FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA€¦ · Instituto Goiano de Pré-História e...

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1 Universidade Católica de Goiás Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996 Solange Bezerra Caldarelli (Organizadora) 1997 APOIO: PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura PATROCÍNIO: FURNAS Centrais Elétricas S/A PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional

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Universidade Católica de Goiás

Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia

FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA

ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE

POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL

Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e

a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil

Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996

Solange Bezerra Caldarelli

(Organizadora)

1997

APOIO:

PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura

IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

PATROCÍNIO: FURNAS Centrais Elétricas S/A

PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A

CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional

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ÍNDICE

Pág. Apresentação - Jézus Marco de Ataídes ..........................................................

Introdução - Solange Bezerra Caldarelli ........................................................

1a. Mesa-Redonda: DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO

AMBIENTAL ...........................................................................

Expositores ..........................................................................................................

Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em

áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Paulo J. de C. Mello

......

Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens históricos, em áreas

de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Marcos André Torres de Souza

Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em áreas de implantação de dutovias - Jorge Eremites de Oliveira .............................

2ª Mesa-Redonda: AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS AMBIENTAIS

Expositores ..........................................................................................................

Avaliação dos impactos de grandes empreendimentos sobre a base de recursos

arqueológicos da nação: conceitos e aplicações - Solange Bezerra Caldarelli

........

Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos regionais e medidas mitigadoras aplicáveis - Gilson Rodolfo Martins ..................................................

Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos urbanísticos e medidas mitigadoras aplicáveis - Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani

.........................

3ª Mesa-Redonda: ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE

RESGATE E MONITORAMENTO DOS BENS PRÉ-HISTÓRICOS E

HISTÓRICOS..................................................................................

Expositores ..........................................................................................................

O uso de variáveis ambientais na detecção e resgate de bens pré-históricos em

áreas arqueologicamente pouco conhecidas - Emília Mariko Kashimoto ................

O resgate de bens arqueológicos pré-históricos em áreas de implantação de

empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Dilamar Cândida. Martins .................................................................................................

O resgate de bens arqueológicos históricos em áreas de implantação de

empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Carlos

Magno Guimarães ...............................................................................................

Detecção e resgate de bens arqueológicos em áreas de implantação de projetos

rodoviários - Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos .................................

4ª Mesa-Redonda: RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE DIAGNOSTICÁ-

LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E MONITORAR SEUS IMPACTOS

................

Expositores ..........................................................................................................

O patrimônio natural e o cultural: por uma visão convergente - Antonio Carlos

Sant’Ana Diegues ................................................................................................

A contribuição dos estudos antropológicos na elaboração dos relatórios de

impacto sobre o meio ambiente - Rinaldo Sérgio Vieira Arruda

.........................................

Levantamento e diagnóstico de bens culturais intangíveis - Carlos Eduardo

Caldarelli ............................................................................................................

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O resgate da cultura intangível refletida na cultura material - Heloísa S. F. Capel

de Ataídes ............................................................................................................

Pág.

5ª Mesa-Redonda: GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO

FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO DAS

NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E AMBIENTAL...........

Expositores ..........................................................................................................

As Cartas Internacionais e a Proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro - Suzanna

Cruz Sampaio ......................................................................................................

As normas de proteção ao patrimônio cultural brasileiro em face da Constituição

Federal e das normas ambientais - Helita Barreira Custódio .................................

Aspectos jurídico-processuais da proteção ao patrimônio cultural brasileiro -

Roberto Monteiro Gurgel Santos .........................................................................

Aspectos jurídicos da proteção ao patrimônio cultural arqueológico e

paleontológico - José Eduardo Ramos Rodrigues .................................................

O licenciamento ambiental e a competência dos órgãos de proteção ao patrimônio

cultural brasileiro - Carlos Eduardo Caldarelli ....................................................

Documento-Síntese .........................................................................................

ANEXOS: ..................................................................................................................

1. Parecer acerca da avaliação do impacto da Hidrovia Paraguai-Paraná sobre o

patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul - Jorge Eremites de Oliveira ...... 2. Coletânea da legislação de proteção ao patrimônio cultural ...................................

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APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que a Universidade Católica de Goiás, aqui

representada pelo Instituto Goiano de Pré História e Antropologia, na

comemoração de seus 25 anos, apresenta, de forma inédita, as mais recentes

discussões acadêmicas e políticas que envolvem a preservação cultural no

Brasil, incluindo bens históricos e pré-históricos. Este documento foi

produzido durante o simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e

Patrimônio Histórico Cultural”, um evento do Fórum Interdisciplinar Para

o Avanço da Arqueologia e realizado, em Goiânia, pelo IGPA/UCG durante o

período de 09 a 12 de dezembro de 1996.

Tendo como objetivo central investigar as repercussões dos dez anos

da Resolução CONAMA nº 001/86 que instituiu a Avaliação de Impactos

Ambientais, o importante encontro reuniu profissionais experientes que

trabalharam nos maiores e mais significativos estudos e levantamentos de

Impactos Culturais e Arqueológicos em todo o país.

Com o apoio do IPHAN - Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação

Ciência e Cultura e do CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa, além de Órgãos

Estaduais e de Empreendedores, o Simpósio, estruturado em forma de mesas

redondas, apresentou e discutiu problemáticas práticas, teóricas e

metodológicas, além de temáticas jurídico-legais referentes à preservação dos

bens culturais no Brasil. Neste processo, estiveram em pauta questões sobre

diagnósticos, avaliação de impactos, programas de resgate , além de meios de

monitorar e mitigar os impactos sobre bens pré-históricos e históricos.

Das principais discussões apresentadas pelas mesas debatedoras e pelo

plenário, foram selecionados os problemas e propostas mais relevantes para

integrar um documento - síntese, encaminhado ao Ministério Público e aos

órgãos ambientais decisórios da União e Unidades Federativas.

Ao apresentar estas reflexões, o IGPA cumpre um dever histórico.

Como uma Instituição que, em seus 25 anos, procura meios de atuar sobre o

ambiente e a cultura através de Programas e Projetos Regionais, alimenta a

expectativa de poder contribuir com o processo de valorização da pesquisa

ambiental no Brasil, promovendo eventos dessa natureza e interferindo,

ativamente, através da experiência adquirida por meio de seus Projetos

Arqueológicos institucionais e de contrato, além das iniciativas pioneiras na

área de Patrimônio Histórico Cultural desenvolvidas recentemente.

Jézus Marco de Ataídes

Diretor do IGPA/UCG

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INTRODUÇÃO

A Resolução CONAMA nº 001/86 instituiu efetivamente a AIA-Avaliação

de Impactos Ambientais como um dos principais instrumentos da Política Nacional do

Meio Ambiente, com profundas repercussões sobre a pesquisa e a gestão dos recursos

culturais no Brasil.

Decorridos dez anos de aplicação do instrumento, considerou-se oportuna, a

exemplo do que ocorreu em outros países, uma reflexão crítica sobre o modo como a

questão cultural vem sendo tratada, os problemas enfrentados pelos profissionais

chamados a atuar em Estudos de Impacto Ambiental, as deficiências detectadas, as

dificuldades enfrentadas, os sucessos alcançados e os problemas jurídico-legais

decorrentes de uma legislação elaborada décadas antes de a questão ambiental ser

colocada institucionalmente.

O instrumento considerado mais oportuno para esta reflexão foi um

simpósio, que congregasse profissionais (acadêmicos ou não) que têm sido chamados

a atuar no planejamento ambiental, na área do patrimônio cultural (arqueólogos,

antropólogos, historiadores e arquitetos); profissionais que atuam junto aos órgãos

ambientais e aos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e advogados e membros

do Ministério Público que atuam nas áreas ambiental e cultural.

O termo “Patrimônio Cultural” foi entendido, neste evento, da forma como

foi definido em recente “update” do Banco Mundial: “as manifestações presentes do

passado humano”, sejam estas materiais (pré-históricas e históricas) ou imateriais

(modos tradicionais de vida e de expressão).

O simpósio estruturou-se sob a forma de mesas-redondas, com expositores

convidados a apresentar e discutir a problemática de cada mesa, a partir de suas

experiências profissionais. A visão dos expositores foi sempre considerada uma visão

pessoal, que podia ou não ser compartilhada pelos demais participantes do evento. A

fim de relativizar essas posições e deixar claras outras opiniões, expressas no decorrer

do simpósio, os debates que se seguiram ao final das exposições de cada mesa-

redonda foram gravados, transcritos e publicados nas presentes Atas.

Para facilitar a reflexão sobre a problemática dos recursos culturais no

processo de elaboração de EIAs/RIMAs, as mesas redondas foram estruturadas na

mesma ordem de apresentação dos EIAs: estudos de diagnóstico, avaliação de

impactos e medidas mitigadoras. No entanto, outras questões foram também

aventadas, relativas à continuidade dos estudos nas demais etapas do processo de

licenciamento, ou seja, nos estudos para obtenção de LI (Licença de Implantação) e de

LO (Licença de Operação).

Afinal, é preciso reconhecer que a Resolução CONAMA 001/86, instituindo

a Avaliação de Impactos como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, e

incluindo os estudos sobre os bens culturais nacionais nesta avaliação, mudou o mapa

da pesquisa no país. Enquanto a pesquisa básica continua avançando em progressão

aritmética, como sempre ocorreu, a pesquisa aplicada a questões de planejamento

ambiental cresce em progressão geométrica e ocupa espaços geográficos ainda não

atingidos pela pesquisa básica.

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É importante, portanto, que se busque o ordenamento concomitante desses

estudos e que se defina critérios mínimos para sua elaboração, de modo a que o

instrumento realmente permita a tomada de decisões acertadas sobre o destino a ser

dado aos recursos culturais identificados no decorrer dessas pesquisas. Esse foi um

dos objetivos primordiais do simpósio.

Após encerrarem-se as sessões, os coordenadores das mesas-redondas e os

respectivos relatores reuniram-se e redigiram um documento-síntese, com as posições

consensuais tiradas dos debates ocorridos durante o encontro, do qual constam as

recomendações de ordem geral, relativas ao patrimônio arqueológico, que se

considerou importantes serem observadas por todas as entidades envolvidas no

processo de licenciamento ambiental: IPHAN, empreendedores, órgãos ambientais

estaduais e federais, empresas de consultoria e arqueólogos contratados.

Exatamente por ter sido redigido e aprovado pelo plenário após amplas

discussões, em que todos tiveram a oportunidade de expressar-se, considerou-se que o

documento, publicado nestas Atas, representava o consenso dos diversos profissionais

presentes ao encontro. Por isso, decidiu-se por sua divulgação ampla, inicialmente

pela Internet, e, agora, pela sua distribuição aos órgãos decisórios sobre as questões

ambientais e culturais do país, ao Ministério Público e a instituições e empresas que

desenvolvem atividades arqueológicas.

As ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E

PATRIMÔNIO CULTURAL: REPERCUSSÕES DOS DEZ ANOS DA RESOLUÇÃO CONAMA

Nº 001/86 SOBRE A PESQUISA E A GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO BRASIL vêm

a público, agora, como o primeiro produto brasileiro de reflexão compartilhada sobre

o trato adequado a ser dado aos recursos culturais nacionais nos estudos de impacto

ambiental em elaboração no país.

Solange Bezerra Caldarelli

Organizadora

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1ª MESA-REDONDA:

DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO

AMBIENTAL

COORDENAÇÃO:

Dra. Irmhild Wüst

Museu Antropológico/UFGO

Vice-coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

PAULO JOBIM DE CAMPOS MELLO Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco

Participação em projetos de levantamento e resgate do patrimônio arqueológico, nos

estados de Pará, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Amazonas e Distrito Federal, desde 1985

Coordenação de projetos de levantamento e resgate arqueológicos nos estados de Mato

Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, desde 1994

Professor Adjunto I, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade

Católica de Goiás

MARCOS ANDRÉ TORRES DE SOUZA Graduado em arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro

Professor/pesquisador do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade

Católica de Goiás

Desenvolveu pesquisas de contrato em arqueologia histórica nos estados de Santa Catarina

e Goiás.

Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o

Avanço da Arqueologia

JORGE EREMITES DE OLIVEIRA Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área de

Concentração: Arqueologia)

Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área

de Concentração: Arqueologia)

Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Fundação Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul - Centro Universitário de Dourados

Tem desenvolvido pesquisas arqueológicas e etno-históricas no Pantanal Matogrossense

desde 1992

RENATO KIPNIS

Mestre em Antropologia pela University of Michigan

Doutorando em Antropologia pela University of Michigan

Tem realizado trabalhos de levantamento arqueológico nos estados de São Paulo, Pará e Minas Gerais desde 1985

Membro da SAA-Society for American Archaeology e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS

PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EEMPREENDIMENTOS

HIDRELÉTRICOS

Paulo Jobim de Campos Mello

A resolução CONAMA 001/86 prevê uma série de atividades a serem

cumpridas para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Dentre estas

atividades temos:

* diagnóstico da área;

* análise dos impactos positivos e negativos;

* definição de medidas mitigadoras dos impactos negativos;

* por fim, elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento

desses impactos

Após a aprovação desse estudo, o empreendedor consegue a Licença Prévia

(LI); e tem que dar continuidade a esses estudos para a obtenção das Licenças de

Implantação (LI) e Operação (LO) do empreendimento.

Assim, podemos perceber que o diagnóstico é o primeiro passo de todo esse

processo, e tem que ser feito de uma maneira tal que dê subsídios para a realização

das demais etapas.

A Resolução CONAMA define o diagnóstico como sendo a caracterização da

área; é preciso saber, portanto, como a área se encontra antes da implantação do

empreendimento.

Em áreas bem conhecidas, que já foram detalhadamente trabalhadas, o

diagnóstico pode ser feito a partir de fontes secundárias, ou seja, com um

levantamento bibliográfico é possível caracterizar a área.

No entanto, a realidade que encontramos é quase sempre a inversa, com os

empreendimentos sendo localizados em áreas pouco conhecidas ou completamente

desconhecidas; havendo, assim, a necessidade de se fazer um levantamento de campo

Aqui no Brasil, os levantamentos arqueológicos geralmente ainda são

realizados de uma maneira assistemática, seguindo as orientações de Evans e Meggers

(1965), mentores do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas),

que propunham o percorrimento da área tendo os cursos d‟água como base, além do

atendimento das informações prestadas pelos moradores.

Uma série de críticas podem ser feitas a esse tipo de trabalho, sendo a principal

o fato de não fornecer uma amostra confiável. Por não ser probabilista, e produzir

desvios, não produz estimativas válidas dos riscos de erro, tornando-se praticamente

impossível replicar ou avaliar, qualitativa ou quantitativamente, esses trabalhos.

A localização dos sítios, nesses levantamentos assistemáticos, depende

basicamente de três fatores (Alexander, 1983:177 ss.).

O 1o é a natureza da prospecção, a tradicional depende pesadamente da

exposição do solo para a localização da cultura material; o vestígio arqueológico tem

que estar aflorando para ser encontrado pelo arqueólogo, e isso só acontece em

terrenos que apresentam-se erodidos, ou em áreas que acabaram de ser aradas..

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O 2o fator é o “conhecimento comum”, assimilado pelos pesquisadores e

usados como bases para a localização do sítio. Confiando na experiência pessoal e

intuição, muitos arqueólogos têm desenvolvido, talvez inconscientemente, uma lista

de critérios para a localização de sítios (proximidade da água, certos ecótonos,

principais confluências de rios, etc).

Infelizmente, esse “conhecimento comum” é geralmente usado como base para

determinar a estratégia da prospecção, isto é, o arqueólogo concentra seus esforços

naquelas porções de área onde espera encontrar sítios. Descobertas de sítios nesses

locais previsíveis, de alta densidade, pode refletir tratamento diferencial dessas áreas,

em vez de padrões de assentamento pré-históricos.

Finalmente, o 3o fator é que resultados sem desvios não podem ser alcançados

quando mudanças temporais são ignoradas. Usando dados etnográficos e

documentação histórica é geralmente possível reconstruir o padrão de assentamento

indígena do período proto-histórico. Esse conhecimento pode influenciar o

pesquisador a prospectar mais intensamente áreas ocupadas durante esse período.

Com o tempo, no entanto, os padrões de assentamento podem não apenas mudar

dentro do mesmo ambiente, mas o próprio ambiente, refletido na topografia e

vegetação, pode ser vastamente alterado. O efeito dessas mudanças na localização dos

sítios deve ser cuidadosamente considerado quando for feita qualquer prospecção.

São justamente esses fatores que causam o desvio na amostra.

Assim, ao se pretender obter um quadro acurado dos padrões de assentamento

dos grupos humanos que viveram no passado, há a necessidade de se conseguir

informações de uma maneira uniforme, cobrindo igualmente os diversos estratos

paisagísticos. Portanto, prospecções intensivas, a pé, geralmente são necessárias para

a localização de sítios pequenos e que estejam relacionados à atividades limitadas,

sendo que todas as partes da região, mesmo aquelas assumidamente estéreis, devem

ser investigadas (Redman, 1974).

O que se pretende, portanto, com esse levantamento sistemático, é que não se

produza desvios amostrais e que se consiga, como dito acima, apreender o padrão de

assentamento dos grupos pré-históricos que ali viveram.

A técnica mais utilizada para esse tipo de levantamento é o chamado

„transect‟, que é uma linha de caminhamento orientada. O pesquisador vai caminhar

por linhas previamente traçadas por ele, de modo a cobrir as diferentes paisagens

existentes, podendo proporcionar, assim, a localização de diferentes tipos de sítios,

ligados a exploração diferencial dessa paisagem,

Além disso, vai permitir, também, o cálculo da área prospectada - vai se saber

qual a porcentagem da área foi levantada.

Como para o cálculo de uma área são preciso duas medidas - comprimento e

largura -, e o transect, como já dissemos, é uma linha, será preciso utilizarmos um

artifício, chamado efeito margem, que está diretamente ligado ao tamanho do sítio que

se quer localizar (Plog et. al., 1978).

O comprimento é dado pelo próprio comprimento do transect, ou seja, a

distância percorrida; já a largura não vai ser dada pelo alcance da visão (dez metros

para cada lado, por exemplo), isso porque muitas vezes a visibilidade é nula,

principalmente devido à vegetação que cobre os vestígios arqueológicos, impedindo a

sua localização.

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Para localizar um sítio arqueológico, o transect não precisa passar exatamente

pelo seu centro, basta passar por qualquer ponto dele. Assim, todas áreas prospectadas

sistematicamente vão sempre ter uma margem que é hipoteticamente prospectada,

cujo tamanho é igual ao raio do menor sítio que se pretende achar, pois basta que o

centro do sítio esteja dentro dessa margem que ele será cortado pelo transect e, assim,

localizado.

Portanto, apesar do transect ser uma linha, o sítio não é um ponto, e a largura

da área prospectada vai ser dada pelo seu raio.

Os trabalhos de prospecção sofrem a influência de dois outros fatores:

intensidade e sensibilidade.

A intensidade é o grau de detalhe com o qual a superfície de uma determinada

área é prospectada (Plog et al., 1978), que pode ser medido pelo espaçamento que é

mantido pelos indivíduos durante a prospecção, ou seja, no caso é dada pelo

espaçamento dos transects - quanto menor o espaçamento, maior a possibilidade de

encontrar sítios, principalmente sítios pequenos. O grau de intensidade irá variar de

acordo com os objetivos do trabalho.

A sensibilidade, que é a probabilidade de evidenciar um sítio arqueológico, é

um outro fator, estreitamente ligado à intensidade.

Para Cowgill (1990), a sensibilidade é afetada por cinco (5) fatores: 1) a

natureza da ocorrência arqueológica; 2) a natureza do terreno (vegetação fechada,

topografia íngreme, erosão, etc); 3) a proximidade do prospectador com a ocorrência

(passar por cima ou somente próximo a ela); 4) a extensão com que o observador é

sensibilizado (no sentido psicológico) com um certo tipo de ocorrência; 5) a extensão

com que técnicas especiais são usadas para detectar ocorrências subsuperficiais.

A relação é bem clara: quanto maior a intensidade, maior a sensibilidade.

Mostraremos três exemplos da utilização desse tipo de levantamento

sistemático em áreas afetadas por empreendimentos hidrelétricos. Em todos esses

trabalhos foram utilizados, também, o levantamento assistemático que, apesar de não

fornecer uma amostra confiável das ocorrências arqueológicas, conforme exposto

acima, pode ser utilizado para um „reconhecimento informal‟ da área em estudo.

Em geral, os transects foram percorridos por uma equipe de quatro pessoas,

sendo dois pesquisadores e dois trabalhadores braçais, divididos em duas duplas: um

pesquisador, com a ajuda de uma bússola, indicando o caminho a ser seguido,

enquanto um trabalhador braçal abria a picada; outro pesquisador indicando o local

onde haveria intervenção no solo1, com o segundo braçal realizando essa tarefa (ver

fotos 1 - 4).

- Projeto de Salvamento Arqueológico das UHEs Babaquara e Kararao

(PA)

1 As intervenções no solo, feitas a distâncias regulares, eram de dois tipos: limpeza e tradagem. A limpeza consistia na retirada, com uma enxada, da cobertura vegetal de uma área de aproximadamente 1 metro de diâmetro, e na escavação dessa área até alcançar 20 centímetros de profundidade. Já nas tradagens, cujo o objetivo era encontrar vestígios que estivessem enterrados a uma profundidade maior, eram feitos, com uma cavadeira (boca de lobo), buracos de 30 cm de diâmetro que chegavam a 1 metro de profundidade.

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Projeto desenvolvido pela Eletronorte, em convênio com o Museu Paraense

Emílio Goeldi. Iniciado em julho de 1986, durou até julho de 1988, quando ocorreu a

paralisação da obra. Sua barragem formaria um enorme lago (área de

aproximadamente 7.500 Km2) no médio rio Xingu.

Foi o primeiro trabalho no país, em áreas afetadas por empreendimentos

hidrelétricos, onde se realizou levantamento sistemático. A proposta era espalhar

unidades amostrais (círculos com raio de 5 Km) que abrangessem as diferentes

paisagens existentes, além de permitir a prospecções em áreas distantes dos rios.

Enquanto que nas margens do rio principal era realizado um levantamento

assistemático, o sistemático era feito através de dois transects de 5 Km de

comprimento, perpendiculares ao rio. Apesar de a intensidade de prospecção ser

muito baixa, esse levantamento sistemático foi eficiente, pois permitiu a localização

de sítios distantes das margens do rio (ver fig. 1).

- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Costa Rica (MS)

Projeto desenvolvido pela Enersul, em convênio com a Universidade Católica

de Goiás. A região a ser afetada pela Usina Hidrelétrica de Costa Rica consiste em

uma área que não atinge 0,5 Km2 (aí incluído a área a ser utilizada para a construção

do acampamento e escritório), no rio Sucuriú, município de Costa Rica, noroeste do

Estado do Mato Grosso do Sul.

O levantamento assistemático foi realizada tanto através da observação de

terrenos limpos (roças, barrancos de rios, etc), como de entrevista dos moradores

locais em busca de possíveis informações sobre vestígios arqueológicos (a

bibliografia não indicava nenhum trabalho realizado nas imediações).

Foram entrevistados cinco moradores que, apesar de viverem há bastante

tempo na região, residem há pouco no local. Nenhum deles forneceu informação

sobre sítio arqueológico. A observação dos terrenos limpos também se mostrou

infrutífera.

O levantamento sistemático baseou-se no caminhamento de „transects‟

traçados de uma maneira onde procurou-se não deixar uma distância superior a 50

metros entre um e outro, sendo que a cada 25 metros, aproximadamente, era feita uma

intervenção no terreno.

Assim, por esse método sistemático, foram percorridos 8100 metros (3900 na

margem esquerda, 4200 na direita), sendo realizadas 336 limpezas (136 na esquerda e

200 na direita) e 35 tradagens (13 na esquerda e 22 na direita).

Desses, apenas um local (na margem direita, onde será implantado o

acampamento) apresentou material arqueológico (4 fragmentos cerâmicos, filiados a

Tradição Una).

Podemos perceber que toda a área foi coberta (ver fig. 2), porém isso não

implica em que todos os sítios arqueológicos foram encontrados, pois, de acordo com

Kowalewski & Fish (1990), é impossível, em arqueologia, cobrir 100% de uma área,

descobrir todos os sítios lá existentes, e verificar essa afirmação. Kintigh (1990)

também concorda com isso ao afirmar que todos os arqueólogos estão cientes de que,

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ao prospectarem, perdem alguns locais que mostram evidências do comportamento

humano a algum nível de detalhe.

Isso se deve ao grau de intensidade e aos problemas de sensibilidade,

conforme discutidos mais acima.

- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Corumbá (GO)

Projeto desenvolvido por FURNAS Centrais Elétricas, em convênio com a

Universidade Católica de Goiás. A barragem formará um lago com 65 Km2 de área,

abrangendo parte dos municípios de Caldas Novas, Pires do Rio, Corumbaíba e

Ipameri, todos no Estado de Goiás.

O levantamento assistemático foi feito através da entrevista de mais de 90

moradores da região (a maior parte feita pelos integrantes da equipe responsável pelo

Patrimônio Histórico), além do levantamento bibliográfico (inclusive o RIMA), que

resultaram na localização de apenas quatro sítios na área diretamente afetada.

Quanto ao sistemático, em um total de 70 dias de campo, foram percorridos

cerca de 225.840 m, sendo realizas intervenções no solo a cada 30 metros, em um

total de 7526, sendo 6505 limpezas e 1021 tradagens (a maioria dessas tradagens não

alcançou 1 m de profundidade, em conseqüência do solo apresentar muito cascalho)

(ver fig. 3). Como resultado, foram encontrados sete sítios arqueológicos.

Quanto aos estratos paisagísticos, podemos ver que todos foram amostrados,

conforme os gráficos abaixo .

Quanto à declividade do terreno, temos:

% das categorias de declividade percorridas

sistematicamente

categoria 1 -

34,83%

categoria2 -

29,05%

categoria 3 - 11%

categoria 4 -

13,53%

fora da ADA -

11,59%

Gráfico 1

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14

categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4 fora da

ADA

0

10

20

30

40

50

60

categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4 fora da

ADA

declividade

% da área X % percorrida

% da ADA

% percorrida em relação à

ADA

% percorrida em relação à

categoria de declividade

Gráfico 2

Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, nas quatro

categorias de declividade.

categoria 1 - 67%

categoria 2 - 22%

categoria 3 - 11%

categoria 4 - 0%

Gráfico 3

Quanto às classes de solos, temos:

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15

% de classes de solos percorridas

sistematicamente

14,96

7,44

6,75

17,56

10,23

31,13

6,515,4

CE1

CE2

CV1

CV2

CV3

RL1

RL2

AL

Gráfico 4

CE1 CE2 CV1 CV2 CV3 RL1 RL2 AL0

20

40

60

80

100

CE1 CE2 CV1 CV2 CV3 RL1 RL2 AL

solos

% da área X % percorrida

% da ADA

% percorrida em relação à

ADA

% percorrida em relação à

unidade de solo

Gráfico 5

Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, quanto às

unidades de solo:

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16

CE2

11%

CV2

67%

CV3

22%

CE2

CV2

CV3

Gráfico 6

Podemos perceber que só através de um levantamento sistemático e intensivo

é possível encontrar os diversos tipos de sítios existentes em uma região. Além disso,

esse tipo de levantamento permite um controle não só da porcentagem da área, mas

também dos compartimentos paisagísticos, que foram amostrados.

Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o diagnóstico não termina com a

localização dos sítios. Como dissemos no início, é preciso que ele forneça subsídios

para a elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento dos

impactos a serem causados pelo empreendimento. Assim, algumas informações sobre

o sítio - como estado de conservação, espessura e profundidade do depósito e tamanho

do sítio - são fundamentais, e necessárias de se conhecer ainda nesta fase do trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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forests environment”. Boston. Journal Field Archaeology, 10, pp.177-186.

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (1988) Resoluções do

CONAMA; 1984/86. 2a edição. Brasília, SEMA.

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Fish & S.A. Kowalesky (ed) The archaeology of regions. A case for full-

coverage survey. Washington D.C., Smithsonian Institution Press, pp.237-242.

EVANS, C. & MEGGERS, B.J. (1965) Guia para prospecção arqueológica no

Brasil. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi.

KINTIGH, K.W. (1990) “Comments on the case for full-coverage survey”. In: S.K.

Fish & S.A. Kowalesky (ed), The archaeology of regions. A case for full-

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KOWALESKY, S.A. & FISH, S.K. (1990) “Conclusions” In: S.K. Fish & S.A.

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17

PLOG, S.; PLOG, F. & WAIT, W. (1978) “Decision making in moderns surveys”.

Advances in Archaeological Method and Theory. New York, Academic

Press, vol. 1.

REDMAN, C.L. (1974) Archaeological sampling atrategies. Addison-Wesley

Modules in Anthropology, (55).

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE

BENS HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE

EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS

Marcos André Torres de Souza

INTRODUÇÃO

O presente texto pretende encaminhar algumas questões de interesse e que se

incluem no tema proposto. Encontra-se dividido em duas partes: inicialmente, são

examinadas algumas premissas fundamentais ao bom encaminhamento dos trabalhos

de levantamento arqueológico histórico em contexto de hidrelétricas e, em seguida,

são expostas algumas considerações metodológicas acerca dos tipos de levantamento

que podem ser realizados.

Durante a discussão, serão apresentados exemplos baseados em observações

feitas no decorrer do Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-

Cultural da Área Diretamente Afetada pela UHE-Corumbá, desenvolvido pelo

Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás,

coordenado pelo prof. Jézus Marco de Ataídes e financiado por FURNAS - Centrais

Elétricas S.A.. Este projeto foi desenvolvido entre março de 1994 e março de 1996 em

quatro municípios do estado de Goiás: Caldas Novas, Ipameri, Pires do Rio e

Corumbaíba (Marco de Ataídes, 1996).

REGIÃO E SÍTIO

Em primeiro lugar, o que distingue uma pesquisa de resgate em hidrelétrica

das demais é que, neste caso, há uma grande extensão de superfície a ser pesquisada,

ao contrário dos projetos ditos lineares. Aqui, situa-se um primeiro aspecto crítico dos

projetos de resgate em contexto de hidrelétricas: a noção de região.

Do ponto de vista do empreendimento, a região terá sempre características

bem específicas: as áreas ribeirinhas e baixas de uma dada bacia hidrográfica,

condições incompatíveis com uma concepção satisfatória de região. Quando falamos

de uma região do ponto de vista do empreendimento, estamos falando de uma área

direta ou indiretamente afetada e que dificilmente corresponderia à noção de região

para uma pesquisa, sobretudo se o caso em apreço é o de uma área de interesse

arqueológico, seja ele histórico ou pré-histórico.

Ocorre, contudo, que isto não passa de um falso conflito, ou ao menos é isto

o que foi experienciado no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Os

empreendedores pareceram compreender satisfatoriamente que não há meios de se

realizar levantamentos e análises sobre o patrimônio histórico que se restrinjam aos

limites estritos do empreendimento. Tem se mostrado essencial que nós,

pesquisadores, possamos trabalhar dentro de outra concepção de região, o que

esperamos, possa vir a ocorrer generalizadamente.

O ponto crítico, portanto, não está entre o pesquisador e o empreendedor,

mas no âmbito de cada projeto. Para fins de levantamento, devemos considerar que

cada sítio arqueológico histórico possui na maior parte das vezes uma relação racional

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e contextual com os demais e que, em casos de hidrelétricas, também devem ser

considerados conjuntamente. Sob esta perspectiva, a região é uma unidade analítica

extremamente apropriada e sobre a qual seria útil que nos debruçássemos.

Um segundo aspecto crítico para a realização de levantamentos em

hidrelétricas, diz respeito à noção de sítio arqueológico histórico.

Há algumas décadas, um sítio arqueológico histórico se associava quase

sempre à idéia de monumento ou antiguidade. Estes sítios necessitavam de alguma

notabilidade, mas felizmente isto está acabando.

Uma vez que, ao realizarmos levantamentos no contexto de uma hidrelétrica,

procuramos interpretar o passado histórico de uma região ameaçada, importa

explicarmos como ocupações de diferentes naturezas - algumas menos notáveis do

que outras - se processaram naquele espaço físico que estamos estudando, ainda que

cada projeto escolha uma ou outra avenida de análise.

Outro ponto é que, quando falamos de sítios arqueológicos históricos,

obviamente não podemos atribuir importância histórica a cada vestígio de ocupação

humana. Descartada a noção de monumento como critério exclusivo, passamos à

noção de significância, um termo oriundo dos Estados Unidos e que permite sofisticar

tremendamente a questão da eleição de sítios arqueológicos históricos.

Dentro desta noção, entre os diferentes critérios que podem ser usados, há o

denominado potencial de informação (ver U.S. Department of the Interior, 1990,

1991a, 1991b), que se mostra bastante adequado ao empreendimento em hidrelétricas.

Através dele, podemos transformar vestígios materiais em conhecimento científico.

Utilizar este critério significa:

Contribuir para a compreensão da história de uma região através de

procedimentos explicitamente formalizados, e;

Eleger os sítios arqueológicos históricos através de uma avaliação cuidadosa

e com critérios bem definidos.

Para complementar o que foi até aqui exposto, passamos a um exemplo do

Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, cujos dados já foram apresentados em

outro artigo, quando foram examinados sob um ponto de vista distinto (Torres de

Souza, no prelo).

Na primeira fase deste projeto, foi realizado o levantamento dos testemunhos

de ocupação humana histórica na área de estudo, tendo-se identificado, entre outras

categorias, o que foi denominado de estruturas de fazenda, compreendendo três tipos

de evidências associadas: sedes de fazenda, casas de agregado e ranchos.

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20

Figura 1- Sede da Fazenda Santo Antônio das lajes de

Argeniro Ferreira; Município de Ipameri, Goiás.

No primeiro grupo - as sedes de fazenda (Figura 1), foram identificadas

enquanto construções de caráter duradouro, utilizando como material construtivo

preferencialmente o tijolo comum, o adobe e cobertura de telhas; para este caso,

empregavam-se técnicas construtivas mais sofisticadas. Sua implantação é bastante

característica, situando-se preferencialmente em áreas elevadas na propriedade, entre

dois cursos d‟água e em solos cascalhosos e inférteis.

Figura 2- Casa de Agregado na Fazenda Santo Antônio

das Lajes de Aziria Menezes; Município de Caldas

Novas, Goiás.

Nas casas de agregado (Figura 2), observou-se um tipo de construção de

caráter menos duradouro, com o tijolo comum apenas eventualmente utilizado,

predominando o adobe, muitas vezes com adição da madeira ou palha. Ainda que a

telha fosse também a cobertura preferencialmente usada, as soluções arquitetônicas

eram bem mais simplificadas que nas sedes de fazenda. A implantação deste grupo

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era totalmente distinta das sedes de fazenda, situando-se predominantemente em áreas

baixas, à distância média de 100 m dos pequenos córregos, sendo que na metade dos

casos, situavam-se no entroncamento de dois cursos d‟água, alocando-se em solos

argilosos e férteis.

Figura 3- Rancho na Fazenda Santo Antônio das Lajes

de Aziria Menezes; Município de Caldas Novas, Goiás.

O último grupo, os ranchos (Figura 3), eram abrigos transitórios, construídos

por paus fincados ou esteios sem vedação e com cobertura de palha, com técnicas

construtivas extremamente simples. Situavam-se predominantemente em locais de

difícil acesso em uma propriedade, como as cabeceiras dos córregos ou às margens

dos rios de maior porte.

No exemplo acima, observam-se alguns aspectos que são essenciais dentro

do que foi até aqui exposto.

Em primeiro lugar, o que se percebe nesta classificação de evidências é um

arranjo espacial óbvio, baseado em uma lógica explícita.

