos nós – judeus, cristãos, mulçumanos e leigos. J contou histórias; assim também fez Homero.”50
Bloom aponta um problema quando concedemos a J ou mesmo a Homero, o
lugar de destaque entre os escritores, pois para ele avaliamos Dante e Chaucer,
Cervantes e Shakespeare, Tostoi ou Proust, com relação a estes padrões de medida.51
Dessa forma, Bloom estabelece, por exemplo, uma pequena comparação entre Tostoi
e Homero:
“Guerra e paz e, ainda mais, Hadji Murad, o pequeno romance em que o velho Tostoi retornou ao teatro militar de sua Juventude, oferece-nos algo próximo ao senso homérico dos homens em luta, com movimento variável entre o combate individual e as operações militares em grupo. Excluem os deuses homéricos e a luta homérica entre deuses e homens.”52
46 Harold Bloom nasceu em 1930, é professor de humanidades em Yale, colaborador do New York Review of Books e do Times Literary Supplement. 47 Harold BLOOM. A angústia da influência: uma teoria da poesia , p. 55. 48 Idem. Abaixo as verdades sagradas, p. 16. 49 Queremos deixar claro que as postulações que Harold Bloom não tem como preocupação primeira o estabelecimento de um diálogo entre teologia e literatura, porém não podemos desconsiderá-las, posto que discutem, em seus interstícios, questões fundamentais ao debate. 50 Loc. cit. 51 Loc. cit. 52 Loc. cit.
Nesta mesma linha, Bloom afirma que compartilhamos com J o governo do
cosmos por Iahweh, todavia, lamenta o fato de excluirmos de J a ironia radical que
encontramos em certos momentos, como por exemplo, em Kafka.53 Concordamos
com Harold Bloom na seguinte postulação:
“O simples fato de representar Iahweh é, de qualquer modo, o maior exemplo dessa sublime ironia e levanta permanentemente a insolúvel questão estética da poesia e da crença. Eu próprio não acredito que a secularização seja em si um processo literário. O escândalo é a obstinada resistência da literatura imaginativa às categorias do sagrado e do secular. Caso queiram, pode-se insistir que toda grande literatura é secular, ou então, se assim o desejarem, que toda poesia forte é sagrada. O que acho incoerente é a opinião de que determinada arte literária é autêntica é mais sagrada e secular do que alguma outra. Poesia e crença vagueiam, juntas e separadas, num vazio cosmológico marcado pelos limites da verdade e do sentido. Em algum ponto entre a verdade e o sentido pode-se encontrar, empilhado, um terrível acúmulo de descrições de Deus.”54
Ao retomar os pilares da cultura literária ocidental (a literatura grega e a
literatura hebraica), Bloom estabelece de forma implícita uma retomada do problema
que transita entre o sagrado e o profano, todavia, nosso erudito escritor, parece
apresentar uma espécie de métodos de leitura, que conduziram as interpretações e
leituras dos textos clássicos da nossa fo rmação literária. Portanto, vemos que mais
uma vez coloca-se em pauta as questões hermenêuticas.
Retomando o problema das representações de Iahweh, Bloom admite jamais
ter lido de algum crítico da Bíblia a descrição precisa de como J cuidou de nos
oferecer uma representação de Iahweh. Para o crítico norte-americano, Iahweh foi
criado por J, mas não o inventado. As representações de Iahweh feitas pelo Eloísta,
ou pelo escritor sacerdotal, ou pelo Deuteronomista, ou pelos profetas – diz Harold
Bloom – que todas são divergentes.55
Há, sobretudo, nas análises dos textos clássicos do Ocidente, o problema das
tradições que os interpretaram ao longo dos séculos. As histórias de Iahweh nos são
tão familiares que não podemos lê-las em outro sentido. Isto para Harold Bloom
53 O que excluem de J – diz Harold Bloom - é uma ironia radical, diversa de quase qualquer outra ironia, que encontro também em Kafka. Essa ironia não é nem o contraste ou a distância entre a expectativa e a insatisfação, nem afirmação de coisa enquanto se tem outra em mente. É ela a ironia do sublime hebraico de J, em que realidades incomensuráveis se chocam e não se podem deslindar. Cf. Loc. cit. 54 Ibid., p. 17. 55 Loc. cit.
afirma nossa filiação a uma tradição que nunca pôde assimilar a originalidade dessas
histórias.56
Ao apresentar de forma breve certas compreensões que Nietzsche teve da
leitura dos Evangelhos e da Ilíada57, Bloom faz menção ao ponto de vista de Simone
Weil e surpreende-se com a leitura feita por ela. Para Bloom, Weil leu uma Ilíada
muito diferente daquela lida por Nietzsche e, segundo ele, preferiu essa à Bíblia
Hebraica. O juízo de Weil – diz Bloom – termina por cristianizar a Ilíada, por basear-
se numa desleitura como o “poema da força”. Bloom admite não ser um estudioso
dos clássicos, mas afirma que nuca encontrou uma representação do espírito humano
na Ilíada. Na concepção de Bloom, a leitura de Weil remete-se à característica
conceitual do ruach adonai, o espírito do sopro do senhor, insuflado pelo Iahweh de
J nas narinas da figura de Adão. Como autor e crítico esclarecedor de Homero,
Bloom elege Bruno Snell. A pretensão de Bloom em analisar e estabelecer
comparações Homero e J – o que é a proposta do segundo capítulo de sua obra -,
bem como observar em primeira mão outros críticos que se ocuparam com a questão,
apresenta uma conclusão que, de certa forma, favorece nosso pensamento acerca das
categorias texto sagrado e texto profano. Bloom afirma que se restituirmos Aquiles
ao lugar de herói da Ilíada tal como foi lida por Snell, Dodds e Fränkel, então
consideraremos absoluta sua supremacia estética, ultrapassando em muito até mesmo
o esplendor do Davi II Samuel, o José de J ou ainda o Jacó de J. O peregrino Dante e
as personagens de Chaucer e de Shakespeare serão as primeiras representações do
humano que desafiarão o imenso phatos de Aquiles, a um tempo metade criança e
metade deus. Todavia, afirma Bloom: J, embora insólito e um tanto afastado de nós
por três mil anos de revisionismo normativo, sem dúvida não é completamente
estranho para nós. Homero o é, e isso constitui sua maior força poética.58
A partir das postulações de Bloom, percebe-se também que não podemos
falar em normatividade de interpretações somente a partir dos textos considerados
sagrados, mas também a partir dos considerados textos profanos. Se por um lado os
textos bíblicos, tidos como sagrados, tornaram-se de uso exclusivo da Igreja, por
outro lado vemos também que os textos, tidos como profanos, tornaram-se
propriedade dos críticos literários.
56 Op. cit., p. 19. 57 Harold Bloom afirma que Nietzsche continua sendo o melhor guia para o confronto entre as culturas grega e hebraica. Cf. Op. cit., p. 41. 58 Cf. Op. cit., p. 43-49.
Portanto, essas discussões nos convidam a investigar o tamanho da razão que
cada poeta, autor ou crítico tem acerca dos nossos textos, posto que somos frutos de
uma riquíssima tradição literária. Tudo isso - quer seja no texto considerado laico,
quer seja no texto sagrado - nos instiga cada vez mais a procurar o(s) rosto(s) de
Deus.
O trabalho de Bloom, conforme já dissemos, não tem como tarefa principal
aproximar teologia e literatura. Todavia, a obra em questão recoloca de forma
expressiva os conflitos de interpretação acerca dos textos considerados sagrados e
dos que são considerados profanos. Sua obra esclarece que a normatividade das
interpretações não está somente no domínio eclesiástico, mas também sob o domínio
da crítica literária. Se por um lado os textos Bíblicos são tidos como canônicos pela
Igreja, por outro lado somente alguns textos tidos como profanos fazem parte do
cânone da crítica literária.
1.2.3. A teologia nas redes da literatura: a antropologia nos romances de Jorge Amado
O trabalho de Antonio Manzatto denominado “Teologia e literatura: reflexão
teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado”, constitui
uma importante contribuição para o diálogo entre teologia e literatura.
Estruturada em três partes, “Teologia e literatura”; “Uma antropologia
literária” e “Uma reflexão teológica”, a obra de Antonio Manzatto procura
estabelecer os caminhos necessários para que seja possível, a partir da literatura
romanesca, visualizar o teológico. Ele retoma os conflitos históricos que permitiram
a distinção entre a literatura dita cristã e a literatura dita profana. Todavia, para
Manzatto tal distinção torna-se irrelevante, pois os objetos de suas análises são o
conjunto daquilo que se forjou como literatura. “Tanto a literatura cristã como a
atéia, ou ainda aquela que professa uma outra religião, têm algo em comum que faz
com que elas sejam chamadas e reconhecidas como literatura.”59
Nota-se em Manzatto uma preocupação em buscar, mesmo que a partir de
consensos, uma definição tanto para teologia quanto para a literatura. Para ele, no
Ocidente, as noções mais difundidas são as que definem a literatura em relação ao
seu caráter de ficção e à estética. Contudo, memora-se de Todorov ao dizer que se a
59 Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado, p. 13.
literatura é de ficção não constitui uma definição, mas uma lembrança de suas
características, que nem cobre o conjunto dos gêneros literários, já que poesia, por
exemplo, pode não se definir em relação à ficção.60
O trabalho de Antonio Manzatto tem como objeto de trabalho o romance
“Tenda dos Milagres”, cujo tema central trata do preconceito racial e a
miscigenação. Contudo, Manzatto antecipa-se em dizer que “Tendas dos Milagres”
não traz apenas uma abordagem do problema de raças, mas também problematiza o
combate pela liberdade, sem a qual nenhum homem é plenamente humano.61
O centro do trabalho de Antonio Manzatto está na afirmação de que os
romances por serem essencialmente antropológicos, tornam-se um solo fértil para
análises de questões teológicas. “É, pois, o caráter antropológico da literatura que é
importante para a teologia.”62
A justificativa que Manzatto encontra para seu trabalho de reflexão teológica
a partir da literatura reside nas exigências de não se fazer uma teologia abstrata.
Critica-se – diz Antonio Manzatto – uma teologia separada da experiência religiosa
da comunidade crente. Uma teologia longe da experiência de fé da comunidade seria
tão-somente uma “teologia erudita” que não se nutre da vida, mas de si mesma.63
Portanto, para Antonio Manzatto, a experiência de fé não se faz
independentemente das outras experiências humanas e da cultura: ela se faz, sempre,
em um contexto determinado. Mesmo se a literatura fala do imaginário, ela o faz
partindo do real vivido, da experiência, como já foi dito, afirma Manzatto.64
Antonio Manzatto busca na Teologia da Libertação a situação exemplar para
esta forma de conceber a teologia como algo ligado às dimensões reais e da vida e da
experiência religiosa. Para Manzatto, a vida humana concreta tem, assim,
importância para a reflexão teológica. Por isso, a Teologia da Libertação é em si uma
reflexão teológica contextualizada, que busca dar respostas às questões apresentadas
à fé pela realidade sócio-econômico-política do continente Latino-americano.65
Mesmo fazendo opção por uma tendência teológica que privilegia a mediação
sócio-analítica para a compreensão do real, como a Teologia da Libertação,
concordamos com Manzatto ao dizer que a literatura guarda seu interesse e sua 60 Cf. Tzvetan TODOROV. Les genres du discours, p. 15, citado Por Antonio Manzatto, op. cit ., p. 15. 61 Antonio MANZATTO, op. cit., p. 116. 62 Ibid., p. 69. 63 Ibid., p. 68. 64 Loc. cit. 65 Ibid., p.46-47.
importância para a reflexão teológica, já que as ciências também são limitadas e não
são capazes de ver tudo. A literatura – afirma Manzatto – pode ajudar a preencher
esse vazio deixado pelas ciências e assim ajudar na reflexão teológica.66
Talvez aqui seja possível entender o porquê de Manzatto conceber a teologia
como ciência67. Sendo a teologia ciência, ela não tem a capacidade de captar na
totalidade as dimensões da vida humana. Por isso, busca a literatura como
interlocutora, a fim de que esta preencha as lacunas deixadas pelas análises parciais
da teologia e das outras ciências. Portanto, percebemos que é necessário para
Manzatto admitir que a teologia é ciência, que se associando à literatura, potencializa
seu efeito analítico-reflexivo da realidade.
Quando Manzatto faz a pergunta pelo antropológico dentro de seu estudo, ele
encontra, então, o homem vivo, situado na vida, pronto para viver sua vida,
intensamente e a cada dia, na liberdade de construir seu destino. Para Manzatto, a
antropologia não parte de generalizações ou abstrações, mas do real, ou seja, do
homem em situação de vida. Particularmente, acerca do homem amadiano, manzatto
afirma que:
“A antropologia amadiana mostra-nos uma certa compreensão do homem, sobretudo do homem brasileiro, simples e pobre, com características que o faz pôr-se em busca da libertação e de felicidade. A teologia, que fala quem é Deus para o homem, deve ser capaz, segundo sua missão, de anunciar a boa nova do Evangelho de salvação e de libertação para esse homem sem, com isso, descaracterizá-lo. Em outras palavras, trata-se de levar a sério o homem apresentado por Amado e de ver, então, como a teologia pode responder às questões sobre Deus que são mencionadas por esse homem.”68
Não podemos negar a erudição com qual Antonio Manzatto desenvolveu as
reflexões teológicas a partir da antropologia amadiana. Ele dialogou com as mais
ricas fontes européias que se ocuparam com o tema teologia e literatura. Temos de
ressaltar também que seu pioneirismo marca os estudos acerca do tema no contexto
latino-americano.Todavia, há algumas questões que gostaríamos de ressaltar acerca
de seu trabalho.
Concordamos com Antonio Magalhães ao afirmar que o trabalho de Antonio
Manzatto parte de um princípio teológico já definido e delimitado, através da
66 Ibid., p. 92. 67 Cf. De forma mais detalhada, op. cit., p. 38-39. 68 Ibid., p. 10.
tradição da Igreja. A questão do divino já tem sua resposta, mesmo quando mediada
pela rica pluralidade teológica que se pode ter a partir do antropológico. Dessa
forma, não há uma necessidade se criar novos meios para o diálogo, com a finalidade
de reavaliar os chamados temas centrais do cristianismo. Esta postura dá-nos a idéia
de que a teologia já tem suas respostas definidas e o papel da literatura seria o de
mediar melhor as verdades já existentes.69
Concordamos também com Eli Brandão ao afirmar que a opção de Manzatto por
uma definição de teologia mediada pela ciência e sua conseqüente definição do que é
e de quem faz teologia o conduz à limitação do uso da literatura apenas como lugar
teológico, mais especificamente, lugar antropológico de onde a teologia retira o seu
interesse.70
Pensamos que a literatura pode assumir o potencial teológico enquanto narrativa
e expressão humana da realidade, mesmo que no nível da referência. E ainda,
pensamos que ela – ao assumir um potencial teológico – pode por si só, sem passar
pela mediação teológica da Igreja, reapresentar os símbolos e temas da fé cristã, que
por sua vez foram aprisionados dentro do domínio eclesiástico.
69 Cf. Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 92-93. 70 Cf. Eli BRANDÃO. O Nascimento de Jesus Severino no auto de natal pernambucano. Tese de doutorado, op. cit., p 49.
1.2.4. Caminhos e métodos para o diálogo entre teologia e literatura: leituras em Antonio Magalhães
“Uma indicação do zelo da verdade é fato de que ela não traçou para ninguém uma trilha até ela,
e não privou ninguém da esperança de alcançá-la, deixando as pessoas correndo nos desertos da
perplexidade e se afogando nos mares da dúvida; e aquele que pensa que a atingiu dela se afasta,
e aquele que pensa que se afastou dela perdeu seu caminho. Portanto, não há como alcançá-la
e não há como evitá-la: ela é inescapável.”
Texto de Naguib Mahfouz, In. Deus no espelho das Palavras de Antonio Magalhães.
Nos últimos anos tivemos, sensivelmente, no Brasil, um avanço nas
discussões acerca do diálogo entre teologia e literatura. Alguns trabalhos merecem
destaque por trazer à baila importantes questões em torno do tema. Antonio
Magalhães, em sua obra “Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em
diálogo”, trouxe-nos importantes contribuições, pois preocupou-se em oferecer os
fundamentos do diálogo entre teologia e literatura.
Em suma, o trabalho de Antonio Magalhães tem como preocupação primeira
a discussão e a problematização daquilo que se constituiu como conhecimento acerca
do debate entre teologia e literatura. Ele dialoga com os principais autores que se
ocuparam com discussão em pauta e ao mesmo tempo desenvolve críticas e
considerações acerca de suas obras, enquanto que outros autores brasileiros – como
Antonio Manzatto e Waldecy Tenório - desenvolveram trabalhos de caráter
hermenêutico. Magalhães retoma, de forma detida, em sua obra, as escolas que
desenvolveram as críticas literárias à religião, no contexto europeu, norte-americano
e latino-americano 71.
71 Magalhães traz à pauta das discussões a importância de Pedro Trigo e Luis N. Rivera Págan para o debate entre teologia e literatura dentro do contexto latino-americano. Um dos aspectos ressaltos por Magalhães é o fato de Pedro Trigo ter apontado a ausência de temas considerados cristãos nos primeiros romances latino-americanos. E dessa constatação surgem duas hipóteses: a primeira consiste em no fato de a Igreja estar realmente ausente dos processos de transformação social e a segunda deve-se ao caráter liberal e positivista dos autores. A obra que Trigo elege como a de maior expressão é o romance Huasipungo (1934), do equatoriano Jorge Icaza. Nesse romance a religião é vista como ideologia, assim como o conceito de pátria. A religião foi interpretada especialmente na sua função alienante e compensação simbólica das carências materiais. Nesta obra a imagem de Deus estaria vinculada ao padrão branco. Ao clérigo caberia o
Antonio Magalhães é categórico ao afirmar que o cristianismo é uma religião
do livro.72 Esta primeira postulação feita por Antonio Magalhães consiste, noutras
palavras, em afirmar que o poder de influência e de sobrevivência do cristianismo,
através dos séculos, pode ser tributado, em grande parte, aos efeitos que tiveram seus
textos escritos sobre a civilização ocidental. E alguns desses textos alcançaram o
status de canônicos.