Em uma monografia sobre as construções rurais do fim do séc. XIX,

Gonçalves assinala o seguinte sobre as sedes de fazenda (1886:48):

“A habitação do administrador ou do proprietário deve ser

collocada de tal modo que um ou outro possa d’ahi fiscalisar tudo o que

se passar no recinto do pateo e, quando possível, em todos os edifícios da

exploração”

Sobre as casas dos trabalhadores, assinala (1886:49):

“ Os operarios ou trabalhadores ruraes são ordinariamente

alojados em edifícios terreos ou em parte daquelles em que têm de ser

executados os trabalhos que lhe são confiados”

Do mesmo modo como cita o autor, observamos que na área estudada, as

sedes de fazenda se associavam claramente ao domínio e controle da propriedade,

dados respectivamente pela sua implantação em áreas elevadas e fiscalização pelo

campo visual, ao mesmo tempo em que segmentava dois tipos de atividade: a

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pecuária, uma vez que o gado era recolhido aos currais, localizados junto à fachada

(Figura 1) e considerados a verdadeira riqueza do fazendeiro; e a roça, destinada

meramente à subsistência e que foi apartada deste espaço pelo tipo impróprio de solo.

As casas de agregado, por sua vez, situavam-se em posição subalterna,

colocadas nas partes inferiores do terreno e em solos férteis, ligando o trabalhador

agregado à roça, que era depreciada quando comparada à criação de gado, embora se

mostrasse essencial ao abastecimento da propriedade.

Os ranchos, finalmente, associavam-se na maior parte das vezes às

invernadas, situando-se em posições úteis ao trabalhador rural na otimização do

espaço, permitindo sua exploração onde não havia lugar para estabelecerem-se

moradas e possibilitando com isso a caça, pesca e cultivo em locais diversificados.

As técnicas e materiais construtivos, vistos através de oposições como:

simples x complexo, impermanente x permanente, de modo similar à lógica de arranjo

e organização do espaço, revelam estratégias de negociação social. Nestas

propriedades, o espaço foi sempre negociado, estando aí em ação: poder, status e

papéis sociais.

Esta ordem começou a vigorar na região na virada do séc XIX para o séc.

XX identificada com o ideário coronelista, marcante em Goiás na primeira metade do

séc. XX. A partir da segunda metade desse século, esta ordem entrou em colapso,

devido às leis de uso da terra e ao êxodo rural. Atualmente, a região apresenta outra

feição, não se encontrando mais em toda a área estudada a figura do agregado,

estando todas as suas edificações abandonadas; as sedes de fazenda foram também

abandonadas pelo grande proprietário, sendo ocupada por um encarregado ou peão.

Apesar de nos defrontarmos com uma faixa cronológica estreita - pouco mais de cem

anos - lidamos com uma manifestação cultural extinta que, como tal, exige do

pesquisador estratégias eficazes para sua recuperação.

Neste exemplo, fica claro que não estamos só diante de evidências de que o

espaço estava sendo ocupado racionalmente, mas que também estamos operando com

dados que usamos durante todo o tempo para explicar complexas relações sociais,

finalidade última de nossas pesquisas. A metodologia seria tendenciosa se uma ou

outra localidade deixasse de ser levantada, o que viria mascarar a presença de

substantivas categorias de evidências que, na maior parte das vezes, apresentam uma

relação contextual e indissociável.

Se refletirmos ainda sobre estes sítios em termos de potencial de informação,

jamais seremos excludentes em relação às evidências mais discretas ou aparentemente

desprezíveis, caso das habitações de agregado e ranchos, uma vez que do ponto de

vista interpretativo qualquer análise ficaria comprometida.

OPORTUNÍSTICO X SISTEMÁTICO

Considerando o que foi até aqui exposto, passamos a algumas considerações

metodológicas, cujo ponto central está na melhor maneira de realizarmos

levantamentos com fins de diagnóstico envolvendo o patrimônio histórico em áreas de

hidrelétricas.

Defende-se aqui a idéia de que a melhor estratégia que pode ser empregada é

a combinação entre os métodos oportunístico e sistemático.

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Não cabe no momento aprofundarmos a discussão sobre as alternativas

analíticas possíveis para o segundo método, mesmo porque isto foi apresentado em

um artigo já citado (Torres de Souza, no prelo), quando foram avaliadas sob a

perspectiva do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, além de uma ampla

revisão bibliográfica sobre a questão dos levantamentos arqueológicos, com foco na

arqueologia histórica. Cumpre apenas ressaltar que, embora no Brasil estas

alternativas ainda estejam sendo acanhadamente exploradas, é de extrema utilidade

que elas sejam conhecidas e utilizadas.

Nós nos restringimos, portanto, a apresentar algumas das vantagens que

acreditamos existir na combinação dos levantamentos oportunístico e sistemático, a

saber:

Por esta combinação, podemos ter uma visão regional pelo método

oportunístico, uma vez que ele apresenta custo menor e nos permite sair da área de

influência direta do empreendimento, possibilitando a investigação de localidades

com características distintas de relevo e geografia e áreas de influência cultural,

como os centros urbanos;

Ao mesmo tempo em que o contexto regional pode ser acessado pelo método

oportunístico, o método sistemático permite produzir melhores mensurações e

estimativas das evidências, uma função essencial aos projetos que envolvem

levantamentos arqueológicos, uma vez que sítios de diferentes tipos, dimensões e

visibilidade podem ser acessados;

A relação custo x benefício pode ser maximizada pela combinação do

método oportunístico a esquemas de amostragem do sistemático, produzindo

resultados mais confiáveis, por custos menores.

Esta combinação nos permite a aplicação do critério potencial de informação,

oferecendo aos pesquisadores um eficiente instrumental para avaliação de

impactos;

Na tentativa de reforçar a importância da modalidade de levantamento

sistemático em projetos que envolvem o patrimônio histórico, passamos a mais alguns

exemplos do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico que dizem respeito à

questão dos processos de formação de sítios.

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Figura 4- Local de antigo assentamento; município de

Ipameri, Goiás.

Uma primeira e poderosa argumentação a seu favor, se associa à questão da

visibilidade das evidências. A Figura 4 apresenta um assentamento abandonado há

cerca de trinta anos que, como tantos outros identificados neste projeto, tem como

evidência de superfície apenas uma mangueira, sempre presente nos quintais das

habitações rurais da região. A rápida degradação de materiais construtivos

impermanentes, aliada à prática de “arrancar” uma casa - usando uma denominação

local, dá a essas evidências uma baixíssima visibilidade. Tais assentamentos também

acabam muitas vezes sendo esquecidos pelos moradores locais, que tendem a

considerar como representativo apenas as edificações de caráter permanente.

Figura 5- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, agosto de

1994; município de Caldas Novas, Goiás.

A título de complementação, a Figura 5 apresenta uma sede de fazenda

abandonada há cerca de vinte anos que, dada sua maior perenidade, conservava ainda

muito da sua feição original; observa-se em primeiro plano seu cercamento com o

ponto de acesso ao edifício ainda visível. Se esta edificação, contudo, foi “arrancada”

(Figura 6), permanecerão apenas algumas telhas postas de lado, que logo serão

removidas (à esquerda na foto); a cerca ainda visível com sua abertura e os esteios da

edificação (ao fundo); tanto a cerca quanto os esteios, em breve serão queimados por

incêndios, extremamente comuns no ambiente de cerrado. Num curto intervalo de

tempo poucas estruturas de superfície ficarão como remanescentes, tais como fogões

ou baldrames de pedras, que quase sempre acabam encobertos pela vegetação.

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Figura 6- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, setembro de

1996; município de Caldas Novas, Goiás.

No que se refere aos depósitos arqueológicos subsuperficiais, muitas vezes

estes são extremamente reduzidos, ficando, à exemplo dos edifícios, quase

imperceptíveis ao pesquisador que realiza o levantamento de campo, caso de um dos

sítios escavados no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, que apresentou

material apenas em um estreito lençol de 140 m², para a média de 7 fragmentos por m²

(Torres de Souza, 1996).

Através destes exemplos, fica bastante claro que a tarefa de levantar sítios

arqueológicos históricos não é simples. No Projeto UHE-Corumbá, nos deparamos

com uma ocupação de pouco mais de cem anos e pudemos contar amplamente com os

dados do levantamento oportunístico. Em outros projetos onde a ocupação histórica é

bem mais remota, podemos contar apenas com nossas habilidades e, neste contexto,

acreditamos que a realização de levantamentos sistemáticos é imprescindível,

sobretudo se a história ocupacional com a qual nos defrontamos é desconhecida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, apresentamos duas reivindicações. A primeira delas, e que

parece ser um apelo geral dos pesquisadores, é que os levantamentos sejam

realizados, em cada empreendimento, o mais cedo possível. Isto significa melhor

planejamento e resultados, tanto para o empreendedor como para o pesquisador. Tais

levantamentos precisam ser realizados muito antes da execução dos programas, o que

oferece melhores condições para a avaliação de impactos.

A segunda reivindicação, dirigimos aos colegas arqueólogos, no sentido de

sempre que possível, possamos refletir sobre a qualidade do que temos produzido,

ainda que isto muitas vezes envolva insucessos. A arqueologia de resgate ou de

salvamento tem sido um excelente meio de ingresso ao mercado para os mais jovens

e, simultaneamente, alvo das mais arrebatadas críticas (ver Bezerra de Menezes 1988,

1996). Para que a reflexão não se ausente da esfera de cada projeto, será útil que no

seu âmbito, a questão da formação de pesquisadores e produção científica sejam

cuidadosamente pensadas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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1988 Arqueologia de Salvamento no Brasil: Uma Avaliação Crítica. Texto

Apresentado no Simpósio S.O.S. Preservação, Pontifícia Universidade

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1996 A Pesquisa Fora da Universidade: Patrimônio Cultural, Arqueologia e Museus.

In Humanidades, Pesquisa, Universidade, István Jancsó (org.). Seminários de

Pesquisa: 91-103. Comissão de Pesquisa FFLCH/USP, São Paulo.

GONÇALVES, JOAQUIM FRANCISCO

1886 These Apresentada á Imperial Escola Agrícola da Bahia. Typografia dos Dois

Mundos, Bahia.

MARCO DE ATAÍDES, JÉZUS (coord.)

1996 Patrimônio Histórico-Cultural. UHE-Corumbá-GO. Relatório Final preparado

pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Vice-Reitoria de Pós-

Graduação e Pesquisa, Universidade Católica de Goiás. Submetido a

FURNAS - Centrais Elétricas S.A., Goiânia.

TORRES DE SOUZA, MARCOS ANDRÉ

1996 O Sítio do Quincão. Exemplo de Um Estudo Interdisciplinar no Projeto de

Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da ADA pela UHE-

Corumbá, Goiás. Coleção Arqueologia 1(2): 573-580. Arno Alvarez Kern,

organizador. EDIPUCRS, Porto Alegre.

No prelo Levantamento Arqueológico em Projetos de Larga Escala. A

Experiência do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Revista de

Divulgação Científica 2. IGPA-UCG, Goiânia.

U.S. DEPARTMENT OF THE INTERIOR

1990 How to Apply the National Register Criteria for Evaluation. National Register

Bulletin 15.

1991a How to Complete the National Register Registration Form. National Register

Bulletin 16A.

1991b Researching a Historic Property. National Register Bulletin 39.

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE

BENS PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE DUTOVIAS2

Jorge Eremites de Oliveira

INTRODUÇÃO

Ao promover o simpósio Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio

Cultural: repercussões dos dez anos da Resolução CONAMA Nº 001/86 sobre a

pesquisa e a gestão dos recursos culturais do Brasil, o Fórum Interdisciplinar para o

Avanço da Arqueologia também viabilizou o debate teórico-metodológico sobre as

experiências no campo da consultoria técnica em arqueologia para fins de

implementação de Estudos de Impacto Ambiental, salvamento e gestão de bens

culturais, assim como a discussão acerca da legislação brasileira de proteção ao

patrimônio cultural da nação. Sem dúvida alguma, trata-se de um evento de suma

importância no atual contexto da arqueologia brasileira, pois a chamada arqueologia

de contrato é uma das áreas de atuação profissional que mais crescem para

arqueólogos do país.

Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo maior expor as

experiências e apresentar os resultados das pesquisas concluídas durante o período de

outubro a dezembro de 1993, em parceria com o arqueólogo José Luis dos Santos

Peixoto (ver Oliveira & Peixoto, 1993). Destinou-se a implementar os Estudos de

Impacto Ambiental sobre o traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil no Estado de Mato

Grosso do Sul, conforme as exigências da legislação brasileira de proteção ao

patrimônio cultural, através da atuação decisiva do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (IPHAN), 14ª Coordenação Regional e 11ª Sub-Regional II. É

necessário explicar que o Gasoduto Bolívia-Brasil, empreendimento ainda não

concluído, destina-se ao transporte de gás natural proveniente da Bolívia até os

Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná,

Santa Catarina e Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 3.000 km de extensão. No

Mato Grosso do Sul sua extensão será de 702 km, em sua maior parte próxima à linha

da rodovia BR 262, que liga o município de Corumbá ao de Três Lagoas. Será

construído com dutos de aço carbono de 28” de diâmetro que serão enterrados numa

vala de, no mínimo, 1 x 1,5 m. Terá uma faixa de 20 m de largura onde serão

desenvolvidos os serviços necessários à sua construção e, posteriormente, à sua

manutenção. Seu monitoramento será feito 24 horas por dia através de satélite

(Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993).

O trabalho foi financiado pela empresa Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobrás).

Anteriormente a ele, havia sido elaborado, por outro profissional, um diagnóstico

arqueológico para o Estado, embora sua avaliação não condissesse com a realidade

regional, uma vez que trabalhos de campo não foram realizados. Por este motivo, a

realização do trabalho ora apresentado justificou-se, dentre outras razões, pela

constatação de que na época muito pouco se conhecia sobre a arqueologia sul-

matogrossense se bem que, os poucos trabalhos existentes, particularmente para a

região do Pantanal, acrescidos da bibliografia histórica e etnológica regionais,

indicassem uma grande potencialidade de Mato Grosso do Sul quanto à ocorrência de

2 Este artigo apresenta várias modificações em relação ao texto publicado por Oliveira & Peixoto (1996), muitas das quais em função das discussões que ocorreram durante o Simpósio.

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sítios arqueológicos, destacadamente de culturas indígenas pretéritas, por toda a

extensão da dutovia. Em função dessa realidade, eram maiores os riscos de destruição

do patrimônio arqueológico do Estado durante a execução do empreendimento, uma

vez que esse patrimônio era, em grande parte, desconhecido e não poderia ser acusado

previamente sem o necessário levantamento realizado através de trabalhos de campo.

Nesta perspectiva, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes

objetivos: 1º) localizar, identificar e registrar os sítios arqueológicos constatados in

loco ao longo do traçado do gasoduto ou em áreas próximas a ele; 2º) avaliar o estado

de conservação dos sítios; 3º) determinar as áreas que demandam maior ou menor

atenção devido ao impacto da dutovia nas mesmas; e 4º) estabelecer prioridades e

estratégias, propor medidas mitigadoras e/ou compensatórias, para que sejam tomadas

as providências necessárias para a preservação e/ou salvamento do patrimônio

arqueológico.

A área de estudo compreende o trecho do traçado desde o km Zero do

gasoduto, no município de Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, até o km 350,

no município de Terenos, abrangendo grosso modo dois ambientes distintos: o

Pantanal (km Zero-260) e o Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km

260-350). Segundo o Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA

(1993), a área do Pantanal abrange três macro-unidades ambientais: “Pantanal” (km

Zero-210), “Morraria de Urucum” (km 10-50) e “Depressão do Alto Paraguai” (km

130-180 e km 210-260). A área do Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná

(km 260-350), por sua vez, corresponde a ¾ da macro-unidade ambiental homônima

(km 260-380)3. O trecho que compreende desde o km 301 ao km 702 foi estudado

pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins e sua equipe.

De momento, espera-se que as experiências e os resultados aqui

apresentados, somados a outros trabalhos publicados nestas Atas do Simpósio,

também possam contribuir para a realização de futuros trabalhos de consultoria em

Arqueologia, sobremaneira nos casos em que os empreendimentos sejam semelhantes

ao do Gasoduto Bolívia-Brasil.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Nos casos em que trabalhos como este são realizados, as estratégias de

levantamento arqueológico devem ser compatíveis, pertinentes e adequadas aos

objetivos propostos, bem como ao tempo disponível para a execução dos trabalhos.

Isso porque muitas vezes profissionais (e empreendedores) são chamados um pouco

tarde para aplicar metodologias mais refinadas, o que evidentemente não serve de

justificativa para trabalhos de baixa qualidade.

Neste caso particular, para a definição das estratégias de levantamento

arqueológico foram aproveitadas basicamente as experiências adquiridas pelo

Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá4, que propiciaram um

3 Essa subdivisão foi feita “com base em dados observados em imagens de satélite e em informações

bibliográficas referentes à geologia, à geomorfologia, aos solos e à vegetação” (Gasoduto Bolívia-

Brasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA, 1993, v. 2/4, p. 5-1). Nota-se que algumas macro-unidades ambientais estão contidas, total ou parcialmente, em outras maiores.

4 Projeto de pesquisa desenvolvido nos municípios sul-matogrossenses de Corumbá e Ladário, desde

1989, através de um convênio de mútua cooperação entre a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, representada pelo Centro Universitário de Corumbá, e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos,

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indispensável conhecimento sobre os tipos de sítios arqueológicos que ocorrem na

região do Pantanal Matogrossense. Contudo, também foram úteis nesta etapa dos

trabalhos, experiências de outros arqueólogos, especialmente daqueles que recorreram

a um levantamento probabilístico, dentre os quais Hilbert et al. (1993) através das

aulas de levantamento arqueológico junto ao Mestrado em Arqueologia da PUCRS

, Neves (1984) e Redman (1979).

Decidiu-se primeiramente percorrer todo o traçado do gasoduto, exceto as

partes do terreno em que as condições ambientais impossibilitassem o acesso e o

trânsito por parte dos pesquisadores, priorizando os sítios arqueológicos evidenciados

na superfície dos terrenos. Para tanto, entendeu-se por sítio arqueológico qualquer

local que apresentasse evidências materiais da presença ou atividade humana pretérita

(independentemente de sua classificação funcional), onde o termo pretérito não

necessariamente se restrinja a tempos pré-históricos.

A utilização de sondagens pedológicas, a partir de espaçamentos regulares,

foi proposta, em princípio, para pontos designados na literatura arqueológica,

etnológica e histórica ou através de informantes, desde que estivessem em áreas

favoráveis a assentamentos humanos, não apresentassem visibilidade das evidências

arqueológicas e realmente estivessem dentro da área de estudo delimitada ou em suas

proximidades. No entanto, durante os trabalhos de campo não foi necessário recorrer a

esta técnica.

O pressuposto básico para a definição da estratégia de levantamento

arqueológico foi entender o traçado do gasoduto como um transect que atravessa uma

grande área, compreendida por diferentes ambientes, constituindo uma verdadeira

linha de percurso a ser esquadrinhada, isto é, uma linha de caminhamento orientada.

Nesta perspectiva, foi delimitada como área de pesquisa a faixa de serviço do

gasoduto, incluindo, no mínimo, mais 40 m de cada lado, totalizando assim 100 m de

largura. Em segmentos com considerável densidade de sítios arqueológicos foi

necessário ampliar a largura da área de levantamento, delimitando uma área piloto de

acordo com a realidade local, com o propósito primeiro de fornecer subsídios à

orientação de possíveis desvios do traçado do gasoduto, em função da preservação do

patrimônio arqueológico.

Faz-se oportuno esclarecer que metodologias como esta são válidas

especialmente para empreendimentos como dutovias, rodovias e ferrovias, onde se

tem uma linha de caminhamento orientada, e não em áreas de empreendimentos com

recortes naturais da paisagem, como é o caso de hidrelétricas.

O percurso do traçado foi precedido pelo estudo detalhado das

correspondentes cartas topográficas do exército (1: 100.000) e das cartas de traçado

do Gasoduto Bolívia-Brasil (1: 50.000). Também foi indispensável o estudo

aerofotogramétrico do traçado através de imagens de satélite Landsat 5 (1: 100.000) e,

em parte, de fotografias aéreas, em sua maioria datadas de 1966 (1: 60.000), bem

como da bibliografia referente ao meio ambiente5. O uso desses recursos foi

fundamental para a revelação dos aspectos físicos da área a ser percorrida, incluindo,

em algumas ocasiões, sítios arqueológicos. Possibilitou conhecer com antecedência

representada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. O autor deste artigo participou desse projeto desde

o início até o ano de 1995.

5 As fotografias aéreas utilizadas foram obtidas junto ao Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá.

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características da área a ser estudada, tais como: vias de acesso, sedes de fazendas

próximas à dutovia, relevo, tipo de solos, afloramentos rochosos, distância do traçado

em relação ao nível das águas próximas, vegetação, diques lacustres, diques fluviais,

diques marginais, terraços fluviais etc. Trata-se de uma metodologia que também

utiliza variáveis ambientais para a detecção de bens arqueológicos em áreas pouco

conhecidas, tendo por base a interdisciplinaridade. Mas ela somente foi possível

porque os autores já dispunham de estudos anteriores sobre os ambientes a serem

percorridos, especialmente para a porção do Pantanal, os quais possibilitaram,

posteriormente, a conclusão de suas respectivas dissertações de mestrado (ver

Oliveira, 1995 e Peixoto, 1995).

Os trabalhos de campo ocorreram durante o mês de outubro de 1993, tendo

sido necessário realizar cerca de 250 horas de levantamento arqueológico, numa

média de, no mínimo, 12 km diários. Antes de percorrer um determinado trecho do

traçado, realizavam-se novos estudos sobre o meio ambiente físico, no intuito de

planejar as atividades, detectar as vias de acesso e identificar áreas onde, em nível de

hipótese, são mais prováveis a ocorrência e a visualização de sítios arqueológicos pré-

históricos ou históricos: áreas próximas a cursos d‟água, as que tiveram o solo

revolvido para cultivo, as erodidas com voçorocas por exemplo e aquelas áreas

com afloramentos rochosos. Não raras vezes foi preciso contar com um guia da região

para orientar os pesquisadores sobre as vias de acesso ao trecho a ser levantado,

principalmente para a região do Pantanal. Contudo, não se deve pensar que somente

as áreas que hipoteticamente apresentavam maiores probabilidades de se encontrar

sítios arqueológicos foram as percorridas. Como já foi dito anteriormente, mas vale a

pena lembrar novamente, foi feita a opção inicial por percorrer todo o traçado da

dutovia. Entretanto, quando se levantam variáveis que dizem respeito à complexidade

dos sistemas sócio-culturais inerentes ao levantamento de bens arqueológicos,

constata-se que raramente uma metodologia, como a utilizada, poderá detectar a

totalidade dos sítios existentes numa área. Logo, a estratégia de levantamento

arqueológico empregada para este trabalho não teve a pretensão de ser a exceção.

A complementação dessa metodologia deu-se, essencialmente, através de

uma pesquisa bibliográfica exaustiva sobre os trabalhos arqueológicos realizados

anteriormente nas diversas esferas ambientais do trecho Corumbá-Terenos. Dentre os

principais, merecem destaque os de Martins (1987), Passos (1975) e Schmitz (1993).

Sem embargo, realizou-se ainda um estudo bibliográfico sobre a história e a etnologia

das áreas a serem percorridas, fundamentalmente em obras como Corrêa Filho (1969),

Loukotka (1968), Nimuendajú (1981) e Susnik (1972 e 1978). Fichas de sítios

arqueológicos cadastrados junto ao IPHAN também foram utilizadas. No entanto, por

mais exaustivo que fosse o levantamento bibliográfico, não seria possível a partir dele

conhecer preditivamente a realidade arqueológica da região, muito menos avaliar o

impacto da dutovia sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul, uma vez

que se tratava de uma região ainda pouco pesquisada.

Em campo, os sítios arqueológicos identificados foram plotados nas cartas

de traçado com auxílio de um GPS (Sistema de Posicionamento Global),

documentados fotograficamente e registrados previamente em uma ficha de registro

de sítios arqueológicos elaborada para a ocasião dos trabalhos e adequada às

especificidades regionais, tendo como base a proposta de Wüst, Lima & Neves

(1989). Nos sítios arqueológicos também foram realizadas coletas de material de

superfície, evitando maiores intervenções que pudessem comprometer a incolumidade

dos estratos arqueológicos e com o propósito de viabilizar futuros estudos que

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pudessem contribuir ao conhecimento da arqueologia regional. Os sítios localizados

através de levantamento bibliográfico também foram plotados nas cartas de traçado,

desde que estivessem localizados nas áreas por elas abrangidas.

Em laboratório, os sítios arqueológicos foram definitivamente plotados nas

respectivas cartas de traçado e descritos igualmente nas fichas de registro. Em ambos

os casos receberam uma sigla específica utilizada para designá-los, obedecendo à

seguinte seqüência: sigla do Estado, sigla da sub-bacia hidrográfica e ordenação

numérica. Para a identificação das sub-bacias hidrográficas utilizou-se o Referencial

Hidrográfico de Mato Grosso do Sul (1990). Todo o material recolhido dos sítios

arqueológicos foi devidamente limpo, averiguado, catalogado e depositado nas

instalações do Instituto Anchietano de Pesquisas para posteriores estudos.

Vale a pena mencionar ainda que a participação de técnicos da Petrobrás em

algumas atividades de campo foi importante para que, através deles, os

empreendedores tomassem conhecimento dos trabalhos realizados e, principalmente,

dos tipos de sítios arqueológicos encontrados, da sua importância e das avaliações a

serem feitas para sua proteção. Isso porque, muitas vezes, empreendedores supõem

aprioristicamente que somente grandes monumentos arqueológicos, a exemplo das

pirâmides egípcias, merecem ser preservados. Por isso, em certas situações, é preciso

que os pesquisadores desmistifiquem algumas idéias equivocadas que se têm a

respeito da arqueologia, muitas das quais veiculadas pela mídia.

RESULTADOS DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO

Constataram-se in loco 41 aterros com vestígios de ocupação cerâmica, em

sua maioria conservados e situados na planície de inundação do Pantanal. São

facilmente visualizados pela densa cobertura vegetal que os destaca nos campos,

justificando as denominações regionais de capões-de-mato e cordilheiras6, sendo

igualmente localizados através da aerofotogrametria. Atualmente é possível afirmar

que a tecnologia cerâmica das populações indígenas que ocuparam esses aterros

pertencem a uma nova tradição denominada Pantanal. Em Oliveira (1996) há maiores

informações sobre a ocupação indígena da planície de inundação do Pantanal,

inclusive a respeito dos aterros.

O material coletado da superfície desses sítios geralmente são fragmentos de

vasilhas cerâmicas, restos de alimentação basicamente ossos de répteis e

mamíferos, vértebras de peixes e conchas de moluscos e ossos humanos.

Raramente encontrou-se material lítico lascado ou polido, pontas de flecha ósseas e

contas de colar feitas de conchas de moluscos.

Foram observadas três áreas onde ocorrem aterros: a primeira (km 10-35)

compreende a área de influência da Lagoa do Jacadigo; a segunda (km 50-55)

corresponde ao rio Verde e adjacências; e a terceira (km 75-130) está inclusa na

fazenda Bodoquena, localizada nas sub-regiões de Nabileque e Miranda, que possui

203.828 ha de terras utilizadas para atividade de pecuária extensiva de corte.

6 Cordilheiras são elevações do terreno que separam lagoas, em sua maioria, temporárias. São

formações areno-argilosas com 1 a 2 m de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as

destaca na paisagem como verdadeiras ilhas de vegetação, podendo ser comumente alongadas. Capões-

de-mato, por sua vez, são semelhantes às cordilheiras, distinguindo-se dessas basicamente pelo fato de

apresentarem formas circulares e subcirculares, muitas vezes de tamanho menor e não necessariamente separando lagoas.

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No segmento correspondente ao Planalto da Borda Ocidental da Bacia do

Paraná (km 260-350) foram identificados dois sítios arqueológicos, sendo um abrigo-

sob-rocha e um sítio lítico a céu aberto. O primeiro, sítio MS-MA-37 (UTM 7740000-

640500), encontra-se conservado e localiza-se na Serra do Paxixi, município de

Aquidauana, na localidade da Fundação Centro Educacional Rural de Aquidauana

(CERA), onde ocorrem isoladas figuras rupestres em branco e isolados petroglifos,

ambos com motivos zoomorfos. Encontra-se a 8,7 km de distância da dutovia e foi

investigado apenas para se conhecer como se apresentam os abrigos-sob-rocha que

ocorrem nessa região serrana. O segundo, sítio MS-PA-01 (UTM 7723700-692410),

situa-se numa pequena colina, próximo a um córrego intermitente onde aflora basalto,

a 200 m da dutovia, estando parcialmente destruído pela ação antrópica recente.

Trata-se de uma oficina lítica caracterizada principalmente por material de refugo em

arenito silicificado vermelho: núcleos, seixos lascados, lascas unipolares (com

córtex), lascas unipolares secundárias e lascas unipolares secundárias com retoque.

Em nenhum desses segmentos foi encontrado qualquer sítio arqueológico

histórico.

AVALIAÇÃO DO IMPACTO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO

O segmento do Pantanal (km Zero-260) corresponde à área de maior risco de

destruição do patrimônio arqueológico, devido à grande densidade de aterros

identificados ao longo dos primeiros 350 km do traçado do gasoduto e proximidades,

especialmente na área abrangida pelo rio Verde (km 50-55) e parte da fazenda

Bodoquena (km 80-l20). Esses sítios, em sua maioria, encontram-se conservados e

devem ser preservados. Nesta ótica, cada aterro deve ser entendido como parte

indispensável de um conjunto de dados materiais culturais que se consolidou ao longo

de gerações, constituindo um importante registro para a história quaternária do

homem no continente sul-americano. Tal história, por sua vez, ainda está longe de ser

amplamente conhecida.

Ressalta-se ainda que é errôneo e apriorístico interpretá-los como simples

réplicas de um tipo de sítio arqueológico, como se todos os aterros apresentassem um

único conteúdo ou repetidas informações culturais. Portanto, para cada aterro a ser

atingido pela construção do gasoduto será necessário o devido e antecipado

salvamento arqueológico, sendo de fundamental importância advertir para a existência

de um aterro conservado, o sítio MS-MA-22 (UTM 7826850-493970), que se

encontra exatamente sobre a linha do traçado do gasoduto, no km 103. Também é

importante deixar claro que, em princípio, todos os capões-de-mato e cordilheiras que

ocorrem no segmento do Pantanal devem ser entendidos, para fins de diagnóstico

arqueológico, como sítios arqueológicos, no caso, aterros.

Nas áreas onde ocorrem os aterros, a possibilidade de ser encontrado algum

sítio arqueológico enterrado no solo é praticamente nula. Isso porque esses sítios

provavelmente configuram-se como os únicos lugares protegidos das cheias

periódicas que atingem as porções mais baixas do segmento do Pantanal. Dessa

forma, podem ser considerados como os únicos pontos favoráveis a assentamentos

humanos em áreas onde as demais porções do terreno permanecem periodicamente

inundadas. Os recentes estudos de Oliveira (1996) comprovam que, no caso do grupo

étnico Guató (lingüisticamente Macro-Jê e último remanescente de todos os grupos

que ocuparam a planície de inundação desde antes da Conquista Ibérica da região

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platina), os aterros são ocupados especialmente durante as cheias periódicas que

atingem a planície de inundação, quando se torna possível a mobilidade em áreas até

então inacessíveis através da canoa.

Alguns dos aterros localizados nos segmentos km 50-60 e km 105-120 não

foram devidamente investigados por encontrarem-se em pontos de difícil acesso,

dadas as condições ambientais desfavoráveis. No entanto, poderiam ser facilmente

localizados através de fotografias aéreas ou imagens de satélite em escala igual ou

superior a 1: 60.000, recursos estes não colocados a disposição dos pesquisadores por

parte do empreendedor, apesar de solicitados com antecedência.

Na região dos relevos residuais do planalto de Urucum (km 10-50), inclusos

na área do Pantanal (km Zero-260), a bibliografia examinada indica um número

considerável de sítios cerâmicos a céu aberto e igualmente sítios com inscrições

rupestres. Entretanto, não foi constatada a presença de algum sítio arqueológico que

ainda não tivesse sido registrado anteriormente. Assim, a probabilidade de destruição

de algum sítio ainda desconhecido é mínima, porque nesta parte do traçado do

gasoduto os solos são geralmente rasos e cascalhentos, o que facilita a visualização de

possíveis sítios e dificulta a existência de algum abaixo da superfície dos terrenos.

Nos últimos 70 km do segmento do Pantanal, no município de Miranda (km

190-260), os riscos de destruição de sítios arqueológicos são maiores que nas áreas

anteriores, em conseqüência da grande quantidade de pastagens artificiais e,

principalmente, de matas naturais que dificultam a visualização dos remanescentes

materiais de culturas passadas. Muitas vezes a própria dificuldade de acesso e

mobilidade nessas áreas impossibilita a identificação dos sítios. Esta avaliação

também justifica-se através da literatura etnológica, que aponta esse trecho e/ou

proximidades como uma área de ocupação indígena, notadamente durante o período

colonial, por populações lingüisticamente Arawak e Tupi-Guarani.

O Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) é área de

menor risco de destruição ao patrimônio arqueológico, em relação ao Pantanal (km

Zero-260). Dos dois sítios identificados apenas o MS-PA-01 encontra-se próximo do

gasoduto. As possibilidades de destruição do patrimônio arqueológico nessa área

restringem-se a sítios que possam estar abaixo da superfície dos terrenos ou em áreas

de pastagens e matas naturais onde há pouca visibilidade dos remanescentes culturais.

A própria etnologia também justifica esta idéia, porque indica o médio curso do rio

Aquidauana e/ou proximidades como uma área de ocupação Terena/Layana.

Verificou-se que o impacto da dutovia sobre o trecho Corumbá-Terenos (km

Zero-350) limita-se basicamente à limpeza do terreno para a construção da faixa de

serviço de 20 m de largura e à escavação das valas de, no mínimo, 1 x 1,5 m, onde

serão enterrados os dutos de 28” de diâmetro. Durante essas atividades haverá grande

circulação de pessoas e maquinários diversos pela área a ser impactada. Neste sentido,

propõem-se as seguintes medidas preventivas e/ou mitigadoras a serem adotadas pela

Petrobrás, empresa responsável pelo empreendimento:

1ª) Viabilização de estudos que possibilitem desviar o traçado do gasoduto

dos sítios arqueológicos identificados, especialmente do sítio MS-MA-22. Caso

contrário, tornam-se-á indispensável propiciar as condições necessárias para o

conseqüente salvamento arqueológico;

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2ª) Em caso de desvio do traçado do gasoduto, em função da preservação, ou

não, do patrimônio arqueológico, torna-se imprescindível o acompanhamento de outro

parecer arqueológico favorável;

3ª) Mapeamento de todos os capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos

km 50-60 e km 95-120, numa faixa mínima de 1.000 m de cada lado da área de

serviço. Este trabalho possibilitará detectar possíveis aterros que não foram

identificados em campo nessas partes do traçado. Justifica-se esta avaliação em

virtude das condições ambientais desfavoráveis ao acesso e à mobilidade dos

pesquisadores nos referidos segmentos. Outrossim, porque o empreendedor não

tornou possível contar com imagens de satélite ou fotografias aéreas numa escala

igual ou maior que 1: 60.000, que tornam mais segura a identificação dos sítios

arqueológicos. Esta medida poderá também indicar possíveis desvios do gasoduto, de

acordo com as especificidades técnicas do empreendimento e com o objetivo primeiro

de evitar a destruição de aterros;

4ª) Plotação, nas correspondentes cartas de traçado, dos sítios que foram

identificados em campo, bem como aqueles que foram arrolados pela pesquisa

bibliográfica;

5ª) Divulgação, junto às empresas responsáveis pela construção da obra, da

localização dos sítios arqueológicos e da necessidade de evitar a sua depredação por

parte de quaisquer pessoas participantes dos trabalhos, que por ventura venham a

querer coletar material arqueológico ou perturbar as camadas dos sítios arqueológicos.

Com isso objetiva-se proteger os sítios arqueológicos principalmente dos caçadores

de tesouros ou enterros;

6ª) Acompanhamento de um arqueólogo em cada frente de trabalho durante a

construção do gasoduto. Isso para que, caso se encontre, durante a escavação da vala,

algum sítio não previamente identificado, se possa realizar o devido resgate dos

remanescentes arqueológicos. Nesta perspectiva, observa-se um impacto positivo da

dutovia, uma vez que ela também possibilitará melhor conhecer a arqueologia da

região e, dificilmente, sua vala destruirá grande parte de um sítio arqueológico;

7ª) Quando do contato com os proprietários e moradores das localidades a

serem atingidas diretamente pelo empreendimento, torna-se necessário participar a

eles, através de um informativo (a exemplo do Informativo do Gasoduto Bolívia-

Brasil, 1993), a ocorrência de sítios arqueológicos ao longo do traçado do gasoduto e

a importância de sua preservação;

8ª) Colocação de placas de advertência nos sítios situados num raio mínimo

de 200 m de distância de cada lado da faixa de serviço do gasoduto, informando que

aquele local é um sítio arqueológico, sendo proibida sua depredação.

Em complementação a essas medidas preventivas e mitigadoras, propuseram-

se alguns procedimentos básicos para um possível salvamento arqueológico, seja para

o sítio MS-MA-22, seja para quaisquer outros aterros que possam ser detectados no

mapeamento dos capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95-

120. Os procedimentos propostos não devem ser entendidos como uma camisa-de-

força para um eventual salvamento arqueológico, mas considerações a serem

ponderadas na elaboração do projeto de salvamento. São os seguintes:

1º) Objetivos: Resgatar e analisar de forma sistemática os remanescentes

culturais evidenciados na área do(s) aterro(s) a ser destruída pela construção do

gasoduto, evitando ao máximo maiores intervenções nos estratos arqueológicos;

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2º) Delimitação da área: A escavação limitar-se-á à largura da área a ser

atingida pela vala do gasoduto (1 m) acrescida de, ao menos, 50 cm de cada lado,

totalizando assim uma trincheira de 2 m de largura que atravessará o(s) aterro(s),

servindo desde então de vala para enterrar os dutos. Esta proposta somente terá

validade caso não haja circulação de maquinário pesado nos limites do sítio,

preservando-o para pesquisas futuras. A delimitação da área a ser escavada deverá ser

preferencialmente antecedida dos respectivos serviços de topografia que precederão à

construção das valas, pois o rastreador de satélites do sistema GPS apresenta uma

pequena margem de erro de alguns poucos metros que, neste caso, pode ser crucial

para os trabalhos de salvamento arqueológico. Durante os trabalhos de levantamento

arqueológico na área do Pantanal (km Zero-260), foi realizado um croqui da área de

dois sítios, visando embasar possíveis salvamentos e/ou desvios do traçado da

dutovia;7

3º) Procedimentos metodológicos: Os processos de resgate dos

remanescentes culturais deverão estar de acordo com as características morfológicas

do(s) aterro(s), principalmente quanto à extensão e à altura das camadas culturais. Em

campo, será indispensável delimitar a trincheira a ser escavada e realizar o

levantamento topográfico do(s) sítio(s). Para a escavação torna-se pertinente obedecer

a níveis artificiais de 10 ou 5 cm até atingir a camada estéril do(s) sítio(s), coletando e

documentando sistematicamente todas as evidências arqueológicas, restos faunísticos,

sepultamentos e amostras de rochas, minerais, carvão, solo e pólen8. Em laboratório,

os materiais arqueológicos (cerâmico, lítico, ósseo e outros) deverão ser analisados de

acordo com as normas padronizadas, buscando compreender as tecnologias

evidenciadas nos remanescentes culturais. A análise das amostras de restos

faunísticos, sepultamentos, rochas, minerais, carvão, solo e pólen será norteada por

uma perspectiva interdisciplinar, tendo como objetivo último tratar da relação

existente entre sociedades humanas e seus ambientes de vida (por exemplo, problemas

pertinentes a assentamento e subsistência). A apresentação dos resultados, com as

necessárias explanações das etapas dos trabalhos, deverá ser feita sob forma de

relatório final a ser publicado em sua íntegra;

4º) Duração dos trabalhos e recursos necessários: A duração dos trabalhos,

o cronograma das atividades e os recursos materiais e humanos necessários serão

apontados pelos arqueólogos designados para a realização do salvamento, caso este

venha a ser necessário. Sugere-se que os trabalhos de campo sejam realizados

preferencialmente no período da seca do Pantanal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados apresentados comprovam a grande potencialidade de sítios

arqueológicos, principalmente de culturas indígenas passadas, do Estado de Mato

Grosso do Sul, especificamente da área de estudo aqui abrangida.

O segmento do Pantanal (km Zero-260) destaca-se com uma considerável

quantidade de aterros, geralmente conservados e que se sucedem na planície de 7 Faz-se necessário não restringir a escavação aos limites visíveis do(s) sítio(s), mas também escavar

fora do aterro para verificar se ali existem evidências de ocupação ou atividade humanas pretéritas.

8 Atualmente penso ser mais pertinente realizar uma escavação através da decapagem dos níveis

naturais dos aterros, apesar da dificuldade de identificá-los em muitos casos, e não a partir de níveis arbitrários de 5 ou 10 cm de espessura.

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inundação. É possível inferir que o Pantanal constitui-se numa das regiões de maior

concentração de sítios arqueológicos, notadamente de aterros, do território nacional.

Sua relevância arqueológica dá-se, principalmente, pela incolumidade da grande

maioria dos sítios ali existentes, e estes, por sua vez, devem ser indicadores de uma

considerável densidade de populações indígenas que habitaram a região em tempos

pretéritos. Por outro lado, constata-se a necessidade urgente de definição de

estratégias para sua preservação, enquanto patrimônio cultural, devido a sua

relevância para os estudos sobre a ocupação indígena da América do Sul, bem como

para a história e a cultura da população sul-matogrossense.

Nota-se ainda que a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil não ocasionará

um grande impacto ao patrimônio arqueológico brasileiro se comparado a outros

empreendimentos, como rodovias, ferrovias, hidrelétricas e hidrovias. Além dos

impactos negativos abordados, possui um impacto positivo importante a vala

construída para enterrar os dutos. Trata-se de um impacto de fundamental importância

para o conhecimento da ocupação indígena pretérita de Mato Grosso do Sul. Também

será importante para o conhecimento da geologia e geomorfologia regionais, que

propiciará um melhor entendimento da história quaternária do Pantanal e do Planalto

brasileiros, da qual fazem parte muitas sociedades humanas ainda pouco conhecidas

ou praticamente desconhecidas.

A partir dos resultados obtidos torna-se crucial o cumprimento das medidas

preventivas e mitigadoras apontadas neste trabalho, a fim de prevenir ou compensar a

destruição do patrimônio arqueológico em questão.

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O USO DE MODELOS PREDITIVOS PARA DIAGNOSTICAR

RECURSOS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS A SEREM AFETADAS

POR EMPREENDIMENTOS DE IMPACTO AMBIENTAL

Renato Kipnis

INTRODUÇÃO

A distribuição dos recursos arqueológicos no espaço não é aleatória. Ela é

padronizada segundo vários fatores, dentre os quais, o comportamento de populações

passadas, processos naturais e ação humana na paisagem. De um modo geral, o

comportamento humano pretérito produz padrões na cultura material e na paisagem

(resultado da interação entre sociedades humanas e meio-ambiente). Com o tempo

estes padrões podem ser alterados por processos naturais e pela contínua ação humana

(Wood and Johnson 1978 ) que, apesar de alterarem os vestígios arqueológicos,

também são padronizados. O desenvolvimento de modelos preditivos baseam-se

nestes pressupostose têm por objetivo, prever a ocorrência de um determinado

fenômeno arqueológico a partir do conhecimento prévio das variáveis envolvidas na

formação dos padrões arqueológicos, segundo uma perspectiva sistêmica. A idéia

básica que está por trás do desenvolvimento de um modelo arqueológico locacional é

que se existem tendências ou padrões entre as localizações de sítios arqueológicos e

uma ou mais variáveis distribuidas regionalmente, pode-se então desenvolver um

modelo baseando-se nesta associação (Brandt et al. 1992).

É quase que inevitável que empreendimentos de impacto ambiental,

principalmente os de grande escala (rodovias, hidroelétricas, gasodutos, etc.), irão

deparar com recursos arqueológicos. Um vez que a distribução destes recursos não é

aleatória, sería extremamente útil, e eficiente, se pudessemos de alguma forma prever,

se não a localização destes recursos, pelo menos a probabilidade de sua ocorrência em

uma determinada região. Isto daria subsídios para o empreendedor levar em

consideração os recursos arqueológicos na elaboração de um empreendimento de

impacto ambiental já nas primeiras etapas (i.e. planejamento e diagnóstico) da

formulação do projeto. Sem dúvida, isto dária melhores condições para contemplar

alternativas de localização do projeto, assim como custos com mitigação dos impactos

negativos.

O diagnóstico dos recursos arqueológicos é de extrema importância, pois é ele

que deve ser a primeira instância de avaliação do potencial do patrimônio

arqueológico. É baseado neste estudo que a primeira análise dos impactos culturais do

empreendimento será feita. Durante a etapa do diagnóstico devem ser levantados os

principais problemas a serem pesquisados dentro de um empreendimento de impacto

ambiental. Os problemas a serem atacados, que tipo de dados são necessários para

resolver estes problemas e qual a metodologia a ser utilizada para gerar os dados e

processá-los durante o período do projeto como um todo, têm que ser desenvolvido já

na primeira fase do empreendimento de impacto ambiental. Em outras palavras, o

detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos têm

que se basear no diagnóstico. Eventualmente, como em qualquer outra pesquisa,

durante o desenvolvimento do projeto irá ocorrer um refinamento dos problemas e

métodos; mas a estrutura básica da pesquisa, o que chamamos de “design”, tem que

sair deste estudo inicial. Caso contrário fica impossível de se fazer um planejamento

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eficiente, condição sine qua non neste tipo de empreendimento. O diagnóstico dos

recursos arqueológicos também é de extrema importância para dar subsídios aos

orgãos competentes para a avaliação do patrimônio arqueológico, dos projetos de

mitigação e monitoramento dos recursos.

A questão fundamental do estudo de diagnóstico dos recursos arqueológicos é

como gerar informação que dê subsídios para avaliar o impacto do empreendimento

nos recursos arqueológicos e para planejar atividades de mitigação a partir de dados já

existentes. Ou seja, como realizar o estudo de diagnóstico de uma forma eficiente e

não onerosa baseado em dados secundários.

É raro uma região no mundo, se é que há uma, em que não exista nenhum

registro escrito sobre algo característico do local. Em sua maioria, estes registros

contém dados sobre as populações que ali habitam e/ou habitavam. Os registros

também contém, em sua maioria, informações sobre o meio-ambiente. No caso

específico dos recursos arqueológicos, estas informações podem variar entre um

extremo, onde temos informações aprofundadas sobre o passado com alguns trabalhos

de campo já realizados e coleções arqueológicas que podem ser consultadas a outro

extremo onde nada se sabe. Como o objetivo do diagnóstico dos recursos

arqueológicos é o de levantar informações para podermos caracterizar a situação atual

do patrimônio cultural de uma dada região a ser impactada, precisamos fazer uso de

todos as informações possíveis, sejam elas empíricas ou somente teóricas para

caracterizar a região do empreendimento. Na pior das hipóteses, ou seja, a falta total

de referências, sempre haverá dados de locais circundantes desta suposta região

incógnita e informações sobre o comportamento humano que podem ser utililizadas

para os estudos de impacto ambiental.

A utilização de modelos preditivos no contexto de estudo de impacto

ambiental é de grande utilidade uma vez que estes modelos são dispositivos que se

utilizam de um conhecimento prévio para prever tendências e eventos. Ou seja, eles se

utilizam do conhecimento de dados arqueológicos e não-arqueológicos para

caracterizar o potencial de uma região, baseados em variáveis definidas pelo

pesquisador sem a necessidade de realizar trabalho de campo. É importante ressaltar

que precisamos sempre ter em mente o processo de um empreendimento de impacto

ambiental como um todo, e que a utilização de modelos não elimina o trabalho de

campo, muito pelo contrário, o trabalho de campo é importantíssimo para refinar e

validar os modelos e em última instância faz parte da atividade mitigadora. Mas, em

se tratando especificamente da fase de diagnóstico, a caracterização dos recursos

arqueológicos quando feita nesta etapa do projeto não envolve trabalho de campo. O

estudo fica limitado à utilização de dados secundários.

MODELOS EM ARQUEOLOGIA

O que são modelos? Modelos são hipóteses, ou um conjunto de hipóteses que

simplifica observações complexas ao mesmo tempo em que oferece um quadro

preditivo exato que estrutura estas observações, frequentemente separando

redundância (noise) de informação. A maioria dos modelos mais sofisticados são

modelos matemáticos ou estatísticos, estes têm a vantagem de apresenter um grau

mais baixo de viés e normalmente são sistemas dedutivos mais robustos.

Há duas áreas em que os modelos preditivos têm um grande potencial dentro

de um contexto de estudos de impacto ambiental, a saber: custo-eficiência e utilidade

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em planejamentos. A perspectiva quanto ao custo-eficiência está no seu potencial de

projetar a provável distribuição dos recursos arqueológicos de uma região a partir de

uma amostra cuidadosamente escolhida da área a ser impactada. A utilização de

modelos preditivos nos primeiros estágios do planejamento dá condições, oferece

subsídios, para que os planejadores evitem os recursos naturais quando possível, ou

pelo menos escolham alternativas de menor impacto (Kohler & Parker 1986).

Tomemos por exemplo a construçao de uma auto-estrada. O estudo de diagnóstico dos

recursos arqueológicos pode gerar um modelo que prevê a probabilidade de

ocorrência ou não de sítios arqueológicos. O resultado final deste estudo sería um

mapa com diferentes áreas, representando diferentes probabilidades de ocorrência dos

recursos arqueológicos. Esta informação poderia ser então, utilizada na computação

geral dos custos do projeto para gerar alternativas do traçado da estrada. Do ponto de

vista dos recursos arqueológicos, as áreas de baixa probabilidade seriam as áreas de

menor custo para mitigação.

O desenvolvimento e a utilização de modelos preditivos em arqueologia estão

associados à projetos de impacto ambiental na América do Norte. A utilização de

modelos preditivos nos Estados Unidos teve um grande avanço no final da década de

70 e ínicio da década de 80 através de projetos financiados por agências

governamentais que gerenciam as terras federais norte americanas. O objetivo destes

projetos era o desenvolvimento de modelos que poderiam indicar locais de ocorrência

de recursos arqueológicos em grandes áreas, baseados em amostras obtidas através de

prospecções feitas somente em algumas partes da região (Ambler, 1984, Ebert 1988,

Kvamme 1990, Kohler and Parker 1986, Warren 1990). Em outras palavras, levantar

subsídios para avaliação dos impactos culturais e desenvolvimento de programas de

mitigação dos impactos negativos de um modo eficiente e sem custos abusivos.

O resultado destes estudos foi o desenvolvimento de modelos preditivos

locacionais que procuram prever, no mínimo, a ocorrência de sítios arqueológicos,

material arqueológico ou estruturas pré-históricas em uma região, baseados em

padrões ou tendências observadas em uma amostra desta região ou fundamentados em

noções ou suposições fundamentais sobre o comportamento humano. A localização

dos assentamentos pré-históricos pode ser vista como uma estratégia com fins

econômicos, sociais e políticos (Jochim 1981). O desenvolvimento de modelos que

incluam todos os possíveis aspectos que possam influenciar o padrão de assentamento

humano é muito complexo. A maioria dos modelos desenvolvidos até agora

conseguiram uma certa simplificação através da concentração no componente

econômico do padrão do assentamento humano. Argumenta-se, ou assume-se, que

dentre as várias relações econômicas relizadas por indivíduos e sociedades pré-

históricas, uma das mais importantes é com o meio ambiente (Jochim 1981). Esta

suposição é importante pois é o fundamento no qual a utilização da distribuição de

características ambientais para prever a localização de assentamentos humanos está

baseada. Pressupõe-se também, que seres humanos tendem a minimizar o tempo ou

esforço gasto em suas transações econômicas com o meio ambiente (Jochim 1981).

Suposição esta que tem implicações importantes no desenvolvimento de modelos

preditivos.

Uma outra suposição, não menos importante, é a de que o comportamento e

suas mudanças ao longo do tempo produzem padrões. Qualquer estudo que visa gerar

conhecimento arqueológico tem que partir da caracterização destes padrões. A base de

tudo isto está na definição de cultura como sendo modos comportamentais

apreendidos e sua manifestação material, socialmente transmitidos de uma geração

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para outra e de uma sociedade ou indivíduo para outro (Clarke 1968). Segundo uma

perspectiva sistêmica, o registro arqueológico é a soma da agregação dos materiais

descartados no curso do padrão repetitivo da localização de partes diferentes do

mesmo sistema.

Quando um pesquisador descobre um padrão em um conjunto de observações

e desenvolve uma hipótese para explicar o padrão observado, esta hipótese tem

implicações preditivas para observações futuras. As implicações podem ser testadas

com novos dados independentes. Se os dados são compatíveis com as previsões, a

hipótese é validada cientificamente. Caso a hipótese seja refutada, ela tem que ser

reformulada. Um aspecto importante deste processo, mas pouco adotado, é a

operacionalização das hipóteses, ou seja, criar modos delas serem testadas através de

dados empíricos. Este ponto é muito importante, pois é o único modo de se poder

avaliar uma pesquisa, seja uma avaliação feita por pesquisadores ou gerenciadores do

patrimônio cultural.

Os vários modelos preditivos têm três elementos básicos em comum:

informação, método e resultado. O modelo preditivo utiliza o método para transformar

informação em resultados previsíveis. Informação é o conjunto do conhecimento já

existente do qual o modelo é derivado. Dois tipos básicos de informação podem ser

utilizado no desenvolvimento de modelos preditivos. (1) Teorias que explicam os

efeitos processuais das variáveis independentes nos eventos de interesse segundo uma

relação de cause e efeito, e (2) observações empírcas, que normalmente consistem em

(a) interações observadas entre variávies dependentes e independentes em estudos

prévios ou em partes amostradas da área de interesse, e (b) informação sobre as

variáveis e condições que possam influenciar o resultado na área de interesse

amostrada (Warren 1990).

A informação é fundamental para o desenvolvimento do projeto como um

todo. Os dados que coletamos e como os coletamos, isto é, o método empregado em

uma pesquisa tem que ser determinado pelo problema que queremos solucionar e pelo

conhecimento teórico e empírico previamente adquirido.

O desenvolvimento de um modelo preditivo pode se dar segundo uma

perspectiva puramente dedutiva, baseada em teorias, ou de uma forma puramente

indutiva, baseada em observações empíricas (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990,

Warren 1990). Por exemplo, um modelo para prever a localização de sítios

arqueológicos poderia ser desenvolvido utilizando uma perspectiva dedutiva baseada

em teorias que salientem as necessidades culturais e biológicas de uma sociedade. As

necessidades serveriam para guiar a seleção das variáveis independentes. A

associação destas variáveis entre si, e com variáveis do meio-ambiente, indicariam o

potencial de ocorrência de sítios arqueológicos em uma determinada área. O oposto

deste modelo, seria um modelo puramente empírico, baseado na informação prévia

sobre a localização de sítios arqueológicos. Os padrões são descritos de uma forma

que possam prover expectativas quanto as características arqueológicas de uma área

desconhecida.

Os projetos de gerenciamento dos recursos culturais nos Estados Unidos, onde

a utilização de modelos tem sido mais comum, são em sua maioria indutivos e seguem

uma estratégia inferencial (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990). Correlatos

naturais da localização de sítios arqueológicos são descobertos através de

procedimentos de estatística inferencial com o intuito de reduzir o número de

variáveis ambientais que possam estar ligadas com a localização dos sítios para um

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conjunto de variáveis cuja associação com a localização de sítios observados foram

comprovadas. Tal procedimento tem o objetivo de caracterizar uma região a partir de

uma amostra da mesma. Entre os vários problemas que esta perspectiva apresenta,

cabe ressaltar que na ausência de teoria o processo de escolha das variáveis é

ineficiente e o modelo resultante não é consistente e fica impossível se ser

interpretado. Uma estratégia mais eficiente é a utilização de modelos que incorporem

as duas perspectivas, teórica e empírica (Warren 1990).

Algumas das várias estratégias ou enfoques utilizados em modelos preditivos

regionais são: (1) modelos baseados em padrões ambientais observados

empiricamente em amostras arqueológicas de uma região (Pilgram 1987), (2) modelos

que se utilizam de coordenadas espaciais ou posição de sítios conhecidos de uma

região para desenvolver modelos quantitativos geográficos (Bakels 1982, Kvamme

1989), (3) modelos que partem de regularidades nas decisões de localização de

assentamento observadas em estudos etnográficos comparativos (Jochim 1976) e (4)

modelos dedutivos baseados em suposições sobre o comportamento humano, estrutura

do meio-ambiente e da relação entre os dois (Limp & Carr 1985). Alguns modelos

tentam prever a presença ou ausencia de sítios, número de sítios em uma determinada

área, tipos de sítios e até mesmo importância (significância) do sítio.

Quando um modelo arqueológico locacional preditivo é aplicado à uma região

o resultado pode ser visto em termos probabilísticos, apesar de muitas das técnicas ou

estratégias utilizadas no desenvolvimento de modelos não têm uma origem

probabilística. Por exemplo, a probabilidade de ocorrência ou não de sítios

arqueológicos em uma determinada região, ou a probabilidade de ocorrência de sítios

pré-cerâmicos.

Uma característica importante na utilizacão de modelos preditivos dentro de

uma perspectiva de projetos de impacto ambiental é que a unidade elementar de

pesquisa em estudos de modelos arqueológicos deixa de ser o sítio arqueológico e

passa a ser a parcela territorial. A parcela territorial nada mais é que uma parte da área

de estudo adquirida através da divisão da região segundo critérios estabelecidos

(Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). A fragmentação de uma região

em unidades pode ser facilmente obtidada através do quadriculamento de uma região.

Por exemplo, uma parcela territorial pode ser uma unidade (um quadrado) do

quadriculamento geral. Geralmente as parcelas ou „células‟ (cell) são do mesmo

tamanho (contém a mesma área) para facilitar interpretações e cálculos

probabilísticos. A princípio, a parcela territorial pode ser de qualquer tamanho, quanto

menor a parcela mais refinadas serão as previsões, consequentemente, as informações

geradas serão mais eficazes em termos de gerenciamento dos recursos arqueológicos.

Por exemplo, a figura 1 representa uma região no estado de Minas Gerais,

entre a cidade de Belo Horizonte e Serra do Cipó, que foi dividida em quatro unidades

territoriais. O evento definido é presença ou ausência de sítio arquológico. Podemos

ver que na figura 1 todas as parcelas contém sítios. Já na figura 2, a mesma área foi

subdividida em 32 parcelas. Notamos que 17 das unidades territoriais não contém

sítios arqueológicos. Analisando melhor a informação contida na figura 2, veremos

que 8 das 32 „células‟ são caracterizadas pela ausência de curso d‟água e que

nenhuma destas unidades apresenta sítios arqueológicos. Dentre as 24 unidades com

curso d‟água, 15 têm a presença de sítios arqueológicos. Apesar de muito

simplificado, fica claro as vantagens de se trabalhar com escalas mais precisas.

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No começo do desenvolvimento de qualquer modelamento de um problema é

importante a definição do evento arqueológico que vai ser observado em cada parcela.

A natureza deste evento depende dos objetivos do modelo. Os eventos definidos

formam uma fragmentação mutuamente exclusiva e exaustiva do espaço amostrado. A

parcela de terra pode ser designada somente a um dos eventos arqueológicos

definidos. Esta exclusão mútua implica que as definições sejam claras, sem

ambigüidades, e que todos os eventos que possam ocorrer na unidade sejam definidos.

Por exemplo, o evento presença ou não de sítio arqueológico em uma parcela de terra,

implica na definição de sítio e não sítio.

Uma característica importante na utilização de modelos preditivos é a

definição de probabilidades prévias para serem utilizadas como índices de base. Estes

são simplesmente probabilidades elementares da ocorrência associada a cada evento

arqueológico definido anteriormente, ou anterior a qualquer consideração de modelos

(Kvamme 1990). Probabilidade a priori indica a probabilidade total de cada evento

arqueologógico na totalidade de uma região, elas não nos dizem nada sobre onde

sítios arqueológicos, material ou outras evidências possam ser encontradas.

Probabilidades arqueológicas a priori nos dão condições de definir o que os modelos

arqueológicos devem efetuar. Especificamente, o modelo preditivo deve poder indicar

a ocorrência de um evento arqueológico em uma localidade com uma probabilidade

maior que a probabilidade do evento associada aos índices de base. Em estudos

regionais, probabilidades a priori podem ser estimadas através de uma perspectiva de

frequência relativa baseada em amostras aleatórias de parcelas territoriais e na

observação da classe do evento associado a cada parcela (Kvamme 1990, Warrem

1990).

O modelo preditivo pode ser visto como uma regra de decisão que determina

uma parcela territorial à uma das classes do evento arqueológico definido, baseando-

se em outras condições e características do local, na maioria dos casos variáveis não

arqueológicas. Em outras palavras, o modelo processa as variáveis independentes, os

dados não arqueológicos (input) segundo vários critérios de decisão, e tem como

resultado (output) a classificação ou determinação do local à uma classe do evento

arqueológico, que é a variável dependente.

Em qualquer região de estudo as características não arqueológicas podem ser

determinadas ao nível das unidades de parcela territorial a serem investigadas através

de medições ou observações feitas em mapas, fotografias aéreas, imagens de satélite

ou mesmo informação espacial gerada por computadores, sem a necessidade de

realização de trabalho de campo. Para cada parcela territorial o resultado é uma série

de características ou atributos para a unidade de análise. Estas características devem

representar variáveis que, segundo trabalhos prévios ou teoria, têm alguma relação

com a distribuição dos eventos arqueológicos estudados. A maioria dos estudos que

seguem uma perspectiva de modelos, independente de sua natureza e origem, têm

focalizado as observações espaciais das características do meio-ambiente; por

exemplo, relêvo, tipo de solo, declividade, elevação, vegetação (tipos de comunidades

de plantas), ou distância da água. Outras propriedades de localidade que também são

empregadas como base no desenvolvimento de modelos incluem atributos de

localidade e até mesmo atributos sócio-culturais. É baseado nestas características que

o modelo preditivo arqueológico, através de alguma forma de regra de decisão,

designa cada unidade local à um dos eventos arqueológicos definido.

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Para exemplicar, vamos supor um projeto cujo objetivo é caracterizar o

potencial arqueológico de uma dada região segundo padrões ambientais observados.

O evento (variável dependente) que definimos é presença ou ausência de sítios

arqueológicos. As informações (variáveis independentes) utilizadas para desenvolver

o modelo são dados do meio ambiente: (a) vegetação, que pode assumir três valores:

comunidade de plantas A, B ou C; (b) declividade do terreno segundo três classes: 0 a

10 graus, entre 10 e 20 graus e maior do que 20 graus, e (C) distância de água de

acordo com três divisões: entre 0 e 500 metros, de 500 a 1000 metros e maior que

1000 metros (Tabela 1)

TABELA 1

vegetação declividade do terreno distância de água

comunidade de plantas A 0 o - 10o 0 - 500 m.

comunidade de plantas B 10 o - 20 o 500 - 1000 m.

comunidade de plantas C > 20 o > 1000 m.

Baseados em observações empíricas desenvolveu-se o seguinte modelo utilizando-se

parcelas territoriais de 1 km 2 :

vegetação declividade do terreno distância da

água

probabilidade de ocorrência de

sítios arqueológicos

comunidade de

plantas A 0 o - 10o 500 - 1000 m .80

comunidade de

plantas B 0 o - 10o 0 - 500 m .10

comunidade de

plantas A 10 o - 20 o 500 e 1000 m .05

Em uma dada região com características semelhantes àquela onde se

desenvolveu o modelo, prevemos que a probabilidade de ocorrência de sítios

arqueológicos em uma área cuja vegetação é caracterizada pela comunidade de

plantas A, cuja declividade do terreno está entre 0 o e 10o e a distância da água entre

500 e 1000 metros é de .80.

As variáveis dependentes que se tem utilizado em estudos que empregam

modelos preditivos vão desde categorias arqueológicas até índices quantitativos. O

evento arqueológico (variável dependente) mais comum empregado nos estudos é a

presença ou ausência de sítios (Brandt et al. 1992, Kohler & Parker 1986, Kvamme

1990, Warren 1990). Há duas razões principais pelo qual esta variável é utilizada.

Primeiro, são poucos os estudos onde temos informação suficiente para se fazer uma

classificação significativa de sítios. Segundo, mesmo que possamos classificar os

sítios, o tamanho amostral é muito pequeno para muito dos sítios para serem

utilizados como amostras nas quais o desenvolvimento do modelo basear-se-á. Por

outro lado, juntando todos os sítios em uma simples classe „presença de sítio‟ tem-se

uma amostra significativa. Isto cria outros problemas, como o fato de juntar tipos

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diferentes de sítio em uma mesma classe o que acaba introduzindo heterogeneidade

em qualquer modelo que procura resolver problemas. Entretanto, há estudos que

argumentam que as características de localidade talvez seja comum à todas as classes

de sítios de uma região (Kvamme 1990).

Modelos arqueológicos preditivos universalmente se baseam em

características não-arqueológicas de localidades. Quatro grandes categorias são

normalmente empregadas: meio-ambiente, sócio-cultural, asserção e dados

radiométricos (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990).

A suposição que o meio-ambiente natural tem uma grande influência na

seleção da localidade do assentamento e áreas de atividade de populações pré-

históricas é suportada por dados empíricos etnográficos, arqueológicos e estudos

teóricos (Gumerman 1971, Jochim 1976, Thomas and Bettinger 1976, Western and

Dunne 1979). Há um grande número de características ambientais utilizadas em

análise arqueológica e desenvolvimento de modelos: declividade, produtividade do

solo, permiabilidade do solo, elevação, topografia, visibilidade, rede de drenagem,

profundidade de lençois freáticos, e comunidades de planta. Um problema que

encontramos com a utilização destas variáveis é o quanto elas são representativas de

tempos passados, principalmente aquelas que são mais sensíveis as mudanças

climáticas. Esta é uma questão que geralmente não é abordada nos estudos de modelo

preditivos, mas que deveria ser.

Uma grande variedade de algorítimos tem sido utilizada na construção de

modelos preditivos em arqueologia. Estes algorítimos são originários de áreas como a

matemática, estatística, teoria da informação e processamento de imagens de

sensoriamento remoto.

Uma vez desenvolvido um modelo preditivo é necessário testá-lo. A

verificação de modelos compreende na comparação das previsões que o modelo faz

com dados empíricos, eventos arqueológicos em localidades onde ambos (previsão e

dado empírico) são conhecidos. Esta comparação tem que ser independente dos dados

utilizados na geração do modelo.

SISTEMA INFORMATIVO GEOGRÁFICO E MODELOS PREDITIVOS

Umas das perspectivas que tem grande potencial na utilização de modelos

preditivos regionais e somente nos últimos anos tem se desenvolvido é a utilização de

sistema informativo geográfico (SIG ou GIS/geographic information system). O

desenvolvimento de modelos preditivos regionais requer uma quantidade de

informação muito grande e o processamento dos dados é intenso. Estes modelos

necessitam de dados ambientais que normalmente são obtidos através de mapas e que

representam um número grande de variáveis para (1) amostras locacionais que

representem cada classe de evento arqueológico para fins de testar o modelo e (2) para

cada localidade na região onde o modelo será aplicado segundo uma perspectiva

preditiva. Para os modelos que pretendem generalizar a partir de padrões empíricos

observados em amostras prévias, o que atualmente é a estratégia mais comum, os

requerimentos já mencionados são necessários (3) para as amostras das localidades

para cada classe de evento arqueológico para o desenvolvimento do modelo.

A utilização do sistema informativo geográfico supera quase que todas

dificuldades e limitações que surgem no desenvolvimento, teste e aplicação de

modelos preditivos regionais (Kvamme 1986). O sistema informativo geográfico é um

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modo computacional de manipular, analisar, guardar,apreender, recuperar, e exibir

varias formas de dados que possam ser referidos a localidades geográficas específicas

(Kvamme 1990). A maioria dos SIGs adequados para análise regional arqueológica e

aplicações de modelos são sistemas baseados em „células‟, onde a região de estudo é

quadriculada por „células‟ que representam parcelas territoriais, e os vários t ipos de

dados são armazenados para cada uma delas. Cada tipo de informação é armazenado

em um banco de dados que representa uma variável que é espacialmente distribuida

na região. A perspectiva de se utilizar „células‟ corresponde exatamente com a

unidade de análise elementar de modelos regionais arqueológicos, a parcela territorial;

consequentemente, as estruturas dos SIGs são logicamente e organizacionalmente

consistentes como as necessidades impostas pelos modelo preditivos

Qualquer tipo de informação que seja geograficamente distribuida pode ser

codificada dentro do SIG, dados originados de fontes como topografia, solos,

vegetação, localização de sítios arqueológicos, rede hidrográfica, e outros tipos de

mapas, assim como de foto aérea e imagem de sensoriamento remoto. Cada fonte de

informação é armazenada separadamente em camadas temáticas dentro do SIG.

Uma das características importantes do SIG é o seu potencial de gerar dados

secundários a partir de outras fontes. Por exemplo, partindo de um mapa topográfico

(com dados sobre elevação) podemos gerar e armazenar novas informações como:

declividade, visibilidade, relêvo local, variabilidade local do terreno, e identificação

terraços, canyons, platôs, e bacias hidrogáficas.

Uma vez montado, codificado e armazenado „célula‟ por „célula‟ os dados

ambientais de uma região, fica muito mais fácil, simplificado e eficiente o

desenvolvimento, teste e aplicação de modelos regionais preditivos.

A utilização de SIG para desenvolver modelos preditivos regionais é um

instrumento heurístico que pode melhorar nosso conhecimento sobre a distribuição do

assentamento pré-histórico, padrões de uso da terra, e interação de populações pré-

históricas com o meio-ambiente. Modelos regionais eficientes podem caracterizar a

distribuição pré-históricas e padrões decorrentes de um modo mais explicativo.

Modelos regionais com potenciais preditivos podem se tornar instrumentos eficientes

para o gerenciamento e proteção dos recursos arqueológicos. O desenvolvimento de

modelos preditivos, juntamente com SIG, pode contribuir com o planejamento de

empreendimentos de impacto ambiental de uma forma mais eficiente, de melhor

qualidade e com custos mais baixos.

DISCUSSÃO

Apesar dos avanços teóricos, metodológicos e técnicos mencionados, a grande

maioria dos projetos arqueológicos no Brasil em áreas a serem afetadas por

empreendimentos de impacto ambiental é puramente empírica, não se utiliza das

técnicas disponíveis de uma forma consciente e eficiente, e não segue a perspectiva de

modelos. Normalmente os projetos realizam prospecções sistemáticas para se

descobrir e delimitar sítios arqueológicos. As áreas com distribuição densa de material

arqueológico (artefatos, estruturas, etc.) são definidas como sítios. Estes são

associados às áreas onde atividades foram realizadas por populações pré-históricas.

As localidades fora do sítio são definidas como não-sítios, e em um contexto de

impacto ambiental, os sítios serão estudados e as áreas classificadas de não-sítios não.

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Segundo esta lógica fica difícil decidir o que ocorreu em um sítio e qual a sua

importância. O local de ocorrência do material arqueológico fica sendo a unidade de

análise. Nesta perspectiva fica difícil se fazer qualquer avaliação, uma vez que não há

um encadeamento lógico do que é realizado e porque. Fica mais difícil ainda se fazer

qualquer planejamento de atividades de mitigação. O objetivo destas prospecções são

normalmente obscuras, são poucas as pesquisas que têm objetivos claros, e os

aspectos quantitativos dos projetos são em sua maior inadequados para qualquer

estudo sério de impacto ambiental onde decisões quanto a preservação ou não dos

recursos arqueológico têm que ser tomadas.