Esta afirmação traz consigo alguns rastros do que será proposto como “o
estar” entre a teologia e a literatura. Portanto, afirma Antonio Magalhães, que essa
característica de ser religião do livro e, por isso, ser literatura, é com certeza uma das
mais importantes do Ocidente, coloca uma questão hermenêutica central para a
teologia cristã, advinda da própria relação intrínseca entre cristianismo e literatura:
“Se por um lado, a escolha de uma seleção de livros com status de canônicos foi
responsável por uma teologia que tentou se guiar pelos seus escritos, por outro, a
questão da canonicidade jamais será entendida, nem pela teologia nem pela literatura,
como limite das interpretações.”73
No primeiro capítulo de sua obra, Antonio Magalhães traz discussões acerca
das reflexões da crítica literária norte-americana e européia. Seus representantes são
Harold Bloom, Jack Miles e Bert Brecht respectivamente. O diálogo proposto por
Antonio Magalhães procura, em síntese, o melhor caminho para o “confronto” entre
a teologia e literatura. Ele apresenta os pontos de tensão do diálogo ao apresentar as
críticas que tais autores fazem sobre a religião. Bloom e Miles apresentam os textos
bíblicos como produção literária. “Assim, Deus não é somente criador, mas criatura;
não somente origem, mas também produto final; não somente autor, mas
personagem.”74
Ao elaborar suas reflexões acerca dos trabalhos produzidos nos EUA,
Antonio Magalhães aponta algumas considerações acerca das postulações da crítica
literária norte-americana.
1. Magalhães acredita que há uma espécie de concorrência entre teologia e
literatura, entre religião e arte, entre estética literária e ética religiosa.
papel de proteger o patrão, o branco, e o de alienar os índios. A literatura neste caso serve como denúncia da realidade social e também, a partir da leitura de Pedro Trigo, temos a percepção do papel da religião nos romances latino-americanos. Cf. Antonio MAGALHÃES, op. cit ., p 75-93. 72 Ibid., p. 5. 73 Ibid., p. 8. 74 Ibid., p. 33.
2. Esta atitude diante da teologia ratifica a necessidade de se criar critérios
diferenciados entre teologia e literatura. Se por um lado a teologia não
pode ser determinada na sua reflexão pelo campo literário, por outro lado
a literatura não pode estar sob quaisquer tipos de domínio eclesiástico.
3. A literatura não deve ser serva do dogma da Igreja para narrar princípios
considerados teologais, nem a teologia deve perder-se em tentar ser
somente narrativa religiosa.
4. A literatura deve manter-se como algo que pode refletir a complexidade
da existência humana.75
Um dos importantes momentos da obra de Antonio Magalhães está nas
discussões em torno da leitura teológica da obra literária. Para ele, esta é a primeira
grande possibilidade de aproximação entre teologia e literatura. Mesmo a literatura
monacal dialogou com o mundo de seu tempo, diz Antonio Magalhães. “Todos os
pais e mães da Igreja, nos primeiros séculos de cristianismo, prepuseram-se a
estabelecer com seus adversários e com os seus simpatizantes um diálogo a partir de
seu horizonte de fé.”76
Vemos nas postulações de Antonio Magalhães a necessidade de retomar um
pouco da história do cristianismo. Isto tem uma certa relação com as tensões, que até
hoje, rondam o diálogo entre teologia e literatura.
Magalhães aponta um método, cujo objetivo seria estabelecer possibilidades
de leitura teológica de uma obra literária.
1. Identificação e problematização dos temas que emergem na obra literária
como centrais, por meios de suas formas, seus estilos e suas
interpretações. Nesse processo de identificação, há o estudo atencioso das
diversas maneiras como os mesmos temas foram tratados pelo mesmo
autor ou em livros afins no caso de pertencerem a mesma escola literária.
Isso requer do método teológico um conhecimento considerável não só da
obra escolhida como objeto material, mas também das tendências da
escola à qual o texto pode ser incluído. O texto literário é visto como
amostra da realidade humana e, como tal, não possui aparentemente
75 Ibid., p. 46-47. 76 Ibid., p. 188.
consistência teológica, sem que seja negado o valor teológico, que ele
possui.77
2. O segundo aspecto do método teológico pauta-se nos horizontes da
tradição considerada normativa, sem que isto implique uma distinção
entre teologia católica ou teologia protestante. Aqui a teologia estaria
obrigada a se engendrar numa linguagem viva e dinâmica, considerando
todo os elementos da fé estabelecida no passado. Outro ponto está no
olhar da teologia sobre a literatura como interpretação da realidade
humana. O primeiro aspecto nos garantiria uma espécie de revisão
teológica das verdades estabelecidas pela Igreja. No segundo, há uma
tentativa de transformação dos conteúdos que foram cristalizados pela
teologia normativa.78
Para Antonio Magalhães o Deus que emerge dessa visão cristalizadora é
aquele que dá respostas via teologia normativa. Portanto, deixa de ser presença para
se tornar conceito, descarta o espelho aonde o envelhecimento dos anos vai-se
tornando nítido e dando lugar ao retrato 3x4, em preto e branco, do sistema teológico
endurecido pelos jogos de poder institucional e pelas fabricações lingüísticas que a
tradição, do passado da história, quis eternizar para todos os seus amanhãs.79
Há uma importante advertência que devemos considerar ao submeter um
texto literário à leitura teológica. Em primeiro lugar não podemos elevar os textos
literários ao lugar dos textos tradicionais da fé, pois estaríamos “forjando um
encontro marcado pela desigualdade.”80 Tal dessimetria pode ocorrer se
considerarmos, por exemplo, que a revelação separa a ação de Deus da compreensão
humana. Dessa forma, teríamos os textos tradicionais da fé interpretando, enquanto
que os textos literários seriam apenas objetos de análises. Para Magalhães, o
problema da teologia eclesiástica é que ela se esquece de que os elementos
considerados norteadores pela tradição são elementos a mais dentro da linguagem e
da história. Ela é um ponto de partida para a teologia, mas não o único.81
77 Ibid., p. 190. 78 Antonio Magalhães esclarece que tais propostas são caminhos possíveis para a relação entre teologia e literatura, porém questionáveis. Cf, op. cit., p. 192. 79 Loc. cit. 80 Ibid., p. 194. 81 Loc. cit.
1.2.4.1. O método da correspondência: a proposta de “Deus no espelho das palavras”
“O reconhecimento da correspondência é também um pressuposto para o reconhecimento de que o
Deus que adoramos e nomeamos tramita no espelho das palavras. Nenhuma palavra é mera
realização de outra. Palavras se correspondem na força da experiência, na precisão do alcance da
nomeação e na coragem de escrever sobre o mistério de nossas vidas.”
Antonio Magalhães. In. Deus no espelho das palavras:
diálogo entre teologia e literatura.
Das muitas particularidades que apresenta a obra de Antonio Magalhães,
“Deus no espelho das palavras”, queremos aqui ressaltar o que ele denomina de
método da correspondência. As primeiras pontuações apresentadas pelo teólogo
anunciam as sensíveis diferenças entre método e metodologia. “A confusão entre
metodologia e método é uma das maiores afrontas ao conhecimento nos últimos
anos.”82 A metodologia – diz Antonio Magalhães - é mais uma técnica de como de
como fazer. No método, encontramos as linhas hermenêuticas, os interesses da
existência, os referenciais da aproximação, o anseio da descoberta, a inspiração de
vida profunda.83
O método proposto por Antonio Magalhães pode ser inicialmente confrontado
como o chamado método da correlação84. Se no método da correlação há uma
dinâmica pressuposta entre pergunta e resposta, na correspondência parte-se do
princípio de que essa relação precisa ser radicalmente superada na teologia e que
precisamos encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual, seguindo o
conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de um conjunto são
associados um ou mais elementos de outro. Em suma:
“Numa formulação mais voltada para o mundo da teologia, a cada elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição teológica, podem ser associados um ou mais na literatura mundial. A cada narrativa considerada compreensão da fé, há que se
82 Ibid., p. 204. 83 Loc. cit. 84 Sobre o método da correlação, cf. op. cit., p. 142.
associar outra dentro da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade considerada fonte de fé, há que se associar outra na experiência das pessoas e nas interpretações literárias.”85
No centro do método da correspondência, destacaríamos o seu caráter
dialógico, pois a teologia não entra na relação de forma suprema e preserva-se a
alteridade da literatura.86 Mantém-se, portanto um “equilíbrio” entre tradição
teológica e literatura. Para Antonio Magalhães “abrir mão da Bíblia e da tradição
seria ufanismo literário e desconhecimento dos aspectos performativos da religião e
da fé das pessoas. Mantê- las como referenciais únicos de análise, aferição e juízo
sobre a vida das pessoas significa não sair do claustro teológico da Igreja.”87
Por se tratar de um método – adverte Antonio Magalhães - a correspondência
não se propõe a ser um meio de verificabilidade da relação entre teologia e literatura,
posto que pode ser usado na relação entre cristianismo e as religiões não-cristãs,
entre dogma e mito, religião oficial e religião popular.88
Concordamos com Eli Brandão ao afirmar que para operacionalizar como
método, há necessidade de escolher uma metodologia mais adequada a cada caso,
pois são diversas as relações que os textos estabelecem entre si.89
Outra importante advertência que faz Antonio Magalhães toca
especificamente a questão do modelo da realização90. Antonio Magalhães admite que
não reconhece na literatura somente uma atualização ou realização de uma
mensagem que se encontra codificada de forma mais religiosa na Bíblia.
“não parto do princípio de que a dinâmica da relação se concentre entre significado do primeiro texto, no caso da Bíblia, e realização do segundo texto, no caso da literatura. Realizar não é bem aquilo que acontece nos textos Bíblicos, mesmo pensando numa perspectiva messiânica. Um texto nunca é desdobramento de outro, ele é também sua ampliação ou redução. O evento Jesus Cristo não é mera realização da figura de Moisés, é sua correspondência.91
Finalmente, queremos admitir que tal método configura uma abertura dentro
do universo teológico, sobretudo, os aspectos que incitam a possibilidade dialógica.
85 Ibid., p. 205. 86 Eli Brandão destaca o caráter dialógico do método da correspondência, cf. op. cit., p. 81. 87 Loc. cit. 88 Loc. cit. 89 Eli Brandão, op. cit., p. 82. 90 Sobre o modelo da realização, cf. Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 135-139. 91 Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 206.
Concordamos também com Eli Brandão ao afirmar que o método da correspondência
não amplia somente o fazer teológico reflexivo, mas também os horizontes da
teologia pastoral, contribuindo para uma maior compreensão de que há uma teologia
presente na produção cultural, como também para a comunicação dos textos bíblicos
em inter-relação como os textos literários.
1.3. A literatura machadiana diante do diálogo entre teologia e literatura
Nesta parte de nossa dissertação temos como objetivo apresentar a forma pela
qual conduziremos a literatura machadiana até ao debate entre teologia e literatura.
Esta tarefa se faz necessária, pois para empreendermos uma leitura teológica da
literatura de Machado de Assis, primeiramente queremos atestar que ela se apresenta,
diante do nosso olhar, a partir de uma perspectiva temática.
Esta inserção da literatura machadiana no debate teologia e literatura dar-se-á,
aqui, em dois momentos. No primeiro momento apresentaremos como o estado atual
da questão contribui, numa visão generalizante, para a possibilidade da leitura
teológica a partir da literatura. No segundo, anunciaremos o porquê de um romance
para a pauta de discussões.
1.3.1 Caminhos para um diálogo entre teologia e literatura
Neste ponto queremos anunciar as contribuições que os trabalhos acima
prestaram à nossa pesquisa. Diria Eli Brandão: “É hora de juntar o catado e jogá-lo
na panela.”92
Ao analisar o trabalho de Jack Miles, percebemos que teologia e literatura
podem estabelecer um diálogo dentro dos textos Bíblicos.93 Particularmente, “Deus.
Uma biografia” nos dá as condições de superar a idéia da impossibilidade de
analisarmos os textos bíblicos como literatura. Este trabalho de Miles recoloca a
questão teológica a partir da leitura dos textos, e não mais a partir pressuposição de
que os textos ditos canônicos são revelados, e, portanto, sagrados.94
Portanto, é viável para o nosso trabalho entendermos que a reflexão teológica
se dá no interior dos textos; na retomada pela leitura; na análise e no exame dos seus
conteúdos.95 Dessa forma, torna-se mais amistosa a possibilidade de reflexão
92 Eli BRANDÃO, op. cit., p. 83. 93 Loc. cit. 94 Partindo do pressuposto de que todos os textos inclusive os bíblicos são literatura antes de serem encapsulados numa tradição de interpretações, a força da narrativa que emana desses textos pode eliminar o que Bloom chama de revisionismo normativo. Os textos de J, por exemplo, diante de nosso olhar, não são estranhos. São sagrados antes mesmo de concebermos seu estatus de literatura. Os textos de Homero nos são estranhos, e por isso, para Harold Bloom constitui sua maior força poética. Portanto, se partirmos do pressuposto de que todos os textos são literatura antes de caírem no normativismo da crítica literária ou da tradição teológica, não teremos textos menos poéticos por estarem enclausurados na tradição teológica, tampouco teremos textos totalmente sagrados e restritos às analises teológicas. Cf. Harold Bloom, op. cit., 43-49. 95 “Somente pela medição da leitura é que a obra literária obtém sua significação completa...”, cf. Paul RICOEUR, Tempo e Narrativa III , p. 275.
teológica a partir dessa visão. Textos sagrados e profanos se dão ao luxo de serem
portadores de aspectos passíveis de análise teológica.96
A leitura do método da correspondência trouxe-nos a oportunidade
equacionar os pesos entre os chamados textos sagrados e textos literários. O método
em questão projeta a possibilidade dialógica entre as referidas categorias de texto,
sem que isto incorra na perda da alteridade entre eles.
Das anotações empreendidas a partir do estado atual da questão sobre as
relações entre teologia e literatura, concordamos com Eli Brandão ao afirma que:
• o diálogo entre teologia e literatura realiza-se primordialmente no
interior dos textos fundantes da fé cristã, como também no interior dos
textos literários que, de certa forma, pertencem à mesma tradição
literária;97
• a obra literária, pelo seu caráter plurissignificativo de sua referência
metafórica, veicula temas teológicos;
• a normatividade de interpretação não se restringe somente à tradição
teológica, mas também à crítica literária ao cristalizar os textos que ao
longo da história estiveram ou que ainda estão sob seu domínio.
1.3.2. Os romances no diálogo entre teologia e literatura
O trabalho de Antonio Manzatto nos ajuda a introduzir a literatura
machadiana no debate entre teologia e literatura. Por ter trabalho com um romance,
“Tenda sos Milagres”, Manzatto oferecer-nos-á as estruturas necessárias para o
diálogo no interior de Dom Casmurro.
Já dissemos que a obra machadiana, mais especificamente, o romance Dom
Casmurro, apresenta-se diante de nosso olhar a partir de uma perspectiva temática. A
antropologia é o tema que se evidencia como ponto de encontro entre o teológico e o
literário.
96 Antonio Manzatto diria: o que mais a teologia oferece à literatura são temas teológicos, tais como Deus, fé, relações entre o homem e Deus, que são também as questões fundamentais da teologia. Cf. Antonio MANZATTO, op. cit., p. 65-66. Cabe-nos, porém, ressaltar que não é meramente a presença de expressões como Igreja, Deus, diabo, tampouco, clérigos como personagens de uma narração, que farão de um texto literário um lugar de análises teológicas; mas sim, o potencial que o texto tem, enquanto estrutura narrativa, de recolocar os temas da fé, de forma reflexiva, posto que o teológico pode não estar presente de forma explícita. 97 Em nosso caso as discussões dar-se-ão no interior do romance Dom Casmurro.
Em primeiro lugar, caber justificar o porquê de se ter um romance como lugar
de reflexão teológica. Manzatto afirma que pela ficção ou poesia, a literatura põe em
cena o homem vivo, com suas questões, seus sonhos, seus problemas e seus
sentimentos em face do mundo da natureza, em face dos outros homens e diante de si
mesmo.98
Muitas ciências serviram-se da literatura para desenvolver seus estudos. A
sociologia, antropologia social, como também a filosofia. Os romances, por exemplo,
enquanto estrutura narrativa e obra literária vão além de uma narração ou de um
relato. Nele estão o contexto social, econômico, racial, religioso, político, cultural,
ideológico. Para Antonio Manzatto não há nada anormal no romance ao abrigar em
seu interior tantas falas. O romance e a literatura em geral – para Manzatto - é uma
representação simbólica do real e por isso evoca sempre o vivido, que é amplo,
complexo e pluridimensional.99
Portanto, concordamos com Antonio Manzatto em destacar a centralidade
antropológica nos romances, não só por serem construídos em torno de personagens
humanas, mas também por expelirem para fora de si uma representação do real.
Nesse sentido – afirma Manzatto -, pode-se dizer que ‘a linguagem literária, no seu
esforço de dar forma, não diminui, mas, ao contrário, alarga o campo de observação
para as zonas mais profundas e sublimes da vida humana.100
Se a literatura romanesca pode ser uma representação do mundo, não se torna
difícil afirmar que a teologia possa se interessar por ela. Esta aproximação da
teologia se dá no momento em que a literatura aborda a problemática humana. Para
Manzatto, é neste sentido que a obra literária pode ser teológica ou apresentar um
poder teológico.101 Nisto, portanto, reside nossa opção pelo romance, diante da
possibilidade de reflexão teológica a partir da literatura.