É importante ressaltar que a utilização de modelos preditivos e técnicas de

estatística no estudo da avaliação e mitigação dos recursos arqueológicos não faz mais

que ajudar na geração de conhecimento arqueológico e prover linhas gerais para o

gerenciamento dos recursos arqueológicos. A utilização destes modelos para tomar

decisões é de competência dos responsáveis pelo gerenciamento dos

empreendimentos de impacto ambiental.

Espero que após esta breve discussão tenha ficado óbvio que para a utilização

de modelos preditivos em arqueologia como instrumento eficaz de geração de

informações a serem utilizadas no licenciamento de atividades de impacto ambiental,

os estudos dos recursos arqueológicos têm que ser realizados já nas primeiras etapas

de planejamento das atividades modificadoras do meio ambiente. Mesmo em áreas

onde há uma grande quantidade de dados secundários, o desenvolvimento, teste e

aplicação de modelos é um processo que requer tempo e portanto é preciso ser

incorporado no empreendimento em tempo hábil para poder gerar as informações

necessárias na elaboração do relatório de impacto ambiental.

As informações geradas pelo diagnóstico dos recursos arqueológicos são

importantes para (a) contemplar todas as alternativas de localização do

empreendimento confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto, (b)

identificar e avaliar sistematicamente os impactos nos recursos arqueológicos gerados

nas fases de implantação e operação da ativadade, e (c) definir os limites geográficos

a serem direta ou indiretamente afetados pelos impactos negativos do projeto. Estas

diretrizes são requerimentos da resolução CONAMA N. 001 (Art. 5), que no caso da

arqueologia raramente são incluídos na decisão do licenciamento de ativadades.

Somente com a incorporação dos estudos dos recursos arqueológicos nas

primeiras etapas do empreendimento é que teremos condições reais de (a) caracterizar

a situação do patrimônio arqueológico atual na área antes da implantação do projeto,

(b) avaliar os impactos nos recursos arqueológicos do projeto e avaliar alternativas

através de indentificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos

prováveis impactos relevantes, (c) propor medidas mitigadoras eficientes dos

impactos negativos, e (d) elaborar um programa de acompanhamento e

monitoramento dos impactos como prevê o artigo 6 da resolução CONAMA N. 001.

Uma última consideração quanto ao uso de modelos preditivos é a respeito de

sua eficiência em estruturar os estudos de avaliação dos impactos culturais e

detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos.

Normalmente os estudos de impacto e atividades de mitigação não são realizados pelo

mesmo grupo. A utilização de modelos facilita a implantação de programas de

mitigação, uma vez que dentro de uma perspectiva de modelos o processo é visto

como um todo, e o planejamento também. Este é um ponto muito importante, pois

apesar de parecer óbvio, muitas vezes os trabalhos de estudos de impacto ambiental

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são realizados na fase de implantação, mesmo em projetos onde estes trabalhos já

foram feitos.

Apesar de estarmos muito defasados na utilização de modelos, espero que esta

breve introdução sobre modelos preditivos sejá um começo para difundir e discutir a

utilidade e potencial desta perspectiva em estudos de impacto ambiental nos recursos

arqueológicos e gerenciamento do patrimônio cultural. Uma das vantagens em se

utilizar esta perspectiva é que o desenvolvimento, teste e aplicação de modelos

implica em um pensamento claro e lógico e consequentemente dá subsídios para

avaliação dos estudos de impacto ambiental e do planejamento de atividades

mitigadoras como preve a resolução CONAMA N.001

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DEBATE

Coordenadora: Dra. Irmhild Wüst - UFGO

Relatora: Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos - Scientia

Irmhild Wüst - Chamamos em primeiro lugar a professora Lylian Coltrinari, da

Universidade de São Paulo, Departamento de Geografia.

Lylian Coltrinari - Bom dia, eu sou Lylian Coltrinari, do Departamento de Geografia

da USP. Sou geomorfóloga e tive oportunidade de trabalhar, no começo dos anos

oitenta, com meus colegas arqueólogos da Universidade de São Paulo. Tenho mantido

com eles um relacionamento razoavelmente próximo e a isso devo, acredito, o convite

para participar deste fórum, que muito agradeço.

Gostaria não tanto debater, mas sim apresentar algumas reflexões a partir

daquilo que foi exposto pelos participantes da mesa. Em termos gerais acredito que

foi mencionado praticamente tudo a respeito do trabalho de pesquisa; praticamente

todos os trabalhos de pesquisa, na área de arqueologia, têm muito em comum com o

que se faz na geografia.

O primeiro fato que me chamou a atenção foi a ausência da palavra

interdisciplinar; me parece paradoxal, considerando que este Fórum se propõe a

discutir problemas do meio ambiente e o patrimônio cultural. Em segundo lugar, a

ausência de qualquer menção à Geografia, e a impressão de que não existe nenhum

tipo de conhecimento geográfico sobre as áreas que são prospectadas.

O que estou falando agora já foi dito e discutido muitas vezes e, mais uma vez,

sinto falta de referências ao conhecimento geográfico, com o qual tenho maior

familiaridade. Digo isso por que tenho a impressão de que, quando os meus colegas se

referem -por exemplo- aos transects, a amostragem e as regiões, é como se essa

terminologia, tipo de abordagem ou técnica fossem desconhecidos em outras áreas do

conhecimento, ou não fossem por elas considerados ou utilizados. Em outras palavras,

é como se não existisse o conhecimento especializado específico, que é banal, que é

rotineiro na geografia; por isso me parece que, na pesquisa arqueológica, às vezes

certas questões ou fatos criam dificuldades até para serem descritos. Isso, porque se

desconhece que, em outras áreas, se esses aspectos não estão resolvidos, pelo menos

se conhece a maneira de abordá- los.

É por isso que continuo não entendendo porque há tanta dificuldade e tanta

preocupação pelo fato de ter que definir certas áreas de trabalho ou certos aspectos da

pesquisa, já que existe, para o especialista, a possibilidade de obter estas informações

no próprio campo, sem ter de recorrer a meios indiretos. Cabe aqui a segunda questão

que gostaria de comentar, que é a da escala em que se trabalha. A arqueologia trabalha

em escala 1:1, a geomorfologia de detalhe trabalha em escala 1:1; para isso, é preciso

utilizar as técnicas adequadas a este tipo de análise. Eu sempre me surpreendo, por

exemplo, quando alguém se propõe a localizar um sítio numa foto aérea em escala

1:60.000, porque sei que não é qualquer sítio que pode ser identificado nessa escala,

como sei que, conforme o tamanho da área ocupada, uma carta topográfica em

1:50.000 não é útil; pelo menos deve-se utilizar uma carta 1:10.000, ou ainda maior.

Outro tema é a declividade; não pode falar-se em declividade genericamente,

para toda uma área. A declividade pode ser considerada de diferentes formas; uma

delas, por exemplo, a declividade de um trecho específico. Quando realizo um

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levantamento detalhado, registro um trecho com 10 graus de declividade, outro com

30 graus, e assim por diante, uma seqüência de valores ao longo de um perfil. Qual é

problema do ponto de vista geográfico? Não é só o valor da inclinação de cada

intervalo, importa também especificar, por exemplo, qual é a área caracterizada por

uma certa declividade, onde se localiza; de outro ponto de vista, qual é a relação que,

na realidade, existe entre as áreas de menor e de maior declividade. Se, por exemplo,

estou trabalhando numa várzea, no sopé de uma vertente, é necessário conhecer a

declividade da várzea e a da vertente, já que dessa vertente vão descer água e

materiais em direção à várzea. De acordo com a diferença de declividade entre

ambas, será diferente a forma -velocidade, quantidade- de chegada do material e da

água. O que vai acontecer na beira d‟água, ou no sopé da vertente, não depende só das

características do local estudado, depende de tudo que acontece a montante dessa

área, vertente acima. O mesmo raciocínio deve ser empregado quando se trabalha em

sítios ao longo de um rio, como é o caso das hidrelétricas. Porque escolho aquele

ponto em particular para a pesquisa? Qual é a morfologia, qual é a declividade no

interflúvio acima, no terraço acima? Porque o material que está lá -estou falando do

material inconsolidado, seja solo propriamente dito, material intemperizado, ou

sedimentos, não são necessariamente produto do que acontece ou aconteceu só

naquele local. Se estou trabalhando ao longo de um curso d'água, não tenho só o

material que vem de esquerda para direita ou de direita para esquerda da área que

estou pesquisando; devo lembrar do material que vem de montante para jusante, desde

a cabeceira até o ponto em que me encontro.

Trabalhamos em um país tropical, então o modelo que pretendo utilizar, é

adequado ao ambiente em que trabalho? É como o que acontece por exemplo

quando..., aí vou entrar numa seara que não conheço muito bem, mas gostaria de

lembrar um caso relacionado com a interpretação da posição dos líticos dentro dos

perfis. A geomorfologia da zona tropical conta com trabalhos bastante detalhados

sobre os processos de movimentação natural dos materiais grosseiros -do ponto de

vista sedimentológico- dentro dos perfis. Tive, no ano passado, o privilégio de

encontrar entre meus alunos um arqueólogo preocupado com esta questão, que ficou

muito surpreso ao saber que há muitas publicações sobre o assunto e também

medidas bastante precisas sobre a migração vertical desses materiais dentro de uma

matriz fina. Há inclusive índices, que não são definitivos -nem poderiam sé-lo, que

dão idéia do tipo e velocidade desses movimentos.

Uma outra questão: no meio tropical úmido chove, muito, e a posição do

material em superfície é difícil de explicar. Duvido muito da possibilidade de se

afirmar com certeza que o material arqueológico esteve permanentemente em uma

determinada posição se, por exemplo, próximo do sítio há uma vertente onde pode

ocorrer escoamento superficial. Não sei se é possível afirmar que o material do sítio,

que hoje está numa determinada posição, sempre esteve ali, e que o arranjo atual do

material é o arranjo original. Por outro lado, não tenho como saber se esteve sempre

em superfície ou, se acima dele, houve uma camada de material superficial que foi

erodida. Minhas dúvidas são essas; não estou questionando as conclusões a que pode

chegar-se; me refiro ao não aproveitamento dos recursos das outras disciplinas que

trabalham com a mesma realidade, já que tenho a certeza de que conseguiríamos

conhecer muito melhor este ambiente se trabalhássemos juntos. É uma prática que, no

Brasil, dificilmente acontece; geomorfólogo não fala com pedólogo, que não fala com

hidrólogo e climatólogo e, ainda, não sabe dialogar com que trabalha com sistemas

geográficos de informação, já que, às vezes o computador ainda dá medo.

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Um último aspecto que gostaria de levantar, sem intenção de criar problemas

por causa do que eu vou dizer. É difícil aceitar, em relação ao caso do colega que fez

referência ao gasoduto, que o mesmo governo que estipulou as regras para

desenvolver os estudos de impacto ambiental para todos os tipos de ocupação que

podem afetar o ambiente, o mesmo governo que garante -em tese- a possibilidade de

se fazer um trabalho completo de campo e tudo mais, não forneça os meios de os

pesquisadores poderem trabalhar. Esse é um caso específico, e haveria várias questões

a levantar nesse trabalho do gasoduto. Em primeiro lugar são áreas extremamente

complexas, que precisariam de estudos em 1:1, muito finos. Depois, os meios com

que se conta para fazer este tipo de estudos, que só podem ser baseados em trabalho

de campo. Quando se trata de uma área estratégica, a pesquisa direta deveria ser

obrigatória, pelo menos, em áreas previamente escolhidas pelos pesquisadores para

amostragem. Fosse com uma equipe de vigilância junto, mas o campo não pode ser

omitido nunca. E no caso, por tratar-se de uma área extremamente complexa do ponto

de vista da morfologia, das condições dos materiais em que estão sendo realizadas as

obras de implantação do gasoduto, e em especial da mecânica desses solos, avaliações

detalhadas são fundamentais.

Eu pergunto, qual o papel dos órgãos responsáveis? Se a Petróbras não pode

fazer (...), como pode ser solicitada uma pesquisa de extrema precisão para instalação

do gasoduto se não são dadas, aos pesquisadores, as possibilidades de examinar o

local diretamente? Acho que aí, com todo o cuidado possível, há uma questão ética a

ser discutida. Qual é o interesse real em um estudo que seja, verdadeiramente, uma

avaliação precisa do impacto que será criado com uma obra que é necessária a uma

área extensa do Brasil? Obrigada.

Irmhild Wüst - Alguém da mesa quer fazer algum comentário?

Jorge Eremites - Em primeiro lugar. eu achei suas colocações bastante pertinentes.

Tenho a dizer o seguinte, com relação às considerações sobre o gasoduto: na verdade,

o governo não orientou as pesquisas, ele financiou; a orientação, do ponto de vista

metodológico, foi nossa. O grande problema que nós tivemos em campo foi com

relação às condições materiais para se realizar as pesquisas. Nós selecionamos um rol

de equipamentos necessários para o trabalho de campo e ficou acertado que

contaríamos com esse material em campo; ao chegarmos em campo, nem todo o

material estava disponível. Nós conseguimos identificar os sítios arqueológicos em

fotografias aéreas de l:60.000 porque, no Pantanal, ocorrem savanas em grande parte,

possibilitando visualizar, em fotografias aéreas, os capões de mato, as cordilheiras,

que são em muitos casos aterros. O problema maior se deu numa área específica, que

pega uns 30km, que nós não pudemos acessar porque é uma área muito brejosa

(somente a pé ou por embarcações). E, nesta área, só pudemos contar com imagens

de satélite de 1:100.000, onde já é mais difícil visualizar os sítios. Esse foi o

problema com que nos deparamos em campo e que a PETROBRÁS não conseguiu

solucionar. Então, o que nós achamos mais pertinente foi colocar isso na avaliação,

para que a PETROBRÁS assumisse essa responsabilidade, porque não poderíamos

dizer que esta área estava liberada. Por isso, colocamos como uma das exigências que

a PETROBRÁS plotasse todos os capões de mato e cordilheiras que ocorrem nessa

área e a que não tivemos acesso. Em caso de haver algum que o gasoduto passasse

em cima, então eles teriam que repensar o traçado.

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Esta é realmente uma questão ética muito complicada; em campo,

normalmente a gente se depara com estes problemas. Uma coisa é quando você acerta

o trabalho, outra coisa é quando você vai a campo e se depara com as condições reais.

Outra questão que foi muito importante, é que nós exigimos um veículo que

pudesse ter acesso pelo Pantanal, no caso uma Toyota, e nós tivemos um VW Gol

que, no primeiro momento, no primeiro dia de campo, um Gol zero quilômetro,

quebrou e aí eles tiveram que viabilizar uma Toyota. É claro que nós identificamos

áreas que entendíamos que eram áreas de maior possibilidade de se encontrar sítios;

claro que isto a partir de uma experiência de quatro anos em campo. Mas todas as

áreas foram percorridas a pé (350km), numa média de 12km ao dia, durante 30 dias

seguidos, sem intervalos. Eu acho que o que chama mais atenção neste caso específico

do gasoduto é uma questão de caráter ético mútuo, tanto do pesquisador como da

empresa que financia as pesquisas. No caso de haver problemas, como foi o caso, isto

não pode ficar de fora do relatório final, ele tem de ser colocado.

Irmhild Wüst - Eu acho só que, comentando o seu último ponto, ele vai ser retomado

provavelmente ao longo dos próximos dois dias ainda. Eu só queria ressaltar a

importância desta colocação sua no sentido de que, como eu não trabalho em projetos

de salvamento mas na academia, então eu me preocupo muito porque a gente está

vendo que realmente estes projetos de salvamento no Brasil parece que não estão

sendo levados a sério, quer dizer que vejo isso com bastante preocupação, que na

maioria dos casos se trata simplesmente de cumprir uma lei e os resultados que a

gente está vendo, pelo menos nos relatórios, não geram conhecimento científico.

Agora, por outro lado, também a própria arqueologia brasileira se encontra numa

defasagem teórico-metodológica de quase cinqüenta anos; então, com isso, também as

pessoas que querem fazer uma arqueologia tipo modelo, que o Renato aqui nos

apresentou, se defrontam com uma série de absolutas lacunas de dados disponíveis

sobre como fazer modelo, quais são os dados arqueológicos já disponíveis. Nós não

contamos com áreas sistematicamente prospectadas, por exemplo, no Brasil.

Então eu acho que o objetivo do nosso encontro, realmente, é de discutir em

que pé está a Arqueologia brasileira e até que ponto os dados já disponíveis permitem

realmente fazer arqueologia de salvamento ou fazer diagnósticos de uma forma

eficiente e eficaz; como a gente pode, então, realmente não ficar só no papel, cumprir

uma lei, mas aproveitar os poucos recursos que nós temos e já que a arqueologia de

salvamento em geral tem mais recursos do que a academia, então como estes recursos

podem reverter para a comunidade, para se gerar realmente conhecimento. Mas acho

que isto será a questão para os próximos dias, que ainda nós vamos retomar.

Com isso, eu chamo o Sr Maurício Taan.

Maurício Taan - Sou do Departamento do Meio Ambiente de Furnas Centrais

Elétricas e agradeço a oportunidade de estar aqui. Eu gostaria de fazer duas

observações, objetivamente, sem polêmica.

Em relação às questões levantadas pelo professor Paulo Jobim, Marcos André,

Renato e Jorge, todos com belas apresentações, eu fico me perguntando: assim como a

professora Lylian sentiu falta da palavra interdisciplinariedade e geografia, eu sinto

falta da palavra custo em todas as apresentações. Então, acho que vai chegar o

momento, eu não sei se é agora, não sei se vai ser daqui a dois anos a três anos, que as

pessoas vão ter que começar a falar em custo. Me desculpem se estou profanando.

Há algum tempo eu já trabalhei em pesquisa, fui professor da UFRJ durante muitos

anos, e sei como as pessoas se sentem quando agente põe a palavra custo; que o custo

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é uma coisa que nos joga na frente um espelho, que a gente tem que olhar a eficiência.

Então, acontece o seguinte: a gente confunde eficiência com eficácia, a gente

confunde uma série de conceitos, a gente sai trabalhando, sai fazendo coisas, e o custo

traz muitas realidades para nós, traz muitos questionamentos sobre por que

determinados fenômenos, quando a variável tem de ficar no infinito, você justifica

tudo, você converge no infinito e todo trabalho é bom. Se você pode ter infinito

tempo, infinitos recursos, qualquer trabalho acaba sendo feito.

Então, o custo vai trazer realidades também, junto com estas observações que

a coordenadora fez agora há pouco sobre a defasagem da arqueologia, é que nós

vamos ter de começa a discutir o que eu fiz e a que custo eu fiz e se valeu e se eu usei

bem os recursos que eu tinha, fossem eles um Gol ou uma Toyota, ou fossem o que

fossem. Eu fiz bem aquilo com o que eu tinha, sem discutir ou entrar no mérito se eu

devia ter mais o dobro ou o triplo. Como eu estou dizendo, eu estou objetivando,

estou evitando polemizar as questões, então eu só estava me referindo aos três

primeiros.

Com relação ao professor Renato: Professor Renato, eu tenho o hábito de ver

questões e discussões sobre modelos há muitos e muitos anos. Os modelos preditivos

exercem um fascínio sobre o nosso imaginário muito grande, tudo que pode ser

preditivo é uma coisa que nos fascina, porque pode nos dizer com uma certa

antecedência o que vai acontecer, o que tem seu fascínio próprio. A questão é a

seguinte: modelos a gente passa discutindo, eu me lembro que tinha um modelo numa

área que eu trabalhei de planejamento em que se ficou discutindo três, quatro anos em

seminários internacionais nos Estados Unidos, Inglaterra, etc; eu ia a todos eles,

anotava, debatia, e tudo mais. Enquanto se discutia os modelos, era só conversa pra lá

conversa pra cá; quando chegou um, eu me lembro, foi um paquistanês que vinha dos

Estados Unidos e trabalhava no Serviço de Pesquisa, ele chegou e colocou o trabalho

dele, comparando o modelo dele com a realidade, testou o modelo dele, eu testei para

cinco casos aqui e eu tive esta confiabilidade, meu modelo então pode ter uma

confiabilidade média de tanto, aplicado nestas condições de contorno. Então, a partir

daí, todo mundo foi falar com o paquistanês porque ele tinha o modelo e antes as

pessoas tinham equações, tinham relações, fatores de co-relação, inter-relação, mas

como eu testo um modelo? Eu testo um modelo quando eu apresento que tenho um

modelo preditivo. Não sei se esta é a etapa de maturação de seu estudo, realmente eu

não sei, quer dizer, não é uma crítica, mas é um pano de fundo na discussão. Então

modelos só tomam uma forma, deixam de ser um apelo e passam a ser uma coisa

discutível no real quando se apresentam estudos de caso em que você apresenta a

confiabilidade destes modelos.

Segundo ponto: a qualidade de um resultado nunca pode ser melhor do que a

qualidade dos dados que você coloca dentro do modelo. Então, se você tem uma

modelagem maravilhosa e seus dados são de baixa qualidade, o seu resultado vai ser

de baixa qualidade; o modelo em si não produz conhecimento, ele inter-relaciona

conhecimentos que estão ali. Então, apesar desta questão toda, nós temos que ter

confiabilidade de dados e suficiência de dados; então, a etapa de confiabilidade e

suficiência são duas coisas muito importantes para você pensar em aplicar o modelo,

ou seja: você pode ter um modelo muito bom, se você não tem uma análise de

confiabilidade e de suficiência de dados, seu modelo não pode ser aplicado, é um bom

carro e não tem combustível para ele.

Terceiro, é o seguinte: diante de um quadro de que eu não tenho o

mapeamento arqueológico do país, aí vem o seguinte: a necessidade do modelo. Após

o modelo ser bom, após ele me dar resultados, eu também tenho que discutir se eu

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preciso de um modelo, eu preciso ser convencido de que há necessidade do modelo;

(...) às vezes o modelo, para chegar a um grau de confiabilidade suficiente, tem que

ter uma massa de dados tão grande, que você tem praticamente uma região em que o

modelo faz muito pouco porque você já tem o mapeamento completo daquilo; então,

na mão de duas ou três pessoas conhecedoras da região você chega a conclusões

qualitativas e quantitativas tão boas quanto o modelo lhe daria; então isto é um outro

ponto.

Uma outra questão é o seguinte, as variáveis tem dois aspectos: um aspecto de

controlabilidade e um aspecto de aceitabilidade. O aspecto de controlabilidade: não

sei se é o caso do seu modelo, eu não tive a oportunidade de ver, mas a

controlabilidade esbarra muito na questão da formulação qualitativa, ou seja, o

modelo tende muito a acertar mais no numérico do que no qualitativo, então ele vai

dizer tantos sítios e tal... mas, de repente, você esbarra porque ele não tem a resposta

qualitativa que eu vou obter. Outra coisa: você falou nos Estados Unidos, eu tive a

oportunidade de viver nos Estados Unidos em dois momentos. Um momento, há

quatro anos atrás, em que tentamos ver esses modelos preditivos e, depois, eu fui fazer

um curso de gerência ambiental na Secretaria de Agricultura dos USA e, aí, eu tive a

oportunidade de ver aquilo quatro anos depois. Existe um problema ligado à

aceitabilidade também, ou seja, qual é a aceitabilidade do modelo preditivo; por

exemplo, em que grau eu convenço uma platéia porque o debate, a polêmica

ambiental é que a verdade não está com ninguém, não é?. Então, acontece o seguinte:

eu tenho que convencer as pessoas que eu fiz certo, eu tenho que demonstrar isto; um

modelo preditivo, ele parece muito cômodo para mim, que normalmente você vai

falar de meia dúzia de equações, modelos, que boa parte não vai conseguir

compreender, a não ser sua pequena comunidade científica. Então, a aceitabilidade

também é uma coisa muito complicada, às vezes é mais importante eu ter Ab‟Saber

falando no Congresso sobre uma região da Amazônia do que eu chegar aqui com um

modelo sobre aquela região; ele fala com uma credibilidade muito grande, então tem o

problema da credibilidade, aceitabilidade pela opinião pública, que é uma coisa com

que, nos USA, eles estão se defrontando também. Eu só queria dizer isto aí para,

porventura, poder enriquecer de alguma forma as opiniões dos conferencistas

Renato Kipnis - Eu vou tentar responder as questões que foram levantadas. Primeiro,

eu quero deixar claro que o modelo não é a solução para tudo. Logo no começo, eu

falei que o desenvolvimento do modelo parte de dados secundários em pesquisa não

só de impacto ambiental mas até em pesquisa acadêmica, que sempre utiliza modelos.

Também é uma coisa que está sempre sendo reformulada, quer dizer: o modelo não é

nada mais que uma ciência experimental; você desenvolveu um experimento para

acessar alguma coisa, você está desenvolvendo um modelo que prediz alguma coisa,

vai ser testado entre os experimentos, rever resultados. Na verdade, modelo, em

termos de pesquisa é um negócio utilizado, todo mundo utiliza. Em Arqueologia, é

pouco utilizado o raciocínio hipotético-dedutivo. Então, esta questão do modelo e dos

dados que são usados para gerar os modelos, eu concordo contigo que, mesmo nos

USA, onde se tem um conhecimento muito maior, interdisciplinar, é uma questão que

está sempre se desenvolvendo, sempre sendo acrescida de novos dados, que refinem o

modelo.

Nos USA, a problemática da utilização de modelos é uma problemática

específica dentro da Arqueologia. É uma questão altamente discutida, utilizar modelos

é um negócio que pouquíssimas pessoas fazem. A outra questão é que há modelos e

modelos... O fato de você desenvolver um modelo não quer dizer que o modelo seja

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bom. Se você me pergunta nomes de pessoas nos USA, por exemplo, que trabalham

com Arqueologia utilizando bons modelos eu teria, sei lá, três ou quatro nomes logo

de cabeça, são pessoas que estão pensando e resolvendo questões que você colocou e

que a todo tempo estão tentando reformular esta questão de modelos.

Quanto à confiabilidade, eu passei meio por cima, mas é um negócio

importantíssimo. Quando eu falo no fato de estes modelos terem que ser testados,

quero dizer que o modelo tem que prever melhor do que você a priori está partindo,

pois se o modelo prevê a probabilidade de que você partiu, o modelo não está sendo

eficiente, é quase inútil.

Outra questão, relativa aos problemas de custo, que você mencionou. Eu acho

que o modelo pode ser bem útil na fase de custo e benefício porque, sem o trabalho,

sem ser muito oneroso, você poderia reter condições básicas de ver potencialmente

quais as áreas, em termos de patrimônio arqueológico, que vão precisar de máxima

mitigação ou não. Em termos dos dados que são usados para gerar os modelos, o

modelo não vai ser melhor do que os dados, eu concordo, é claro. Agora, por

exemplo, para pegar os dados de morfologia de uma área, se você partir de apenas um

elemento, como a questão que a Lylian colocou, de movimento vertical de peças, você

pode criar modelos bem simples, em termos de quais as áreas que, potencialmente,

vão ter sítios na superfície, sítios enterrados, que é uma questão que ninguém

pesquisa. Agora, se você parte de questões como a de que a área em estudo está tendo

uma sedimentação muito grande, e que é possível haver sítios antigos que estão

enterrados a 20 ou 30m, você pode levantar questões fundamentais, ao relacionar esta

probabilidade com o tipo de impacto. Se os sítios enterrados a 30m têm que ser

resgatados ou não, depende do grau de profundidade do impacto. Acho que você pode

partir de dados bem simples e já colocar várias questões, e refiná-los depois. É claro,

se a gente vai trabalhar na Amazônia, os dados que se tem de meio ambiente, de

morfologia, são em escalas muito amplas, são áreas vastas, e é complicado, porque a

gente trabalha pontualmente. Até o fato de você usar modelos e trabalhar em áreas,

em vez de algo pontual, propicia subsídios melhores para fazer uma avaliação. Não é

perfeito, claro, e para ser perfeito vai demorar muito, principalmente no Brasil, onde a

gente não tem essa formação, não tem tradição, é um negócio pouco utilizado em

termos de gerenciamento. Mas eu acho que eles podem ser utilizados como forma de

reduzir custos, pois prevêm as áreas de maior impacto, evitando que se pague para

mitigar impactos que poderiam ter sido evitados. Só que, para serem eficientes em

termos de custo, os estudos arqueológicos têm de ser começados no início dos

projetos. Se o EIA é feito já na fase de execução, com o projeto já decidido, não se

usou os dados da Arqueologia na computação e na criação de alternativas viáveis.

Vou dar um exemplo simples para terminar: tenho um colega que trabalha muito com

projetos de impacto ambiental nos USA e ele trabalhou algum tempo atrás numa área

militar na região do Arizona, Novo México, que é uma região bem plana. Estava-se

construindo uma estrada retilínea (custo mais baixo em termos de construção) e tinha

um sítio no meio. Eles resolveram fazer uma curva e não fazer mitigação porque saía

mais barato, e para eles a retilineariedade não era importante, era mais barato desviar

do sítio do que mitigar. Agora, isso só é possível fazer quando você faz o estudo

prévio; se está construindo a estrada e encontra um sítio, você não tem como mudar,

aí você mitiga, faz o salvamento e continua a estrada, incorrendo num gasto que

poderia ter sido evitado. Acho que a questão do custo arqueológico, importantíssima,

é uma questão sobre a qual pouco se trabalha e pouco se pensa. Quando se trabalha

com salvamento e estudos de impacto ambiental, essa questão tem de estar colocada:

o arqueólogo tem de partir junto com o EIA, tem de participar das primeiras fases dos

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estudos; os subsídios arqueológicos têm de ser considerados na computação geral do

projeto, na formulação das alternativas. Muito embora eu concorde com várias das

questões que você levantou, acho que os modelos são úteis na formulação de

alternativas e para o gerenciamento dos custos. Nos USA também foi assim, os

primeiros modelos deixaram muito a desejar e, hoje, estão muito melhores, eles têm

modelos muito mais robustos do que há 10-20 anos atrás, passaram a utilizar sistema

informativos geográficos e conseguiram coisas muito interessantes, testadas com

eficiência e responsabilidade. Por isso, acho que é uma idéia que a gente deva

trabalhar.

Marcos André - Só uma palavrinha rápida, ainda sobre a questão de custo. No

Projeto Corumbá, Patrimônio Histórico, eu trabalhei naturalmente como

pesquisador... nós envolvemos nossos consultores a respeito desta discussão sobre a

eficiência desse tipo de estratégia em projetos de pesquisas porque, na verdade,

quando nós estamos trabalhando com projetos como esses, nós estamos trabalhando

com custo o tempo todo, nós trabalhamos com a nossa disponibilidade financeira, nós

trabalhamos com tempo, nós trabalhamos com energia. Então, é de vital importância

para nós, no âmbito deste projeto, que possamos discutir custos e efetivamente isto

tem se realizado. Eu acho que não tenha dúvida que é fundamental que isso possa ser

trazido para discussão desde os primeiros passos de aproximação entre o pesquisador

e o empreendedor, até as etapas finais do empreendimento, eu não tenho dúvida.

Irmhild Wüst - Gostaria de chamar em seguida o sr. Rossano Bastos.

Rossano Bastos - Bem, meu nome é Rossano Bastos, eu sou arqueólogo da décima

primeira coordenadoria regional do IPHAN, que tem sede no Estado de Santa

Catarina. Eu acho que fica bastante difícil a gente começar a falar depois que duas

pessoas já fizeram intervenções que contemplaram questões bastantes importantes.

Cada vez a gente repensa as questões que vai colocar, tendo em vista a pertinência do

que eles colocaram. Mas eu entendo que tem dois momentos que eu gostaria de

destacar, que permearam a discussão dos palestrantes. Um primeiro momento é a

questão que diz respeito à ciência e nesta questão está implícita a questão colocada

pela profa. Lylian, que é a questão da interdisciplinaridade, que é a questão de novos

paradigmas, que é a questão do desenvolvimento da ciência arqueológica e, como

colocado pela prof. Irmhild, a Arqueologia está com cinqüenta anos de defasagem no

Brasil. Quer dizer, então, que nós temos um grande problema a ser resolvido, na

medida em que o avanço tecnológico, o avanço das hidrelétricas, o avanço das

estradas, o avanço demográfico não cessa: é urgente a gente criar uma solução para

esse problema da defasagem teórico-metodológica e prática da Arqueologia, com

instrumentos como o CONAMA. Essas maneiras de intervir no espaço para procurar

conhecer, identificar, promover e minimizar talvez custo e talvez perdas que jamais

podemos avaliar de que tamanho são.

O segundo momento, eu acho que diz respeito à cidadania, que é a maneira

como estas pesquisas, que a gente já mapeou, com este grande elenco de problemas,

desde a deficiência teórico-metodológica até os problemas éticos que isto tem

envolvido, como este problema vai de encontro à socialização de decisões, à

possibilidade de efetivamente a sociedade poder optar. Nesse sentido, a gente tem de

avançar, tem de poder compatibilizar a ciência arqueológica, que engatinha - prova

disto a gente tem na colocação dos companheiros com modelos preditivos; como

resoluções de problemas para arqueologia, eu acho isso bastante complicado; eu acho

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que nós não temos dados suficientes nem confiáveis numa arqueologia defasada desse

tipo para poder fazer modelos desse tipo, eu particularmente não gosto, eu acho que

são técnicas que, como disse o colega ali, que, se você não tem dados confiáveis, não

adianta você ter um instrumento altamente capacitado, é como botar dentro de um

computador, de um Windows 95, dados que não são compatíveis, a gente tem de ter

muito cuidado ao ser fascinado, como diz o colega, por esses modelos.

Eu acho que, depois de 86, quando se cria essa necessidade por força de lei,

por força de norma legal, que é a resolução do CONAMA - é interessante colocar o

momento em que isto surgiu, que é logo no momento em que a gente começa a

respirar, fruto de uma Ditadura Militar que se arrastou durante muito tempo - então, o

que foi possível nesse momento, mapear e fazer essa resolução do CONAMA que,

sem dúvida nenhuma, se constituiu num avanço, mas que de alguma maneira entravou

o processo, porque já começou viciado: é o empreendedor que paga os estudos do

lugar que ele vai fazer o empreendimento, é botar cachorro tomando conta de

lingüiça. A pesquisa não consegue ser independente porque o empreendedor, à

medida em que ele vir que a independência do pesquisador vai levar, digamos, a um

custo maior ou até à inviabilidade do empreendimento, ele começa simplesmente a

cercear os recursos, como foi com o companheiro aí que narrou a questão do

gasoduto; quer dizer, existem maneiras muito sutis de se trabalhar no subterrâneo para

que essas coisas não aconteçam; então urge, principalmente, a gente mudar esta

relação porque, se a gente não mudar esta relação, a gente não vai mudar nada: ou que

se faça um fundo independente que patrocine estas pesquisas para que o pesquisador

tenha então autonomia e independência para optar - porque eu não soube até hoje e, se

alguém sabe me diga, qual foi o RIMA que recomendou que não houvesse o

empreendimento e que isto aconteceu, eu não conheço nenhum. Então, eu acho o

seguinte: se a gente não partir por esta questão, a questão que se coloca hoje então é a

questão da ciência, para a gente fazer da maneira como se faz hoje, é preferível que

não se faça, e se a Arqueologia está realmente defasada em cinqüenta anos, como se

está apregoando, então, ou a gente vai-se atualizar ou é melhor que nós não façamos,

o que é mais honesto. Então, a questão de ciência é uma questão de ética; quer dizer,

a gente tem um instrumento hoje que precisa ser repensado, reformulado, que é o

instrumento do CONAMA e a gente tem de avançar. O EIA/RIMA e todos esses

instrumentos que precisam ser repensados precisam ser uma trincheira da cidadania,

eles não podem ser mais um instrumento da estratégia da hegemonia econômica para

finalizar e executar seus projetos, pois é isso que tem sido feito, a despeito das

populações tradicionais, a despeito dos sítios arqueológicos e do patrimônio cultural

em geral, porque aqui nós estamos falando, a grande maioria tem discursado em favor

somente do patrimônio arqueológico. Se a gente entra então na questão do patrimônio

cultural, a questão fica muito mais complexa, porque a pesquisa interdisciplinar exige

paciência, exige acúmulo, exige muita espera, e nós, que estamos ainda engatinhando

em modelos preditivos, em técnicas estatísticas e matemáticas, estamos longe de

chegar a este grau de confiabilidade, de ética e de aceitação de uma Arqueologia que

esteja voltada explicitamente para os interesses de todos e não para interesses

pequenos e comezinhos. A gente tem de enxergar que ou a nossa pesquisa ou estas

intervenções vêm para contemplar uma gama mais totalizante das pessoas que estão

envolvidas nesse processo, ou a gente vai precisar fazer muitos congressos para tentar

legitimar o nosso trabalho, porque é isto que nós fazemos, porque se agente não

conseguir olhar além do nosso umbigo, vai ser muito complicado. A Arqueologia

hoje carece de recursos: aonde os financiadores negociam o preço mínimo e abaixo,

eu tenho visto em Santa Catarina - R$1.000.000,00 para o RIMA da BR 101, para a

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Arqueologia R$10.000,00. O próprio profissional não se valoriza, então, como se

existe o problema do mercado de trabalho, ele se vende barato e faz um trabalho que

não é a contento, quer dizer, depõe contra ele mesmo. Então, estas são as questões que

eu gostaria de trazer para a reflexão, essa questão da ciência, da ética e de como é que

nós vamos repensar isso daqui para a frente. Obrigado.

Irmhild Wüst - Chamo em seguida a professora Solange Caldarelli.

Solange Caldarelli - Primeiro, eu quero retomar esta questão, já que ela está na

ordem do dia, de modelos e de custos. Essa questão de custo, Maurício, eu vou

retomar hoje à tarde, porque nós vamos falar de avaliação de impacto e eu vou tratar

de critérios de significância que, na minha opinião, estão diretamente ligados à

questão do custo. Então eu vou discutir alguma coisa agora, mas o resto vai ficar para

a discussão da tarde; a questão não será esquecida.

Quanto à questão dos modelos, eu vou dizer que eu acho que se deve sim

incrementar a formação de arqueólogos no Brasil trabalhando com modelos, mesmo

que eu especificamente jamais faça isso, porque não tenho nenhuma habilidade

matemática, o que não me impede de reconhecer que é necessário, é um instrumento

útil e, eu concordo com o Renato, é um instrumento de redução de custos. Agora, na

minha opinião, o modelo tinha que estar lá embaixo, não é nem no EIA, mas nos

Estudos de Inventário; na minha opinião, a Arqueologia não está entrando na hora

certa. Nos Estudos de Inventário é que o empreendedor já deveria ter uma noção de

onde o custo em qualquer campo vai ser maior e onde o custo arqueológico tem

probabilidade de ser maior. Se ele optar por uma região onde o custo arqueológico vai

ser alto, ele que já inclua isto no Termo de Referência, porque, se ele entra numa área

desprovida de conhecimento e de alto potencial vai ser alto o custo mesmo, certo?

Agora, dentro do custo alto, há métodos, há estratégias para diminuir esse custo. E eu

concordo plenamente com que disse o Renato: até para um custo ser mais baixo, você

precisa saber muito antes de chegar no EIA, quer dizer, apresentar estudos de

alternativas de empreendimento viáveis, inclusive sabendo que, se o custo da

Arqueologia vai ser alto numa das alternativas, em outros campos vai ser baixo, e

assim por diante; é preciso ter uma idéia de custos individuais, de custos médios e de

custos totais, financeiros, ambientais e culturais, no processo de formulação de

alternativas.

Ainda quanto à questão do custo, nós tivemos de dois arqueólogos opiniões

divergentes. A Doutora Irmhild disse que tem muito dinheiro para a Arqueologia de

contrato, mais do que para Arqueologia acadêmica, e o Rossano disse que a

Arqueologia de contrato não tem dinheiro suficiente para fazer o seus estudos; então

eu queria deixar uma coisa bem clara aqui, de quem está acompanhando estes estudos

do começo ao fim, em vários pontos do país. Os programas de resgate até têm contado

com recursos razoáveis, o problema é que eles contam com bons recursos por prazos

curtos porque, como foi discutido aqui, o levantamento deveria ter começado anos

atrás e, quando o pesquisador é chamado para desenvolver um programa, em que o

objetivo deveria ser mitigar impactos, produzindo conhecimento, na maioria das vezes

ele acaba tendo que, apressadamente, ao mesmo tempo, fazer pesquisa exploratória

para avaliar o potencial arqueológico da área de estudo, realizar levantamentos para

localização de sítios, selecionar os sítios a serem resgatados e promover os resgates

tudo no interior e no prazo do que deveria ser apenas um programa de resgate, para

cuja execução as etapas anteriores já deveriam ter sido cumpridas. Agora, os EIAs

têm contado com parquissímos recursos; o arqueólogo, quando participa de um, tem

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de fazer milagre para avaliar os impactos sobre um patrimônio que ele mal conseguiu

levantar. Acredito que isso explique a divergência de opinião: você, Irmhild, tem visto

alguns programas e não acompanhado EIAs, o Rossano tem visto EIAs. Se, nos

primeiros, os recursos financeiros parecem altos (como se, com a fartura de recursos,

se pudesse compensar a falta de bons levantamentos prévios a embasar os programas),

nos segundos (os EIAs) os recursos são sempre baixíssimos, tendo em vista as

necessidades da pesquisa arqueológica.

Então, o grande problema é este: os programas, muitas vezes, contam com

recursos suficientes, mas os EIAs realmente nunca contam e os inventários passam

por cima da questão arqueológica. Nesse momento, eu falo inclusive para aqueles

arqueólogos que estão em órgãos governamentais, como o Eurico Miller, na

ELETRONORTE, o Marcelo Gatti e a Teresa Cristina, em FURNAS, não para eles se

indisporem com seus empregadores, o que inclusive não é o papel deles, mas para

alertarem. E não adianta ficar repisando e lamentando o passado, quando a

Arqueologia nem era pensada nos estudos de inventário: isso é passado e ponto. Acho

que a questão agora é daqui para a frente, foi para isso que nós fizemos este encontro,

não para ficar chorando o leite derramado. É claro que o passado deve ser mencionado

no encontro, para a gente lembrar de alguns problemas que temos que acertar daqui

para a frente, mas eu gostaria de dizer que, quando idealizei este simpósio, foi com o

propósito de que a gente tirasse posturas a serem tomadas de agora em diante.

Volrando também a uma outra questão, eu concordo que Arqueologia

brasileira está defasada, nós temos uma série de deficiências teórico-metodológicas,

acho que todos nós devemos ser críticos, mas, e aí eu peço desculpas à Irmhild, eu

acho que a arqueologia brasileira também tem avançado. Tem aqui pessoas que eu

convidei, que nem tinham contato comigo, de diversas áreas, de diversas correntes de

pensamento, que aceitaram o convite, vieram para esse simpósio, e não tiveram medo

de expor o que estão fazendo porque eles querem avançar, eles querem trocar

experiências. Isso é um fato e o simpósio prova isso; então, eu acho que nós,

brasileiros, não só temos consciência de nossos problemas, como temos também

buscado avançar em sua solução.

E agora eu queria partir para duas questõezinhas pontuais, de cunho

restritamente arqueológico: Jorge (e essa é uma questão de postura científica diferente

mesmo), naquele trabalho do gasoduto, onde você disse que um único sítio seria

realmente cortado pelo empreendimento, você propôs como programa um trincheira,

do que eu discordo. Se você tem um único sítio, não seria talvez o caso de fazer nesse

sítio uma pesquisa exaustiva, em que você procurasse, objetivasse entender o processo

de formação, de estruturação espacial daquele sítio? Se você tem quarenta sítios

cortados pelo gasoduto, tudo bem trabalhar com trincheiras, mas, se você tem um

único sítio atingido, é uma oportunidade ímpar, na minha opinião, para uma pesquisa

de maior porte, localizada, e eu acho que aí você está deixando ocorrer um grande

impacto se você reduzir a mitigação de um único sítio a uma trincheira. Essa é uma

questão que eu passo para você.

Para o Professor Paulo, eu pergunto mais para esclarecimento a quem ouviu,

porque as pessoas falam muito rápido e nem todo mundo trabalha da mesma maneira.

Você falou que no trabalho de Corumbá vocês tiveram quatro informações orais de

sítios arqueológicos e que encontraram mais sete sítios. Eu pergunto: se vocês não

tivessem informação oral, pela metodologia que vocês adotaram, vocês teriam

encontrado aqueles quatro sítios que foram relatados pela informação oral, quer dizer,

a metodologia de campo teria dado conta desses sítios também?

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Paulo Mello- Com certeza a gente acharia, porque isso também ocorreu em outra

pesquisa que a gente fez no Mato Grosso, de que eu mostrei alguns slides: a

hidrelétrica de Braço Norte. A gente já tinha informação de que havia dois sítios e a

gente fez transets também, já que era uma área pequena, fez transects cobrindo toda a

área e foram achados esses dois sítios e mais um sítio ainda na outra margem do rio,

então esse método com certeza levaria à descoberta desses sítios.

Jorge Eremites - Com relação à sua colocação, realmente são duas possibilidades: o

que nós pensamos, num primeiro momento, foi fazer uma trincheira; como a do

gasoduto é de 1m, nós pensamos em amplia-lá mais 1m de cada lado, o que daria 3m.

Isso pegaria uma parte considerável do sítio e nós, na verdade, avaliamos naquele

momento as questões de tempo e custo para realizar os trabalhos. O ideal seria, claro,

fazer um escavação em todo o aterro, mas, pela experiência nossa, isto demandaria

um tempo muito grande. O que nós pensamos no momento é que se você estudasse

todo o sítio, você inviabilizaria trabalhos futuros e técnicas e métodos mais refinados

e pensamos numa intervenção mínima no sítio. Nós não entendemos que todos

aqueles aterros são réplicas, nós entendemos que eles podem conter informações

diferentes.

Irmhild Wüst - Chamo, em seguida, Walter Neves, da Universidade de São Paulo.

Walter Neves - Eu vou me ater basicamente a questões metodológicas já que, ainda

que eu veja com bastante simpatia a discussão mais filosófica e ética, eu acho que a

mesa foi eminentemente metodológica. Eu tenho uma observação com referência ao

que o Paulo disse, ao que o Marcos disse, uma observação ao que o Jorge disse e uma

pergunta para o Jorge.

Com referência ao Paulo eu não gostei de uma coisa na sua apresentação; você

disse uma frase assim: nós temos que dar oportunidade a que todos os tipos de sítios, a

que todas as manifestações sociais na área sejam amostradas; perfeito, não tem nada

que tenha que retocar, e você disse que isso se resolve aplicando transects. Eu não

concordo, eu acho que o transect é uma das ferramentas que você usa para dar a

possibilidade de que todos os produtos da atividade social sejam amostrados, mas não

é a única, nem do ponto de vista epistemológico, nem do ponto de vista da ciência

pura, nem é muito menos vis-à-vis à questão do custo, porque há compartimentações

paisagísticas que para você estabelecer um transect em vários quilómetros você

certamente vai esgotar todos os recursos que você tem para fazer o projeto inteiro.

Então, muito cuidado: quer dizer, como eu sei que no Brasil as cabeças funcionam por

receita, tenho medo de que todo mundo saia daqui e vá começar a fazer transects,

achando que transect é uma panacéia geral para todas as situações. Então, eu quero

colocar, aqui, o meu testemunho de que transect não é uma panacéia geral, devemos

sempre visar os problemas que serão atacados, visar os custos que são possíveis, que

são financiados, encontrar a melhor estratégia geométrica, o melhor design possível,

para que todos os elementos do comportamento social sejam amostrados.

Com referência ao Marcos, você disse assim: “nós precisamos começar a fazer

com que os empreendedores financiem também a pesquisa fora da área de impacto

imediato, nós temos que sair fora, às vezes, daquela linha absolutamente demarcada

pela área de impacto total.” Concordo plenamente com você, só que eu acho o

seguinte: eu tenho visto alguns arqueólogos justificar da seguinte maneira - além da

área diretamente impactada eu devo trabalhar mais 5km fora ou mais 10km ou mais

1km, que eu acho um pouco o caso do gasoduto. A minha impressão é a seguinte:

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quando se faz um trabalho de impacto ambiental, o empreendimento vai estar

impactando parte de um comportamento social mais amplo, então o que eu acho é que

nós temos que exigir que qualquer empreendimento impactante financie o necessário

para que a gente conheça os sistemas sociais dentro do qual está aquela parcela que

vai ser impactada. Então, eu sou favorável, acho que temos que batalhar com isso,

mas eu acho que a solicitação do quanto mais tem de ser empiricamente justificada.

Não haverá regra, vai pedir custeio de 5km ou 1km ou 50km a mais, e aí entra a idéia

de que é fundamental que o diagnóstico seja levantamento de problemas e não

levantamento de material. Se nós sairmos da fase do diagnóstico com um bom

levantamento de problemas, nós seremos capazes de argumentar junto ao

empreendedor o quanto mais se precisa trabalhar fora da área diretamente impactada.

Eu sou absolutamente favorável, mas eu acho que tem que ser empiricamente

justificado, é justificado com base nos problemas levantados na fase do diagnóstico.

Jorge acho que você foi vítima de duas coisas que são implacáveis em

qualquer levantamento sistemático, não só o de salvamento: você foi vítima da

visibilidade e da conspicuidade que são duas coisas distintas, já que conspicuidade é

um traço, uma característica inerente ao sítio, e a visibilidade é a somatória da

conspicuidade mais as condições de cobertura ambiental. Quando você diz que, no

fim de sua pesquisa, você chegou à conclusão de que justamente a área de maior

importância dentro deste projeto era a área dos aterros, já que você encontrou lá cerca

de 40 sítios ou mais do tipo alto, eu acho que você foi vítima da conspicuidade, e eu

acho que o levantamento arqueológico tem de ser desenhado de maneira justamente a

se libertar da visibilidade e da conspicuidade, ou seja, se se faz levantamento

arqueológico numa área que não é naturalmente favorável à visibilidade, não tem

jeito, tem-se que fazer essa interferência para criar essa visibilidade, eu acho que o

que o Paulo mostrou é uma destas possibilidades. Então, quando você diz : eu tinha

áreas que eu privilegiei porque elas eram naturalmente mais visíveis, mais possíveis

de ser observadas e outras áreas que eu não pude observar porque não tinha

visibilidade, você cometeu um viés que absolutamente neste momento é impossível de

ser revertido, e daí você chegou à conclusão de que uma certa parcela era mais

importante, mas não, ela era apenas a mais visível. Você só poderia dizer que aquela

parcela era mais importante se você tivesse dado a mesma probabilidade dos eventos

presentes serem amostrados, e você não deu isso, então você não pode dizer que

aquele setor do gasoduto é mais importante que o outro, porque você não deu aos

outros trechos a mesma possibilidade de os sítios arqueológicos serem visíveis de uma

maneira artificial, o que eu acho complicado

No caso do Renato, evidentemente que eu sou fã em gênero, número e grau,

cor e cheiro da aplicação de modelo em ciência, porque modelo é a única maneira que

você tem para sair de hipóteses vagas e operacionalizar sua hipóteses, e eu acho que é

um fantástico mecanismo de planejamento e redução de custo. Agora, eu acho

importante que a Arqueologia adote o modelo não só nas pesquisas de resgate mas

também nas pesquisas acadêmicas. Só que é o seguinte: estaremos fazendo

materialismo explícito, ainda que eu concorde com você que é possível fazer modelos

de caráter sócio-culturais, eu e você e certamente a maior parte das pessoas que estão

aqui sabe que a esmagadora maioria dos modelos se baseia naquilo que a gente chama

de predominância e no ator racional; eu vou me divertir muito com esta tentativa, num

país que tem a Antropologia eminentemente ideacionista, estruturalista e simbólica, e

uma Arqueologia eminentemente materialista, mas essa é uma diversão particular.

Muito obrigado.

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Irmhild Wüst - Alguém da mesa gostaria de responder?

Jorge Eremites - Quanto à colocação, também achei muito interessante. Realmente, o

problema da visibilidade foi uma das questões com que nós mais nos preocupamos na

etapa de elaboração do projeto; nós pensamos em realizar intervenções em algumas

áreas através de tradagens sistemáticas, da mesma forma que a gente usa em modelos

probabilísticos. De fato, para área do Pantanal, as pesquisas foram mais facilitadas

porque nós dispúnhamos de acúmulo muito grande de informações, então nós

tínhamos já em mente um modelo de ocupação indígena do Pantanal, nós tínhamos já

vários sítios levantados para áreas de moradias e vários sítios levantados para áreas

inundáveis e nós, antes de partimos a campo, nós estudávamos previamente aquela

região através de imagens de satélite e, quando era possível, através de fotografias

áreas e cartas topográficas, de tal maneira que, para áreas inundáveis do Pantanal, que

foi área onde nos encontramos a maior concentração de sítios arqueológicos, a

probabilidade de você encontrar um sítio que não seja aterro é muito pequena. Você

tem a probabilidade de encontrar sítios nas margens do que a gente chama lá de

corixos, que são canais do rio nas margens do próprio rio e lagoas.

Bom, a partir deste conhecimento acumulado do levantamento bibliográfico

sobre a etnologia, a etnohistória, a história e a arqueologia dessa região, nós partimos

a campo. Nas partes dos campos realmente a visibilidade é boa e você só encontra

areia mesmo, nós achamos desnecessário, em função de nosso tempo, fazer tradagem.

A parte mais polêmica foi a parte do planalto: para essa área nós dispúnhamos de

poucos dados, embora para algumas áreas nós tivéssemos dados etnográficos, que

chamavam muita atenção, pela possibilidade de ocorrência de grupos Aruakes desde o

século XVII. Para essas áreas, nós realmente pensamos em realizar tradagens e

pensamos especialmente naquelas áreas onde você pudesse ter alguma informação

básica, seja oral, ou seja através de manchas, ou evidências em campo parecidas. Mas

nós observamos, em campo, que o solo do planalto é um solo extremamente raso,

geralmente como cascalho; então, tradagem nesta região era muito difícil e nós

conseguimos observar que em alguams áreas tinha afloramento rochosos com arenitos

petrificados, você poderia encontrar sítios líticos, oficinas líticas. Só que a área tinha

mais de 100Km; isso pediria meses de trabalho de campo.

Paulo Mello - Eu só queria dizer que eu não falei que o transect é a única técnica, eu

falei que é a mais usada, em relação aos custos não é tão alto assim, tanto que a gente

usou em Corumbá, no Braço Norte e os terrenos que existem lá são piores do que

qualquer outro que a gente pode enfrentar para fazer esse tipo de trabalho.

Irmhild Wüst - Eu só gostaria de fazer um rapidíssimo comentário quanto ao terceiro

ponto do que o Walter falou, aquela questão de estudar sistemas sócio-culturais.

Então, nós já nos conscientizamos de que não adianta criarmos simplesmente

tradições, fases, mas que hoje a Arqueologia está preocupada com o ser humano, está

preocupada com processos, com sistemas. Nesse sentido, tem que se fazer um esforço,

de qualquer forma, de conseguir captar sistemas sazonais e a minha experiência, a

pouca experiência com o projeto Corumbá foi extremamente interessante, porque os

sítios que o Paulo descobriu com transects eu jamais teria descoberto, porque eu

conhecia o outro lado da moeda, que eram as grandes aldeias que estavam muito

longe daquelas áreas onde realmente houve aquele impacto ambiental da inundação,

mas o Paulo, por sua vez, não conseguia entender aqueles sítios que estavam à beira

rio, que eram acampamentos pequenos. Então, quer dizer que realmente para poder

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entender esses pequenos sítios, miseráveis, do Corumbá -me desculpe o Paulo- não dá

para entender sem saber que lá no planalto, às vezes, a 10 Km, 15 Km, realmente tem

as grandes aldeias. Então, nesse sentido, temos que ver uma forma de que o

empreendimento também não se assuste e financie coisas que estão mais longe.

Talvez possamos retomar isto numa outra oportunidade.

Paulo Mello - Queria dizer que Furnas financiou uma parte dessa pesquisa fora da

área, então foi possível tentar compreender esse sistema.

Irmhild Wüst - Chamo o sr. Glauberto Bezerra.

Glauberto Bezerra - Professora Irmhild, em nome de quem saúdo os demais

membros da mesa, colegas de auditório. Meu nome é Glauberto Bezerra, sou membro

do Ministério Público do Estado da Paraíba, Promotor de Justiça e Curador do

Consumidor e do Meio Ambiente. Mas do que debater, apenas dar o testemunho do

trabalho que nós exercemos, realizamos transdicisplinarmente: não se pode falar em

matéria ambiental sem se falar em multidisciplinariedade, transdiciplinariedade,

pluridiciplinariedade. Aqui estou, evidentemente não tenho conhecimento do contexto

em termos arqueológicos, mas tenho os instrumentos adequados para que se exercitem

os direitos da percepção, da busca de sítios arqueológicos no patrimônio cultural da

humanidade, consignado no texto constitucional como Direitos Humanos.

O Brasil, assim considero, tem apenas oito anos, a partir da Constituição

Cidadã. Naquela carta, naquele instrumento legal estão consignados os direitos que

jamais outras nações fixaram; avançada, avançada sim, utópica talvez, mas se não

sonharmos ou tentarmos implementar o que ali está escrito o que será então das

gerações futuras de nossos filhos, nossos netos? É direito do consumidor, direito ao

ambiente, direito a ambiente saudável, está dentro do contexto dos Direitos Humanos.

A tendência natural é se pensar direitos humanos como defesa de bandidos, não é isso,

é muito mais do que isso, o tema é bem mais amplo. Direitos Humanos é exatamente

isso: saúde, qualidade de vida e qualidade ambiental. E o Ministério Público foi

inserido também na Constituição, no seu artigo 29, exatamente para instrumentalizar,

para da voz à sociedade, ao povo que não tinha voz anteriormente, através das ações

civis públicas, de instrumentos outros administrativos.

Eu tenho ouvido falar pelos palestrantes e por membros debatedores e do

auditório o problema dos custos, problema da dificuldade e da implementação da

busca científica de sítios arqueológicos, mas devemos lembrar, primeiro, o texto

constitucional que recepcionou todas as normas ambientais anteriores, e segundo:

existe o EIA - Estudo de Impacto Ambiental e a norma básica que é exatamente a

resolução n° 1 do CONAMA, que determina que sejam visualizados, verificados,

estudados esses sítios arqueológicos na tentativa de passá-los para gerações futuras.

Esse mesmo instrumento determina, criou duas figuras: a internalidade e a

externalidade da empresa, no custo da empresa. Na internalidade, por exemplo, a

empresa que venha a causar prejuízo ao cidadão por poluição, por fumaça, neste caso

há não nenhum custo para a empresa neste caso, mas em termos de externalidade,

todo custo operacional na percepção de um ambiente melhor, na preservação da

cultura, que também está dentro dos Direitos Humanos - artigo 216 da Constituição.

Eu achei de bom alvitre, excepcional, deve ser bastante divulgado esse compêndio

que contém todas as normas específicas. Infelizmente, tudo isso que eu falei vem

desaguar em uma única questão: Educação, Conhecimento. Infelizmente, exatamente

em função dessa transdisciplinariedade, nós temos que absorver conhecimentos

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vários, ainda mais que, com a globalização das informações, nós não atentamos para

determinados documentos que são básicos na nossa vida, não só em termos científicos

mas no modo como vivemos e no dia-a-dia. Então, eu pergunto, quantos leram a

Constituição aqui, eu acho que poucos, infelizmente até magistrados e promotores

também; Código do Consumidor, muito poucos; o EIA/RIMA, aliás, a Resolução do

CONAMA ou as resoluções do CONAMA, infelizmente, poucos de nós, inclusive nós

promotores, operadores científicos como todos, não lemos, então nós não sabemos o

direito e me permito usar aqui uma paródia do Vicentinho: nós não temos obrigação

de conhecer aquilo que não nos foi informado, isso com relação a toda a população.

Se nós não conhecemos o nosso direito, nós não podemos exercê-lo, porque nós não

conhecemos essa realidade, ela inexiste para nós, correto? Então o que nós temos que

fazer é o que o Ministério Público do Estado da Paraíba está tentando fazer, ligando a

área ambiental como um todo, com toda a sua amplitude científica (...). Se vocês

examinarem o artigo 1° da Resolução n° 1 do CONAMA, verão que do mesmo jeito o

Código do Consumidor tem um capítulo que preconiza a saúde, a segurança do

consumidor, tudo isso com respaldo, com arrimo na Constituição, então nós estamos

tentando a interface entre os dois assuntos e temos conseguido, com apoio de

empresários e é interessante o apoio do fornecedor para o fornecimento de uma visão

de criação de produtos ambientalmente saudáveis. Quando da fixação de projetos, em

relação à preservação da cultura, não se diga que há o problema da premência do

tempo na realização de determinado empreendimento. Isso, muitas vezes, ocorre em

todas as partes do território nacional. De repente ergue-se um prédio dentro de um

mangue, como houve a tentativa de ocorrência em João Pessoa, por exemplo, e já

depois de iniciada a construção nós conseguimos impedir e derrubá-la porque, contra

a população, contra a sociedade, não há direito adquirido; então nós temos a lei, temos

o instrumento, o Ministério Público e as Instituições não Governamentais para isso.

Então todos nós temos que nos apoiar mutuamente. Para concluir (eu não tenho

procuração para defender o Fórum), mas dentro do contexto, do público alvo, estão

arqueólogos, historiadores, inclusive magistrados, promotores, advogados; então, me

parece que, sem que a palavra interdisciplinariedade fosse citada, ela foi fixada; o

objetivo me parece está sendo alcançado. Eu, por minha parte, estou felicíssimo por

levar o que vou aprender aqui para minha Paraíba.

Irmhild Wüst - Agradecemos.

Solange Caldarelli - Primeiro, uma coisinha que eu esqueci de responder para o

Rossano, a respeito de empreendimentos parados em decorrência de EIAs: em São

Paulo, temos o caso da Rodovia do Sol. Reconheço que são poucos os casos, mas eles

existem. Às vezes, não se está sabendo usar direito o instrumento, mas se o

instrumento existe, nós temos que aprender a utilizá-lo. Se os impactos negativos

forem considerados socialmente impeditivos, será possível derrubar um projeto sim: a

função do instrumento é essa também. Ainda em São Paulo o município de Piraju

está segurando a aprovação da UHE Piraju, também por causa do patrimônio

arqueológico local, querendo ter certeza de que os impactos negativos serão

efetivamente mitigados. Esse é um caso, pode ser que em Santa Catarina não tenha

muitos casos desses, mas certamente outros devem existir e deverão ser cada vez mais

frequentes.

Agora, eu só queria levantar um gancho para essa questão de a problemática

científica ultrapassar os limites da área afetada pelo empreendimento, devendo-se

solicitar ao empreendedor que financie pesquisas em distâncias maiores, para

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contextualização dos eventos arqueológicos ali situados. Concordo em termos, pois,

mesmo que alguns arqueólogos não concordem comigo, não podemos achar que

Eletronorte, Petrobrás, Furnas são CNPq, para ficar financiando pesquisa científica.

Temos que determinar até que ponto vai a responsabilidade desses empreendedores,

pois, se um sítio situado nos limites de um empreendimento de 2km2, estiver

relacionado com sítios situados 15 Km adiante, fica complicada a situação, e nada

impede que o pesquisador, se interessado, solicite verbas de outras fontes para

complementar seus estudos, na área que não está ameaçada pelo projeto. Eu gostaria

de lembrar o que o representante da UNESCO comentou ontem: existe o o GEF,

precisamos apreender a usar esse fundos alternativos para problemas que achamos que

ficaram pendentes em questões ambientais. Se o CNPq está com poucos recursos esse

ano, não se pode descontar isso em cima dos empreendedores; fazer uma

redistribuição, por conta própria, dos recursos existentes no país; cada um tem sua

função, é preciso haver compreensão de parte a parte.

Irmhild Wüst - Passamos, agora, às perguntas do auditório. Chamo primeiro, Ana

Maria de Aragão, que faz uma pergunta ao professor Marcos a respeito do sistemas

sócio-culturais e como eles foram abordados durante o Projeto de Corumbá

Ana Maria Aragão - Eu gostaria só de saber se realmente existe uma conclusão no

EIA/RIMA a respeito de toda essa estrutura que você apresentou no seu trabalho.

Marcos André - Existe, lógico, mas não no EIA/RIMA, pois nosso trabalho foi

posterior ao EIA. Nós temos um relatório final, que foi concluído no início desse ano,

mas eu gostaria de remeter essa discussão à próxima mesa, sobre Recursos Culturais

Intangíveis, meios de diagnosticá-los, de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos.

Uma historiadora que fez parte de nosso projeto, que compôs a equipe, a professora

Heloisa Capel de Ataídes, vai estar apresentando este tema do resgate da cultura

intangível refletida na cultura material e na sua exposição ela vai apresentar a nossa

linha de abordagem e também alguns de nossos principais resultados.

Ana Maria Aragão - Eu gostaria de te perguntar só mais uma coisa: o

empreendimento já teve algum tipo de conclusão, tendo em vista essa situação, ou

não?

Marcos André - Já.

Irmhild Wüst - Temos uma série de não perguntas na aqui na mesa. Como a idéia,

em princípio, era de fazer perguntas dirigidas, como a Ana Maria fez ao Prof Marcos

e não fazer esse debate virar exposição, eu pediria ao pessoal para formular perguntas

específicas que possam ser respondidas pelos expositores.

Eduardo Lopes de Freitas - Bom dia, meu nome é Eduardo, sou geólogo da

PETROBRÁS e trabalho no Setor de Meio Ambiente. Estou insistindo um pouco

para falar porque a questão do gasoduto Brasil/Bolívia foi muito comentada aqui e há

questões sobre este gasoduto Brasil/Bolívia sobre as quais eu poderia trazer algum

esclarecimento. O objetivo da minha presença aqui é justamente esclarecer e colocar

a visão da PETROBRÁS, daqui para a frente, em relação ao gasoduto Brasil/Bolívia.

Primeiro, eu queria falar para o professor Jorge que o trabalho dele está muito

bom; a gente tem conhecimento do trabalho que ele realizou no Mato Grosso do Sul e

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esse trabalho está sendo o fundamento de outros trabalhos que iremos realizar ao

longo do gasoduto. O EIA/RIMA do gasoduto Brasil/Bolívia foi feito em 1983,

quando a Petrobrás ainda tinha a idéia de fazer o empreendimento ligando Santa Cruz

de La Sierra até Porto Alegre. Hoje em dia, esse empreendimento é uma realidade,

ele está sendo construído efetivamente, existem licitações na rua. Várias pendências

existem em relação à Licença Prévia para instalação do gasoduto; umas das

pendências em relação a Mato Grosso do Sul era a questão da Arqueologia, que foi

resolvida em parte. Porque em parte?

Porque foi feita uma prospecção intensiva no Mato Grosso do Sul e a

PETROBRÁS ainda não fez o seu dever de casa, ou seja, de pegar essa prospecção

intensiva e analisá-la e proceder segundo uma avaliação econômica, principalmente se

vale a pena salvar determinados sítios ou se vale a pena desviar de determinados

sítios.

Muito bem, então nós tivemos a oportunidade agora, no final de 96, de

consolidar todos os trabalhos ambientais do gasoduto e nessa consolidação dos

trabalhos ambientais, objetivando financiamento do Banco Mundial, a gente fez

padronização de todo o trabalho, a gente teve a oportunidade de fazer um programa

arqueológico olhando o gasoduto como uma faixa integral e não só olhando o Mato

Grosso do Sul. Então, o gasoduto vai ser olhado de uma forma integral em todo o

Brasil. Existe uma falta de integralidade nisso, porque no Mato Grosso do Sul existe

uma parte pronta, que é uma prospecção arqueológica e ela tem de ser desmembrada

em outras fases, entendeu? Agora, no resto do Brasil, os EIAs de uma maneira geral

eles foram muito superficiais na abordagem da questão arqueológica, a gente tem

certeza dessa afirmação. Em função disso, nós estamos articulando com o IPHAN

uma reunião, que provavelmente vai ocorrer na primeira ou na segunda semana no

Rio de Janeiro ou em outro local qualquer que o IPHAN articule, com todos os

representantes regionais do IPHAN, para a gente poder conduzir de uma forma

articulada e única toda a questão do gasoduto

Nós temos uma proposta, uma proposta consolidada dentro desse trabalho, que

fizemos e enviamos ao Banco Mundial, esta proposta esta lá no Banco Mundial para

ser avaliada, e essa proposta contempla praticamente duas fases do trabalho: uma

primeira fase, que é uma fase de prospecção intensiva e, nessa fase, ao ser localizado,

identificado, localizado, cadastrado o sítio, o empreendedor, neste caso a

PETROBRÁS, vai definir se interessa uma visão econômica ou científica, se há o

interesse de desviar ou salvar determinados sítios e onde desviar e onde salvar os

sítios. E tem uma segunda fase, que é o acompanhamento da obra efetivamente, de

abertura de trincheiras, então aí é imaginado que o gasoduto é divido em treze trechos

de obra, cada empresa é contratada, quer dizer ela pode pegar três trechos no máximo,

e cada empresa dessas tem de ter um arqueólogo de contrato, um arqueólogo

responsável e imaginamos que esse arqueólogo treine seus fiscais de campo para

acompanhar efetivamente a abertura das trincheiras, através de um guia prospectivo

(que será construído), um folheto que será construído como um guia prospectivo do

gasoduto. Em áreas críticas, quem vai decidir isso será o arqueólogo e a prospecção

será acompanhada com presença de um arqueólogo. Então, a gente tem que ter muito

a visão do custo do empreendimento, o custo do trabalho arqueológico e a efetividade

da obra, porque uma obra, no caso do Pantanal, ela não pode parar: você tem de

iniciar a obra por uma questão de cronograma, de cheias e vazantes. Então, essa

questão da Arqueologia, eu acho que é impossível a gente imaginar que uma

prospecção, seja ela qual for, vá conseguir cobrir 100% do gasoduto.

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Eu sou geólogo e trabalho com prospecção de petróleo. A gente gostaria de ter

uma linha sísmica a cada 10m, mas a gente não tem, tem uma linha sísmica a cada

1.5Km/2.5Km, isso em função do alvo que você quer descobrir e em função do custo

que você está valorando. Então, essa visão do custo, do alvo e do tamanho, isso tudo

tem de ser contemplado numa prospecção arqueológica objetivando prazo, custo, para

não interromper efetivamente uma obra. Então, isso tudo tem de ser analisado quando

se trabalha numa prospecção arqueológica e, de maneira alguma, a PETROBRÁS tem

intenção de limitar o trabalho do arqueólogo. Quando certamente você foi a campo

com um Gol, é uma norma que a PETROBRÁS admite, que eu vou para campo com

um Gol e se eu te falar dos buracos em que eu me meto, você vai ficar arrepiado,

porque o aluguel de uma Toyota é muito mais caro que o Gol, e o Gol é um carro

alugado; então, a gente tem que adequar as condições de trabalho ao material que a

gente tem: é uma arte, eu tento ser um artista, de repente.

No início do gasoduto, quando a gente estava nas fases iniciais do EIA, lá em

1993, você não dispunha de mapas e fotografias aéreas de que hoje você dispõe, você

dispunha de informações, de fotos satélite, de cartas 1:50.000, e hoje você já dispõe

de fotos aéreas um pouco mais detalhadas. Então, toda essa questão de levantamento

no Mato Grosso do Sul, que é uma coisa que interessa muito a gente, porque eu estou

com pé do lado da PETROBRÁS, então eu vejo, por esse lado, que não pode ser

interrompida a obra, então a gente quer fazer uma prospecção intensiva e uma decisão

se salva ou não determinado sítio arqueológico e se ele é representativo de

determinada região. Então, toda essa questão do gasoduto está sendo abordada de uma

forma integral, porque existe um respeito da PETROBRÁS muito grande com a

questão arqueológica, tanto assim que ela hoje está financiando este encontro

Irmhild Wüst - Agradecemos a sua palavra e fazemos um intervalo para o almoço e

retomamos a atividade às 02:00 horas da tarde.