Quanto ao problema do valor teológico de um texto literário, e aqui não cabe
distinção entre textos escritos em prosa ou em versos, podemos nos valer das
importantes postulações de Antonio Magalhães sobre o tema. Este teólogo admite
que o texto literário é visto como amostra e interpretação da realidade humana e,
98 Ibid., p. 63. 99 Ibid., p. 64. 100 Cf. Ibid., p. 70, citando Luís Alonso SCHÖKEL, Hermeneutica de la Palabra. I: Hermeneutica bíblica, p.90. 101 Ibid., p. 68.
como tal, não possui, aparentemente, uma consistência teológica, sem que seja
negado o valor teológico que ele possui102.
Esta postulação é essencial para a construção inicial do nosso trabalho, posto que
dela surge, de fato, dois conceitos fundamentais. Antonio Magalhães aponta,
portanto, a diferença entre “valor teológico” e “consistência teológica”.
“À literatura é concebido o valor teológico porque ela pode apresentar possibilidade de compreensão do mundo no qual a teologia deseja se encarnar, mas nela não é reconhecida uma consistência teológica, porque não apresentam nada que altere o percurso divino da encarnação.”103
Ao concebermos o texto machadiano como lugar hermenêutico, consideraremos,
portanto, seu valor teológico. É claro que nem sempre o que se considera teológico
está latente ou no primeiro nível de leitura, todavia, o valor teológico pode estar no
movimento que obra literária faz para fora de si mesma.
As categorias de Antonio Magalhães se fazem necessárias posto que,
essencialmente, impõem certos limites diante da aproximação entre literatura ou da
teologia. Dessa forma, o valor teológico que um texto literário pode expressar, fica à
espera da leitura do seu mundo.
102 Antonio MAGALHÃES. op. cit., p. 190. 103 Loc. cit.
1.4. Um pouco da arte romanesca machadiana
O romance “Dom Casmurro” foi publicado no de 1899. O foco narrativo do
romance apresenta-se em primeira pessoa, portanto nos ajuda a entender o caráter
biográfico da história. Bento Santiago, ao final de sua vida, busca para ela a
formulação de um sentido. Talvez por considerar impossível encontrar um sentido
para seu momento existencial, põe-se a escrever suas memórias, a fim de que outra
façanha possa servir de expiação para a busca do sentido não encontrado: “atar as
duas pontas da vida.”
“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.”104
O foco principal de nossas analises concentram-se no momento em que
Bentinho é concebido por sua mãe, pois as memórias do Dr. Bento Santiago, assim
como toda sua história, estão sob a égide da promessa de D. Glória:
“Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos. Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava fazê- lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas eras tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares.”105
A promessa atravessa toda narrativa do romance, e, portanto, é fator
determinante para a compreensão do personagem Bentinho, o menino da rua de
Mata-cavalos; Dr. Bento Santiago, esposo de Capitu e o Dom Casmurro. Diríamos
que a promessa é a nossa porta de entrada para o texto. Ela nos ajudará a penetrar e
perseguir ao longo de nossas análises o caráter antropológico do romance. Dessa
forma, afirmamos que:
1. A promessa condiciona toda a trama do romance. Ela é o ponto de encontro
entre o Bentinho da rua de Mata-cavalos e o Casmurro.
104 MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 810. 105 Cf. Ibid., p. 819.
2. A promessa é o nosso caminho de entrada para o mundo do texto.
3. A partir da promessa penetraremos no aspecto antropológico, a fim de
entendermos a caráter teológico do romance.
Não fomos exaustivos em apresentar neste momento a trama do romance,
tampouco a rede de relações entre as personagens, pois o segundo capítulo do nosso
trabalho, dar-nos-á algumas linhas interpretativas do caráter relacional entre as
personagens. Portanto, ao dialogarmos com a crítica literária perseguiremos a
antropologia como tema transversal da literatura machadiana de ficção. Nosso
objetivo, portanto, no capítulo a seguir, num primeiro momento, reside no
recolhimento dos pressupostos necessários para que a antropologia torne-se visível a
partir das análises da crítica literária machadiana.
Capítulo II
TEMAS E VOLTAS EM TORNO DA OBRA MACHADIANA: CAMINHOS PARA A ANTROPOLOGIA
“As personagens simbólicas emergem de regiões obscuras
e encarnam uma realidade palpitante de vida. Temos consciência de que existem, mas não são percebidas
pelos ouvidos, nem pela vista, nem por nenhum outro sentido. A imaginação, a fantasia, a intuição,
o subconsciente apanham essas simbolizações e as consideram como parte integrante da própria vida.”
Luiz Marobin, Símbolos, Arquétipos e Mitos, 1963
2.1. Nota biográfica
Não seremos exaustivos ao apresentar certos aspectos da vida de Machado de
Assis. Em pleno inverno brasileiro, numa sexta-feira, 21 de junho de 1839, nasceu no
Rio de Janeiro Joaquim Maria Machado de Assis, na chácara do Livramento, onde
viviam seus pais, Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado, que se
haviam casado onze meses antes, na capela da propriedade.106
Ainda menino, Machado de Assis sofre duas perdas que vão marcá- lo
sensivelmente: a irmã de quatro anos e sua mãe, em 1845 e 1849107, respectivamente.
Desde então é acolhido por sua madrinha. Pouco se conhece da infância de Machado.
Ao deixar o seio familiar aos quinze anos, Machado de Assis publica, no
Periódico dos Pobres, sua primeira poesia, com data de 3 de outubro de 1854.108
Permitam-nos registrar os primeiros versos de Machado de Assis.
106 Jean-Michel MASSA. A juventude de Machado de Assis, op. cit., 31. 107 Op. cit., p. 67 108 Cf. Raimundo MAGALHÃES JÚNIOR. Vida e obra de Machado de Assis, p. 17. Raimundo Magalhães afirma que este poema de Machado só veio ao conhecimento público em 1972. Até então se atribuía ao poema “Palmeira” o lugar de primeira obra.
Quem pode em um momento descrever Tantas virtudes de que sois dotada Que fazem dos viventes ser amada Que mesmo em vida faz de amor morrer! O gênio que vos faz enobrecer, Virtude e graça de que sois c’orada, Vos fazem do esposo ser amada (Quanto é doce no mundo tal viver!) A natureza nessa obra primorosa, Obra que dentre todas as mais brilha, Ostenta-se brilhante e majestosa! Vós sois de vossa mãe a cara filha, Do esposo feliz a grata esposa, Todos os dotes tens, ó Petronilha!109
Na revista Marmota Fluminense, dirigida por Francisco de Paula Brito,
Machado de Assis trabalhou como revisor. É neste ambiente que Machado vai travar
os primeiros contatos com Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo,
Francisco Otaviano e José de Alencar.
Em 1864, Machado de Assis publica seu primeiro livro de poesias.
Crisálidas, conforme afirma Jean-Michel Massa, com ligeira defasagem, que
assinala uma pausa, mas constitui também uma retrospectiva e exprime uma reflexão
sobre o recente passado lírico do homem e do escritor.110
No dia 12 de novembro de 1869, Machado de Assis casa-se com a irmã do
poeta Faustino Xavier de Novaes, Carolina Novaes. As Memórias Póstumas de Brás
Cubas são publicadas em capítulos, na Revista Brasileira, a partir de março de 1880,
e editadas em livro em 1881.
No início da República, Medeiros e Albuquerque sugere a criação de uma
academia de letras nos moldes da Academia Francesa. Lúcio de Mendonça, então
secretário do ministro da justiça, mobiliza os escritores para realização da idéia.
Surgia assim a Academia Brasileira de Letras, inaugurada a 20 de julho de 1897.
Na sessão ordinária de 26 de setembro de 1898, a instituição adota como
divisa um verso de Machado: “Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola”,
109 Ibid., p.18. 110 Jean-Michel MASSA, op. cit., p. 377.
extraído de Crisálidas, nos Versos à Corina, Fragmentos de III. Fundada a
Academia, Machado foi aclamado primeiro presidente.
Em 20 de outubro de 1904, morreu Carolina Novaes, a quem dedica um belo
soneto. Depois de escrever mais de duzentos contos, seiscentas crônicas, nove
romances, nove peças teatrais, quatro livros de poesia, Machado ainda tem forças
para escrever seu último romance, publicado em 1908: Memorial de Aires. Neste
mesmo ano, na casa do Cosme Velho, onde viveu com Carolina, morria no dia 29 de
setembro o mestre das letras brasileiras.
2.2. Nos rastros Pascal: leituras em “A filosofia de Machado de Assis” de Afrânio Coutinho
Entramos efetivamente no segundo capítulo do nosso trabalho. Nossos
esforços se concentrarão em apresentar, a partir da crítica literária machadiana, a
antropologia como tema transversal da obra de Machado de Assis. Isto interessa-nos,
em maior grau, no terceiro capítulo.
O trabalho de Afrânio Coutinho, em A filosofia de Machado de Assis, busca,
sobretudo, afirmar as influências de Blaise Pascal na literatura machadiana. As
evidências do pensamento de Pascal na obra machadianas têm como ponto de partida
a seguinte afirmação: “Nada mais importante para a compreensão da obra literária,
nada mais auxilie a sondagem de um escritor, do que a investigação das suas
fontes.”111
Entendemos que Afrânio Coutinho, nesta formulação, enuncia o seu princípio
de análise para o trabalho de investigação das influências de Pascal na literatura
machadiana. O crítico crê que o fenômeno literário não surge por geração
espontânea, mas resulta de uma série de fatores conjugados e relacionados. Portanto,
a influência filosófica ou literária de um autor, jamais constitui motivo de
inferioridade.112
O pensamento de Harold Bloom concordaria em parte com o princípio de
Afrânio Coutinho, pois afirma que a influência poética não precisa tornar os poetas
menos originais, posto que, com a mesma freqüência os torna originais. Todavia, o
que não se pode fazer – adverte Harold Bloom – é reduzir as profundezas da
influência poética a um estudo de fonte, à história das idéias, ao modelamento de
imagens. A influência poética, ou a apropriação poética, conforme Bloom costuma
chamá-la, é necessariamente o estudo do ciclo vital do poeta como poeta.113
Um outro problema que poderíamos colocar diante do trabalho de Afrânio
Coutinho, é o que pensa Harold Bloom acerca dos poetas e dos críticos. “Os poetas,
111 Afrânio COUTINHO, A filosofia de Machado de Assis, p.14. Cf. Silvia Maria AZEVEDO. Machado de Assis e a filosofia: modos de leitura . In. Ana Sales MARIANO; Maria Rosa Duarte de OLIVEIRA (orgs.). Recortes Machadianos, p. 72. 112 Ibid., p. 15. 113 Cf. Harold BLOOM, A angústia da influência , p. 57-58. Valemo -nos das postulações de Harold Bloom acerca do problema da influência na poesia, pois Afrânio Coutinho, embora deixe bem claro que trata das influências filosóficas na obra machadiana, não estabelece um princípio que distinga formas de penetração no texto, a partir daquilo que busca: a influência filosófica ou influência literária do texto.
ou pelo menos os mais fortes, não lêem necessariamente como lê mesmo o crítico
mais forte. Os poetas não são leitores ideais nem comuns.114
Apesar de podermos observar as postulações de Afrânio Coutinho a partir do
trabalho de Bloom, o crítico brasileiro percebe que nenhuma grande literatura se
basta a si mesma. Para ele, todas elas se enriquecem no contacto como os gênios
literários estrangeiros e outros climas literários. “Basta à perfunctória observação das
diversas épocas literárias mais fecundas, de tôdas as literaturas, para se concluir pela
justeza desta assertiva.”115 A literatura para Afrânio Coutinho é uma criação do
espírito e como tal participa de sua natureza universal.
“Não há originalidade absoluta em literatura. De camada em camada, de época em época podemos penetrar no mundo literário, pelos vários gêneros ou famílias, que formam verdadeiras linhas de ininterruptas de filiação.”116
Afrânio Coutinho encerra seu olhar sobre a obra machadiana afirmando que o
fato que o impressiona na interpretação de Machado de Assis é influência de Pascal
sôbre117 a sua maneira de encarar a vida. É evidente que seu conceito de homem, a
sua atitude diante do mundo, se foi resultado da própria experiência, encontrou, no
pessimismo pascalino, a representação filosófica mais adequada... São as conotações
e os encontros, os pontos da obra machadiana em que a sugestão é patente,
mostrando o grau elevado a que atingiu a influência do jansenista sôbre o criador de
Brás Cubas.118
Afrânio Coutinho não oferece nenhum eixo hermenêutico do tipo conceitual,
contudo suas afirmações iniciais se articulam numa análise fragmentada de obras,
cujo objetivo é o de afinar a literatura de Machado de Assis ao pensamento jansenista
de Blaise Pascal. Interessa-nos, portanto, nas análises empreendidas pelo crítico,
observar a forma pela qual ele apresenta o mundo das personagens na obra
machadiana. Conforme já foi dito, queremos constatar a centralidade antropológica,
bem como as características especificas que portam as personagens no mundo do
autor de Brás Cubas. Como chave de interpretação do mundo machadiano, Afrânio
Coutinho oferece-nos o seguinte: a vida e o homem.
114 Ibid., p. 70. 115 Cf. Afrânio COUTINHO, op. cit., p. 15. 116 Ibid., p.17. 117 O uso do acento gráfico na referida palavra, assim como em outras, obedece à forma pela qual foi grafada no texto original. 118 Afrânio COUTINHO, op. cit., p. 19.
2.2.1. Pascal na literatura do mestre dos contos
Para entendermos um pouco melhor a ligação entre o jansenismo pascalino e
a literatura machadiana, segundo as proposições de Afrânio Coutinho, é necessário,
em primeiro lugar, entender o que ele chama de pessimismo machadiano. O crítico
machadiano não nos oferece conceitualmente uma definição de pessimismo, todavia
propomos para o nosso estudo, entender o pessimismo machadiano a partir de um
prisma de relações entre os seres humanos. Portanto, o pessimismo machadiano,
segundo as nossas lentes, seria o olhar torpe do ser humano sobre a vida e sobre sua
natureza.
Essa forma pessimista não está somente no olhar do homem do machadiano
sobre a vida, mas também dentro dele. Este homem define-se diante de Afrânio
Coutinho da Seguinte forma:
O homem é um ser doente, moral e psicologicamente. Dentro dêle só há abismo, contradição, enigma; tarado, cheio de vícios, incerto, dubitativo, inconstante e incoerente, contraditório, flutuante, agitado, de espírito volúvel e inteligência fraca, sem nenhum apoio moral, com uma tendência imperiosa para o mal e o crime; escravo da sensibilidade e da imaginação que extraviam e enganam, de leis arbitrárias, de um hábito tirano, da opinião; desordenado pelas paixões, cheio de miséria, vive eternamente atrás de uma quimera, ‘figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação’. As suas ações, que formam o tecido da tragicomédia humana, tem sempre no fundo, mesmo as boas, um motivo secreto, que as explica e origina, ordenado pela felicidade, interêsse, amor-próprio. Sempre o egoísmo, os sentimentos vis concupiscência são os móveis secretos de toda a vida no mundo. A concupiscência domina o caráter dos personagens machadianos.119
Esta postulação de Afrânio Coutinho, conforme já dissemos, interessa-nos,
contudo, para que qualquer concepção acerca do homem seja aplicável ao nosso
trabalho, colocaremo-na, antes de tudo, diante do conceito de mundo da obra120 de
Ricoeur; posto que concebemos as personagens como seres que habitam e vivem
num mundo possível que a obra revela, e que dessa maneira possuem uma certa
ontologia.121
119 Afrânio COUTINHO, A filosofia de Machado de Assis, p. 96. 120 Paul RICOEUR, Tempo e Narrativa II, op. cit., p. 13. 121 Cf. J. –P. GOLDENSTEIN, In. Pour lire roman, De Boeck-Duculot, citado por Antonio MANZATTO, op. cit., p. 145.
Consideramos, portanto, que é através das personagens que se estabelece à
comunicação entre o mundo da obra e o mundo do leitor. A caracterização dos
personagens é feita ‘sobre uma certa concepção do homem.’122
Não nos esqueçamos que Afrânio Coutinho ao trazer à baila o homem do
mundo machadiano, mesmo sem se preocupar com instrumentos conceituais e
hermenêuticos, fala da galeria de personagens que nele habita. Por isso, os
personagens podem tornar-se um lugar privilegiado para perguntar-se sobre a
antropologia de um romance ou de um romancista, na medida em que os personagens
são exatamente os seres que habitam o mundo da obra e que através deles se
desenvolve a história do romance. Este norte permeará a nossa pesquisa.
Portanto, não nos preocuparemos se de fato é o pessimismo pascalino que se
evidencia na literatura do autor de Brás Cubas, pois para o nosso trabalho valerá o
substrato dessa análise: o caráter antropológico do mundo machadiano. Portanto,
para as nossas análises, dispensaremos as possíveis influências do jansenista Pascal,
a fim de ficarmos com o homem que é apresentado sob forma de personagem.
Iniciaremos o ponto seguinte apresentado as possíveis influências de Blaise Pascal
em dois contos machadianos.
2.2.2. Pascal no texto de Machado?
Os comprovantes da filosofia jansenista de Blaise Pascal na literatura
machadiana, para Afrânio Coutinho, apresenta-se de forma latente, em obras da
segunda fase machadiana.
O conto Adão e Eva das Várias Histórias123 aparece no ensaio crítico de
Afrânio Coutinho como um dos textos que comprovam a filosofia jansenista, logo o
caráter contraditório do homem machadiano. O cerne deste conto trata de explicar a
origem e a formação mundo, pois as coisas não se passaram, para o autor, conforme
a narrativa do Pentateuco.
O conto apresenta-se sob a forma de diálogo, onde um dos personagens diz a
maneira pela qual tudo se deu no início de todas as coisas.
“- Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o diabo... - Cruz! Exclamaram as senhoras. (...)
122 Cf. Ibid., p. 46. 123 MACHADO DE ASSIS, J.M. Adão e Eva. In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 525.
-Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou- lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. (...) Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu- lhes a alma, com um sôpro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes.”124
O tom jansenista deste texto reside no dualismo da explicação da criação do
mundo; o Mal, obra do Demônio, e o bem obra de Deus.125 O homem não é obra das
mãos de Deus, mas do diabo. Dessa forma, não pode haver bons sentimentos na
criatura homem.
Essas constatações afranianas estabelecem um rastro que marca
sensivelmente o mundo antropológico da obra machadiana. O olhar hermenêutico de
Afrânio Coutinho despeja sombras sobre as personagens de Machado e esta forma de
olhar o conjunto da obra realça mais ainda o que perseguimos: o caráter
antropológico da obra machadiana.
Outro texto machadiano que recebe as influências do jansenismo pascalino é
o conto a Igreja do Diabo das Histórias sem Data. Cansado de sua desorganização e
do seu reinado casual, o Diabo teve a idéia de fundar a sua Igreja na terra. E para
tanto, foi a Deus pedir autorização.
No momento em que o Diabo chegou à presença Deus, este estava recolhendo
um ancião nas dimensões divinas. Deus o perguntou o que desejava e o Diabo
respondeu:
“- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. (...) -Retórico e subtil! Exclamou o Senhor. Vai; vai funda a tua Igreja; chama tôdas as virtudes, recolhe todas tôdas as franjas, convoca a todos os homens... Mas vai!vai!”126
124 Loc.cit. 125 Afrânio COUTINHO, op. cit., p. 100. 126 MACHADO DE ASSIS, J.M. A Igreja do Diabo. In. op. cit, p. 370-371.
O Diabo substituiu as antigas virtudes por outras que até então eram negadas
dentro da Igreja de Deus. A soberba, a luxúria, a preguiça, foram reabilitadas, e
assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia.127
“A previsão do Diabo verificou-se. Tôdas as virtudes cuja capa de veludo acaba em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas que vinham alistar-se na nova Igreja. (...) Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam tôdas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vêzes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo.”128
Nestas atitudes humanas reside o conceito pascalino. A obra de Machado de
Assis está repleta de fatos, situações, temperamentos que traduzem está concepção.
O caráter humano diante da vida apresenta-se dentro de uma intensa corrupção de
sua própria natureza.129
Não podemos afirmar que o jansenismo é a corrente de pensamento que de
fato exerce forte influência sobre a obra machadiana, todavia não podemos nos valer
apenas de uma negação para rejeitar a tese de Afrânio Coutinho. Estamos certos de
que os escritores, no terreno da literatura, podem responder, de uma forma não
sistemática, à questões que são também temas da filosofia, contudo é importante
compreender de que modo as idéias ingressam no campo da literatura.130
Diante a possibilidade de leitura da filosofia através da literatura, a crítica
literária brasileira cometeu, mais especificamente no labor com as obras de Machado
de Assis, duas formas equívocas de aproximação. A primeira se traduz em exercício
de leitura que procura apreender a idéia filosófica como participante da própria
organização do texto literário. A segunda, consiste numa mera transposição de
conceitos que provêm da filosofia, posto que ignora a condição metalingüística do
127 Afrânio COUTINHO, op. cit., p. 102 128 Ibid., p. 373-374. 129 Cf. Afrânio COUTINHO, op. cit., p. 104. 130 Cf. Silvia Maria AZEVEDO. Machado de Assis e a filosofia: modos de leitura . In.Ana Sales MARIANO; Maria Rosa Duarte de OLIVEIRA (orgs.). Recortes Machadianos, p. 66.
texto literário.131 Com base nesses dois princípios de equivocidade, Silvia Maria
Azevedo admite que o pessimismo machadiano torna-se tributário do contexto
filosófico do setecentos francês.132
Miguel Reale problematiza um outro aspecto importante diante da relação
autor x obra literária na análise filosófica. Reale se propõe investigar se há
efetivamente identidade ou correspondência entre o que pensa Machado de Assis e
aquilo que ele coloca na boca de suas personagens.133
Em seu ensaio intitulado A filosofia de Machado de Assis e Antologia
filosófica de Machado de Assis, Reale tem consciência de que a vida e a obra de um
escritor são experiências bastante distintas, muitas vezes opostas, e de que pouco
vale, em literatura, investigar posições pessoais de Machado de Assis, no que se
refere às idéias filosóficas, para interpretar-lhes os romances e os contos. Portanto,
em vez de investigar a “a filosofia de Machado de Assis, o ensaio de Reale se ocupou
em analisar “a filosofia na obra de Machado de Assis”. Esta opção de trabalho, além
de metodológica, é sobretudo epistemológica.134
Mesmo diante das discussões que problematizam as leituras em volta da obra
machadiana, vemos que os contos A Igreja do Diabo e Adão e Eva tratam da
condição humana, e por isso nos interessa como literatura que recoloca as questões
do ser no mundo. Diríamos, pois, que o conto Adão e Eva trata mais especificamente
do tema da queda.135
As personagens de ficção recriam as possibilidades de ser no mundo. Elas
estão imbricadas em relações que tocam as questões humanas de forma direta.
Considerando esse aspecto redobramos nossa análise acerca das problemáticas em
que o homem no mundo machadiano está quase sempre envolvido. As personagens
do autor de Brás de Cubas nos remetem à situações iminentes na vida. As questões 131 Ibid., p. 70. 132 Afrânio Coutinho, baseando-se nas declarações de Machado de Assis acerca da importância de Pascal em suas leituras, analisa as fontes filosóficas da obra machadiana a partir de dois prismas: 1. O contexto histórico-político-religioso da França do século XVII, marcado pelo jansenismo, movimento cuja doutrina da graça, de acordo com o crítico, vai repercutir em Pascal e, através dele, nas teorias de Port-Royal; 2. Os antecedentes e os motivos pessoais, de ordem social, psicológica e hereditária, provenientes da origem, da raça e da doença, a epilepsia, como fatores que explicariam a atitude pessimista do escritor, e conseqüentemente, de sua obra. Cf. Ibid., p. 73; cf. Afrânio Coutinho, op. cit. Sobre a equivocidade dos modelos de leitura filosófica na obra literária, cf. Susan SONTAG. Contra a interpretação, p. 11-23, citado por Silvia Maria AZEVEDO, op. cit., 70-71. 133 Cf. Miguel REALE. A filosofia de Machado de Assis e Antologia filosófica de Machado de Assis, p. 6. Citado por Silvia Maria AZEVEDO, op, cit., p.75. 134 Cf. Silvia Maria AZEVEDO, op. cit., p.75-76. 135 Cf. Jean MESNARD. Pascal: l’homme et l’oeuvre. Citado por Silvia Maria AZEVEDO, op. cit., p. 95.
humanas na obra de Machado de Assis possuem este estado de latência em relação à
vida humana.
2.3. A festa simbólica e a explosão antropológica na literatura machadiana
Nosso olhar acerca da obra machadiana se encerra a partir de uma perspectiva
temática. Os diálogos estabelecidos com trabalhos da crítica literária machadiana
constituem um caminho para as análises que empreenderemos no terceiro capítulo.
Portanto, as análises da crítica literária oferece-nos uma porta de acesso para a obra
machadiana – pelo menos nos indicam uma proposta temática - antes mesmo de
dialogarmos especificamente como ela.
A obra Símbolos, Arquétipos e Mitos em Machado de Assis, de Luiz Marobin,
apresenta como tese central o caráter simbólico e a importância da representação dos
símbolos na obra machadiana. As criações artísticas de Machado de Assis não são
apenas simples personagens de ficção, mas símbolos polifônicos, que retratam
diversos aspectos da vida humana.
“Uns retratam a superfície da alma humana. É a vaidade, o ciúme, a preguiça, a velhacaria, um mundo todo de mesquinharias que invade os diversos setores da vida familiar e social. Desfilam diante de nossa imaginação figuras exóticas, pinturescas, esquivas, insinuantes. Há loucos, os histéricos, os hipocôndricos136, os primários com o egoísmo exacerbado. Muitos, humanos. Terrivelmente humanos.”137
Dentro da vasta galeria de símbolos Machadianos, são os que apelam para o
interior dos homens que ocupam o maior espaço no trabalho de Luiz Marobin. O
centro das análises em Símbolos Arquétipos e Mitos em Machado de Assis está no
vaivém entre o ser e o não ser, entre a virtude e o vício, a vida e a morte, a felicidade
e o desespero dos personagens machadianos.
Intentando uma definição de símbolo, Luiz Marobin destaca as concepções de
Raul Machado e Romano Guardini. Para o primeiro simbolizar é objetivar idéias, dar
corpo às imagens, vida real ao sonho. Para Romano Guardini, o símbolo explora
duas dimensões importantes do ser humano: o mundo corporal e o mundo espiritual.
Assim, um símbolo surge todas as vezes que em o interior e o espiritual
encontram a sua expressão no exterior corporal. O verdadeiro símbolo surge como
expressão natural de um estado de alma particular e atual. Este não deverá apenas
136 Esta palavra foi grafada aqui conforme o texto original. 137 Luiz MAROBIN. Símbolos, Arquétipos e Mitos em Machado de Assis, p. 14.
expressar um conteúdo psíquico acidental, mas também algo de universal sobre a
alma e a vida humana.138
Diante da obra de Machado de Assis, vista pelas lentes de Luiz Marobin,
podemos formular uma pergunta fundamental para o nosso trabalho: por que o
momento primeiro do caráter representativo dos símbolos da obra machadiana é o
humano?
Esta pergunta norteia-se principalmente pelo fato de se poder explorar outras
dimensões simbólicas da obra machadiana. Exemplarmente, poderíamos citar o
símbolo do “emplasto” com sua força misteriosa de perpetuar a vida.139
“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear pela chácara, pendurou-se uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. (...) Essa idéia era nada mais nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.”140
Não encontramos uma resposta que satisfaça totalmente nossa pergunta,
todavia suspeitamos que a escolha pelas personagens enquanto instância simbólica,
advém da centralidade antropológica que a obra machadiana apresenta. As
personagens ocupam um lugar latente nas produções de Machado de Assis.
Luiz Marobin afirma que a origem do símbolo se dá no momento em que nos
deparamos com uma realidade complexa, cujo traço de unidade não aparece com
clareza, dá-se uma espécie de provocação feita à nossa capacidade de apreender.
Resulta disso uma tentativa de síntese artificial, como tentativa de abarcar o
indefinível.
Admitindo, por exemplo, o caráter complexo do ser humano e as suas
maneiras de ser no mundo, não encontraríamos maiores problemas para justificar a
escolha do humano como plataforma das análises simbólicas da obra machadiana. O
símbolo, portanto, mais que qualquer outro pensamento, ou raciocínio, revela
realidades profundas e transcendentes.141
Acertadamente, o que preside a origem dos símbolos na arte é a lei da
economia psíquica, pois o símbolo é expressão de um modo de pensar mais imediato,
138 Romano GUARDINI. O espírito da liturgia, p. 67-69. Citado por Luiz MAROBIN, op. cit., p. 53. 139 Luiz MAROBIN, op. cit., p. 55. 140 MACHADO DE ASSIS, J.M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In. Op. cit., p. 514-515. 141 Luiz MAROBIN, op. cit., p. 54.
concreto e primitivo. “É mais fácil saudar e venerar uma bandeira do que se elevar à
idéia abstrata do amor da pátria.”142
Portanto, Machado de Assis ao recorrer ao símbolo admite a complexidade
do humano. Esta complexidade se dá em sua arte no exercício do movimento que
traz as personagens das esferas ficcionais às esferas do real. Isto é o que lhe confere o
estatus de esteta gênio.
Luiz Marobin declara que nesse simbolismo machadiano polissignificacional
não há um negativismo absoluto.143 Há para Luiz Marobin dois grandes grupos de
símbolos na obra machadiana: os masculinos e os femininos. O crítico reconhece que
a obra machadiana é vastíssima, e, portanto, seria pretensão analisar todos os 142 Ibid., p. 51-52. 143 Sobre o negativismo absoluto na obra de Machado de Assis, cf. Octávio BRANDÃO. O niilista Machado de Assis. Rio de janeiro: Simões Editora, 1958. Neste trabalho Octavio Brandão opõe-se a Afrânio Coutinho ao afirmar que Machado de Assis assinala em sua obra um profundo niilismo. Para Octavio Brandão Machado teve uma visão niilista da realidade, pois somente observou o mundo a partir de um estreitamento do sentido da vida. No conto “O imortal”, Octavio Brandão nota que na vida do mundo machadiano só há a repetição, a monotonia, sem esperança, sem nada. Para ele, a felicidade era apenas uma quimera. O Amor, uma fonte de miséria. Neste mundo tão complexo, só viu a dor na vida. Só viu o mal no mundo. Não sentiu grande, bela alegria de viver. Não amou absolutamente a vida. Odiou-a. Caracterizou-a como um flagelo, uma desgraça e um absurdo. Não tinha o mínimo fundamento. Para o crítico as influências pascalinas só aumentaram o estreitamento das reflexões machadianas sobre o homem. Machado somente entendia o homem como uma categoria moral e religiosa. “O velho Machado de Assis não amava a humanidade. Não sentia ternura, simpatia, generosidade pelos homens. Escreveu horrores contra eles. Foi um negador estreito e unilateralista dos homens.” O crítico não abre mão de suas lentes marxistas para interpretar a obra machadiana, pois para ele, faltou em Machado de Assis análises políticas e sociais no momento de formular sua concepção de homem e declara que o autor de Dom Casmurro só notou o mal e a torpeza , o egoísmo e a sensualidade, a miséria física e moral, e ainda, observou o mal e não compreendeu de onde nasce a maldade, suas raízes econômicas e financeiras, políticas e sociais. O conto A igreja do Diabo é para o crítico de Machado uma obra exemplar da concepção contraditória do homem e da vida. As concepções machadianas sobre a vida, os homens e o mundo eram para Octavio Brandão a expressão da negação universal, ou seja, um profundo niilismo machadiano. Ao contrário de Afrânio Coutinho, Octavio Brandão, nega as raízes teológicas e as possibilidades de reflexão sobre categorias como Deus, alma e o sobrenatural na literatura machadiana. Interessante ressalto é sua afirmação sobre a influência da Bíblia em Machado de Assis. Os apontamentos vão em direção ao Eclesiastes, pois considera essa obra pessimista e niilista, ou seja, um abismo de insensatez, a negação da Terra, da vida e do amor. De fato o Eclesiastes e os Pensamentos de Pascal compuseram as leituras de Machado de Assis. Em carta a Joaquim Nabuco, o próprio Machado de Assis declara ter lido desde muito cedo Pascal e que suas leituras não eram simplesmente para passar o tempo. O crítico acusa o autor de Eclesiastes de filósofo cínico, por denunciar somente no final da vida aquilo que julgou ser vaidade. Octávio Brandão não negligencia em Machado de Assis as influencias de Pascal. Machado foi tão niilista quanto seu “mestre” Pascal, afirma. Talvez resida neste apontamento uma certa margem de contradição por parte do crítico. É claro que ser um leitor inveterado da Bíblia como foi Machado de Assis, não faz dele um defensor da fé ou da teologia cristã, mas talvez um crítico do próprio sistema cristão e sua forma de compreender o mundo. É evidente a preocupação de Machado em constituir uma visão particular sobre o homem. Negar a possibilidade de uma certa ciência teológica em Machado pode desaguar num certo estreitamento hermenêutico de sua obra. Colocar o conceito de homem no centro de suas análises, a partir dos textos Machadianos, estabelece uma certa convergência temática entre Afrânio Coutinho e Octavio Brandão. De um lado o homem perfeitamente mal, influenciado pelo pessimismo pascalino, do outro, o homem mergulhado no mais profundo niilismo.
símbolos nela representados. Todavia, para o seu trabalho, percebemos que Luiz
Marobin utiliza somente as algumas obras que chamaríamos fruto da maturidade
machadiana. Dom Casmurro, Quincas Borba e Esaú e Jacó são os romances que
mais oferecem os símbolos às analises do crítico.
Luiz Marobin diante do amplo aspecto simbólico da obra machadiana,
observa e constata a presença de símbolos que representam a contradição humana.
Menciona o trabalho de Afrânio Coutinho como obra de fina penetração metafísica.
Pedro e Paulo de Esaú e Jacó, Bacamarte de O Alienista e outras personagens são
analisadas. O romance Dom Casmurro, objeto principal de nosso trabalho, oferece
importantes leituras ao crítico. Capitu e José Dias, por exemplo, estão na teia
interpretativa do crítico.
2.3.1. A festa dos símbolos: Capitu como “belle dame sans merci”
Os símbolos machadianos emergem de uma planície terrena e humana para
apresentar-se em planos diferentes. Capitu aparece como o símbolo de belle dame
sans merci; Flora de Esaú e Jacó como o símbolo narcisista; Natividade, do mesmo
romance, surge como encarnação do símbolo e do mito; José Dias emerge como
símbolo da benevolência brasileira; Quincas Borba como símbolo do desajustado,
entre outras representações.
Dentro dessa vasta galeria de símbolos, chama-nos à atenção os símbolos
femininos, mais particularmente, o simbolismo que esconde Capitu. Os símbolos
femininos são para Luiz Marobin de uma clareza meridiana. Eles atuam como
espelhos, pondo a mulher subterrânea à superfície, à vista da inteligência e da
consciência.144
Em volta de Capitu fizeram incompletas interpretações que se restringiram
em legar a essa enigmática personagem uma mera condição comparsa de uma
dolorosa e trágica desilusão, provocada pela infidelidade conjugal. Eis a descrição de
nossa “infiel” personagem:
“Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha boca fina e queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram
144 Cf. Luiz MAROBIN, op. cit., p. 73.
curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.”145
Sob esta personagem está um símbolo que transcende a esfera da
individualidade e que atingi e encarna a universalidade. Enquanto o conjunto do
romance Dom Casmurro simboliza a desilusão e o desencanto de um homem
vilipendiado na sua honra, Capitu encarna aspectos de Medusa, Esfinge, Quimera e,
sobretudo “belle dame sans merci.”146
As apresentações da fisionomia – diz Luiz Marobin - servem apenas de
pretexto para apresentar outros aspectos da complexa personalidade de Capitu.
Portanto, seria provável dizer que o caráter simbólico da personagem liga o elemento
estético ao mundo real físico.
Capitu se enquadra dentro da tradição mitológica e literária que nunca
dispensou as criações das belas damas fatais, posto que o mito e literatura não fazem
outra coisa que refletir fantasticamente aspectos da vida real. Capitu está na mesma
linha que Lilith, Cleópatra, Salomé e Lucrécia Borgia.
O contraponto desses símbolos e correspondentes arquétipos de damas fatais
são, via de regra, os jovenzinhos cândidos, de atitudes passivas, diminuídos de sua
virilidade. “É obscuro, inferior à dama por condição social ou exuberância física... O
canibalismo sexual é monopólio da mulher fatal.”147
O simbolismo de Capitu não se encarna perfeitamente com os das “belles
dames sans merci”, posto que existe um conjunto de símbolos que a cercam. Esse
simbolismo subsidiário abre novos horizontes e atribui à “cigana dissimulada”
significação mais ampla. Luiz Marobin vê em Capitu o simbolismo do mar. “É o mar
símbolo da distância, da profundidade, do infinito e do mistério. Se por um lado a
extensão infinita do mar simboliza a paz, a estabilidade, as ondas da ressaca nos
sugerem a instabilidade , o movimento, a transitoriedade de todas as cosias, ainda as
mais caras.”148
145 MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Op. cit, p. 822-823. 146 Cf. Luiz MAROBIN, op. cit., p. 75. 147 Cf. Mario PRAZ. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica, p.197. Citado por Luiz MAROBIN, op. cit., p. 77. 148 Cf. Luiz MAROBIN, op. cit., p. 79.
Para Eugênio Gomes Capitu é um símbolo do mal.149 E para que haja uma
fusão entre o seu e espírito de “belle dame sans merci e o mar enquanto símbolo da
instabilidade, falta- lhe apenas o ritual de imolação. Como sugere Luiz Marobin,
vítima não é Bentinho. “O instinto voluptuoso e sanguinário ao mesmo tempo,
saciou-se no amante, em Escobar.”150
Bento Santiago não escapou de Capitu. Ele “foi imolado psicologicamente,
pela tortura interior, pelo desencanto da vida e dos homens. Sobretudo pela desilusão
cruel perante a autêntica ‘belle dame sans merci’, que ele tinha sonhado com
qualidades de anjo.”151
Luiz Marobin vê a arte de Machado de Assis como elemento descortinador da
realidade. Capitu não pode ser vista como símbolo da vida total, posto que
“representa apenas aquela parte instável do ser humano que, por circunstâncias
várias, às vezes por mero exercício de uma liberdade mal entendida, passa para as
regiões da maldade do tenebroso e da perversidade.”152
É fato que todos os trabalhos apresentados tem como seu principal ponto de
partida a literatura machadiana e, por conseguinte, o homem como tema central. É a
literatura machadiana o lugar “hermenêutico”, que produz a polifonia dos olhares de
cada autor. A literatura machadiana oferece-nos temas indispensáveis a uma
interpretação teológica. Todavia, é, mais uma vez, a questão antropológica da obra
machadiana que ocupará o lugar central em nosso trabalho, a partir da aproximação
entre teologia e literatura.
149 Cf. Eugênio GOMES. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958. p. 160. Citado por Luiz MAROBIN, op. cit., p.75. 150 Cf. Luiz MAROBIN, op. cit., p. 83. 151 Loc. cit. 152 Cf. op. cit., p. 84.
2.4. A religião na obra machadiana
O trabalho de Dom Hugo Bressane foi publicado em 1939 por ocasião do
centenário do nascimento de Machado de Assis, como uma primeira e única tentativa
de analises de questões religiosas na literatura machadiana. A tentativa de Hugo
Bressane de desvendar o mistério da religião na obra de machado de Assis foi
construída com base em inúmeros recortes biográficos do autor de Brás Cubas.
No primeiro capítulo, intitulado “Na sacristia”, nasce à afirmação da filiação
religiosa de Machado de Assis desde os tempos de menino. Para Dom Hugo,
Machado de Assis teve por preceptor o padre-mestre Silveira Sarmento. O poema de
1858, intitulado “A morte no calvário” e publicado na semana santa em homenagem
ao padre Sarmento, dá a Hugo Bressane a primeira resposta sobre a religião em
Machado.
“Ei- lo vai sobre o alto do calvário Morrer piedoso e calmo numa cruz! Povos! Naquele fúnebre sudário Envolto vai um sol de eterna luz. Ali toda descansa a humanidade. È o seu salvador, o seu Moisés! Aquela cruz é o sol da liberdade, Ante o qual são iguais povos e reis! ............................................................. Vêde! Mana-lhe o sangue das feridas Como o preço de nossa redenção. Ide banhar os braços parricidas Nas águas desse fúnebre Jordão.”153
O processo de investigação realizado se resume numa análise biográfica. Para
esta análise, Dom Hugo Bressane busca alguns comprovantes na literatura do autor,
como expressão de suas intuições. No quarto capítulo, intitulado “A Bíblia”,
Bressane realiza mais uma vez o seu processo investigativo. Ele vai buscar numa
tradução que Machado fizera do Salmo 137, a filiação do autor de Brás Cubas à
religião cristã.
“Machado de Assis buscou nas Escrituras, como em Dante ou Shakespeare, tão somente belezas literárias e usava com freqüência das reminiscências, episódios ou versetos do livro Santo
153 Cf. Alfredo PUJOL, Machado de Assis, p. 2-3. Citado por Dom Hugo Bressane de ARAÚJO , In. Os aspectos religiosos na obra de machado de Assis, p. 8.
Como roupagem elegante dos humorismos que aos milhares marchetam seus livros.”154
Se a obra de Dom Hugo Bressane nos dá algumas indicações das influências
literárias na obra do autor de Brás Cubas, isto se faz de forma bem sutil e sem
representatividade.155
Outra forma que Hugo Bressane busca para comprovar o que denomina
aspectos religiosos na obra machadiana, restringi-se às anotações de Machado para
alguns periódicos da época. Assim como Machado certa vez anunciou a Joaquim
Nabuco sua ligação como Pascal156, e estas declarações tinham uma espécie de valor
interpretativo, Bressane busca as posturas religiosas de Machado nos periódicos
como comprovantes da filiação religiosa, biográfica e literária. Isto fica claro no
quinto capítulo da obra em questão, intitulado “Não era anti-clerical”.
A obra de Dom Hugo Bressane ao lado de A filosofia de Machado de Assis e
O niilista Machado de Assis, de Afrânio Coutinho e Octávio Brandão,
respectivamente, pode receber as mesmas críticas por ter se limitado a analisar
muitos aspectos do autor em lugar de sua obra.
Há na obra de Dom Hugo Bressane a insistência de revelar o aspecto religioso
através da biografia do autor de obra literária. A literalidade das declarações de um
autor, mesmo o que sai da boca de suas personagens, de pouco valem para as análises
de temas tão complexos como a religião, a filosofia numa determinada obra literária.
As críticas que temos a fazer à obra de Dom Hugo Bressane iniciam-se na
ausência de um campo conceitual e teórico, a fim de que estes pudessem estabelecer
uma teia hermenêutica para sustentar o olhar sobre a questão religiosa na obra de
machadiana.
Se colocarmos a teoria hermenêutica de Paul Ricoeur, mais especificamente o
conceito de mundo do texto, diante da latente ausência conceitual, veremos que a
prioridade das análises da obra de Bressane concentra-se na observação do caráter
biográfico do autor. Este fator pode, conseqüentemente, levar o texto literário a um
processo de cristalização no campo das interpretações.
154 Dom Hugo Bressane ARAÚJO, op. cit ., p. 19. 155 Sobre os problemas das influências na obra machadiana, cf. Eugênio GOMES. Influências Inglesas em Machado de Assis. Bahia, 1939. 156 Machado de Assis confessa em carta a Joaquim Nabuco o seguinte: ‘Desde de cedo li muito Pascal, para não citar mais que este, e afirmo -lhe que não foi por distração’. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, R. Ao redor de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, p. 153 [s.d]
Outro problema notado é a separação entre o que é cristão ou não no texto
machadiano. Percebe-se que muitas posições pessoais de Machado definem, em
quase todos os aspectos, para Dom Hugo Bressane, o caráter cristão dos textos
machadianos.157 Este problema poderia gerar discussões acerca da intenção do autor
em escrever textos impregnados de temas religiosos, todavia Bressane, para o seu
trabalho, só admite como princípio de reflexão os elementos biográficos do autor de
Dom Casmurro. 158
Portanto, defendemos que um texto literário não pode ser apenas um
receptáculo dos aspectos biográficos do autor que lhe deu vida, mas sim um lugar de
infinitas sondagens, para que a cada escavação se produzam novas realidades a partir
de um único texto.
157 Sobre o caráter cristão dos textos machadianos, com base nas suas opiniões pessoais, cf. Dom Hugo Bressane ARAÚJO. O aspecto religioso da obra de Machado de Assis, op. cit., p. 25-27. Todavia, Dom Hugo defende a tese de que Machado não era anti-clerical, todavia ele chega afirmar que “sem o lume da fé, a obra de Machado de Assis, profundamente humana, não é cristã”. Nota-se mais uma vez a retomada das categorias sagrado e profano diante dos textos. 158 Sobre a intencionalidade de um autor produzir ou não reflexão teológica a partir dos seus textos, cf. Antonio MANZATTO, op. cit. p. 66; sobre a validade do caráter biográfico do autor para a análise de sua obra, cf. Cf. Silvia Maria AZEVEDO. Machado de Assis e a filosofia: modos de leitura . In., Ana Sales MARIANO; Maria Rosa Duarte de OLIVEIRA (orgs.). Recortes Machadianos, p. 67 e 75.
2.5. Caminhos para a antropologia
Ao trazer à baila os trabalhos de Afrânio Coutinho, Luiz Marobin e Octávio
Brandão, queríamos apresentar não exaustivamente, mas de forma panorâmica o que
se produziu acerca da obra machadiana, visando, sobretudo, extrair dos trabalhos os
subsídios necessários para a criação de um caminho, cujo fim pudesse desaguar num
encontro entre a teologia e a literatura, via antropologia.
Portanto, preferimos apresentar obras, com exceção de O aspecto religioso
da obra de Machado de Assis, cujo conteúdo priorizasse de forma direta ou indireta a
questão antropológica. Perifericamente a este olhar, problematizamos e
estabelecemos algumas críticas acerca das obras trabalhadas.
Ficou evidente para o nosso trabalho que a literatura machadiana abriga em
seu interior um sem números de tipos humanos. Enquanto Afrânio Coutinho
preocupou-se com as influências de Pascal nas criações machadianas, preferimos,
neste momento, desprezar o possível envolvimento do mestre jansenista, para
analisarmos exclusivamente o humano machadiano, conforme sua apresentação no
texto.
Seguindo nosso caminho, apoiando-se no eixo teórico da pesquisa em curso,
apresentaremos a emergência da antropologia a partir do literário, buscando as
personagens e a trama em que elas estão envolvidas no romance. Nesta parte será
apresentada uma reflexão sobre a escolha da antropologia como possibilidade de
mediação teológica nos textos machadianos.
2.5.1. Da ficção ao nível da referência: o mundo do texto em Paul Ricoeur
O conceito de mundo do texto de Paul Ricoeur na construção do trabalho,
dar-nos-á as condições de cunho teórico para rompermos com a inadequada
compreensão conceitual acerca dos textos literários, que forjou a literatura como arte
que só fala das coisas que não são verdades.
A ruptura com esta estrutura conceitual, que esta cristalizada em nossa
tradição literária, é condição fundamental para que o texto machadiano não perca
suas relações com a realidade. Todavia, é importante lembrar que estamos diante de
um romance. E por se tratar de uma obra literária o romance não é a realidade. O elo
entre o romance enquanto estrutura narrativa, portanto obra literária, e a suas
relações com a realidade chama-se verossimilhança.
Ricoeur nos adverte quanto à desmedida elevação do romance à categoria de
expressão máxima da realidade, pois os romancistas, a partir do século XIX,
preocuparam-se excessivamente como o problema da verossimilhança. Levantar a
bandeira da verossimilhança como princípio narrativo no final da idade de ouro do
século XIX, significaria, sobretudo, lutar contra as convenções e pela
verossimilhança; dessa forma, far-se- ia uma só batalha, porém, nas lentes de Ricoeur,
foi essa “preocupação de fazer verdadeiro, no sentido de ser fiel à realidade, de
igualar a arte à vida, que mais contribui para ocultar os problemas de composição
narrativa.”159
Este momento episódico na história do romance trouxe ao romancista uma
sobrecarga de refinamento na composição, portanto a invenção de intrigas cada vez
mais complexas, logo mais distantes do real e da vida, permitiram conceber a
verossimilhança como a semelhança da verdade, mas também como aparência da
verdade. Esta problemática contribuiu para que se compreendesse a arte de ficção
como a arte da ilusão.160
Todavia, Charles de Bos dizia que a literatura não é nada mais que a vida
mesmo quando, na sensibilidade de um homem de gênio, ela encontra a plenitude de
sua expressão.161 Para Manzatto, isto quer dizer que a literatura, na qual o romance é
incluído, fala da vida, do mundo, dos homens, sob uma forma de expressão artística e
simbólica.162 Paralelamente a essa fala, ouçamos Manzatto:
“A ficção é uma invenção, uma criação da imaginação do autor da obra literária expressa, sobretudo, no romance. Ficção é, pois, tudo o que é narrado no romance, designando então o universo, os personagens e o mundo construído pelo texto literário. Trata-se, pois, de um mundo irreal, que pode mesmo funcionar como crítica ou negação do real. Porém, a imaginação que cria um mundo irreal inspira-se, para criá-lo, no mundo real, o que significa que não existe imaginação sem negação do mundo concreto e atual. Exatamente aí situam-se as questões sobre a verdade da literatura, em especial do romance de ficção. Se ela fala de mundo irreal, portanto falso e fingido, como pode ele responder às exigências de verdade? Por outro lado, se ele tem como base o real, que o inspira
159 Cf. Paul RICOEUR, Tempo e Narrativa II, op. cit., p. 20-21. Ricoeur vai além ao dizer que esses problemas não foram abolidos no seu primeiro momento. Ele nos convida a refletir sobre os procedimentos romanescos empregados nos primórdios do romance inglês para satisfazer ao propósito de descrever a vida em sua verdade cotidiana. Assis – afirma Ricoeur -, em Robinson Crusoé, Defoe recorre à pseudo-autobiografia imitando inúmeros diários, memórias e autobiografias. 160 Cf. Antonio MANZATTO, op. cit., p. 19. 161 Cf. Jean LADRIÈRE, “Le destin de la raison et les tâches de la philosophie”; in ID., Vie sociale et destinée, p.21. Citado por Antonio MANZATTO, loc. cit. 162 Cf. Antonio MANZATTO, loc. cit.
e a quem ele critica, e que mesmo seu referente, ele tornar-se potência de construção do futuro na medida em que revela novas formas possíveis de ser e, dessa forma, aproxima-se da verdade. Como, então, vê- lo apenas como falso e mentiroso?”163
Postos os problemas, passamos agora a arrolar o conceito de mundo do texto.
Pretendemos com este conceito romper com a idéia de irrealidade de um texto. Ao
iniciar suas postulações em Tempo e Narrativa III, Ricoeur pergunta o que da parte
da ficção, pode ser considerado a contrapartida daquilo que, da parte da história, dá-
se como passado “real”.164
Os problemas acerca do conceito de mundo de texto em Ricoeur não se
limitam a discutir as questões acima. Não nos deteremos ao problema central posto
por Ricoeur, mas apresentaremo-lo: o que ocorre com a referência quando o discurso
se torna um texto?165 Para Ricoeur a literatura, em relação ao discurso, tem o poder
de abolir toda a referência à realidade. “Este é, me parece, o papel da maior parte de
nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura de ficção – conto,
mito, romance, teatro -, bem como de toda literatura denominada poética, onde a
linguagem parece glorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do
discurso ordinário.”166
Todavia, Ricoeur nos oferta suspeitas daquilo que denomina ser o mundo do
texto ao afirmar que não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da
realidade, embora em outro nível. A tese de Ricoeur reside, portanto, na abolição de
uma referência em primeiro nível, que é operada pela ficção ou poesia, a fim de que
esta abolição possa liberar uma referência de segundo nível. 167 Portanto, essa
dimensão referencial absolutamente original da obra de ficção e de poesia coloca o
problema hermenêutico mais fundamental nas lentes de Ricoeur.
“Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no - mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real.”168
163 Cf. Ibid., p.17. 164 Cf. Paul RICOEUR, Tempo e Narrativa III, op. cit., p. 273. 165 Cf. Paul RICOEUR, Interpretações e Ideologias, p. 55. 166 Ibid., p. 55-56. 167 Loc. cit. 168 Ibid., 57.