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2ª MESA-REDONDA:

AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS

AMBIENTAIS

COORDENAÇÃO:

Dra. Tânia Andrade Lima

Museu Nacional/UFRJ

Coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

SOLANGE BEZERRA CALDARELLI Doutora em Ciências Humanas pela Faculdade de Filsosofia Letras e Ciências Humanas/USP

1979/85 - Arqueóloga do Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, atuando na

formação de pessoal em arqueologia e coordenando projetos de pesquisa arqueológica nos

vales dos rios Pardo, Mogi-Guaçu, Tietê e Guareí, SP

1982/85 - Coordenadora, do lado brasileiro, do Acordo de Cooperação Científica

Internacional entre o Institudo de Pré-História da USP e a Unité de Recherches

Archéologiques nº 28, CNRS, França.

1986/88 - Pesquisadora de Desenvolvimento Científico e Regional do CNPq, junto ao Museu

Paraense Emílio Goeldi

Desde 1989 - Coordenadora de projetos da Scientia Consultoria Científica (Área de

Arqueologia e Patrimônio Histórico-Cultural), participando de 03 projetos de ordenação físico-

territorial em unidades de conservação e de cerca de 50 projetos de licenciamento ambiental

(EIA/RIMA, LI e LO), em todas as regiões do país.

Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira; da SAA-Society for American

Archeology; da Seção Brasileira da IAIA-International Association for Impact Assessment e

do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

GILSON RODOLFO MARTINS Doutor em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Professor Adjunto de Arqueologia Brasileira e História Regional da Universidade Federal do

Mato Grosso do Sul

Coordenador do projeto de pesquisas “Arqueologia do Sítio Maracaju-01” - UFMS

Integrante da equipe do projeto de pesquisas “Paleo-ambiente e Pré-História do MT” -

MAE/USP - IPH/MNHN/França

Coordenador da etapa de levantamento do “Projeto Arqueológico Porto Primavera-MS” -

CESP/UFMS

Responsável pelos estudos arqueológicos do EIA/RIMA do Gasoduto Bolívia-Brasil, Trecho

Terenos/Três Lagoas, MS - PETROBRÁS/UFMS

Conselheiro do CEDIN-Conselho Estadual dos Direito do Índio/Governo do MS

Perito da Justiça Federal em MS para demarcação de terras indígenas

LÚCIA DE JESUS CARDOSO OLIVEIRA JULIANI Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Pertence ao corpo técnico do Departamento do Patrimônio Histórico da Scretaria Municipal de

Cultura de São Paulo desde 1985, exercendo a Chefia da Seção Técnica de Pogramas de

REvitalização e a coordenação dos Programas de Arqueologia desde 1994.

Membro do CADES-Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

de São Paulo desde 1995.

Participa de Estudos de Impacto Ambiental e de Projetos de Resgate do Patrimônio

Arqueológico e Histórico desde 1991.

Membro da Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da

Arqueologia

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AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS DE GRANDES EMPREENDIMENTOS SOBRE A BASE

DE RECURSOS ARQUEOLÓGICOS DA NAÇÃO: CONCEITOS E APLICAÇÕES

Solange Bezerra Caldarelli

A Avaliação de Impacto Ambiental é o instrumento da Política Nacional do

Meio Ambiente que avalia os impactos sobre o meio físico-biótico e sócio-econômico

de qualquer atividade modificadora do meio ambiente acima de um determinado

limite, definido pela Resolução CONAMA nº 001/86.

No caso dos recursos arqueológicos, impacto é qualquer alteração em seu

status quo, decorrente, direta ou indiretamente, no caso que aqui se discute, de ações

executadas para a implantação de empreendimentos de engenharia que afetem o solo.

Essas ações, que causam os impactos, são denominadas ações impactantes.

A avaliação de impacto ambiental é um instrumento preditivo: ela busca o

conhecimento prévio dos efeitos, sobre o meio ambiente, das ações necessárias à

implantação de grandes projetos desenvolvimentistas. Promovendo o conhecimento

prévio sobre os riscos ambientais desses projetos, a avaliação de impactos ambientais

torna-se um importante instrumento de planejamento, permitindo a tomada de

decisões sobre os impactos a evitar, os danos a mitigar, os benefícios a otimizar e os

impactos a ignorar. Embora a AIA não seja um instrumento decisório, é um provedor

de subsídios ao processo decisório. Além disso, ao menos em tese, a AIA é um

instrumento democrático, pois imprime transparência aos dados sobre os quais se

fundamenta o processo decisório, permitindo que a sociedade se posicione frente ao

projeto em estudo e participe das decisões sobre sua implantação ou não e, em caso

positivo, sobre o modo como deve-se dar essa implantação.

Na Resolução nº 001, o CONAMA considerou, entre os fatores componentes

do meio sócio-econômico, os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e

culturais da comunidade. A partir daí, arqueólogos começaram a ser chamados para

participar dos estudos de impacto ambiental de grandes empreendimentos de

engenharia civil (hidrelétricas, rodovias, ferrovias, dutovias, empreendimentos

urbanísticos, etc.), com o objetivo de definir e avaliar os impactos desses

empreendimentos sobre os recursos arqueológicos regionais.

Ao participar desses estudos, os arqueólogos devem contribuir com o

processo decisório sobre o projeto em estudo, fornecendo informações relativas aos

recursos arqueológicos da área de inserção do empreendimento.

A fase que antecede a avaliação de impactos propriamente dita é a do

diagnóstico, que já foi discutida na mesa-redonda dessa manhã. Uma vez

identificados os recursos culturais da área de estudo, é preciso localizá-los em relação

às alternativas do projeto, de modo a verificar qual é a alternativa menos impactante,

do ponto de vista arqueológico. Parte-se, aí, para a identificação dos impactos, tendo

como referência os processos tecnológicos do empreendimento, que constituirão os

fatores geradores dos impactos. A identificação é a primeira fase do processo de

avaliação de impactos.

Vejamos quais são, de forma genérica, os principais impactos arqueológicos

dos empreendimentos que mais têm solicitado o concurso de arqueólogos nos estudos

de impacto ambiental em curso no Brasil. TIPO DE EMPREENDIMENTO PROCESSO TECNOLÓGICO(1) IMPACTO ARQUEOLÓGICO

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Abertura de estradas de serviço Exposição e destruição de estruturas arqueológicas super-ficiais e sub-superficiais (-)

Cortes de terreno Destruição de estruturas arqueológicas (-)

RODOVIAS Aterros Soterramento de estruturas arqueológicas (-)

Obtenção de material natural de empréstimo

Destruição de fontes pretéritas de matéria-prima (-)

Disposição de bota-fora Soterramento de estruturas arqueológicas (-)

Implantação de cobertura vegetal Mascaramento de estruturas arqueológicas em estratigrafia (-)

Remoção da cobertura vegetal Exposição e destruição de estru-

turas arqueológicas superficiais (-)

Terraplenagem para instalação do canteiro de obras

Destruição de estruturas arqueo-lógicas superficiais e sub-su-perficiais (-)

Escavações para instalação de vilas residenciais

Destruição de estruturas arqueo-lógicas (-)

Cortes e aterros para vias de acesso Exposição e soterramento de estruturas arqueológicas (-)

USINAS Empréstimo de materiais naturais de construção

Destruição de fontes pretéritas de matéria-prima (-)

HIDRELÉTRICAS Disposição de bota-fora Soterramento de estruturas

arqueológicas (-)

Execução de obras de realocação (infra-estrutura e assentamentos)

Exposição, soterramento e destrui-ção de estruturas arqueológicas (-)

Desmatamento e destocamento da vegetação da área a ser inundada

Exposição e destruição de estruturas arqueológicas (-)

Enchimento do reservatório

Submersão de estruturas arqueo-lógicas e descaracterização do território pretérito de captação de recursos (-)

Limpeza da faixa, com remoção da vegetação

Exposição de estruturas arqueo-lógicas superficiais (-)

Construção de estradas de serviço Exposição e destruição de estruturas

arqueológicas (-)

DUTOVIAS Abertura de vala para colocação dos dutos

Exposição da estratigrafia de vastas extensões lineares de terrreno (+)

Colocação dos dutos na vala Introdução de corpo estranho no interior dos sítios arqueológicos

Reaterro da vala Fechamento dos cortes estra-tigráficos, impedindo a erosão dos sítios arqueológicos situados na faixa do duto (+)

Cortes e aterros para implantação do sistema viário, quadras e lotes

Exposição, destruição e soterramento de estruturas arqueológicas / descaracterização

do território pretérito de captação de recursos (-)

EMPREENDIMENTOS

URBANÍSTICOS

Implantação de cobertura vegetal

Mascaramento e perturbação de es-truturas arqueológicas superficiais / descaracterização do território pre-térito de captação de recursos (-)

Pavimentação asfáltica ou tratamento do leito viário com solo e material granular compactado

Compactação de solos arqueo-lógicos (-)

Edificações

Destruição de estruturas arqueo-lógicas superficiais e enterradas (-)

1) Baseado em FORNASARI Fo. et al. (1992)

Uma vez identificados os impactos, o passo seguinte é a sua caracterização,

segundo atributos explicitados na Resolução CONAMA 001/86, expostos no quadro

abaixo:

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74

ATRIBUTOS DE CARACTERIZAÇÃO DE IMPACTOS

(RESOLUÇÃO CONAMA 001/86)

Positivo / negativo

Magnitude

Relevância

Direto / indireto

Imediato, médio / longo prazo

Temporário / permanente

Reversível / irreversível

Simples / cumulativo

Numa análise de impactos, evidentemente, o primeiro aspecto que se avalia é

se o impacto é negativo (adverso) ou positivo, pois são os impactos negativos e a

possibilidade e os custos de sua mitigação que, efetivamente, são levados em conta na

discussão da viabilidade ambiental de um empreendimento, sendo que os demais

atributos (magnitude, relevância, reversibilidade, etc.), apresentados no quadro acima,

têm principalmente a função de qualificá-los.

Daí a importância de apresentar, aqui, critérios para avaliar se um impacto é

ou não negativo, do ponto de vista dos recursos arqueológicos. Assim, temos

considerado que impactos adversos são aqueles que decorrem de fatores que:

destróem ou perturbam total ou parcialmente os recursos;

alteram seu contexto;

afetam a preservação dos dados;

obstruem o acesso aos dados.

Para dar um pouco mais de concretude ao tema, vamos mostrar como os

atributos acima apresentados foram adaptados e utilizados na caracterização que

fizemos dos impactos previstos para a UHE Piraju, projetada para a Bacia do

Paranapanema, município de Piraju, SP, durante o Estudo de Impacto Ambiental do

empreendimento, elaborado pelo CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros

Consultores S/A para a CBA-Companhia Brasileira de Alumínio S/A

(CALDARELLI, 1996).

A análise dos impactos seguiu-se ao levantamento arqueológico da área de

estudo, feito após consulta à extensa bibliografia produzida pelo Projeto

Paranapanema, atualmente coordenado pelo Dr. José Luiz de Morais, do MAE/USP, o

qual também constituiu fonte oral dos estudos, fornecendo dados ainda não publicados

e dando à equipe amplo acesso ao Cadastro de Sítios Arqueológicos do Projeto

Paranapanema (MORAIS, 1992a)e ao Mapa de Sítios Arqueológicos do Município de

Piraju (MORAIS, 1992b), documentos por ele elaborados, inéditos. A ampla

colaboração do Dr. José Luiz de Morais potencializou positiva e fundamentalmente o

escopo dos trabalhos, propiciando à UHE Piraju uma das melhores avaliações de

impactos arqueológicos do Estado de São Paulo.

Os impactos identificados, em número de sete, podem ser vistos na matriz

abaixo apresentada, onde se aponta os fatores responsáveis por sua geração, seguidos

de uma breve descrição de cada impacto.

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75

UHE PIRAJU

MATRIZ DE IDENTIFICAÇÃO DE IMPACTOS: RECURSOS ARQUEOLÓGICOS

FATORES GERADORES IMPACTOS DESCRIÇÃO

Ações Iniciais

divulgação da obra

desapropriação / aquisição de terras

Implantação da Infra-Estrutura de Apoio

recrutamento e contratação de mão de obra

desmatamento e terraplenagem para acessos,

canteiros, etc.

1 1=destruição de acampamentos e aldeias

pré-coloniais

ampliação e melhoria da infra-estrutura 1

implantação do canteiro 1

implantação dos alojamentos e vila residencial 1

Implantação das Obras Principais

mobilização dos equipamentos

exploração de fontes de materiais de

empréstimo e jazidas

2 2=destruição de oficinas líticas pré-

coloniais

execução das obras civis 1

deposição de material excedente em botas-foras 3 3=soterramento de vestígios

arqueológicos

montagem da eletromecânica

implantação da linha de transmissão 1

transporte de materiais e insumos

Enchimento do Reservatório

desocupação da área a ser submersa

desmatamento e limpeza da área de inundação 1/4 4=exposição de estruturas arqueológicas

enchimento propriamente dito 5/6/7 5=submersão de sítios arqueológicos

Desmobilização 6=erosão e dispersão de vestígios arqueológicos

dispensa da mão de obra 7=descaracterização do entorno dos sítios arqueológicos

desmobilização do canteiro e alojamentos

retirada de materiais e equipamentos

Operação da Usina

operação da usina 6

fiscalização / manutenção da faixa de

segurança

Após a identificação, cada impacto foi caracterizado, de acordo com os

atributos definidos pelo CNEC, adaptados e ampliados tantos dos mencionados na

Resolução CONAMA 001/86, quanto dos mencionados pela Secretaria do Meio

Ambiente do Estado de São Paulo (COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO

AMBIENTAL, 1989).

A caracterização dos impactos foi sintetizada numa ficha, também elaborada

pelo CNEC e apresentada a seguir, da qual constam as medidas mitigadoras sugeridas,

as quais foram amplamente discutidas com o Dr. José Luiz de Morais, que deverá ser

o responsável por sua implantação, na fase de resgate.

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76

UHE Piraju - Ficha de Avaliação de Impactos - Recursos Culturais

Impacto Localização Fase Natu-reza

Tipo Dura-ção

Espa-cializ

Reversibilid

Ocor-rência

Relevân-cia Significância

Medida Natureza Eficiência Responsável

im op po ne di in pe te lo di re ir i m/l

p m g a m b pv

co

cp

po

p m g

1. destruição de acampamentos e aldeias pré-coloniais

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

resgate ar-queológico

X

X

Financ: em-preendedor Técnico: MAE/USP

2. destruição de oficinas líticas pré-coloniais

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

resgate ar-queológico

X

X

Financ: em-preendedor Técnico:

MAE/USP

3. soterramento de vestígios arqueológicos

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

resgate ar-queológico

X

X

Financ: em-preendedor Técnico: MAE/USP

4. exposição de

estruturas ar-queológicas

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

resgate ar-

queológico

X

X

Financ: em-

preendedor Técnico: MAE/USP

5. submersão de sítios arqueo-lógicos

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

resgate ar-queológico

X

Financ: em-preendedor Técnico: MAE/USP

6. erosão e dis-persão de vestígios arqueológicos

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

X

monitora-mento ar-queológico

X

X

Financ: em-preendedor Técnico: MAE/USP

7. descaracteriza-ção do entorno dos

sítios arqueo-lógicos

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

registro ar-queológ. da

paisagem

X

X

Financ: em-preendedor

Téc.: MAE/US MAE/USP

im: implantação po: positivo di:direto pe: perm. lo: localizado re: revers. i: imediato p: pequeno a: alto pv:preventiva co: corretiva o: operação ne: negativo in: indireto te: temp. di: disperso ir: irrev. ml: édio/lon- m: médio m: médio cp: compensatória go prazos g: grande b: baixo po:potencializadora

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77

Quanto ao atributo magnitude, mencionado na Resolução CONAMA

001/86, situações concretas são as únicas que podem torná-lo claro, pois trata-se de

um atributo que deve, de preferência, ter um referencial numérico, o que só pode ser

feito em presença de casos reais. O exemplo que consideramos mais interessante para

apontar aqui é o da duplicação da Rodovia Fernão Dias, cujo EIA foi elaborado pelo

consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e Consultoria S/C Ltda.,

para os DERs de São Paulo e de Minas Gerais.

Na fase de avaliação de impactos deste empreendimento, nos deparamos com

a necessidade de expressar numericamente a magnitude dos impactos arqueológicos

da Área Diretamente Afetada do empreendimento, em cima de um levantamento

amostral, da ordem de 20%, feito na Área de Influência.

Não podíamos apontar o número de sítios arqueológicos existente em cada

lote em que foi sudividida a rodovia, como solicitado por nossos contratantes, pois a

margem de erro seria muito grande, uma vez que projetos lineares são, em geral,

muito estreitos, e apenas quando a pesquisa se dá exatamente sobre o eixo do projeto é

possível estimar os sítios individuais que serão afetados pelas obras.

Assim, decidimos auferir o potencial arqueológico da área coberta por cada

lote, em termos de percentual de cada área onde podem ocorrer sítios arqueológicos,

com base nos dados ambientais da implantação dos sítios localizados no levantamento

feito em campo, para os quais haviam apresentado associações positivas as variáveis

topomorfologia e declividade.

Os resultados obtidos revelaram-se satisfatórios e permitiram estimar o

percentual da área de cada lote em que havia risco de as obras causarem impactos

negativos sobre os eventuais recursos arqueológicos. Para as áreas de potencial

arqueológico de cada um desses lotes, mencionadas no EIA, recomendamos

levantamento arqueológico intensivo, previamente ao início das obras de duplicação

da rodovia (CALDARELLI, 1992).

O gráfico abaixo ilustra a magnitude das áreas que oferecem risco de terem

recursos arqueológicos impactados, no trecho da rodovia situado no Estado de Minas

Gerais.

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

Rodovia Fernão Dias, MG - Área percentual de cada lote, com potencial

de ocorrência de sítios arqueológicos e consequente risco de incidência de

impactos negativos

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78

Quanto à relevância, outro dos atributos mencionados na Resolução

CONAMA 001/86, trata-se de um conceito, a nosso ver, que pode ser reportado

diretamente ao que, em arqueologia, chamamos de significância, sobre o qual existe

farta bibliografia (ver, por exemplo, DIXON, 1977; GLASSOW, 1977; MORATTO

& KELLY, 1978 e SCHIFFER & HOUSE, 1977).

Vamos, aqui, evocar os dois conceitos mais amplamente utilizados de

significância, a saber:

Significância histórica: potencial do(s) recurso(s) para identificação e

reconstrução de culturas, períodos, modos-de-vida e eventos específicos. Assim

recursos culturais são historicamente significantes se constituem um exemplo bem

preservado de uma cultura pré-histórica, uma sociedade histórica, um período, uma

categoria de atividade humana, etc.

Significância científica: potencial do(s) recurso(s) para estabelecer

generalizações confiáveis sobre sociedades passadas e fornecer explicações sobre as

diferenças e similaridades entre elas. Assim, a significância científica depende do

grau de representatividade dos recursos arqueológicos da área de estudo para uso em

estudos comparativos. O valor desses dados pode estar relacionado ao contexto

regional da área de estudo ou a problemas antropológicos gerais.

De acordo com BUTLER (1987), a significância é sempre baseada em teoria

e conhecimento científico. Um projeto de pesquisa é sempre uma avaliação do que é

e do que não é conhecido sobre um sítio, um conjunto de sítios ou uma região de

interesse e apresenta um plano de ação pelo qual questões pertinentes possam sr

respondidas.

Estratos distintos de um mesmo sítio podem, também, ter significâncias

distintas. Num sítio multicomponencial em abrigo sob rocha, por exemplo, as

camadas arqueológicas superiores provavelmente relacionar-se-ão a episódios

pretéritos mais conhecidos que as camadas inferiores, que terão maior significância

científica, pelo potencial de lançar luz sobre períodos pouco conhecidos da

arqueologia.

No mundo todo, os órgãos de proteção ao patrimônio fazem exigências

mínimas quanto ao conteúdo dos projetos que lhes são submetidos para autorização de

pesquisa. No Brasil, essas exigências mínimas são dadas pela Portaria 007/88 do

IPHAN e são bem modestas em relação ao que se observa em outros países.

Infelizmente, o art. 5º da portaria não incorpora a questão da significância dos

recursos arqueológicos a serem estudados pelo pesquisador, nem mesmo sob a rubrica

“JUSTIFICATIVA”. Também para o pesquisador, acadêmico ou não, se coloca o

fato de que os recursos arqueológicos são finitos e não renováveis e, portanto, uma

autorização de pesquisa só deve ser dada mediante justificativa do interesse científico

do projeto.

BUTLER (1987) comenta que, nos Estados Unidos, em nenhuma parte do

território existem lacunas de conhecimento num grau tal que justifiquem um projeto

de pesquisa baseado apenas em métodos indutivos porque nada se conhece sobre a

área. No Brasil, infelizmente, o quadro é outro, o que ficou bem claro na reunião

promovida pelo DEPROT/IPHAN no Rio de Janeiro, em 1995, quando foi debatida a

intenção do órgão de implementar um “Programa de Recadastramento de Sítios

Arqueológicos Brasileiros”, quando os arqueólogos presentes consideraram mais

premente que se promovesse o levantamento e o inventário dos sítios de extensas

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regiões do Brasil, que são quase que absolutamente desconhecidas do ponto de vista

da arqueologia.

Voltando à questão da “justificativa”, consideramos que, ao elaborar seu

projeto de pesquisa, o pesquisador deveria justificar também as operações

mencionadas no art. 5º da portaria 007/88 do IPHAN, uma vez que, sendo finitos os

recursos, é preciso parcimônia em seu estudo, já que o estudo arqueológico implica,

como todos sabem, a destruição total ou parcial do sítio. Assim, outro conceito que

deveria ser incorporado aos projetos de pesquisa nacionais é o de “redundância”. A

redundância deveria ser sempre um critério de escavação e de coleta: escava-se e

coleta-se até se alcançar redundância de dados para os objetivos do projeto, seja no

estudo de um sítio específico, seja no estudo de uma região.

É a redundância (ou recorrência) que deve orientar o problema do tamanho

da amostra de material arqueológico a ser retirada dos sítios, que deve variar em

função da recorrência dos bens móveis presentes no sítio, recorrência esta que está

diretamente ligada ao tipo de sítio em questão. E a relevância do impacto também se

relaciona diretamente ao tipo de sítio a ser impactado e determina as ações dos

programas de mitigação. Assim, a intensidade da intervenção arqueológica e da

coleta de material deve variar em função dos tipos de sítio. É claro que, em sítios de

atividades limitadas (uma oficina lítica, por exemplo), não se justificam escavações e

coletas na mesma intensidade que em sítios-base, onde o tempo prolongado da

ocupação e a pluralidade das ações pretéridas desenvolvidas no espaço do sítio

resultam, em geral, em expressiva densidade e diversidade de cultura material, com

variações espaciais que devem ser consideradas na pesquisa de campo.

Enfim, um programa de mitigação deve objetivar a cobertura de uma amostra

confiável de todos os recursos culturais significativos e dos recursos naturais a eles

relacionados que serão afetados pelo empreendimento, de modo a que as informações

coletadas possam contribuir adequadamente para a solução dos problemas

arqueológicos significativos colocados pelos recursos existentes na área de estudo.

O tamanho da amostra varia de acordo com o número e a significância dos

recursos arqueológicos a serem afetados direta ou indiretamente pelo

empreendimento. Nos casos em que apenas um ou pequeno número de recursos

arqueológicos serão afetados, o estudo de todos é recomendável, mas, na maioria dos

casos, é suficiente que se estude uma parcela representativa do conjunto dos recursos

da área de estudo.

Uma questão que se deve ter sempre presente quando se decide e se avalia o

tipo e a intensidade das intervenções arqueológicas num sítio ou numa região é: “está-

se aprendendo alguma coisa nova com investigações adicionais?” Ou seja, vale a

pena intensificar as escavações e coletas? A significância do sítio ou da região

justifica a intensidade de escavações e coletas empreendidas? O dinheiro e o tempo

gastos numa pesquisa não se justifica se o pesquisador está apenas repetindo

experiências ou obtendo os mesmos resultados de pesquisadores anteriores. Caso este

seja o caso, o melhor é conservar o recurso para novas questões, que se coloquem no

futuro, e não exauri-lo com problemáticas e técnicas que não levem à produção de

conhecimento novo.

Aliás, a significância do recurso também deve ser um critério utilizado pelo

contratante dos serviços arqueológicos. É preciso que se fundamente a significância

alegada do recurso cultural, para se justificar o montante do recurso financeiro

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solicitado para sua pesquisa. Aliás, neste ponto a participação do órgão de proteção

ao patrimônio cultural é decisiva. Como diz BUTLER (1987), arqueólogos devem

avaliar a significância do recurso; podem fazer recomendações sobre ele, mas a

gestão, ou seja, a decisão sobre o que deve ser feito com o recurso é de

responsabilidade dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e não do arqueólogo,

já que esses recursos são bens nacionais.

Para que o órgão de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, ou seja, o

IPHAN, possa tomar as devidas decisões sobre os recursos arqueológicos de uma

dada região, no contexto de um estudo de impacto ambiental, que é o tema deste

simpósio, é importante que o arqueólogo tenha identificado e avaliado adequadamente

os impactos (o que depende de ele poder contar com um bom diagnóstico prévio,

elaborado em condições adequadas - condições essas que esperamos poder explicitar

no documento-síntese a ser elaborado ao final do simpósio).

As recomendações do arqueólogo sobre o destino a dar aos recursos

arqueológicos da área de estudo consubstanciam-se nos programas apresentados ao

final do EIA, os quais devem, necessariamente, ter o aval do IPHAN, o qual só pode

dar esse aval se puder confrontar os impactos identificados e sua relevância com as

ações propostas para seu estudo ou preservação.

O IPHAN, se necessário, deve também solicitar que o arqueólogo expanda as

ações previstas para o estudo, se estas forem consideradas insuficientes em relação à

significância do recurso. Inclusive, no caso de mais de uma proposta ser apresentada

ao IPHAN para o mesmo sítio ou para a mesma região, o que pode acontecer num

sistema capitalista de livre concorrência, o IPHAN tem de decidir pela proposta mais

eficaz de mitigação dos impactos previstos, excluída a hipótese de redundância de

ações e resultados, único caso em que a questão do custo deve ser considerada

relevante para o órgão.

Aliás, a possibilidade de mais de um pesquisador vir a estudar uma mesma

região a ser afetada por empreendimento implica uma mudança da postura tradicional

do arqueólogo brasileiro: a da sua relação de propriedade com a área de estudo, pois

no contexto da Avaliação de Impacto Ambiental, é comum um pesquisador começar

onde outro terminou.

Diante dessa nova realidade, novas posturas éticas se impõem: é preciso que

as informações fluam entre os pesquisadores envolvidos nas diversas etapas da

pesquisa, de modo a agilizar a produção de conhecimentos e a tomada de decisões

sobre um objeto de estudo que tende a desaparecer rapidamente, não em função da

pesquisa, mas de fatores externos.

Para avaliar a importância dos recursos culturais da área de estudo,

SCOVILL, GORDON & ANDERSON (1972) sugerem que sejam considerados os

seguintes aspectos:

Abundância relativa dos recursos a serem afetados

Grau de confinamento dos recursos à área de estudo

Relações culturais e ambientais entre a área de estudo e seu entorno

Diversidade dos vestígios culturais contidos na área de estudo

Gama de tópicos de pesquisa para os quais a área de estudo pode contribuir

Deficiências específicas do conhecimento atual que podem ser supridas pela

área de estudo

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Uma vez avaliada a importância ou significância dos recursos, fica mais fácil

avaliar a relevância dos impactos adversos ou negativos que eles poderão vir a sofrer.

Os recursos arqueológicos estão especialmente sujeitos a efeitos adversos cumulativos

poque eles são não renováveis e o crescimento do conhecimento arqueológico

depende da disponibilidade de uma base representativa de recursos para as futuras

gerações. A produtividade científica a longo prazo só será mantida se uma amostra

representativa e significativa da base de recursos culturais for preservada para estudos

futuros. Todo impacto adverso sobre os recursos arqueológicos e seu contexto reduz

essa amostra e esses efeitos são cumulativos e irreversíveis. Não é demais relembrar,

aqui, que os recursos arqueológicos constituem o legado das gerações passadas às

gerações futuras e destruí-los significa subtrair a herança a seus legítimos herdeiros.

Para terminar, gostaríamos de dizer que a grande contribuição que a

academia pode trazer à Avaliação de Impactos Ambientais não está na participação

direta nos EIAs/RIMAs, o que só acarreta desvio de sua função primeira, que é a de

fazer pesquisa básica que alimente a pesquisa aplicada, mas sim na produção de

conhecimento, não apenas através da condução dos programas arqueológicos de

mitigação recomendados nos EIAs/RIMAs, mas também através de estudos

experimentais que elucidem os reais efeitos das ações da engenharia civil sobre os

recursos arqueológicos. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato

não pode assumir.

Uma vez mais, a UHE Piraju é um bom exemplo de programas experimentais

propostos no EIA, a serem assumidos pela universidade. Um dos programas de

mitigação de impactos proposto foi o “Programa de Monitoramento dos Bens

Arqueológicos Submersos”, com o objetivo de observar e documentar os efeitos do

enchimento do reservatório sobre as estruturas arqueológicas que ficarão às margens

do lago e sofrerão a ação do turbilhonamento das águas e sobre as estruturas

arqueológicas que ficarão submersas, sofrendo a ação das correntes de fundo

(CALDARELLI, 1996).

Pretende-se, com esse programa, trazer um pouco de luz sobre os reais

efeitos dos reservatórios hidrelétricos sobre os recursos arqueológicos submersos, de

modo a subsidiar a tomada de decisões sobre as medidas a serem tomadas em casos

similares futuros. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato pode

até propor, mas não tem condições de executar, a não ser em colaboração com a

própria academia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, William B.

1987 Significance and other frustrations in the CRM Processes. American

Antiquity, 52 (4): 820-829.

CALDARELLI, Solange B.

1992 Patrimônio Arqueológico e Histórico - Avaliação de Impactos. Relatório

encaminhado ao consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e

Consultoria S/C Ltda., para compor o EIA do Projeto de Duplicação da Rodovia

Fernão Dias, SP/MG. São Paulo, Scientia Consultoria Científica.

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1996 Avaliação dos impactos da UHE Piraju sobre os recursos culturais locais.

Relatório encaminhado ao CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores

S/A, para compor o EIA da UHE Piraju, SP. São Paulo, Scientia Consultoria

Científica.

COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL

1989 Estudo de Impacto Ambiental-EIA, Relatório de Impacto Ambiental-RIMA;

Manual de Orientação. São Paulo, Secretaria de Estado do Meio Ambiente.

DIXON, Keith A.

1977 Applications of Archaeological Resources: Broadening the Basis of

Significance. In: M. B. Schiffer & G. J. Gumerman (Ed.), Conservation

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FORNASARI Fo, Nilton et al.

1992 Alterações no meio físico decorrentes de obras de engenharia. São Paulo,

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GLASSOW, Michael A.

1977 Issues in Evaluating the Significance of Archaeological Resources.

American Antiquity, 42 (3): 413-420.

MORAIS, José Luiz de

1992a Projeto Paranapanema - Cadastro Arqueológico Regional - 1968-

1992. São Paulo, MAE-USP.

1992b (Org.) PROJETO PARANAPANEMA - Programa Regional de Pesquisas

Arqueológicas - MUNICÍPIO DE PIRAJU - Mapa Municipal de Cadastro

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SCHIFFER, M. B. & J. H. HOUSE

1977 An Approach to Assessing Scientific Significance. In: M. B. Schiffer & G. J.

Gumerman (Ed.), Conservation Archaeology. New York, Academic Press, p. 249-

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1972 Guidelines for the preparation of statements of environmental impacts on

archaeological resources. Arizona Archeological Center, National Park Service.

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AVALIAÇÃO DE IMPACTOS ARQUEOLÓGICOS DE EMPREENDIMENTOS

REGIONAIS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS

Gilson Rodolfo Martins

1- Avaliação dos impactos ambientais sobre o patrimônio arqueológico e a

Resolução CONAMA nº 1 de l986

Como ponto de partida para a avaliação dos impactos de um empreendimento

sobre o patrimônio arqueológico deve-se considerar que todo empreendimento que é

impactante sobre o meio ambiente também pode se-lo sobre o patrimônio

arqueológico.

Pela lei, a exigência do EIA/RIMA visa a compatibilização entre o

desenvolvimento econômico-social e a preservação do equilíbrio

ecológico/patrimonial. Logo, conservar um sítio é também estender a proteção ao seu

entorno, entendido este como possível amostra da área de captação de recursos

naturais de uma comunidade do passado.

A legislação ambiental brasileira, na medida em que prevê a consulta à

comunidade afetada é preservacionista e participativa. No entanto, em termos de

Arqueologia, é limitada pois só é aplicada em eventos que provoquem significativa

degradação patrimonial e elenca, limitadamente, os empreendimentos em que os

estudos e avaliação de impactos se tornam obrigatórios. Isso é problemático, pois,

como já foi visto acima, o que é arqueologicamente insignificante hoje, pode ser

fundamental no futuro. Ou ainda, muitas vezes os sítios arqueológicos estão inseridos

em áreas de empreendimentos onde a apresentação do EIA/RIMA não é obrigatório.

Nos casos não previstos na legislação, deveria caber ao orgão oficial

expedidor da licença prévia e também ao empreendedor, uma consulta obrigatória

prévia ao IPHAN.

2- A problemática conceitual da Arqueologia de Salvamento

No fim da década de 80, Bezerra de Menezes (1988) fez uma avaliação

crítica da Arqueologia de Salvamento que, passados quase dez anos, em vários

pontos, ainda é bem atual. Retomaremos, a seguir, alguns pontos que entendemos

serem pertinentes à esta exposição.

A Arqueologia foi definida pelo autor acima como uma ciência social que,

através do estudo da cultura material, visa recuperar e explicar sistemas sócio-

culturais pretéritos, em sua estrutura, funcionamento e mudança. Para ele, a produção

desse conhecimento científico é impossível sem um projeto de pesquisa que obedeça,

necessariamente, às determinações da metodologia científica.

No mesmo trabalho, comentou-se que nas primeiras elaborações conceituais

sobre a Arqueologia de Salvamento, esta foi entendida como a ação científica que

estabelece que todas as evidências, peças ou sítios, dotadas de “relevância”e

impossíveis de serem preservadas “in loco” e ameaçadas de destruição por algum

agente impactante deveriam ser “salvas” por remoção.

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Assim, uma das questões principais dessa atividade científica é estabelecer

quais são os critérios para distinguir o que é relevante do irrelevante e o que, portanto,

pode ser descartado pelo salvamento arqueológico.

Vendo-se dessa forma, a utilização do termo “Arqueologia de Salvamento”

passou a ser problemática pois parece sugerir a idéia de uma aceitação passiva diante

de uma coleta seletiva e parcial de dados arqueológicos a serem impactados por um

determinado empreendimento.

Desde então, desenvolveu-se aquilo que o autor citado chamou de “ética da

conservação”, que produziu a idéia de que o que hoje não parece relevante, no futuro

poderá vir a se-lo, pois novas metodologias e recursos tecnológicos estarão

disponíveis para os pesquisadores, permitindo assim um aprofundamento das análises.

Repete-se o mesmo dilema dos historiadores quando têm que decidir sobre quais

documentos do presente deverão ser preservados para as pesquisas históricas futuras.

Assim sendo, então o que diferencia a Arqueologia de Salvamento da

Arqueologia ordinária?

Para o retro-citado autor, em termos de objeto e processo de produção do

conhecimento, nada. As diferenças são exclusivamente de carácter circunstancial e

operacional, ou seja:

a- se o grau de ameaça ao bem patrimonial é total ou parcial;

b- qual a delimitação da área presumivelmente afetada;

c- quais os prazos para a ação efetiva dos fatores impactantes e a natureza do

empreendimento.

3. O espaço regional e sua relação com o Patrimônio Histórico/Cultural

A elaboração da idéia “espaço regional” baseia-se na constatação de que ele

existe concretamente na natureza; a partir dos métodos da Geografia a ciência o

reconstrói teoricamente, enquanto unidade ambiental, fixando seus limites naturais.