Ricoeur conclui que a ficção é o caminho privilegiado da descrição da
realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera o que
Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de mimesis da realidade, posto que a
tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythos, de
uma “fábula”, que atinge sua mais profunda essência.169
Caminhando mais uma vez em direção a obra Tempo e Narrativa III, Ricoeur
apresenta algumas perspectivas de avanço no que toca à elevação do texto ao
patamar da referência de segundo nível. Ricoeur procura apresentar uma tentativa de
superação ao reconhecer que a função da ficção de recolocar o real no nível da
referência, fica tributária de uma revisão do conceito de irrealidade tão drástica
quanto a de realidade do passado.170
Em face dessa nova problemática, Ricoeur compreende que somente pela
mediação da leitura é que a obra literária obtém a significância completa, que estaria
a ficção assim como a representância está para a história.171 A resposta dada para
inclusão desse novo problema reside no fato de se ter imputado à noção de mundo do
texto em toda experiência fictícia.172
Portanto, para que o mundo do texto assinale a abertura do texto para o que
está fora dele é necessário que ele, o texto, esteja à espera da leitura. “Só na leitura o
dinamismo de configuração encerra o seu percurso.”173 Em Tempo e Narrativa I,
Ricoeur ao introduzir o problema da comunicação, considerando uma teoria da
leitura, vemos claramente que sua maior preocupação está em não comprometer o
problema da referência. E assinala:
“O que é comunicado, em última instância, é, para além do sentido da obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte. Nesse sentido, o ouvinte ou o leitor o recebe segundo sua própria capacidade de acolhimento que, também ela, defini-se por uma situação ao mesmo tempo limitada e aberta a um horizonte de mundo.”174
169 Cf. Loc. cit. 170 Cf. Paul RICOEUR, Tempo e Narrativa III, p. 274-275. Sobre esta problemática as seguintes categorizações: ficcionalização da história e a historicização da ficção. 171 Ibib., p. 275. 172 Loc. cit. 173 Loc. cit. 174 Idem. Tempo e Narrativa I, p. 119.
Dessa forma, uma reflexão mais precisa sobre a noção de mundo do texto
necessita, em primeira instância, de um confronto entre os dois mundos: o fictício do
texto e mundo real do leitor.175
Finalmente, para a construção do nosso trabalho entendemos que o mundo do
texto enquanto possibilidade de criação de mundo possível, num plano de referência
de segundo nível, passa necessariamente pela mediação da leitura. Defenderemos,
portanto, que o texto, mais especificamente o romance Dom Casmurro, expeli para
fora de si um mundo possível nas zonas mais palpáveis do real.
2.5.2. Personagens: traços do antropológico
Queremos anunciar que a busca pelo caráter antropológico na obra
machadiana, mais especificamente no romance Dom Casmurro, deságua
definitivamente nas personagens enquanto seres que habitam no mundo do texto. A
análise das personagens, ainda hoje, continua sendo um dos aspectos mais
importantes no estudo de um romance.
Diríamos, com algumas reservas, que as personagens de um romance ocupam
um lugar privilegiado na construção da(s) trama(s) do romance. A personagem é ‘a
pessoa fictícia que desempenha um papel no desenvolvimento da ação romanesca.’176
Interessa-nos aqui ressaltar que as personagens de um romance não são as pessoas da
vida real, porém são seres que vivem num mundo possível e que a caracterização que
cabe a cada personagem é feita sobre uma certa concepção do homem.177
Portanto, se considerarmos que as personagens são os seres que habitam no
mundo do texto e que é através deles que se desenvolve a história do romance, as
referências ao real produzidas por elas possuem um grande interesse antropológico.
A observação o modo de vida das personagens, suas maneiras de agir, verificar o que
são e o que fazem, pode ajudar ou mesmo portar a idéia de homem que se encontra
subjacente a estes seres. 178
Antonio Candido em sua obra As personagens de ficção parece defender a
possibilidade de uma certa interdependência entre os elementos constitutivos de um
romance. A vida da personagem, considerando a própria personagem como um dos
175 Cf. Idem. Tempo e Narrativa III, p. 276. 176 Cf. J. –P. GOLDENSTEIN, Pour lire le roman, De Boeck-Duculot, p. 44. Citado por Antonio MANZATTO, op. cit., p.144. 177 Cf. Ibid., p. 46. Citado por Antonio MANZATTO, op. cit., p. 145. 178 Cf. Loc. cit.
elementos do romance, depende das outras personagens, ambiente, duração temporal,
idéias. Portanto, a “existência” de uma personagem fica condicionada a todos os
elementos constitutivos de um romance.179
Todavia, Antonio Candido não tem dificuldade em afirmar que a personagem
pareça o que há de mais vivo no romance; e que a le itura deste dependa basicamente
da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor.180
Portanto, não somos inocentes em preconizar numa narrativa romanesca a
personagem como ponto central. Por isso, já dissemos que tatearemos pelo romance
perguntando pelas personagens. O caráter antropológico da obra circunstancia, em
nosso trabalho, o ponto de chagada para as reflexões teológicas.
2.5.3. A promessa: os paratextos de Genette em ação
Decidimos entrar em Dom Casmurro através dele mesmo. E por isso estamos
agora diante do capítulo intitulado A Promessa. Alguns elementos textuais, que são
acima de tudo enunciativos ou ostensivos181, ofertam-nos a chave de acesso imediato
ao texto. Estamos falando dos elementos paratextuais.182 A paratextualidade se
configura na relação do texto com outros textos que o remetem a ele mesmo (títulos,
subtítulos, prefácios, posfácios etc.). Os paratextos são formas de integração do texto
num dado contexto ou formas de indicação do percurso hermenêutico, que de certa
forma, desempenham funções semânticas.183
Eli Brandão, seguindo os passos de Genette, afirma que os elementos textuais
de caráter paratextual, além de se constituírem como sintagmas identificadores, num
conjunto formado por uma obra literária, mantém relações profundas com o texto
propriamente dito.184
Portanto, o paratexto fundamental para a construção das nossas analises é o
título do 11º capítulo do romance Dom Casmurro. Concordamos com Eli Brandão ao
179 Antonio CANDIDO et al., A personagem de ficção, p. 75. 180 Ibid., p. 52. 181 Cf. Eli Brandão, op. cit., p. 193. 182 Cf. Gerard GENETTE, Palimpesestes. La littérature au second degré, p. 7-14. Recorremos à tese de doutoramento de Brandão, “O nascimento de Jesus Severino no auto de natal pernambucano como revelação poético-teológica da esperança”, a fim de termos uma melhor compreensão da categoria acima descrita. 183 Ao tentar sistematizar a categoria paratexto, Genette propôs dois tipos: os remáticos e temáticos. Os temáticos apontam para elementos dos conteúdos (personagens, espaços, situações, etc.); já os remáticos se referem a características de natureza quase sempre arquitextual. Cf. Gerard GENETTE, op. cit., p. 12; Idem. Introdução ao Arquitexto, p. 10. Citado por Eli Brandão, op. cit., p. 194. 184 Eli BRANDÃO, op. cit., p. 194.
afirmar que os paratextos são reveladores185, pois sua capacidade enunciativa oferta
ao leitor à oportunidade de entrar no texto via texto.
A PROMESSA
“Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos. Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas eras tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares.”186
Se porta está aberta, vamos ao texto!
O foco de nossas análises está lançado sobre as personagens machadianas em
Dom Casmurro. O paratexto A Promessa nos revelou os primeiros sinais de relação
entre os humanos do romance e Deus, por isso ele é a nossa porta de entrada para o
texto. Além disso, o caráter paratextual do capítulo 11 oferece-nos o deslindamento
de duas outras tramas do romance. A primeira trama concentra-se nas discussões no
interior do romance acerca da negação da promessa por parte do prometido:
Bentinho. Sobre este aspecto travam-se crises existenciais em algumas personagens,
como no caso de Capitu, que não aceita a ida do seu fugidio amor para o seminário
São José.
A segunda trama surge no romance como elemento revelador da quebra da
promessa. No capítulo 96, vemos nitidamente a ação paratextual entrelaçando, a
partir do título do capítulo, a resposta de Bentinho à promessa de sua mãe à sua
vontade de viver longe das amarras da vida monástica. A solução apresentada para a
185 Eli Brandão afirma que uma das provas do poder revelar do título como elemento paratextual referindo-se ao título de uma obra como elemento paratextual, é que mesmo quando se pretende ocultar os sentidos dominantes de um texto ou revelá-lo por enigma, persiste tanto o seu poder de concentrar a atenção do leitor, que toda a leitura passa a ser de um busca do seu sentido oculto, ocasionando, portanto, uma pluralidade de interpretações e uma inútil discussão sobre o sentido intencional do autor, já que, depois da objetivação do discurso na escrita, o que interessa mesmo é a intenção do texto. 186 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 819.
quebra da promessa vem de Ezequiel Escobar, amigo do menino Bento e interno do
seminário São José.
Capítulo III
NA LITERATURA UMA ANTROPOLOGIA: A DISCUSSÃO TEOLÓGICA
EM DOM CASMURRO
“Antes de prosseguir em meu caminho e lançar
o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de
quem eu fujo. A Ti, das profundezas de meu coração, tenho
dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras:
“Ao Deus desconhecido”. Seu, sou eu, embora até o presente tenha
me associado aos sacrílegos. Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam
para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão,
invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero
Te conhecer, quero servir só a Ti.
Nietzsche. In. Tempo de Transcendência de Leonardo Boff
3.1. Literatura, antropologia e teologia
O romance Dom Casmurro está à nossa espera. A nossa porta de entrada em
Dom Casmurro é a promessa; falaremos dela um pouco mais tarde. Já dissemos que
Dom Casmurro foi publicado em 1899. Composto de 148 capítulos, o romance
atinge dentro da obra Machadiana, a posição de obra prima. Invocando as imagens
do passado, Dr. Bento Santiago tenta a reconstituição de toda a sua vida na velhice. É
a partir do fim vida que se começa a grande obra de Machado de Assis. Pode parecer
contraditório, mas os assombros vividos por Bento Santiago ao lado de Capitu são o
seu último fôlego de vida. “Nunca nas letras brasileiras foi possível igualar as cenas
idílicas entre Bentinho e Capitu...”187
Embora composto de 148 capítulos, o romance é construído através de
pequenas cenas e incidentes, portanto a estrutura do livro assemelha-se a uma peça
teatral. O aspecto moral do romance, mais especificamente o tema do adultério,
como quiseram muitos críticos de Machado de Assis, não entra em nosso trabalho
como foco principal, todavia sobrevoaremo-lo.
As cenas de Capitu e Bentinho, protagonistas do romance, serão o foco de
nossas análises. Demonstraremos, gradualmente, que a antropologia pode ser vista
como plataforma das análises de cunho teológico. A relação entre Deus e o humano
machadiano, denuncia em primeira mão a possibilidade de uma leitura descritiva
dessa forma de buscar o transcendente.
Todavia, o humano machadiano situa-se entre a resignação e a inquietude
perante a vida. A relação com o Deus do romance condicionará parte da história do
romance e não toda a história. O homem machadiano é o homem do cotidiano; é o
homem da família fidalga do século XIX; é o homem das crises existenciais
provocadas pelas paixões humanas; é também o homem que se relaciona com Deus
nas situações limites da vida, mas também é o homem em emergência, que sai da
vida rural com suas tradições e assume a cosmopolitização em sua existência. Isto
denuncia alguns sinais do mundo moderno, urbano, do Rio de Janeiro.
3.1.1. Na ficção: a religião e o homem
O romance enquanto estrutura narrativa abriga outros elementos
determinantes para compreensão de seu mundo. Em Dom Casmurro, o catolicismo
popular aparece como um desses elementos indispensáveis ao cenário da trama
principal.188 A vida cotidiana religiosa do século XIX constitui-se palco dos
momentos existenciais e decisivos do protagonista Bento Santiago e de outras
personagens.
As personagens vivem, portanto, numa condição de abertura a
transcendência, posto que faz parte da humanidade do homem o fato de abrir-se à
187 Barreto FILHO, Romancista. In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 109. 188 Cf. John GLEDSON, Machado de Assis: impostura e realismo , p. 158-159.
transcendência e de viver com ela.189 Se as personagens são as expressões humanas
no mundo do texto, pensamos que elas podem se apresentar ao mistério e ao enigma,
ao que não é visível ao humano. É essa capacidade do homem pensar o que não está
aí, o que ultrapassa o nível do real factual, que consideramos ser uma abertura para a
reflexão teológica.
Consideramos esses aspectos ao preconizarmos a promessa como porta de
entrada para o texto. Ela incita-nos a refletir sobre as nossas próprias descrições das
relações entre os humanos do romance e o Deus que se apresenta nele. Entendemos
que o homem pode refletir sobre a eternidade, o ser, a transcendência, Deus e ainda
relacionar-se com elas. A nossa leitura antropológica do romance considera todos
esses fatores, portanto não aprisiona o homem do romance Dom Casmurro às zonas
tórridas da imanência.
Metodologicamente, o salto que daremos da antropologia para a teologia
considerará as relações entre elas em dois níveis: as relações desse homem com o
Deus e as relações desse Deus como o homem. Esta proposta considera que a
revelação é um diálogo entre Deus e o homem, diálogo este que encontra sentido
apenas na fé que recebe a Revelação.190
189 Sobre a abertura humana à transcendência, cf. Luiz Gonzaga de MELLO, Antropologia Cultural. Citado por Antonio MANZATTO, op. cit., p. 223. 190 Sobre esta concepção de revelação concordamos incondicionalmente com Antonio Manzatto, todavia, ele afirma que a Revelação não é prisioneira da antropologia, mas que a compreensão que se tem atualmente da Revelação sobre o ser de Deus é mais ou menos tributária da compreensão que se tem sobre o ser do homem. Isso, ressalta Manzatto, pode trazer alguns problemas à teologia, como construir-se um Deus à imagem e semelhança do homem. Para Manzatto é importante não se compreender a Revelação como um sistema de verdades sobre Deus e sobre o homem que se transmite de geração em geração. Para ele a Revelação é um diálogo entre Deus e homem, diálogo que encontra sentido apenas na fé que recebe essa Revelação. Dessa forma, a revelação não é simplesmente objeto de estudo através de um possível método científico, mas sim um diálogo com Deus acolhido na fé. Além disso, a Revelação é sempre atual na medida em que ela é a resposta às questões do homem; como a história avança, novas questões são sempre colocadas pelos homens à Revelação. Assim, a revelação não é apenas algo do passado, mas também algo do futuro. A palavra de Deus deve falar aos homens de todos os tempos, inclusive em face de questões que não lhe foram colocadas. Assim sendo, todo avanço na compreensão do ser homem e de sua vida no mundo pode também ajudar na compreensão da Revelação, mostrando seu aspecto que até então não haviam sido percebidos. Nesse sentido, todo avanço antropológico pode também significar um avanço teológico, na medida em que uma melhor compreensão do homem pode ajudar a melhor compreender Deus e sua revelação, e mesmo favorecer essa compreensão; inversamente, todo avanço teológico deve também significar um avanço antropológico, visto que pode proporcionar uma melhor compreensão do der humano e do sentido de sua vida no mundo em busca da realização e da felicidade. Cf. Jean-Pierre LABARRIÈRE. “Dieu hors Dieu”; VÁRIOS, Qu’est-ce que Dieu? p. 469-477, Claude GEFERÉ, “Esquisse d’une théologie de la Révélation”; in VÁRIOS, La Révélation , p.171-205, Adolphe GESCHÉ, “Apprendre der Dieu ce qu’ll est”; in VÁRIOS, Qu’est-ce Dieu?, p. 715-753. Citados por Antonio MANZATTO, op. cit., p, 225-226.
3.1.2. Notas antropológicas
3.1.2.1. Um homem que se relaciona com Deus
Dona Glória encontrava-se diante de uma malograda experiência maternal –
o fato de seu primeiro filho ter nascido morto -, por isso apegou-se com Deus, a fim
de que o segundo nascesse com vida. Não constitui um absurdo dizer que esta
situação nos indica a possibilidade de relação do humano machadiano com Deus. A
promessa, diante de nossas lentes, constitui, sobretudo, no interior do próprio homem
machadiano, a noção completa de estar submerso num mundo, onde a possibilidade
de pensar em Deus é também a evidência de ter vida.
Conforme já dissemos, a resposta de Deus à D. Glória condiciona toda as
tramas que pretendemos percorrer. Deus concede à impotente senhora o direito de ser
mãe, todavia há um preço a ser pago. O bem maior da promessa, o menino Bentinho,
deverá ser dado á Igreja. Diante de tal fato temos algumas evidências da necessidade
humana em buscar nas esferas transcendentes as respostas para as questões
existenciais.
3.1.2.2. Um homem que se relaciona com outros homens
A vida cotidiana no romance Dom Casmurro reflete fielmente as relações
entre os participantes da fidalguia do século XIX. A casa onde Bentinho foi criado
dá-nos uma noção da importância das relações entre as personagens para a
construção do romance. Dividiam o mesmo espaço da casa D. Glória, o tio Cosme,
prima Justina, Bentinho, o agregado José Dias e freqüentemente o padre Cabral,
adversário do tio Cosme nas partidas de gamão.
As relações estabelecidas entre as personagens da casa não em todos os seus
aspectos convencionais. Elas exercem, em maior ou em menor grau, determinadas
forças no modo de agir, pensar e às vezes nas tomadas de decisão de personagem.
A promessa feita por D. Glória foi testemunhada por parentes e amigos da
família e a denúncia para o cumprimento dela ao cabo do tempo determinado vem de
José Dias, o agregado. Todavia, no desenrolar dos fatos, José Dias demonstra-se fiel
e conselheiro do menino Bento.
Essas circunstâncias denotam, de forma diminuta, alguns traços
antropológicos, posto que descrevem mais que definem as personagens machadianas.
Elas são seres, que amam, odeiam, relacionam-se, experimentam a morte ou a dor
por ela provocada e que ainda encontram espaço, em suas vidas fictícias, para
aproximar-se e distanciar-se de Deus.
3.1.2.3. Capitu e Bentinho: seres que se amam
A paixão mútua entre Capitu e Bentinho denuncia, em primeira mão, a vida
através obra de ficção. Ainda meninos, Capitu e Bentinho cresceram juntos na rua de
Mata-cavalos. Vizinhos e amigos de infância dividiam o quintal de suas casas para as
meninices do dia-a-dia e às vezes reservam um lugar especial para brincadeiras, que
certos adultos católicos da época, não gostariam de ver.
A paixão entre os dois é denunciada no capítulo 14 do Dom Casmurro, porém
o prenúncio se dá no capítulo 13, quando Bentinho percebe Capitu junto ao muro da
casa dela, numa daquelas tardes em que um procurava o outro para praticar as
meninices.
“Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com prego... Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender dentro de mim o desejo de ler o que era. (...) Dei um pulo antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes ao prego, e assim dispostos:
Bento Capitolina
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças...”191
É Capitu o “objeto” de desejo e de admiração de Bentinho, como também é o
de Bento Santiago e o de Dom Casmurro. O motivo das memórias de Bento
Santiago, conforme já dissemos, se resume numa vontade intensa de atar as duas
pontas da vida. Isto é, reconstituir a adolescência na velhice. Todavia, sua decepção
amorosa frente ao seu casamento com Capitu; seu diploma de bacharel; sua amizade
com Ezequiel de Souza Escobar; as aulas de latim com o padre Cabral, o
protonotário; e a vida enclausurada após chegar a velhice, nada disso teria acontecido
se não fosse a promessa sua mãe, D. Glória.
191 MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Op. cit, p. 822-823.
É pela promessa que gostaríamos de chegar ao texto e também às suas
personagens. Capitu e Bentinho são o rosto da obra. A promessa, portanto, enquanto
elemento textual, interessa-nos mais que os primeiros ardis de paixão entre os dois.
3.1.3. Notas preliminares
Estamos, agora, diante da tarefa de descrever e refletir teologicamente sobre
alguns pontos do romance. E para tanto buscamos no caráter antropológico da obra a
fundamentação para esse labor. Todavia, antes de darmos o salto da antropologia
para a teologia, queremos tecer algumas notas elucidativas sobre a relação teologia e
literatura, como também da relação antropologia e literatura.192
Por isso, cortamos o texto até encontramos um lugar possível para as
reflexões teológicas, sem necessariamente nos preocuparmos com categorizações da
tradição teológica clássica. E este lugar, conforme já dissemos, é o mundo das
personagens. Queremos com isto sinalizar o que é possível para uma reflexão
teológica dentro do literário, mais especificamente, no romance Dom Casmurro.
Com base neste aspecto dialogal (homem x Deus / Deus x homem), queremos
afirmar que a nossa postura diante do labor teológico dentro do romance Dom
Casmurro, concorda com o que postula Antonio Manzatto, por considerar que o
discurso sobre o homem não elimina o discurso sobre Deus mas, ao contrário,
podemos a partir da compreensão do homem revelar a idéia que se tem Deus. “Isso
significa que toda antropologia desemboca em uma teologia e, inversamente, que
toda teologia ocasiona também uma antropologia.”193 Se a anotações que
empreenderemos não forem capazes de definir que tipo de Deus e que tipo de
homem podemos ter das leituras antropológicas somadas aos elementos textuais
encontrados nas tramas, elas serão, minimamente, descritivas da relação entre Deus e
o homem, como também da relação entre o homem e Deus.
192 Somos tributários de Antonio Magalhães no que toca aos postulados sobre valor teológico e consistência teológica de um texto literário. Magalhães afirma que o texto literário é visto como amostra e interpretação da realidade humana e, como tal, não possui, aparentemente, uma consistência teológica, sem que seja negado o valor teológico. Cf. Antonio MAGALHÃES, op. cit., p. 190. Quanto à relação antropologia x teologia, devemos tributos a Antonio Manzatto. Este teólogo afirma que a teologia cristã não fala de um Deus qualquer, ou seja, fala do Deus que fala aos homens; da mesma forma, seu discurso sobre o homem é um discurso centrado sobre o homem que fala de Deus. Cf. Antonio MANZATTO, op. cit., p. 223. 193 Ibid. p. 226.
3.2. Entre a promessa e a vida: a negação de Deus
Já é sabido que Bentinho foi prometido à Igreja por sua mãe, D. Glória e que
a resposta de Deus determina e consuma o pedido daquela senhora que havia perdido
seu primeiro filho. Estamos diante dos primeiros traços da busca humana pela
transcendência dentro romance. Há neste episódio uma reconstituição de algumas
cenas categoriais da teologia clássica.
Estabelecido o pacto com Deus, D. Glória vê-se no dever de pagar pela
benção recebida. Todavia, a benção é o seu filho. E Bentinho não se vê como
participante da promessa e, ao saber dos fatos, procura todos meios os possíveis para
escapar dela. O fato que queremos chamar a atenção, neste momento, é para o Deus
que começa a se revelar no romance. Este Deus é um Deus próximo do homem e não
perdido nas infinitas zonas do plano superior, mas sim, ocupado em conceder aos
homens os pedidos que tem origem nas mais variadas situações limites da vida
humana. O Deus que se revela é, portanto, o Deus das promessas.
Embora haja, notadamente, no romance todos os indicativos da resistência ao
cumprimento da promessa por parte do menino Bento, ele se mostra aberto a um
relacionamento com esse mesmo Deus. Esta relação entre Bentinho e Deus tem o seu
ponto de evidencia no capítulo 20, onde se memorando dos tempos menino, o Dom
Casmurro lembra a intensidade com a qual buscava os céus. O caráter paratextual do
capítulo em questão remete-nos mais uma vez à trama fundamental do romance.
MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS
“Levantei os olhos ao céu, que começava e embruscar-se, mas não foi para vê- lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: - Prometo rezas mil padres nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não para o seminário. A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei ao número vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; alem disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida
antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que trazia do berço e não sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga.Afinal perdi-me nas contas.”194
A relação entre o homem e Deus, ou seja, a relação que vai do plano da
imanência à transcendência, pode ser percebida, notadamente, a partir da promessa
de D. Glória, como também pela vida transcendente-experimental de Bentinho.
Queremos situar a relação homem x Deus a partir desses dois eixos no romance.
Essa relação homem x Deus, ou seja, a relação que apresenta o Deus como
controlador e mantenedor da vida, vista pelo prisma antropológico, revela um Deus
que é capaz de abrir-se ao exterior, ao que é outro. Deus, portanto, não é um ser
fechado em si mesmo. Manzatto diria que o seu ser, ou seja, o ser de Deus, é,
fundamentalmente, essa capacidade de sair de si para ir ao encontro do outro, para ir
ao encontro do homem, para estabelecer com ele relações, alianças, com vistas à
realização e á felicidade desse mesmo homem. 195
A nossa leitura do mundo do Bentinho, desde a promessa, revela um mundo
ordenado, encantado pelo Deus que é autor e controlador de sua vida. As situações
minoritárias na vida do menino são resolvidas com pedidos e pequenas promessas
não pagas, todavia sempre tributárias da promessa de sua mãe.
Porém, não é a perspectiva de um Deus controlador e mantenedor da vida que
se revela por todo romance. Há uma ruptura, uma quebra das relações entre o Deus e
pessoa de Bentinho. Para que essa ruptura seja visualizada é preciso que foquemos os
nossos olhares para a autonomia e a liberdade de Bentinho em relação com a
promessa.
Capitu era o desejo maior de Bentinho e, portanto, seria impossível
administrar o legado de ser padre e a vontade de estar ao lado de Capitu. Esta
vontade para o nosso olhar revela, sobretudo, a vontade de explodir em direção à
vida, sem as amarras do Deus que a concedeu, mas que de certa forma não permite
que ela seja realizada em sua plenitude. É necessário, portanto, matar o Deus
promessa, para que a vida possa se realizar em sua plenitude.
Bentinho inicia o processo da morte de Deus com o auxílio Ezequiel Escobar.
No capítulo 78, intitulado Segredo Por Segredo, Bentinho confessa abertamente a 194 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 830-831. 195 Cf. Antonio MANZATTO, op. cit., p. 262.
Escobar que não se sente vocacionado a Igreja e que seu maior desejo na vida
restringe-se a uma pessoa.
SEGREDOS POR SEGREDOS
“- Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e esperam; mais eu não posso ser padre. (...) - Só isso? - Que mais há de ser? Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidência, tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse “uma pessoa...” com reticência. Uma pessoa? Não foi preciso mais para que ele entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. (...) Deu-me de conselho que não me fizesse padre. Não podia levar para a Igreja um coração que não era do céu, mas da terra.”196
É sob esta noção de não conciliação da vida monástica com a vida que precisa
ser vivida, denunciada por Ezequiel Escobar, que conduziremos as nossas anotações.
Portanto, na medida em que é apresentada a morte de Deus, o controlador da vida e
mantenedor da ordem das certezas, Bentinho passa, gradualmente, a perder os pontos
de diálogo com o Deus, como também passa a perceber a caotização do mundo
diante de sua vida. “Quanto mais sensíveis os homens se tornam para a felicidade da
vida tanto mais eles sentem a dor pelos fracassos da vida.”197
Portanto, é também a partir do desejo de viver que Bentinho dá andamento ao
processo da morte de Deus. O mundo ordenado, organizado que tramita entre os
pedidos e os atendimentos divinos se dilui no estabelecimento de um mundo operado
pelas circunstâncias negativas da vida humana.
Todavia, essa transição não se dá de maneira brusca dentro do romance.
Focalizaremos o capítulo 80, intitulado Venhamos ao Capítulo, como o momento
inicial do processo que deságua na segregação de Deus na vida de Bento Santiago.
Antes de iniciarmos o último ponto gostaríamos de apresentar integralmente este
capítulo.
O capítulo a seguir está diante do nosso olhar como o episódio que marca a
transição do universo de relações entre o humano e Deus. Mas para que esta tese se
sustente pretendemos ver este episódio como uma proposta de relativização das 196 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 886-887. 197 Cf. Jürgem MOLTMANN, O espírito da vida, p. 100.
experiências religiosas com o transcendente, em favor de uma vida desencantada e
aprisionada nas zonas da imanência.
Dado, nesse capítulo aos seus pensamentos, Bento Santiago apresenta pela
primeira vez a possibilidade de ter vindo ao mundo por uma razão natural e não pela
promessa de sua mãe, pois para ele Deus não haveria de ter motivo de negar um
segundo filho à sua mãe.
Como já dissemos o narrador do romance é o Casmurro, portanto, é ao
mesmo tempo o menino Bento, aquele da rua de Mata-cavalos, como também o
homem que descobriu na vida sem Deus a felicidade como bem último. Descortina-
se neste capítulo um personagem híbrido, ou seja, um personagem que conhece bem
o menino da rua de Mata-cavalos e Dr. Bento Santiago da velhice. Vamos ao texto!
VENHAMOS AO CAPÍTULO
“Venhamos ao capítulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo está contado oportunamente. Outrossim, sabes que para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria, no íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, é possível que alterasse os planos,e, como tinha vocação da política, é provável que me encaminhasse somente à política, embora os dois ofícios nem sejam inconciliáveis, e mais de entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu pai morrera sem saber nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora. Um dos aforismos de Franklin, é que, para quem tem de pagar na páscoa, a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras, e minha mãe, posto me mandasse estudar latim e doutrina, começou a adiar a minha entrada no seminário. É o que se chama, comercialmente falando, reformar uma letra. O credor era arquimilionário, não dependia daquela quantia para come, e consentiu nas transferências de pagamento, sem sequer agravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de entregar o preço ajustado; está num dos capítulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a S. José. (...) Católica e devota, sentia muito bem que as promessas se cumprem; a questão é se é oportuno e adequado fazê-las todas, e naturalmente inclinava-se à negativa. Por que é que Deus a puniria, negando- lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem necessidade de lha dedicar ab ovo... Era um
raciocínio tardio; deveria ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminário. Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava como os seus grandes olhos ingênuos. Minha mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para conservar-me consigo, fora do clero, casado e pai; é o que presumo, assim como suponho que rejeitou tal idéia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti sempre na corrente da vida ordinária... Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-se- lhe necessária. Pouco a pouco veio- lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anunciado), a esperança de que nosso amor, tornando-me absolutamente incompatível como o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus nem pelo diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguém a importância de uma divida para levá- la ao credor, o portador guardasse o dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com céu é que intenção vale dinheiro. Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o céu e a terra, por modo idêntico ou análogo. O céu e a terra acabam conciliando-se; elas são quase irmãos gêmeos, tendo o céu sido feito no segundo dia e a terra no terceiro. Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No momento de fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do senhor: ‘não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus’.Tal seria a esperança secreta de minha mãe. Capitu era naturalmente o Anjo da Escritura.”198
198 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 889-890.
3.3. As amarguras da vida: o silêncio de Deus O ponto culminante do que denominamos ser a morte de Deus na vida de
Bentinho, é o fim da promessa. Não há possibilidade de conciliação da vida monacal
com a vida que quer explodir ao se admitir a quebra da promessa. Podemos, em
princípio, concluir que o tema da liberdade humana sonda a atitude de Bentinho.
Podemos também dizer, já que nossa tarefa não reside na reprovação ou
aprovação das atitudes de Bentinho, que o sentimento e vontade de ir ao encontro da
vida numa esfera mais ampla, ofusca, anula, mata a presença de Deus em sua
perspectiva de futuro. Não queremos fazer do romance machadiano uma espécie de
romance vinhetista da modernidade, mas como nos apropriar da expressão morte de
Deus sem relacioná- la a Nietzsche?199
No nível teológico, a partir de uma visão fragmentária do conceito de
vitalidade em Moltmann, essa postura de Bentinho encarna-se, até certo ponto, na
vontade de transformar a própria vida numa vida criativa a partir dela mesma. A
categoria vitalidade para Moltmann mantém profundas relações com a percepção da
necessidade do amor à vida, que por sua vez, reflete a liberdade que caracteriza o
homem frente a ela, diante da iminente possibilidade de negação da própria vida, ou
seja, frente à possibilidade da morte. Por isso, para Moltmann o amor à vida é a
afirmação dela.200
199 No olhar de Roberto Machado, os dois parâmetros dos quais o super-homem aparece, no início do Zaratustra , são Deus e a terra numa condição de opostos. “O super-homem é todo aquele que supera as oposições terreno-extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma; é todo aquele que supera a ilusão metafísica do mundo do sentido, super-homem é superação, ultrapassagem. De que? Do homem tal como ele foi; do homem do passado e sua crença em Deus. Nietzsche não quer provar que deus não existe, como faziam os ateus. O que lhe interessa é mostrar como e por que surgiu e desapareceu a crença de que a haveria um Deus. Para Roberto Machado, Nietzsche prenuncia que a fé no Deus cristão deixou de ser plausível; é a evidencia de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã, se encontra minada, de que desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou sua existência; é o diagnóstico da ausência cada vez maior do Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno; é a percepção Poe alguém dotado de uma capacidade suspeita penetrante, de um olhar sutil, do maior acontecimento recente: a desvalorização dos valores divinos.” Tudo isso, para Roberto Machado, não tem sentido se não pudermos demonstrar quem é o homem que matou Deus. O homem que é autor da morte de Deus é o homem moderno, responsável pela perda da confiança em Deus, pela supressão da crença no mundo verdadeiro, originário da metafísica clássica e do cristianismo, pela substituição da teologia pela ciência, do sono dogmático pelo sonho antropológico, do ponto de vista de Deus pelo ponto de vista do homem. A expressão morte de Deus é a ruptura que a modernidade introduz na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino. Significa, portanto, a substituição da autoridade de Deus e da Igreja pela autoridade do homem; a substituição da autoridade do desejo de eternidade pelos projetos de futuro, de progresso histórico; a substituição de uma beatitude celeste por um bem-estar terrestre. Cf. Roberto MACHADO, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 45-48. 200 Cf. Jürgem MOLTMANN, op. cit., p. 89.
Todavia, o que percebemos com o nosso olhar é que o salto que Bentinho dá
para a vida transforma seu mundo num imenso mar de decepções. Isto pode,
teologicamente, sinalizar a possibilidade de um voltar-se para Deus ou, ao contrário,
pois o ato de sair do paraíso faz parte de uma vocação humana para o
estabelecimento de sua humanidade, uma humanidade que conhecerá a dor de
conhecer, de ser autônoma, mas que só assim será verdadeira humanidade. O que nos
interessa agora é mostrar, a partir do romance, a quebra da promessa. Este momento
é denunciado pelo Capítulo 96, intitulado Um Substituto.
UM SUBSTITUTO “(...) Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu com igual atenção e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quase me comeram de contemplação. De repente, vi- lhe no rosto um clarão, um reflexo de idéia. E ouvi- lhe dizer com volubilidade: - Não Bentinho, não é preciso isso. Há melhor, - não digo melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo, - mas há coisa que produz o mesmo efeito. - Que é? - Sua mãe fez a promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê- lhe um sacerdote que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê- lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você... - Entendo, entendo, é isso mesmo. -Não acha continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário; ele lhe dirá se não é a mesma coisa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao Sr. Bispo. - Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre. (...) sentia-me pilhérico. Oh! Como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com seus olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, agradeci o novo plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me contentíssimo. -Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religião e a liberdade fazem boa companhia.”201
No capítulo 97, intitulado A Saída, vem a autenticação da idéia de Ezequiel
Escobar.
201 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro . In. Obra completa, Afrânio Coutinho (org.), p. 903-904.
A SAÍDA “Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o padre Cabral, tendo consultado o Bispo, voltou a dizer- lhe que sim, que podia ser, Saí do seminário no fim do ano. (...) Um dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos.”202
As nossas lentes permitem-nos dizer que a quebra da promessa inaugura a
morte do Deus da promessa na vida de Bentinho, que usufruirá não de forma perene,
mas de forma volátil dessa liberdade que está sob a égide de sua autonomia e auto-
afirmação como ser sem Deus.
A quebra da promessa dilui o mundo organizado pelo qual Bentinho tateava
desde o seio materno. Não existe mais o imperativo de Deus sobre a sua vida. Daí a
tendência da instalação das circunstâncias caóticas em seu mundo. O futuro é aberto
e Deus como a âncora, o organizador do mundo, agora, encontra-se impotente diante
da vida de Bentinho, pois foi submetido ao processo de morte e segregação.
Seguindo esta tese, podemos dividir o romance Dom Casmurro em duas
partes. A primeira reflete as experimentações do protagonista, numa vida outorgada,
organizada e presidida por Deus. E uma segunda fase, onde pela quebra dos laços de
relações entre Deus e Bentinho, estabelece situações de extrema introspecção e
caotização da vida.