Conforme Ab‟ Sáber (1994), todo espaço geográfico é resultante de uma

acumulação, mais curta ou mais longa, de processos históricos cumulativos,

decorrentes da atuação de múltiplos atores sociais. O que, para êle, se busca entender

é o “espaço total”, pois uma região comporta pluralidade cultural e cronológica, ou

seja, sucessivas paisagens são reconstruídas no tempo.

Nas ciências humanas, os estudos regionais são tentativas de explicar

determinadas manifestações histórico-culturais ou sociológicas ocorridas em uma

conjuntura geográfica delimitada, o que, nem sempre, coincide com uma unidade

ambiental homogênea e contínua. Um espaço emoldurado, necessariamente, reflete as

preocupações e as razões de quem o formulou. As questões científicas são levantadas

a partir de investigações que procuram a lógica de fenômenos culturais localizados.

Não há um tamanho padrão para área regional, sua dimensão é estabelecida pela

extensão de um determinado conjunto de dados que tenham relações entre sí ou pela

equacão do investigador.

Dessa forma, são inúmeras as possibilidades de abordagens científicas sobre

um mesmo contexto espacial, sendo este, como já foi dito, muitas vezes suporte para

vários e diferenciados sistemas culturais, reescrevendo-se, à cada análise, nova

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“cartografia”cultural. A pesquisa regional desvenda essas relações fazendo os cortes

possíveis do que é homogêneo ou verificando as diferenças entre os subconjuntos.

A Arqueologia de Salvamento, devido às suas espeficidades, é, na verdade,

uma “cirurgia de emergência” em uma realidade espacial que se define e se impõe

pelas circunstâncias determinadas pelo carácter específico de um empreendimento, ou

seja, ela constrói, ficticiamente, unidades regionais que não correspondem à efetiva

realidade de um contexto arqueológico constituído. Podemos citar como exemplo o

caso da UHE Porto Primavera, que subdividiu-se em dois projetos de salvamento

arqueológico: o de São Paulo e o do Mato Grosso do Sul, margem esquerda e direita,

respectivamente, do rio Paraná. O mesmo vale também para o caso do Gasoduto

Bolívia/Brasil e sistemas viários de longas distâncias, pois o “transect” não é mais que

“um fio de um largo tecido”, não sendo possível, portanto, somente com os dados da

área impactada, reconstruir as correlações da trama. A somatória de vários projetos de

salvamento ambiental e patrimonial em uma mesma região, associada à continuação

sistemática da pesquisa arqueológica a nível acadêmico, é que poderá completar o

quadro explicativo integral de uma região.

A partir de uma tipologia da ação econômica, a nível regional, e de seus

impactos no meio ambiente, que por sua vez afetam também, muitas vezes, o

patrimônio arqueológico e cultural, elaborada por Ab‟ Sáber (1994), construímos,

com adaptações, um quadro, onde pretendemos estabelecer uma relação entre os

principais impactos ambientais e seus possíveis efeitos no patrimônio histórico e

cultural (v. quadro 1):

Quadro 1 - Atividades econômicas e seu potencial de impacto no patrimônio

cultural

Tipos de

região

Tipos de

empreendimento

Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o

patrimônio histórico/cultural

Naturalou

silvestre

a-Ocupações pioneiras agro-

pastorís em luga-

res favoráveis a assentamentos

coletivos

“Picadas” de acesso; desma-tamentos; queimadas; movi-

mentação superficial do solo para

cultivo agrícola; abertura de poços; instalações de edifi-

cações agropastorís de peque-no

porte; erosão superficial por ravinamento e lixiviação em

taludes de terraços fluviais

Destruição total ou parcial de sítios pré-históricos e etno-

arqueológicos; conflitos étni-cos

com populações indígenas tradicionais.

b-Abertura de

grandes áreas para pastagens e/ou

projetos agrícolas

de grande porte

Desmatamentos; queimadas;

canais de irrigação; açudes; sistema viário vicinal; linhas de

eletrificaçào rural; grande

movimentação mecanizada do

solo; terraplanagem; instala-ções de edificações complexas (sedes,

currais, galpões, seca-deiras,

etc); exposição da superfície a processos ero-sivos;

assoreamento da malha hídrica

vizinha; poluição agro-tóxica

Destruição total ou parcial de

sítios etno-arqueológicos e pré-históricos; descarac-terização de

paisagens de significativa

relevância; conflitos étnicos com

populações indígenas

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c-Instalação de

grandes projetos

de colonização

Abertura de sistema viário

vicinal e linhas de

eletrificação; desmatamentos;

queimadas; urbanização

planejada; grande

movimentação mecanizada

dos solos; terraplanagem de

gran-des áreas; canais de

irrigação; açudes; edificações

urbanas complexas (escolas,

hospitais,etc)

Destruição total ou parcial de

sítios etno-arqueológicos e

pré-históricos; descaracteriza-

ção de paisagens; conflitos

étnicos com populações

indígenas

d- extrativismo vegetal

Abertura de “picadas”; desmatamento da cobertura

primária facilitando processos

erosivos da superfície

Destruição parcial de sítios arqueológicos localizados no

nível da superfície; desca-

racterização de paisagens

naturais

Tipos de

região

Tipos de

empreendimento

Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o

patrimônio histórico/cultural

e- extrativismo

mineral

Abertura de “picadas”; abertu-ra

de estradas vicinais; abertu-ra de

ferrovias; abalos espe-leológicos;

“crateramento” da superfície; grande movimen-tação

mecanizada do solo;

descaracterização geomorfoló-gica; desmatamento; desvios de

sistemas hídricos; edifi-cação de

complexos adminis-trativos;

poluição aérea e dos mananciais

Destruição total de sítios etno-

arqueológicos e pré-históricos;

destruição total ou parcial de

abrigos sob rocha com ins-crições rupestres; destruição de

lajedos com petróglifos;

destruição total ou parcial de monumentos naturais com

carácter simbólico para popu-

lações indígenas; conflitos

étnicos com populações indígenas; destruição de sítios

espeleológicos de significativa

relevância paisagística

f- Grandes projetos

hidrelétricos

Abertura de “picadas”; sistema

viário vicinal; sondagens geofí-

sicas mecanizadas; abertura de

caixas-de-empréstimo; terra-planagem; desmatamento; des-

vio de grandes cursos hídricos;

inundacão de grandes áreas ribeirinhas; erosão progressiva

das bordas do reservatório;

graves agressões à fauna e flora;

complexas instalações industriais nos canteiros de obras;

implantação de núcleos

habitacionais; construções de pontes sobre a rede tributária;

instalação de longas linhas de

transmissão; reflorestamento e implantação de áreas de re-

creação nas margens do

Destruição total de inúmeros

sítios arqueológicos; submersão

de lajedos com petróglifos e

abrigos com inscrições rupestres; submer-são de monumentos

naturais como cachoeiras, barras

de tributários, etc; descarac-terização de paisagens de

significativa relevância e valor

simbólico para populações

tradicionais; deslocamento espacial de populações tradi-

cionais e indígenas;conflitos

étnicos

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reservatório.

g- Dutovias

Abertura de “picadas”; sistema

viário vicinal; sondagens geo-físicas mecanizadas; desmata-

mento integral da área do

“transect”; abertura de vala com significativa incisão pedológica;

canteiros de obras; instalações

industriais de gera-ção de energia

Destruição total ou parcial de

sítios arqueológicos; conflitos étnicos

Tipos de

região

Tipos de

empreendimento

Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o

patrimônio histórico/cultural

h- Rodovias e ferrovias

Abertura de “picadas”; sonda-gens geofísicas; terraplanagem,

aterros e dematamento na linha

do “transect”; caixas-de-empréstimo; asfaltamento e

cascalhamento; canteiros de

obras; processos erosivos dos acostamentos e barrancos;

edificações do sistemas de apoio

e serviços permanentes ao

usuário e ao sistema; pontes e túneis

Destruição total ou parcial de inúmeros sítios arqueo-lógicos;

descaracterização de

monumentos naturais como morros, vales, etc, com valor

paisagístico ou simbóli-

co/cultural; conflitos étnicos

i-Projetos de

desenvolvimento e

sustentação econômica em

áreas indígenas

Desmatamentos; açudes, po-ços;

áreas de plantio; pasta-gens;

sistema viário; instalação de edificações escolares, en-

fermarias e unidades admi-

nistrativas; pistas de pouso

Destruição parcial de sítios

arqueológicos; ruralização do

espaço natural tradicional; des-caracterização da arquitetura

tradicional; destruição parcial ou

integral de áreas de capta-ção de recursos naturais com potencial

de uso cultural (por ex. plantas

medicinais); integracionismo cultural

agrícola a- áreas extensas

de monocultura

agrícola ou pastagens

Desmatamento; esgotamento dos

solos; intensa movimen-tação

mecânica dos solos; assoreamento da rede hídrica;

acentuada erosão pluvial;

poluição agrotóxica dos solos e

águas; eliminação da fauna e flora originais; instalação de

complexas edificações rurais;

açudes e canais de irrigação; abertura de linhas de transmis-

são de energia; pistas de pouso.

Destruição total ou parcial de

sítos arqueológicos;

descaracterização de paisagens de relevância significativa

b reflorestamento Desmatamento da cobertura

vegetal em áreas recuperadas naturalmente; perturbação da

fauna; movimentação intensa da

superfície quando do plan-tio das mudas; erosão acen-tuada da

superfície dos solos e

Destruição parcial de sítios

arqueológicos; descaracterização de paisagens naturais

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assoreamento hídrico.

Tipos de região

Tipos de empreendimento

Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o patrimônio histórico/cultural

c- pólos regionais

de apoio e serviços

Implantação de complexo

sistema viário; grandes áreas de

terraplanagem; multiplica-ção de vilas e povoados; linhas de

transmissão de energia; po-luição

dos mananciais

Destruição total ou parcial de

sítios arqueológicos;

descaracterização de paisagens naturais

urbana a- Grandes obras

de engenharia civil

para insta-lação de

projetos habitacionais,

anéis viários,

canalizações de córregos, distri-tos

industriais,

aeroportos, cen-tros comerciais,

etc; metrô; redes

subterrâneas de

telefonia, sanea-mento e energia

Intensa pavimentação da

superfície; terraplanagem de

grandes áreas; movimentação do

solo em obras subterrâneas; intensa ocupação das áreas

ribeirinhas

Destruição total ou parcial de

sítios arqueológicos históricos,

etno-arqueológicos e pré-

históricos; descaracterização de monumentos arquitetônicos e

artísticos; destruição ou des-

caracterização de paisagens urbanas tradicionais (ruas,

bairros, praças,etc)

turística a-urbanização da

orla litorânea

Desmatamento; abertura de redes

de saneamento básico; poluição

sanitária; terrapla- nagem; fragilização de en-

costas

Destruição total ou parcial de

sítios arqueológicos, princi-

palmente, sambaquis; desca-racterização de paisagens

naturais; “pasteurização” de

populações tradicionais, por ex., colônias de pescadores

b- valorização

turística de áreas

históricas e culturais urbanas

(ex. Olinda,

Corumbá, etc)

Desmatamentos na periferia;

terraplanagens; calçamentos;

poluição dos mananciais; am-pliação do sistema viário;

instalação de complexas

edificações de serviço e apoio ao turismo

Destruição total ou parcial de

monumentos históricos, artísticos

e culturais;destruição parcial ou total de sítios arqueológicos

c- caça/pesca e

ecoturismo

Desmatamento parcial com

abertura de trilhas e edifica-ções

turísticas nas margens de cursos fluviais; alterações em áreas

espeleológicas; pertur-bação da

fauna; queimadas; lixo

Destruição/descaracterização

parcial de sítios arqueológicos

ribeirinhos e abrigos com inscrições rupestres; desca-

racterização parcial de monu-

mentos espeleológicos

Sendo assim, conforme o tipo de empreendimento, ocorrerá uma

alteração em menor ou maior grau na integridade dos sítios arqueológicos de uma

região. Qualquer projeto de pesquisa que pretenda ter uma abrangência espacial

extensiva, deverá considerar as variáveis acima. Qualquer síntese de conhecimento

arqueológico regional, implicará em relevar não só os monumentos mais

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significativos, mas também os dados científicos provenientes dos sítios impactados,

independentemente do seu grau.

4- A avaliação dos impactos de empreendimentos regionais e algumas

considerações sobre medidas mitigadoras

Como já foi comentado anteriormente os critérios para definir uma região são

variáveis, bem como a extensão da mesma. Entretanto alguns projetos, devido ao seu

gigantismo, são evidentemente impactantes a nível regional. Exemplos, tais como a

Hidrovia Paraguai-Paraná, que poderá provocar danos diretos e indiretos em grandes

extensões do Pantanal, gasodutos de longa extensão, grandes barragens como Itaipu,

etc, necessariamente determinam que os projetos mitigadores planejem suas ações em

carácter regional. Nesses casos, muitas vezes, os efeitos chegam a ser transfronteriços.

Sendo assim, alguns parâmetros podem ser estabelecidos como pressupostos

para esse tipo de avaliação, a saber:

Repensar as alternativas ao modelo de desenvolvimento econômico

adotado;

Partir da idéia de que em princípio, todo e qualquer dano deve ser evitado,

e considerar a opção de alternativas para o empreendimento, ou, ao menos, opções

operacionais, por exemplo, no caso do gasoduto, desvios do “transect” quando o

mesmo incidir sobre sítios arqueológicos, no caso de barragens, rebaixamento das

cotas de inundação;

Analisar cada caso como único;

Conhecer e estudar o maior número possível de situações provocadas por

empreendimentos análogos;

A avaliação deve sempre ser produzida numa ótica multidisciplinar,

recorrendo-se e manejando-se os dados temáticos organizados pelos outros ítens

integrantes do EIA/RIMA, ou seja, de forma holística, evitando a compartimentação

do conteúdo, evitando situações do tipo, “o abastecimento energético de uma cidade é

mais importante que salvar os peixes de tal rio”, etc;

1.A seleção do ferramental metodológico deve considerar diferentes

propostas para minimizar o risco reducionista;

O conhecimento da Etno-História regional deve esclarecer a extensão das

áreas culturais e as unidades ambientais com elas relacionadas, verificando-se ainda a

ocorrência de superposições de sistemas culturais, bem como o entendimento da

dinâmica paleo-ambiental;

Os recursos disponíveis e o tempo necessário para os estudos devem ser

compatíveis com a complexidade do empreendimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AB‟SÁBER, A. Z. Bases conceptuais e papel do conhecimento na previsão de

impactos. In: Previsão de Impactos. São Paulo, EDUSP, 1994.

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BEZERRA DE MENEZES, U. T. Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma

avaliação crítica. Texto apresentado no Seminário de Salvamento Arqueológico.

Rio de Janeiro, SPHAN, 1988.

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AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS DE EMPRENDIMENTOS

URBANÍSTICOS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS

Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani

A preocupação com os recursos arqueológicos urbanos é recente. As

complexidades estruturais das áreas urbanas contribuiram, por muito tempo, para que

elas recebessem pouca atenção dos arqueólogos, pois não se acreditava nas

possibilidades de preservação desses recursos. O patrimônio edificado, ao contrário,

devido a sua visibilidade, sempre foi objeto de ações preservacionatistas.

Como reflexo direto dessa visão, com o surgimento da legislação ambiental

brasileira, principalmente da Resolução CONAMA 001/86, as atenções dos

avaliadores dos impactos ambientais têm sido voltadas, prioritariamente, para áreas

não urbanizadas, quando o componente a ser avaliado diz respeito a recursos culturais

não identificados.

Outro fator agravante é que as áreas urbanas apresentam a tendência de

possuir grande número de empreendimentos de pequeno porte, para os quais os órgãos

ambientais não exigem os Estudos de Impacto Ambiental. A Resolução CONAMA

considera, em seu artigo 2°, como empreendimentos que têm seu licenciamento

vinculado aos EIA/RIMA, entre outros, os projetos urbanísticos em áreas com mais de

100 ha ou naquelas consideradas de relevante interesse ambiental.

Surge, aqui, a necessidade de legislações específicas municipais que variem

com o porte da cidade e que sejam mais restritivas do que a Resolução CONAMA.

Papel importante desempenham, então, os planos diretores, as leis orgânicas e outros

instrumentos de planejamento e gestão.

Paradoxalmente, com o aparecimento do conceito de Arqueologia Urbana, a

cidade passa a ser compreendida como um sistema unificado e significante de

recursos materiais, loco de maiores e mais complexas ações antropogênicas, bem

preservadas no registro arqueológico (SALWEN, 1982; STASKI, 1982).

Percebe-se, entretanto, que o patrimônio arqueológico brasileiro ainda recebe

pouca atenção dos responsáveis por estudos e projetos ambientais desenvolvidos em

áreas urbanas, bem como dos próprios órgãos de gestão cultural e ambiental. O

resultado é que, na maioria das vezes, essas ações apenas contemplam o patrimônio

edificado pela sua alta visibilidade e consequente fácil percepção por parte dos

agentes envolvidos nas avaliações.

O art. 5 da Resolução CONAMA, em seu parágrafo único, define que, ao

determinar a execução do EIA o órgão competente fixará as diretrizes adicionais que,

pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas

necessárias.

Entre essas diretrizes, relacionadas nos Termos de Referência, estão os

componentes ambientais considerados relevantes para a elaboração de determinado

EIA. O patrimônio arqueológico e histórico deveria estar sempre presente nesses

termos de referência porque através desses estudos surgem as grandes possibilidades

de descoberta, reconhecimento e proposta de medidas de preservação desses recursos.

Nesse momento, surgem os desafios:

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92

- O que diagnosticar como relevante, se praticamente todo o solo urbano

pode conter vestígios materiais de processos culturais passados? Desse diagnóstico

advém a avaliação de impactos, portanto a definição de critérios para o diagnóstico se

faz de fundamental importância.

- O solo urbano, em grande parte impermeabilizado, não permite sua leitura

direta. Como diagnosticar?

A nosso ver, a aplicação de critérios de significância arqueológica,

associados ao grau de preservação do solo urbano, definiria o potencial arqueológico,

possibilitando o diagnóstico de uma área (JULIANI, 1996b).

O cruzamento desses dados com o risco arqueológico, definido a partir das

intervenções propostas pelo empreendimento em estudo, permitiria a identificação,

valoração e interpretação dos prováveis impactos.

As medidas mitigadoras aplicáveis em áreas urbanizadas, são melhor

viabilizadas se desenvolvidas através de programas, na fase de implantação do

empreendimento. É nesse momento, em que uma nova remodelação da paisagem

urbana exige a demolição do já existente, que o solo pode ser acessado.

Entre as medidas mitigadoras para os recursos culturais a serem afetados por

um empreendimento proposto, os programas desenvolvidos com a participação da

comunidade local na valoração dos bens e no desenvolvimento das ações, mostram a

possibilidade de melhor preservação na fase de operação.

SIGNIFICÂNCIA ARQUEOLÓGICA

A aplicação de critérios de significância arqueológica9 na fase de diagnóstico

possibilita a previsão dos impactos e o planejamento de ações apropriadas de

gerenciamento dos recursos arqueológicos.

Para que esses critérios sejam utilizados de maneira eficaz na gestão dos

recursos arqueológicos, é necessário que se proceda à identificação de todos os

aspectos de significância possíveis, de maneira que se possa prever todos os impactos

e planejar ações apropriadas de gerenciamento.

A avaliação de significância é fundamental para a pesquisa arqueológica,

pois influencia as decisões de quais sítios pesquisar e dos tipos de dados que se deve

coletar. Do mesmo modo, nos planos de gerenciamento arqueológico, auxilia nas

decisões (de preservar, alterar ou destruir recursos culturais) que se baseiam no valor

dos recursos X outras considerações do planejamento.

Embora a importância de um recurso arqueológico possa variar de acordo

com os interesses do pesquisador é imperativo que os arqueólogos envolvidos na

gestão dos recursos culturais avaliem significância além de seus interesses

profissionais imediatos. Faz-se importante, também, que reconheçam que mesmo

sítios pequenos, de superfície e perturbados podem ser fontes de dados arqueológicos

significativos e não devem ser desconsiderados.

9 Conceito altamente discutido pelos arqueólogos norte-americanos, por definir elegibilidade de sítios para o National Register of Historic Places - NRHP, segundo seu valor informativo (UTLEY, 1973).

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93

Fica claro, portanto, que só se pode avaliar o valor de bens arqueológicos

através da formulação de um conjunto completo de questões de pesquisa (MORATTO

& KELLY, 1978).

McMANAMON (1990) utiliza uma abordagem de modelagem em

levantamento em escala regional como auxílio para determinar significância.

Discutindo que a frequência é um aspecto importante na consideração de significância

de bens arqueológicos individuais, aponta o uso do modelo para determinar a

frequência de sítios por tipo, num exemplo de como levantamentos visando

gerenciamento de recursos culturais, modelagem e determinações de significância

podem ser mesclados.

SMITH (1990) sugere a utilização de significância de contexto, isto é, do

modo como um sítio se relaciona com um sistema social mais amplo. Ele defende a

elaboração de site surveys para a abordagem de um sítio individual em termos de suas

associações históricas, pois uma vez que o contexto histórico de um sítio é claramente

compreendido, seu potencial informativo para questões relacionadas àquele contexto

pode facilmente ser definido em termos não ambíguos.

As categorias de significância mais utilizadas pelos arqueólogos norte-

americanos e que vêm gerando altas discussões e ampla bibliografia a respeito

(DIXON, 1978; FOWLER, 1982; GLASSOW,1977; HICKMAN, 1978; LEES, 1990;

McMANAMON, 1990; RAAB, 1977; SCHIFFER & GUMERMAN, 1978 e SCOTT,

1990, entre outros) são apresentadas a seguir:

Significância histórica - Um recurso cultural é historicamente

significante se ele pode ser associado com um evento ou aspecto individual

específico da história (SCOVILL et al., 197210

cf. MORATTO & KELLY,

1978), ou, de maneira mais ampla, se ele pode fornecer informação a

respeito dos padrões culturais durante o período histórico.

Segundo DEETZ (197711

, cf. MORATTO & KELLY, op cit.), um bem que

pode fornecer informação sobre a interação social histórica, o uso do espaço ou sobre

atividades econômicas seria significante. Portanto, o valor de bens históricos depende

principalmente de sua representatividade de padrões culturais e da maneira como eles

podem ser usados para estudar esses padrões (HICKMAN, 1978).

Como as cidades concentram pessoas e ações, muitas facetas do passado

humano de sociedades complexas estão aí melhor representadas. A maior

significância histórica do ambiente urbano relaciona-se ao entendimento de sua

própria evolução, apesar de que tendências históricas como imigração e assimilação,

evolução dos sistemas de transporte e da tecnologia de construção podem ser

considerados significantes (STASKI, 1982).

Apesar da geografia urbana ter desenvolvido modelos de evolução urbana

assumindo processos históricos como causas, estes apresentam certas limitações por

serem baseados nas condições urbanas atuais. A arqueologia, através do estudo dos

registros materiais do passado que refletem o desenvolvimento urbano, pode auxiliar

no entendimento de como ocorreram esses processos.

10 SCOVILL, D.; GORDON, G. & ANDERSON K. - Guidelines for the preparation of statements

of environmental impact on archaeological resources. Tucson: Western

Archaeological Center, U.S. National Park Service, 1972. 11 DEETZ, J. - In small things forgotten. Garden City: Anchor Press, Doubleday, 1977.

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94

Significância científica - “A significância científica envolve o potencial

do uso de recursos culturais para o estabelecimento de fatos e

generalizações confiáveis sobre o passado (MORATTO & KELLY, 1978)

ou sobre as relações entre cultura material, comportamento humano e

cognição (STASKI, 1982). Como os vestígios arqueológicos permitem o

estudo tanto de culturas como de ambientes antigos, a arqueologia pode

ser significante para o avanço tanto das ciências sociais quanto das

naturais” (MORATTO & KELLY, op. cit.).

Os recursos arqueológicos são significantes para as ciências sociais porque

constituem uma base de dados única e não renovável para reconstrução do passado

cultural e para testar proposições sobre o comportamento humano.

No contexto da gestão de recursos culturais de áreas que envolvem risco eminente,

o arqueólogo deve evitar que sua avaliação quanto à significância científica seja

afetada por seus interesses de pesquisa, para que informações relevantes à arqueologia

não sejam perdidas.

Os recursos culturais materiais apresentam-se perturbados nas áreas urbanas,

devido ao uso intensivo e contínuo do solo. A avaliação da natureza e da quantidade

de alterações ocorridas pode fornecer contribuição significante tanto para a

compreensão do fenômeno urbano quanto para a apreciação do potencial da pesquisa

arqueológica em áreas urbanas (STASKI, 1982).

Significância étnica - “Uma entidade arqueológica que tem

importância religiosa, mitológica, social ou outra especial para uma

população distinta é reconhecida como etnicamente significante”. A

significância étnica envolve a importância de certos recursos culturais

para a história e integridade de minorias étnicas (STASKI, 1982).

A percepção intensificada de muitos grupos pelo seu patrimônio cultural, revelado

em sítios arqueológicos, levou a arqueologia norte-americana a dar especial atenção à

conservação desses vestígios.

Recentemente, uma nova atitude vem emergindo, em diversos campos do

conhecimento, nos estudos sobre as sociedades urbanas: aquela que enfatiza a sua

riqueza e diversidade multicultural.

Partindo da premissa de que padrões regulares e contínuos de comportamento

sóciocultural deixam impressões materiais, podemos ser otimistas quanto às

possibilidades de que a arqueologia possa contribuir para a compreensão das

diversidades e similaridades das várias culturas e etnias formadoras da nossa

sociedade atual (JULIANI, 1995).

O ambiente urbano é representado pela concentração de muitos grupos étnicos que

necessitam desenvolver maior resistência na afirmação de sua identidade cultural,

devido ao intensivo e constante contato entre eles. Em tais situações, estes grupos

estão-se movendo juntos, reagindo e ajustando-se uns aos outros, ao mesmo tempo

que caminham através de seu mundo social. Como resultado, os símbolos materiais

de etnicidade e a cultura material representativa do comportamento étnico são mais

visíveis na cidade.

Um dos resultados mais significantes dos trabalhos desenvolvidos na arqueologia

histórica americana, com ênfase em sociedades específicas, tem sido a documentação

de grupos historicamente excluídos em sua própria cultura, fornecendo imagens

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alternativas de identidade nacional daquelas fornecidas pela história escrita. O estudo

das raízes da cultura negra americana é um exemplo (DEAGAN, 1982).

A literatura arqueológica demonstra que a linha de questionamento sobre

heterogeneidade social e étnica vem sendo considerada como de alta relevância para

os estudos de arqueologia urbana e para definir a significância de sítios históricos

visando gerenciamento e conservação, infuenciando na escolha dos sítios a serem

pesquisados e dos dados a serem coletados.

MORATTO & KELLY (1978), discutindo as estratégias utilizadas pelos

arqueólogos americanos para definir a significância de um sítio arqueológico visando

medidas de preservação, realçam a importância das relações entre a arqueologia e a

sociedade atual, através de procedimentos que alcancem as necessidades e desejos do

público.

Ressaltam que, em circunstâncias em que a aculturação foi severa e o saber

tradicional foi esquecido, a arqueologia pode fornecer o único acesso ao patrimônio

de um grupo étnico.

O material disponível para pesquisa documental sobre nossa sociedade, via de

regra, conta a história dos vencedores e quando aborda a questão desses grupos

minoritários, o faz através da visão ideológica daqueles que estavam servindo a seus

próprios interesses e propósitos. Muitos grupos étnicos tem sido tão excluídos da

história escrita e dos conceitos tradicionais de identidade nacional que seu passado

cultural frequentemente está mais preservado na cultura material enterrada no solo do

que nos documentos.

SMARDZ (1995) nos mostra que o patrimônio enterrado na cidade oferece muitas

oportunidades para explorar bairros étnicos e edifícios caracterizados como

monumentos ao trabalho duro e ao desejo de melhoria de vida que sempre

caracterizaram as populações imigrantes.

Outro exemplo pode ser tomado do material encontrado nas escavações

arqueológicas nas sedes rurais coloniais, em São Paulo: a miscigenação entre colono e

índio, formando um elemento especial, o mameluco, que segundo os historiadores, é o

responsável por um modo de ser tão diferenciado do paulista em relação às outras

regiões da colônia, se traduz na cultura material resgatada nesses sítios,

principalmente na cerâmica (JULIANI, 1995).

Significância pública - A discussão de significância pública de sítios

arqueológicos inclui as possibilidades de seu uso na educação sobre os

padrões de comportamento no passado, sobre a maneira como eles podem

ser estudados e sobre os benefícios derivados para o público no estudo e

conservação de recursos arqueológicos. O objetivo é fazer a arqueologia

tanto pública como publicamente relevante.

SMARDZ (1995) nos mostra uma experiência interessante em Toronto, que

demonstra como a arqueologia pode contribuir para a compreensão do

multiculturalismo de uma população urbana, na valoração do patrimônio multicultural

e atuar politicamente no sentido de influenciar uma população etnicamente diversa.

O Departamento de Educação de Toronto desenvolve uma política de compreensão

popular e a apreciação sobre os grupos culturais que auxiliaram na construção da

cidade, visando dar à população um senso de propriedade e valor para os vestígios de

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culturas passadas que são escavados e formar uma geração que considere a

arqueologia como parte habitual da vida de sua cidade.

Os projetos arqueológicos são mais visíveis em áreas urbanas, apresentando,

portanto, maiores possibilidades de contato com o público. Exercem importante papel

político porque a percepção pública leva à valoração e consequente suporte e reforço à

preservação dos recursos culturais.

PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO

O potencial arqueológico de uma área pode ser definido como a

probabilidade de ocorrência de vestígios culturais materiais que apresentem

significância para um dado contexto.

Diversos fatores associados concorrem para a existência dessa probabilidade.

A nosso ver, os mais importantes deles são representados pelos contextos ambiental

e histórico e pelo grau de preservação do solo. Este último é determinante. Mesmo

que uma área possua potencial ambiental e/ou histórico para assentamento humano, se

o solo não foi preservado, é muito baixa a possibilidade de que vestígios

remanescentes de uma ocupação pretérita possam ser encontrados.

As cidades representam, acima de tudo, grandes assentamentos humanos.

Assumindo que a escolha de um sítio para o assentamento urbano tenha levado em

conta suas características ambientais, podemos afirmar que, de uma maneira geral, o

contexto ambiental dessas áreas aponte para a existência de potencial arqueológico. A

própria existência da cidade define seu contexto histórico.

O potencial arqueológico de porções diferenciadas das áreas urbanas ou de

qualquer tipo de espaço geográfico pode variar quanto aos seus contextos histórico e

ambiental, e também com relação aos diferentes padrões de assentamento, em uma

escala temporal.

Mesmo assumindo que a análise destas variações é fundamental para que se

avalie potencial arqueológico, nos concentraremos aqui na discussão do fator grau de

preservação do solo urbano.

Para tal, utilizar-nos-emos de um sistema classificatório de uso do solo

adaptado de STASKI (1982), condizente com o contexto de São Paulo, objeto maior

de nosso interesse (Tabela 1).

Para esse autor, a maior preocupação dos profissionais que atuam na

preservação de recursos arqueológicos em áreas urbanas está relacionada à natureza

dos processos urbanos e seus efeitos sobre o registro arqueológico.

Definindo a cidade como local de grandes e numerosas alterações do solo,

considera as características físicas (os usos atuais do solo e os materiais resultantes

desses usos) para avaliar a possibilidade de ocorrência e o grau de preservação do

registro arqueológico.

Em seu sistema de classificação, utiliza categorias amplas de uso e ocupação

do solo, desenvolvidas para o planejamento urbano. As de maior interesse para o

contexto deste trabalho são: edifícios unifamiliares, edifícios multifamiliares, áreas

comerciais, industriais, de uso público, ruas e vazios urbanos.

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a) Edifícios unifamiliares - a maior estrutura presente neste tipo de

uso é a casa. Pode apresentar espaços não ocupados por construções, o que

parece variar com a classe social a que pertence (bairros residenciais em

áreas com população de maior poder aquisitivo tendem a manter maiores

parcelas de áreas não edificadas).

Este tipo de solo normalmente não apresenta perturbações significantes para

qualquer tipo de registro arqueológico, uma vez que as modificações da superfície não

são grandes neste processo de construção.

Portanto, os bairros recentes com este tipo de uso do solo são propícios à

ocorrência de vestígios pré-históricos e os bairros antigos, que mantiveram seu uso,

também mantém seu próprio registro arqueológico.

Em ambos os casos, a preservação do solo arqueológico é considerada

excelente.

Percebe-se, entretanto, que a prática recente de loteamentos e construção de

condomínios residenciais foge um pouco a essa regra. Como são planejados para um

máximo aproveitamento do solo, podem utilizar serviços de terraplanagem para

otimizar sua implantação, gerando uma alteração topográfica do terreno, que é um

grande fator de destruição do solo original. Por outro lado, por ocuparem grandes

áreas, geralmente são localizados em áreas de expansão urbana, que até sua

implantação apresentavam solos preservados (não urbanizados).

Apresentam, portanto grau de preservação variável, dependendo dos

impactos que tenham sido gerados sobre a superfície original do terreno.

b) Edifícios multifamiliares - as estruturas presentes são

representadas por edifícios residenciais, onde o uso do solo é intensivo e

são poucos os espaços não construídos.

Quanto maior o edifício, mais profundas são suas fundações e, portanto, mais

destrutivas. De maneira geral, o grau de preservação do registro arqueológico é baixo.

c) Áreas de uso comercial - áreas com prédios e fundações de

relativo porte, com poucos espaços não edificados e com subsuperfície, via

de regra, perturbada.

Como os distritos comerciais geralmente localizam-se no centro espacial da

cidade, seu baixo potencial de preservação do solo pode ser compensado pelo seu

potencial de fornecer dados sobre os períodos históricos da ocupação urbana.

A prática recente de localização de centros comerciais fora dos distritos

centrais, como os shopping centers, altera um pouco esse padrão.

Apesar de serem construções que alteram substancialmente o subsolo,

possuem grandes áreas livres, representadas pelos estacionamentos de superfície, que

podem manter uma boa preservação do registro arqueológico.

Embora STASKI (1982) considere que este uso do solo urbano possua grau

de preservação de vestígios arqueológicos geralmente baixo, no nosso contexto

podemos considerá-lo variável.

Tomando os centros comerciais tradicionais da cidade de São Paulo como

exemplo, percebemos que os edifícios destinados a tal uso não se diferenciam, em

porte, daqueles utilizados como residências. Os centros comerciais mais modernos,

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principalmente aqueles caracterizados como centros econômicos (como a região da

Avenida Paulista), mais se aproximam da categoria definida por esse autor.

Consideramos, portanto, essas áreas com grau de preservação variável,

dependendo de sua especificidade.

d) Áreas de uso industrial - locais onde matérias primas são

exploradas ou processadas. Essas áreas são as de maior grau de variação da

intensidade de uso do solo e de perturbação do registro arqueológico.

Variam desde áreas com solo não perturbado (reservas industriais) até

completamente destruído (áreas de exploração de recursos minerais).

Os distritos industriais antigos são áreas de alto potencial para a arqueologia

industrial (tanto os de processamento como os de exploração de matérias-primas).

Os distritos industriais recentes apresentam grau de preservação variável,

dependo do tipo de uso industrial. Esse grau de preservação do solo é inversamente

proporcional ao risco de destruição de vestígios arqueológicos (que é evidente nas

reservas industriais).

e) Áreas de uso público - incluem todos os locais a que a

população em geral tem acesso (áreas de lazer) e também as de uso semi-

público (escolas). As ruas foram classificadas em uma categoria à parte,

devido à sua configuração espacial diferenciada. A maior parcela dessas

áreas é de propriedade pública.

Áreas de lazer - são representadas por parques, jardins e praças públicas.

São áreas originalmente não ocupadas, destinadas, através de planejamento

público, a esses usos. Por essa razão, mantém um alto grau de preservação do solo e

não apresentam risco de destruição, por serem, via de regra, consideradas áreas de

preservação ambiental.