Como eixo norteador da idéia de morte e segregação de Deus a partir do
romance, pontuaremos alguns momentos que refletem situações de desequilíbrio
diante da caotização da vida de Bentinho. Se podemos, portanto, evidenciar esse
caráter caótico a partir de circunstâncias experimentais da vida de Bentinho, é
necessário antes que anunciemos outra porta de entrada para a visualização de tais
questões. Neste caso, o título do capítulo 100 é o paratexto denunciador. Neste
capítulo situaremos também o caráter efêmero da afirmação de Bentinho frente à
vida.
TU SERÁS FELIZ BENTINHO! “No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava calado e zeloso.
202 Ibid., p. 904-905.
Uma fada invisível desceu ali, e me disse em voz igualmente macia e cálida: ‘tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz’. - E porque não seria feliz? perguntou José Dias , endireitando o tronco e fitando-me. -Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado. -Ouviu o quê? -Ouviu uma voz que dizia que eu seria feliz? -É boa! Você mesmo é que está dizendo...”203
A auto-afirmação de Bentinho frente ao mundo caótico que se instaurou com
a morte de Deus é necessária posto que o mundo descortinado não o oferece
garantias. O mundo das garantias se esvaiu com a morte Deus. Essa auto-afirmação é
o que apresenta semelhança com o conceito de vitalidade em Moltmann. Todavia, na
vida de Bentinho, o lançar-se sobre a vida possui um caráter estéril e efêmero, pois
não há garantias de sustentabilidade diante dela. Portanto, torna-se necessário para
Bento Santiago dizer para si “tu serás feliz”.
203 Ibid., p. 906.
3.4 Um mundo caótico
O caráter efêmero da auto-afirmação de Bentinho reside nas inconsoláveis
circunstâncias de vida. Veio o casamento com Capitu e a parir dele as amarguras e as
desconfianças - símbolos da caotização do mundo de Bentinho - que se encarregaram
de construir paulatinamente um mundo disperso das relações com Deus, a natureza, o
outro e si mesmo.
O primeiro sintoma do caos instalado na vida de Bento Santiago é o não
reconhecimento da figura humana e dos sentimentos pertinentes a elas. O estar diante
do outro provoca em Bentinho a procura da plataforma que sustentava as relações
seguras e garantidas. Sem o Deus da promessa ele não consegue reconhecer na
Capitu da Glória a Capitu da rua de Mata-cavalos.
“O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.”204
Este trecho flagra a desarmonização entre Bentinho e outro, como também
consigo mesmo. A perda da realidade recai sobre o protagonista do romance como
uma implosão do seu mundo. Tudo lhe é estranho.
As desconfianças se acirram no capítulo 106, intitulado Dez Libras
Esterlinas. Bento Santiago ao chegar a casa descobre que seu amigo Escobar lá
estivera pouco antes de chegar. Nesse entrelaçamento de relações, Bento sofre ainda
com o filho que o casamento ainda não o legou e passa, definitivamente, a partir do
capítulo 107, intitulado Ciúmes do Mar, a viver num mundo de consternações.205
CIÚMES DO MAR “(...) Não meu amigo. Venho explicitar-te que tive tais ciúmes de pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela.”206
Os ciúmes são evidências da perda das garantias do amor de Capitu e da
felicidade ao seu lado. O desencantamento do mundo207 debruça-se sobre a vida de
204 Ibid., p. 944 205 Este trecho revela que Bentinho perde a noção das relações com o cosmos. O mar provoca ciúmes no jovem bacharel. A noção de totalidade está concentrada em si. A morte de Deus fez que com Bentinho perdesse o diálogo com o mundo. Associamos, portanto, esta anotação ao conceito de desencantamento do mundo. 206 Ibid., p. 912-913. 207 Em Weber o conceito “desencantamento do mundo” revela uma depreciação das cosmovisões religiosas em favor de uma compreensão racional do mundo da vida, cf. Luiz Bernardo Leite Araújo.
Bento Santiago. A perda do sentido da vida expressa o lançamento de Bentinho sobre
uma realidade insuportável.
Tendo nascido o filho, cujo nome homenageia seu grande amigo Escobar, as
preocupações se lançam sobre as possíveis aparências entre o Ezequiel filho e o
Ezequiel amigo.208
Na tentativa de resgatar o mundo organizado, num sentido nostálgico, Bento
Santiago mergulha cada vez mais em si, sem encontrar forças para confrontar-se com
a realidade. Portanto, busca os momentos primeiros do mundo em que viveu sobre a
tutela do Deus que ele mesmo se encarregou de matar. As consternações se movem
numa velocidade voraz diante de sua vida. No capítulo 113, intitulado Embargos de
Terceiros, Dr. Bento atesta a insustentabilidade de sua vida.
EMBARGOS DE TERCEIROS
“Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê- lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. (...) Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. À minha própria mãe não queria mais que a metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela.”209
A caotização do mundo de Bentinho leva-o ao mais alto ponto das
consternações de sua vida: a vontade de morrer. As desconfianças em Capitu cada
vez mais evidentes e a impotência de diante da possibilidade de seduzi- la ou amá-la
nas formas mais puras, escondem-se no ciúme inexplicável e nos trágicos
sentimentos.210
“Weber e Habermas: Religião e razão moderna”. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 21, n. 24, 1994. Em Bentinho o conceito de “desencantamento do mundo” significa a despedida de uma compreensão de um mundo regido pelas promessas que nada mais são que uma intervenção mágica na realidade. 208 Cf. MACHADO DE ASSIS, op. cit., Capítulo 112, p. 918. 209 Ibid., 918-919. 210 No capítulo 125, Bento Santiago busca no drama de Príamo uma comparação para o caos de sua vida. Tal comparação se dá mais especificamente por ocasião da morte de Escobar. No enterro, Capitu fitou o defunto de forma tão tenra que provocou elucubrações em seu marido. Cf. capítulos 121, 122, 123,124. “Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas
A opção pela morte levou Bentinho e Capitu à separação. A introspecção de
Bentinho em sua própria realidade fez com que ele pensasse no suicídio como
também na possibilidade de homicídio do filho. Tudo se daria ao ingerir uma xícara
de café com uma substância letal comprada numa farmácia. A insustentabilidade de
sua vida evidencia-se no capítulo 133, intitulado Uma Idéia.
UMA IDÉIA
“Um dia, - era uma sexta-feira, - não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê- las de um lado para o outro, como fazem as idéias que querem sair. (...) A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida.”211
A fixa idéia da morte pretendia se cumprir no capítulo 136, A Xícara de Café.
Ao despejar a substância trazida num pedaço de papel, mexeu o café para ingeri- lo,
mas decidiu esperar que o menino e Capitu saíssem pra a missa. Ezequiel filho
entrou em seu gabinete e isto bastou para que recuasse. A idéia de sua morte como a
do filho está no capítulo 137, Segundo Impulso. A insustentabilidade da relação com
Capitu tem seu desfecho no capítulo 138, Capitu que Entra. Bento Santiago declara a
Capitu que não é pai de Ezequiel, após ter dito ao pequenino tal atrocidade.
SEGUNDO IMPULSO
- Papai! Papai! exclamava Ezequiel. – Não, não, eu não sou teu pai!
Capitu não teve o direito a defesa da atroz acusação feita por Bento Santiago,
todavia confinou-se a crer que a semelhança entre Ezequiel Escobar e Ezequiel filho
fosse os motivo cabal do marido. Capitolina, porém, reage afirmado o que propomos
ser a potencialização dos efeitos da quebra da promessa: a morte de Deus na vida de
Bento Santiago.
“- Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não fica bem dizer mais nada.”
em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos igual...” cf, Ibid, capítulo 125, p. 928. 211 Cf. Ibid., p. 934.
Capitu é capaz de reconhecer que a perda da crença em Deus explica a
caotização do mundo de Bentinho. A realidade, a partir do caos, tornou-se um animal
indomável na vida de seu dono. O Deus da promessa foi morto por Bento Santiago.
Esta era a condição única diante da vontade de lançar-se sobre a vida que não podia
ser conciliada com o sacerdócio.
A noção de totalidade, ou seja, o encher-se de si, em Bento Santiago manteve
relações com o movimento que ele fez em direção a procura da felicidade num
mundo desencantado. Porém, a quebra das relações com o transcendente trouxe ao
Casmurro a perda de tato com a realidade instalada e por isso não reconheceu o novo
mundo diante de seus olhos.
A realidade tornou-se insuportável diante da impotência de manutenção da
sua própria existência. Portanto, a morte do Deus que o enclausurou no Seminário
São José estabeleceu a perda do mundo das garantias em razão da efemeridade do
mundo desencantado, onde supostamente, para Bentinho, residia a felicidade.
Talvez Capitu fosse a mesma da rua de Mata-cavalos: a menina que usava
vestidinhos de chita, sapatos de duraque e tranças. Talvez Capitu fosse ainda aquela
menina que brincava de missa com seu companheiro; aquela que certa vez escreveu
no muro de sua casa:
Bento
Capitolina
CONCLUSÃO
Em nosso trabalho a pergunta pela teologia veio através da antropologia
contida no interior do romance Dom Casmurro. Para que chegássemos a esta
constatação, percorremos um caminho cuja finalidade foi a de encontrar os pontos de
intersecção para a relação entre teologia e literatura.
As anotações do primeiro capítulo nos conduziram às questões que, ao longo
de nossa tradição, permitiram as diferenças entre os textos considerados sagrados e
os textos tidos literários. Isto evidencia o porque de os trabalhos dos poetas e
escritores, ao longo dos séculos, foram colocados nas zonas da fruição e do devaneio.
Afirmamos que a querela entre literatura e teologia estendeu-se até o século
XX. Portanto, trouxemos, a partir do contexto europeu, um momento exemplar para
visualização dos conflitos entre a arte literária e religião cristã. Todavia, observamos
que no despontar dos séculos a religião e arte se encontravam num cenário recíproco.
A religião apresentava-se como crítica da arte literária alemã, enquanto que os
escritores e os poetas, representantes da crítica literária, não admitiam elementos da
teologia cristã como pressuposto estético.
Afirmamos ainda neste capítulo que os temas teológicos nascem no interior
dos textos tidos como sagrados ou literários. Para tanto, buscamos o trabalho de Jack
Miles. Deus. Uma biografia revelou-nos que é possível pensar Deus como
personagem literário. O trabalho de Miles não tem interesse filosófico, como o de
negar a existência de Deus, ou um interesse meramente teológico, assumindo a
necessidade de provar sua existência, mas o aspecto literário da Bíblia hebraica que
apresenta imagens de Deus, buscando então a essência estética dessa criação literária.
O trabalho de Miles fez com que admitíssemos que os textos bíblicos – tidos
como os únicos sagrados em nossa tradição – podem assumir o caráter de literário.
Esta concepção rediscuti a idéia da natureza divina da linguagem. Portanto, outros
textos podem assumir a tarefa de falar dos temas da fé, sem que lhe sejam imputado
o caráter de divino.
Todavia, endentemos que ao colocarmos os textos sagrados no nível dos
chamados textos literários, não comprometemos somente o princípio que determina a
natureza divina da linguagem do texto bíblico, mas também a dimensão sagrada que
é atribuída a esses textos pelas comunidades de fé.
Outro problema que pôde ser levantado acerca das hipóteses abordadas por
Miles, é o que pode determinar, a partir de um texto, as distinções entre o que é
literário e o não- literário. A partir do trabalho de Miles assumimos a tarefa de
encontrar nos textos literários, mais especificamente no texto machadiano, temas que
até então eram de domínio da teologia clássica.
Para lidarmos com os temas teológicos no interior dos textos literários
recorremos a Antonio Magalhães. Em Deus no espelho das palavras, surge duas
categorias indispensáveis ao debate entre teologia e literatura. Magalhães afirma que
ao texto literário pode ser conferido valor teológico, embora este não apresente
consistência teológica. Portanto, as categorias valor teológico e consistência
teológica imputam-nos a obrigação de não sermos arbitrários ao nos aproximarmos
de um texto literário com a intenção de reflexão teológica.
Antes de oferecermos uma possível leitura teológica no romance Dom
Casmurro, colocamo-nos diante de um impasse: a cristalização dos temas teológicos
por parte da teologia clássica, como também o enrijecimento dos textos literários por
parte da critica literária.
As leituras em Harold Bloom trouxeram as evidências desta constatação.
Bloom em seu trabalho Abaixo as escrituras sagradas afirma que J não é tão
estranho como Homero. Para o crítico norte-americano há, sobretudo, nas análises
dos textos clássicos do Ocidente, o problema das tradições que os interpretaram ao
longo dos séculos. Por exemplo, as histórias de Iahweh nos são tão familiares que
não podemos lê-las em outro sentido, a não ser aquele que a tradição teológica
cristalizou.
Bloom também oferece críticas às interpretações que se encarregaram pela
cristalização dos textos da tradição literária ocidental. Por exemplo, pergunta o
crítico, o porquê de não ser Aquiles o herói da Odisséia? Porque a ironia como
princípio estético só pode estar em Kafka e não em J? Dessa forma, considerando
que há um “cânon” de interpretações diante dos textos de nossa tradição literária,
perguntaríamos se é de fato o possível adultério de Capitu ser o tema central do
romance Dom Casmurro, como quiseram muitos críticos de Machado de Assis.
Caminhamos em direção ao texto machadiano considerando que o seu
potencial teológico reside no seu caráter antropológico. A ponte entre o ficcional e o
teológico foi construída a partir da antropologia do romance. Seguimos, portanto, o
caminho literatura/ antropologia/ teologia.
Certificamos-nos que é o caráter antropológico do romance é a porta de
acesso ao teológico. Os romances enquanto estrutura narrativa e obra literária vão
além de uma narração ou de um relato. Nele está o contexto social, econômico,
racial, religioso, político, cultural, ideológico. Portanto, o teológico está no momento
em que a literatura romanesca aborda a problemática humana, que, por sua vez, é a
evidência do caráter antropológico.
A busca pelo antropológico foi antecedida por uma discussão com a crítica
literária machadiana, a fim de evidenciarmos a antropologia como tema transversal
na obra do autor de Brás Cubas. Portanto, ao dialogarmos com os trabalho da crítica
literária machadiana, percebemos que as convergências temáticas eram patentes,
todavia, limitadas por não apresentarem mecanismos hermenêuticos.
Mas o texto literário não é o real. A literatura é uma manifestação a partir da
realidade, mas não é a realidade. A ficção é uma produção humana. A personagem de
ficção não é o humano. Para responder a tais problemas buscamos o conceito de
mundo do texto em Paul Ricoeur. A elevação da obra literária ao nível da referência
trouxe-nos a contribuição teórica indispensável para se pensar a realidade a partir da
arte literária. As personagens ganham vida na medida em que circunstanciam as
problemáticas humanas nas zonas tórridas da imanência.
Verificamos, portanto, diante da elevação do texto literário a um outro nível
de apresentação, a possibilidade de entrarmos no texto machadiano de forma mais
livre. A nossa decisão foi a de entrar pelo texto. Esta decisão solapa a necessidade de
grande da crítica literária de entrar num texto literário a partir de elementos
extratextuais. Portanto, entramos em Dom Casmurro por ele mesmo. A teoria da
paratextualidade de Gerard Genette trouxe-nos a porta de entrada para o texto
machadiano: a promessa.
A promessa, com seu caráter anunciativo-ostensivo, é elemento textual que
mantém elos com todas as tramas do romance Dom Casmurro. O antropológico
como elemento intermediário entre o literário e o teológico, foi encontrado no centro
do capítulo que dá nome à trama principal do romance.
Ao ser prometido ao seminário, Bentinho, protagonista do romance, cria
vínculos existenciais com Deus que se revela à sua mãe, D. Glória. As relações entre
as personagens com o transcendente, assim como as relações entre o Deus que se
revela no romance, descreveram mais do que definiram o que consideramos ser o
teológico em Dom Casmurro.
A teologia em Dom Casmurro não se prestou às categorizações dogmáticas
da teologia clássica. Ela apontou-nos as características do Deus que se apresentou no
romance, a partir da experiência humana com esse Deus. Portanto, o Deus é
entendido a parir do humano. O homem em Dom Casmurro determina as condições
teológicas do romance.
O Deus que se apresenta ao homem a partir da promessa permanece como
controlador-regulador e mantenedor da vida, todavia sem conseguir controlar as
paixões das zonas mais profundas do ser humano. Nasce, portanto, desta fenda na
relação entre o homem e Deus uma possibilidade de ruptura com o mundo que é
organizado por esse Deus.
O Deus da promessa é o Deus que condiciona a vida de Bentinho ao
Seminário São José. É o Deus que só autenticou a vida de Bento Santiago porque a
ele foi feita uma promessa. É o Deus da causa e efeito. É o Deus do monastério
católico do século XIX.
Todavia, Bentinho prefere trocar o mundo das garantias, que é mantido por
esse Deus, por uma vida laica, sem interferências do transcendente. O Deus da
promessa é morto, porque algo é colocado como impossível diante de sua soberania:
conciliar a vida eclesiástica com a vida laica, profana ao lado de Capitu.
A essência do Deus controlador permanece nos interstícios da alma humana.
Ao matar o Deus da promessa, Bentinho cria um terreno propício para a instalação de
um mundo caótico, ou seja, renasce diante de vida do jovem advogado uma realidade
insuportável, posto que assume a totalidade enquanto ser e por isso a vida perde o
sentido. Portanto, afirmamos durante o terceiro capítulo que o desencantamento do
mundo e a caotização da vida nascem da morte do Deus da promessa.
A vitalidade de Bentinho descortina-se pela avidez em relação ao que é
desconhecido pelo seu mundo organizado. É pela força do desejo de viver que
Bentinho conheceu a realidade de um mundo caótico; um mundo desencantado que
só é desejado por quem é demasiadamente humano, e que vivendo neste mundo de
desencantos, não deixa de ter a nostalgia do divino.
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