Escolas - apresentam áreas edificadas de porte, bem como grandes áreas não

construídas, destinadas ao lazer e ao esporte.

O grau de preservação do solo é variável mas, se possuirem potencial

arqueológico, podem apresentar alta significância para propósitos educacionais.

f) Ruas - representam um tipo especial de solo de uso público,

singulares em sua distribuição e ocupando uma porção considerável da

paisagem urbana. Com exceção das grandes vias expressas, cuja construção

gera grandes alterações na superfície do solo (serviços de terraplanagem),

as ruas apresentam pouca perturbação do solo original. Essa perturbação

está condicionada à utilização de seu subsolo por serviços de infraestrutura

urbana (dutos e cabos elétricos).

Apresentam grau de preservação do solo de médio a alto.

g) Vazios urbanos - classificadas como áreas não utilizadas para

qualquer finalidade.

São representados por parcelas remanescentes na malha urbana, por áreas

que não são propícias à ocupação (devido às suas características ambientais) e pelas

reservas urbanas (vazios temporários, localizados especialmente nas áreas de

expansão urbana, reservados para especulação imobiliária).

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Como essas áreas permanecem sem alterações em suas características

originais (com exceção das não propícias à ocupação), seu solo apresenta excelente

grau de preservação para vestígios arqueológicos. Por outro lado, como a demanda

urbana é crescente, grande parcela destas áreas será, provavelmente, utilizada.

Portanto, elas podem ser consideradas de alto risco arqueológico.

Mesmo as áreas não propícias à ocupação, quando localizadas em áreas de

ocupação histórica, podem conter vestígios de antigos lixões.

f. Áreas rurais - são as parcelas pertencentes ao município ainda

não alcançadas pela malha urbana. Embora STASKI (1982) não considere

este tipo de uso em sua classificação, o consideramos de extrema

importância no nosso caso, visto que São Paulo ainda mantém parcela

considerável de seu território como de uso rural, especialmente em seu

extremo sul.

Estas áreas apresentam solos bem preservados, usados principalmente para

agricultura, podendo ser definidos como de alto grau de preservação. Uma parcela

permanece sem uso, ainda com vegetação original.

Embora a legislação de uso e ocupação do solo não permita a sua destinação

para fins urbanos, esta área vem sendo paulatinamente ocupada por grandes

loteamentos irregulares, sem planejamento, que geram grandes problemas ambientais

para o município. São, portanto, áreas de alto risco arqueológico, principalmente se

considerarmos que é aí que ocorre a maior probabilidade de se encontrar vestígios de

uma ocupação pré-colonial do território, já que elas ainda mantém um bom grau de

visibilidade.

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100

GRAU DE PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO

Categorias de uso e

ocupação do solo

Estruturas presentes Grau de

perturbação

do solo

Preservação do

solo

arqueológico

Edifícios unifamiliares casa

espaços não edificados

baixo excelente

loteamento

espaços não edificados

médio a alto variável

Edifícios

multifamiliares edifícios residenciais

poucos espaços não

construídos

alto baixo

Áreas de uso edifícios de porte alto baixo

comercial recente estacionamentos baixo alto

Centros comerciais

antigos

edifícios de pequeno porte baixo alto

Áreas de uso

industrial

áreas de exploração de

recursos minerais

alto baixo e nulo

distritos industriais variável variável

reservas industriais baixo alto

Áreas de lazer

(áreas de preservação

ambiental

parques

jardins

praças

baixo alto

Escolas

(alta significância para

propósitos

educacionais)

edificações de relativo

porte

grandes áreas não

edificadas

variável variável

Ruas infra-estrutura urbana

(dutos e cabos elétricos)

médio a

baixo

médio a alto

Vazios urbanos parcelas remanescentes na

malha urbana

reservas urbanas

baixo alto

Áreas rurais atividades agrícolas

vegetação original

baixo alto

loteamentos irregulares variável variável

Tabela 1 (adaptada de STASKI, 1982)

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PESQUISA E MONITORAMENTO

Um exemplo de metodologia utilizada em área urbana coberta por ruas

pavimentadas e edificações pode ser extraído de OSTROGORSKY (1987), para a

cidade de Seattle (USA). Esse autor utilizou uma abordagem que considerou a

correlação entre alteração física e social do terreno, em avaliação de potencial

arqueológico de área que seria afetada pela construção de um corredor subterrâneo

para ônibus (The Downtown Seattle Transit Tunnel Project).

A evolução urbana de Seattle foi marcada por um grande nivelamento da

topografia original (documentado historicamente), através do qual o traçado urbano

original foi destruído por cortes ou coberto com espessas camadas de aterro.

Por tratar-se de área edificada, os métodos tradicionais de prospecção

arqueológica (verificação de superfície e sondagens) se mostraram impraticáveis.

Assim, em sua avaliação, OSTROGORSKY utilizou dados obtidos em prospecções

geotécnicas para desenvolver perfis de solo que revelaram as áreas aterradas que

poderiam conter recursos arqueológicos associados.

Segundo DICKENS & CRIMMINS (1982), o levantamento e monitoramento

arqueológico de obras de impacto ambiental requer o desenvolvimento de um plano

multiestágio e multidisciplinar (Tabela 2). Essa metodologia, aplicada em São Paulo

no monitoramento arqueológico da área afetada pelas obras de prolongamento da

Avenida Faria Lima, mostrou-se de alta eficiência (JULIANI, 1996a, 1996b).

Num primeiro estágio, o de pré-construção, seria realizada pesquisa

documental e de história oral. Então, hipóteses seriam levantadas para elaboração do

projeto de pesquisa. Ainda nesta fase, um levantamento de campo, identificando

estruturas visíveis (geralmente arquitetônicas) com realização de sondagens em

possíveis áreas não edificadas, auxiliariam no escopo do projeto.

Na segunda fase, o estágio de demolição e construção, seriam desenvolvidas

as ações de monitoramento e mitigação. Áreas já ocupadas que sofrem novas

interferências precisam antes ser demolidas. O acompanhamento da demolição pode

revelar estruturas sobrepostas e é importante para que possíveis estruturas enterradas

não sejam danificadas pelas máquinas.

Nesta fase, é importante que se obtenha um intervalo entre a demolição e a

construção, para realização de testes arqueológicos no terreno e aplicação de técnicas

arqueológicas para coleta de materiais e registro de estruturas. É ainda nesta fase que

se deve decidir pela possível preservação de estruturas evidenciadas, dependendo de

sua significância e das possibilidades oferecidas.

No estágio pós-construção, seriam realizados os estudos complementares à

pesquisa e a elaboração de relatório.

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102

EMPREENDIMENTOS URBANÍSTICOS

Plano Multiestágio

FASE AÇÕES

PRÉ-IMPLANTAÇÃO

(Diagnóstico e Avaliação

de Impactos)

Pesquisa documental

História oral

Levantamento de campo

– identificação de estruturas visíveis

(geralmente arquitetônicas)

– sondagens em áreas não edificadas

(dependem da possibilidade de acesso)

Levantamento de hipóteses

Aplicação de critérios de significância

Avaliação dos impactos arqueológicos

Elaboração de programas de monitoramento e resgate

IMPLANTAÇÃO

(Medidas

mitigadoras:

monitoramento e

resgate)

DEMOLIÇÃO

Acompanhamento da demolição

– pode revelar estruturas

sobrepostas

– evita que as mesmas

sejam danificadas

PRÉ-

CONSTRUÇÃO

Testes no terreno - aplicação de

técnicas arqueológicas

– identificação e resgate de

materiais arqueológicos

– registro de estruturas

– decisão sobre possível

preservação de estruturas

evidenciadas (depende da

significância e/ou das

possibilidades oferecidas)

PÓS-CONSTRUÇÃO

Estudos complementares à pesquisa

Elaboração de relatório

Tabela 2 (adaptada de DICKENS & CRIMMINS, 1982)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme SALWEN (1982), levantamentos compreensíveis, identificando

locais prováveis e delimitando áreas “sensíveis”, tornaram-se a chave para o

planejamento, para a preservação histórica e para a pesquisa arqueológica urbana.

Esses levantamentos também fornecem os contextos que fazem possível avaliar a

significância de manifestações arqueológicas individuais.

Desta maneira, caberia aos órgãos de gestão do patrimônio cultural, através

de uma política de ação preventiva, definir critérios gerais para avaliação da

significância arqueológica das áreas urbanas. Caberia a eles, ainda, desenvolver

instrumentos que possibilitem uma avaliação mais detalhada da significância e do

potencial arqueológico de áreas urbanas específicas. Os cadastros, os inventários de

áreas potenciais, o zoneamento e as cartas arqueológicas constituem ferramentas

indispensáveis para o diagnóstico e avaliação de impactos em áreas sob risco

arqueológico (CALDARELLI, 1992 e 1993; JULIANI, 1993, 1994/95 e 1996b).

A partir dessas diretrizes gerais, os responsáveis por projetos em áreas

específicas da cidade terão melhores condições de avaliação, com base em

conhecimentos prévios desenvolvidos para um contexto mais amplo.

Torna-se ainda fundamental que investimentos sejam realizados na

percepção pública dos recursos arqueológicos. A significância pública pode exercer

papel relevante na reversão da visão dos empreendedores e órgãos de gestão

ambiental, que ainda consideram as áreas urbanas como de baixo potencial

arqueológico.

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106

DEBATE

Coordenadora: Dra. Tania Andrade Lima - Museu Nacional/UFRJ

Relator: Marcos André Torres de Souza - IGPA/UCG

Antecedendo os debates, falou o Sr. Damião Maciel Guedes, representante

enviado oficialmente ao simpósio pelo Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos

Hídricos e da Amazônia Legal, para expor as alterações que estão sendo propostas

no Sistema de Licenciamento Ambiental, com vistas a tornar mais eficiente a atuação

dos órgãos de meio ambiente. Sugeriu-se que as conclusões do simpósio sejam

incorporadas às discussões que vêm-se desenvolvendo no âmbido do Ministério.

Tania Lima - O representante do Ministério Público da Paraíba, Glauberto Bezerra

solicita uma intervenção.

Glauberto Bezerra - Sobre a iniciativa do ilustre professor do Mato Grosso do Sul,

eu gostaria de fazer uma ponderação. No que diz respeito ao Patrimônio Cultural e aos

bens arqueológicos, a Constituição, no seu artigo 216, constitui como bem da União

que tem de ser preservado, e o artigo 20 da mesma carta magna, da Constituição

Cidadã, fixa indelevelmente que Patrimônio Arqueológico é bem da União. Toda

legislação infra-constitucional também referenda exatamente a defesa desses bens

arqueológicos e também a Resolução n° 1 do CONAMA, que foi incorporada pela

Constituição Federal, alarga, inclusive, seu contexto. Então, a interpretação tem de ser

extremamente alargada, mesmo que não tenha os termos tecnologia, hidrovia ou

quaisquer outros termos. Nós conversávamos há pouco que qualquer supermercado

que venha a ser construído em um sítio de preservação que se saiba e que possa ter um

impacto na área ambiental e arqueológica ou cultural tem que contar com a presença

do arqueólogo. Veja bem, para instrumentalizar isso aí, o povo, sem nenhum custo

processual, pode e deve acionar a instituição pública, no sentido de devolver a

construção ou alguma construção que venha impactar. O artigo 5 da Constituição,

inciso 73, fala da ação popular, que é gratuita, e o cidadão deve e pode tentar mais,

muito mais do que isso. Nós temos conseguido algum sucesso no estado da Paraíba

nesse âmbito, exatamente pela união dos organismos e das instituições. Aqui no caso,

nós aconselhamos, em função da nossa experiência, a união dos conselhos e, como

todos nós somos formadores de opinião, tentar fazer com que haja aglutinação das

instituições não governamentais nesse sentido. Fiquei feliz também com a iniciativa

da professora no sentido de que nem precisa que haja tombamento de uma

determinada área para que essa área possa e deva ser preservada juridicamente. Em

João Pessoa, nós temos o ponto mais oriental das Américas e essa área é considerada

pela população como bem histórico, patrimônio ambiental. Pretende-se construir e

edificar naquela área e, mesmo não estando tombado legalmente e com todo processo

concluído, nós conseguimos, judicialmente, impedir construção na área. Se em Roma

se diz habemos Papa, no Brasil se diz habemos Legis. Leis nós temos à vontade. O

importante então é instrumentalizá-las, é usa-las contra aqueles que não respeitam o

cidadão por inteiro. Muito Obrigado.

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Gilson Martins - É muito gratificante saber que o Ministério Público, através de seus

agentes regionais, tem dado esse salto de qualidade na sua consciência do patrimônio

histórico. Apenas queria fazer um esclarecimento, não é nem a título de retificação e

sim de retomar um pouco a minha fala que, talvez por falha minha, não tenha sido

clara. Quando eu disse que existem lacunas ou omissões na legislação do CONAMA,

eu estava refletindo sobre isso por causa da seguinte preocupação: a partir do

momento que se conhece e publica a ciência de um sítio arqueológico em algum

lugar, realmente não há dúvida de que a Constituição, como lei maior, já protege ou

pelo menos nos dá o devido suporte legal para executar alguma ação protecionista. A

minha preocupação durante a exposição era numa outra possibilidade: é quando o

empreendimento não está previsto no elenco citado na legislação CONAMA e,

portanto, não citado, o empreendedor pode se sentir à vontade para dar início à obra,

fazê-la sem que a área possa ser conhecida arqueologicamente. Eu quero dizer que

pode haver situações em que não se sabe da existência do sítio arqueológico e, não

sendo pedido o EIA/RIMA, não se vai saber nunca e, depois do empreendimento

concluído sobre o sítio arqueológico, talvez, nunca mais se saiba mesmo. Então é

importante aumentar o espectro de abrangência do texto legal, justamente para

prevenir estas situações.

Não precisa ser só um grande empreendimento, às vezes um pequeno

empreendimento como um supermercado, um posto de gasolina pode estar atingindo

um desses sítios de grande significação científica e patrimonial. Então, minha

preocupação é que esse tipo de obra, como não está incluída na lei, o executante pode

fazê-la sem pedir uma autorização, um reconhecimento prévio se existe ou não sítio

arqueológico. A minha idéia é que talvez, quando se faz uma solicitação de licença

para uma construção qualquer, ou uma reforma de um edifício, de um domicílio

urbano e se faz aquela licença na Prefeitura, que existisse algum dispositivo de

verificação se nesse lugar poderia ter ou não algum sítio arqueológico. Se eu sei que

tem o sítio, eu sei que não precisa estar no CONAMA, basta se basear na

Constituição. Agora, quando não se sabe se tem o sítio, e o CONAMA não pede que

esse tipo de empreendimento apresente o EIA/RIMA, a grande função do estudo do

impacto ambiental, podemos chamar também de diagnóstico, é fazer vir à tona à

existência ou não do sítio arqueológico. A partir do momento em que o EIA é

elaborado, ele detecta a possibilidade de ter o sítio ou não; por isso, eu acho que ele é

fundamental, mesmo que a lei superior prescinda dele neste caso. Então, minha

preocupação vai um pouquinho além; são esforços comuns no sentido de aperfeiçoar e

atingir os mesmos objetivos.

Lucia Juliani - Eu só queria complementar, colocando que instrumentos de

planejamento e medidas preventivas devem ser utilizados para que isso não aconteça.

Na verdade, só podemos recorrer ao ministério público se um sítio é conhecido na

área de intervenção de uma obra de menor porte. A construção de um supermercado,

por exemplo, só vai mostrar que o sítio existe na hora que as obras começarem. O

órgão municipal de preservação pode adotar medidas preventivas através do

levantamento de áreas potencialmente arqueológicas, utilizando critérios de

significância etc e tal. Esse levantamento da cidade poderia estar definindo áreas mais

sensíveis, áreas de maior probabilidade de ocorrência de vestígios arqueológicos, que

seriam objeto de legislações mais restritivas. Por exemplo, o zoneamento. A Lei

Orgânica do Município de São Paulo, em um de seus artigos, diz que as obras que

ocorrerem em sítios arqueológicos devem ser monitoradas e acompanhadas por

arqueólogos. Na instrução desse artigo, pretendemos substituir o termo “sítios

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arqueológicos” por “áreas de interesse ou de potencial arqueológico”, a serem

definidas pelo órgão de preservação do patrimônio cultural municipal; serão utilizados

critérios de significância para definir essas áreas. Seria uma maneira de tentar resolver

essa questão. Não se faz necessariamente a exigência de um EIA para uma área tão

pequena, o que oneraria demais o proprietário do empreendimento, mas algo

especificamente direcionado ao patrimônio arqueológico.

Tania Lima - Passamos a palavra à representante do Ministério Público do

Amazonas, Maria José da Silva Nazaré.

Maria Nazaré - Em primeiro lugar, eu quero cumprimentar os organizadores do

evento pelo brilhantismo da palestra. Eu escrevi a minha questão, que diz que todo

advogado que pede um aparte faz um discurso à parte. Então, para fugir disso e dar

chance a todos que façam seus questionamentos, eu redigi a pergunta e dirigi para a

doutora Solange e acho que ela é abrangente a todos na mesa.

Pela Resolução n°1/86 do CONAMA, quem analisa e determina a execução ou

não do estudo prévio do impacto ambiental (RIMA) é o Órgão Estadual do Meio

Ambiente, que também é um Órgão licenciador, o que se encontra citado logo no

parágrafo único do artigo primeiro (..) Pelo posicionamento da mesa, qual seria o

embasamento legal para o IPHAN participar desse licenciamento, em discordância

aos licenciamentos concedidos pelo Órgão Estadual do Meio Ambiente? Essa é a

questão para o debate.

Eu deixo como sugestão, talvez como advogada e promotora de justiça, aos

técnicos e especialistas na área, que fosse incluído no documento final que sairá desse

simpósio, aproveitando a informação do representante do Ministério do Meio

Ambiente, que se destinasse um tópico para rever a questão do patrimônio histórico-

cultural, de uma forma geral, na fase de licenciamento. Pela resolução do CONAMA,

só o órgão estadual pode exigir o estudo prévio de impacto ambiental, quando outros

órgãos como o IPHAN, que é o órgão administrativo que analisa essas questões, ficam

totalmente de fora. Entretanto, nós sabemos que, nos órgãos estaduais, a maioria das

questões são sucateadas e, quando muito, a equipe tem engenheiro florestal, biólogo,

engenheiro civil e um químico. Desconheço se tem arqueólogo.

Solange Caldarelli - Respondendo à questão da Professora Maria José da Silva

Nazaré, eu gostaria de dizer que, na verdade, a Resolução CONAMA 01/86 abre a

possibilidade de que o arqueólogo participe desde o início do processo de

licenciamento, o que não significa que ele esteja sendo chamado efetivamente. A

participação do IPHAN neste processo parece-me ser clara. Eu não posso fazer

pesquisa arqueológica se o IPHAN não autoriza. Então, a inter-relação IPHAN e

órgão ambiental (muitas vezes o órgão ambiental não tem isso claro) está fixada em

lei. Para verificar o interesse arqueológico, a relevância arqueológica de uma área que

vai ser impactada, é necessária a autorização do IPHAN. O IPHAN é uma instituição

que está diretamente interessada neste processo e que pode intervir junto ao órgão

licenciador, o que não quer dizer que se esteja fazendo uso sempre dessas

possibilidades, mas elas estão previstas.

Quanto ao documento final, essa questão já foi já prevista.

Glauberto Bezerra - Só para complementar, a portaria n° 7 do IPHAN diz que o

procedimento necessário de solicitação para pesquisa é o seguinte: o pedido de

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permissão será feito através do requerimento de pessoa natural ou jurídica privada que

tem interesse em promover as atividades escritas no n° 1. Além do pedido feito ao

Órgão Ambiental do Meio Ambiente, também deveria ser ouvido outro órgão

ambiental que fosse federal ou passar a competência para um órgão estadual.

José Luíz de Morais - A fala do colega do Ministério do Meio Ambiente, Sr.

Damião, é de extrema importância, porque todo momento de alteração de alguma

coisa é um momento perigoso, porque a coisa pode ser alterada para bem ou pode

ficar um pouco pior. Eu sugeriria também que, para a emissão dessas sugestões, o

Fórum visse alguma possibilidade de parceria com o IPHAN. O IPHAN é o órgão

oficial, mas eu acho que o respaldo do Fórum viria bem a propósito nesse sentido e

teria uma discussão de profissionais, uma proposta que até o IPHAN poderia

encaminhar apadrinhando isso, mas com a participação efetiva de arqueólogos.

Essa proposta, que sairia dessa parceria com o Fórum, deveria, dentre outros,

atentar para três aspectos que eu considero extremamente importantes e que podem

ser explicitados ou na próxima resolução do CONAMA ou então em qualquer outro

documento infra resolução, mas assim do tipo ordem de serviço para os órgãos

licenciadores ambientais que estão em níveis de estado. O primeiro aspecto é a

questão da significância, em termos de impactos positivos e negativos, que deveria ser

regulamentada. É um assunto perigoso porque o empreendedor pode fazer uma leitura

da significância e o arqueólogo certamente fará outra. Outra questão discutida é tudo

que se refere a projeto urbanístico. Eu chamo atenção, inclusive, para uma pequena

distinção muito sutil, mas que é válida - é a questão da reurbanização e a questão do

empreendimento urbanístico. O município é plenamente autônomo para aprovar o

loteamento ou fazer certas exigências em relação ao loteamento e, sendo assim,

muitas vezes, a grande maioria dos municípios e principalmente municípios médios e

pequenos, agem como pequenas Repúblicas, muitos até por uma questão de não saber,

não conhecer a Lei 6.766 que disciplina isso. Até mesmo essa lei faz referência à

arqueologia. O artigo 13 da 6.766 diz que uma aprovação do loteamento, pelo

município, depende da anuência prévia do estado, em alguns casos, e menciona as

áreas de interesse arqueológico. A própria lei diz que essas áreas têm de que ser

definidas por lei e elas nunca foram. Quem vai dizer se uma área é de interesse

arqueológico ou não ? Eu acredito que, nesse caso, também deveria haver uma

parceria muito concreta. O IPHAN (exceto para Goiás, que está no entorno do Distrito

Federal) é muito longe, para as realidades municipais. Todos os municípios brasileiros

são regidos por leis orgânicas que se espelham na Constituição; então, todos os

municípios vão colocar, no âmbito das competências comuns com a União e com os

Estados, a proteção do patrimônio arqueológico. Está portanto na lei (eles é que não

sabem bem o que fazer com aquilo) e ela só precisa ser instrumentalizada para ser

cumprida.

Especificamente, eu acho que tem que ser explicitado que o patrimônio

arqueológico tem uma condição especial, ele é bem de uso comum do povo brasileiro,

é um bem da União. Então, a questão da urbanização deveria ser contemplada. A

resolução do CONAMA até menciona, mas ela fala de loteamento com área superior a

um milhão de metros quadrados. Ora, a maior parte dos loteamentos não tem essa

extensão.

E um terceiro aspecto que eu gostaria que fosse contemplado é a questão do

federalismo cooperativo, que está em todo o espírito da Constituição. A Constituição

brasileira simplesmente espelhou uma realidade mundial, que é o fortalecimento dos

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governos locais. Eu acho que nas etapas de licenciamento a comunidade local - por

comunidade entenda-se a sua administração e o seu corpo comunitário - deve ser

ouvida. A Solange mencionou o esquema que nós estamos adotando em parceria, é

uma parceria entre arqueologia de contrato e arqueologia acadêmica que está se

desenvolvendo na UHE/Piraju. A comunidade é muito forte e ela pode ser a mola

propulsora que faz os órgãos oficiais agirem. No caso UHE/Piraju, o empreendedor

está encomendando o terceiro EIA/RIMA, porque dois iniciais ainda não foram

aceitos por pressões da comunidade local. Ninguém é contra o desenvolvimento, nós

somos contra aquele projeto, cujo custo para a comunidade é muito elevado.

Solange Caldarelli - Realmente, essa questão da parceria com o município de Piraju

foi uma prova de que ela pode ser extremamente eficiente. Agora, os municípios nem

sempre têm clara essa questão. Eu queria me reportar à fala da Célia Corsino

afirmando que os departamentos do IPHAN resolveram realmente se preocupar com

essa questão - em especial, o Departamento de Identificação. Eu acho que é uma

questão de educação ambiental e uma questão de educação patrimonial. Em alguns

municípios que eu conheço, mesmo quando existe essa preocupação, isso não tem

criado uma linha sólida de atuação, que passe de gestão para gestão. Já Piraju está

extremamente consciente, não se faz nada lá se a comunidade não aprova, mas tem

muito a ver com a atuação muito sólida que você teve lá dentro, não é, José Luiz?.

José Luiz de Morais - Exatamente. Eu acho que é papel da universidade municiar os

municípios, porque ela atua muito no interior e nós não podemos esquecer que ela faz

docência, pesquisa e extensão. Só que os pesquisadores e professores das

universidades acham que o filé mignon é docência e pesquisa, aliás, muito mais

pesquisa que docência, talvez. E a questão da extensão e serviços à comunidade, a

questão da devolução social do que a universidade produz, é extremamente

importante. Não custa a um arqueólogo que está trabalhando em um determinado

local e que tem o mínimo de conhecimento de gestão de patrimônio chegar nas

prefeituras e informar as possibilidades que eles teriam, a partir do momento em que

tenham uma legislação que suplemente a Legislação Federal e a Legislação Estadual.

Os municípios são bem receptivos quanto a isso.

Eurico Miller - Normalmente esses órgãos estaduais não tem arqueólogos no seu

corpo para julgar EIAS e RIMAS, isso é um grande problema. Não sei a quem cabe,

se é ao IPHAN, mas isso é uma lacuna que tem de ser sanada com urgência. Alguns

falam em termos de município, eu falo em termos de estado. No Acre, Mato Grosso,

Rondônia, Amazonas, Roraima que não tem arqueólogo, mesmo que tenha um órgão

representante do IPHAN, nós estaremos perdendo o patrimônio cultural que encosta

nos Andes e tem influência em todo o ambiente sul-americano. Nós temos que agir,

achar alguma fórmula de começar a exigir do governo. Que ele não desmantele o

IPHAN, como eu sei que está incentivando o pessoal a se demitir - daqui a pouco não

existirá um arqueólogo governamental e a nossa força vai ficar menor ainda.

Tania Lima - Com a palavra o representante do Ministério Público de São Paulo,

Daury de Paula Júnior.

Daury de Paula - Eu gostaria de colocar duas questões. A primeira diz respeito à fala

do representante do Ministério do Meio Ambiente, comparando o sistema americano,

no qual se exige a responsabilidade pessoal do presidente da companhia (o que é

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exigido lá porque a legislação deles é inferior à nossa e isso exige responsabilidade

subjetiva) à legislação brasileira, que é mais moderna, sendo aqui a responsabilidade

objetiva. Aqui vai uma advertência, com todo o respeito aos senhores que trabalham

com arqueologia de contrato - essa responsabilidade é extensiva ao órgão que fizer o

estudo que deu embasamento à empresa. É uma questão de ordem legal, que eu acho

que precisa ser colocada. O nosso ordenamento jurídico, nos aspectos legais, não pode

ser comparado com a legislação alienígena.

Outro aspecto que me causou bastante preocupação também envolve aspectos

jurídicos e diz respeito à arqueologia de salvamento, no que se refere ao sítio

localizado. Como já foi colocado aqui pelo colega da Paraíba, pelo professor membro

da mesa, quando o sítio está localizado não precisa de proteção nenhuma porque ele é

bem da União, é bem de uso comum do povo. Então, esse aspecto é de natureza

constitucional e nenhuma lei, nenhuma norma administrativa e muito menos a

resolução CONAMA, ou qualquer ato do órgão de licenciamento ambiental, pode

afetar desrespeito ao sítio localizado. É legalmente impossível se admitir hipótese de

mitigação. Se ele for localizado, ele tem de ser explorado. Eu não quero entrar nos

aspectos técnicos, naquilo que seja suficiente para que ele seja considerado explorado,

se 20%, 10%, de que modo, isso é a área dos senhores, que, como eu disse, estão

sujeitos à responsabilidade, se não agirem dentro da ética, dentro da melhor técnica.

Uma última consideração que eu gostaria de fazer diz respeito à questão da

arqueologia urbana, dos fatos que acontecem na cidade. É sobre os aspectos de

mensuração no valor do sítio arqueológico de relevância. Esses critérios, que são

técnicos para os senhores, para mim que sou promotor de justiça do meio ambiente e

para qualquer um do povo que queira exercer a ação popular são importantes porque

justificam a concessão de medida liminar. Eu vou citar um exemplo da Aldeia de

Pinheiros. Seria plenamente possível que o Ministério Público da capital ou a

prefeitura do município de São Paulo entrasse com ação civil pública com pedido de

medida liminar para que fosse realizada a prospecção em toda a área. Isso também

decorre da responsabilidade objetiva.

Tania Lima - Com a palavra a professora Lylian Coltrinari

Lylian Coltrinari - Eu tenho duas perguntas, sugestões, que gostaria de dirigir à

Solange e à Lúcia. A primeira é quanto à questão da relevância.

O que você acha de, se no lugar de se pensar em enfatizar a relevância do sítio

do ponto de vista cultural, você enfatizasse, quando for possível, e quando for

especificamente necessário, por exemplo, a preservação da estratigrafia, não só a

estratigrafia arqueológica, mas a dos depósitos sedimentares, dos solos

"pedológicos"? Você teria não só o lado arqueológico -cultural, mas também algo que

é de extrema importância para a geologia do Quaternário, que é a reconstrução

ambiental. O sítio pode ser, às vezes, um poderoso argumento para sustentar hipóteses

ou certificar algumas evidências já existentes sobre registros locais de mudanças

ambientais.

Eu falo isso porque conheço estudos internacionais, no Japão, na França, África,

onde aconteceram simultaneamente a prospecção arqueológica, as pesquisas de

palinologia, paleontologia, geomorfologia... Esse é o motivo que me leva a sugerir

que esse trabalho poderia ter apoio de alguém que entendesse de estratigrafia

geológica. Isso é importante não só para o arqueólogo, como também para o

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conhecimento das mudanças ambientais do Quaternário. No Brasil precisamos demais

desse tipo de evidência, por conta da dificuldade em encontrar locais que possam

fornecer informações objetivas sobre o que aconteceu do ponto de vista

paleoambiental, e não mais suposições ou hipóteses genéricas.

A segunda questão é a respeito de um fato em São Paulo que eu considero um

crime do ponto de vista ecológico e da preservação. É o caso da cratera de Colônia,

onde existe um depósito único, com registros datados do final do Pleistoceno. A área

da cratera está tombada, de fato, mas foi invadida, existem até prédios, e está sendo

literalmente arrasada. Existem a teoria, as regras para se formular propostas de

estudos de impacto, o problema é a prática. Mas há ocorrências mais sérias: São Paulo

não se ateve a nenhuma regra, a nenhum método em termos de crescimento, portanto

penso que seria a hora de os municípios que formam a grande São Paulo se

associarem. A grande São Paulo já produziu uma auréola de degradação brutal em

todos os sentidos. Acho que o cinturão todo, e qualquer canto vazio dentro da grande

São Paulo deveria ser prospectado, porque não sabemos o que pode acontecer hoje ou

amanhã. Se Guarapiranga, por exemplo, é uma tragédia do ponto de vista ecológico

por causa da invasão das áreas de mananciais, é, em grande parte, porque foi

permitida a destruição das evidências do passado, cultural e geológico. Menciono São

Paulo como poderia citar Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou outros casos. Moramos

em cidades que têm problemas específicos, que são próprios das cidades do mundo

tropical úmido, semelhantes aos que existem na Índia, no sudeste da Ásia. Alguns

estudos de geomorfologia aplicada já identificaram as fases dessa degradação e o que

ocorre em nossas cidades pode ser comparado com o acontecido nas cidades do

sudeste da Ásia (...)

Solange Caldarelli - Antes de responder à Dra. Lylian, eu queria falar ao Dr. Daury

que nós usamos muito pouco o Ministério Público (nós temos que usar mais e

melhor), que suas questões serão amplamente discutidas na última mesa redonda e

que elas foram extremamente pertinentes.

Lylian, quanto à questão de enfatizar a preservação da estratigrafia, eu não

mencionei tudo que é possível. Quanto à questão do gasoduto da Petrobrás, incorporar

um geólogo para o conhecimentos das mudanças ambientais no quaternário, deveria

ter sido previsto pelo técnico que fez o EIA, que não era arqueólogo. Esse

empreendimento poderia ter sido aproveitado para uma série de estudos e eu lamento

que os técnicos em geologia e geografia que fizeram parte da equipe multidisciplinar

que fez o EIA não tenham previsto isso. O que se pode fazer, agora, é pedir à

Petrobrás que os incorpore, mas não tem como impor à PETROBRÁS que pague isso,

porque isso nem foi colocado no EIA. A arqueologia não pode responder por tudo, eu

posso recomendar uma preservação de um perfil estratigráfico desde que ele tenha

algum interesse arqueológico.

Eduardo - A construção de gasoduto é como uma fábrica, se constrói uma média de 2

Km por dia. Eu acho que isso tem de ser pensado e repensado por quem quer que seja,

interessado em observar algum buraco.

Solange Caldarelli - Eu conversei com o engenheiro para poder apresentar a

proposta; agora, a questão do quaternário fica para os quaternaristas.

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Lúcia Juliani - Eu queria fazer um comentário a respeito do que a Dra. Lylian

Coltrinari colocou, que é pertinente. É um problema sério o que ocorre em São Paulo

e acho que é recorrente em outros grandes centros urbanos. A questão da “Cratera de

Colônia”, para quem não conhece, é a seguinte: trata-se de uma estrutura formada

pelo impacto de um corpo celeste, provavelmente um meteorito ou um cometa,

conforme estudos desenvolvidos na área. Ela é imensa, tem 2 Km e, se não me

engano, 300 m de diâmetro e uma profundidade de 400 e tantos metros. Está

preenchida por sedimentos quaternários, apresentando alta importância do ponto de

vista científico, como um nicho ecológico especial. Ela pode ser importante também

do ponto de vista arqueológico. É uma área plana cercada por uma elevação anômala,

circular, definida pelo ponto de impacto. Está em processo de tombamento municipal,

mas apresenta loteamento e ocupação irregular anteriormente ao tombamento. Outras

legislações de proteção incidem sobre a área, que é considerado zona rural e está

inserida na área de proteção aos mananciais. Segundo esses instrumentos, jamais

poderia ser loteada. O tombamento é mais um instrumento aplicado sobre a área, que

não que não etá surtindo nenhum efeito.

O processo de invasão é organizado por uma união de favelados, com

lideranças politicamente influentes. É uma problemática específica de muito difícil

solução. Uma nova tentativa que se está fazendo é a criação de uma APA - Área de

Proteção Ambiental - no sul do município, pensando na problemática da “Cratera de

Colônia” e de outros loteamentos irregulares, que vêm-se desenvolvendo numa

velocidade enorme na área, com desmatamento. Há uma proposta, que já foi

submetida ao Conselho de Meio Ambiente municipal e aprovada. Os estudos estão

sendo desenvolvidos e, dentre eles, foi proposto o zoneamento arqueológico da área.

A Secretaria do Meio Ambiente está tentando conseguir recursos para

desenvolvimento desses estudos, mas nada garante que isso vá refrear a ocupação

irregular. Na verdade, não temos nenhuma lei que controle esse processo; a Prefeitura

só tem controle sobre as ações regulares, sobre o que é pedido e não sobre o que não é

pedido e feito clandestinamente. Na verdade, alguma ação tinha de ser feita. A área

dos mananciais, por exemplo, tem um consórcio que se chama “SOS Mananciais”,

entre a Prefeitura, a Secretaria do Meio Ambiente e outros órgãos ambientais. Eles

monitoram a área permanentemente, estão sempre em campo, apontam e multam

irregularidades. Na verdade, na prática, a coisa é muito complicada, porque o

planejamento ou não existe ou vem muito tardiamente. A cidade aprendeu a crescer

dessa maneira. É uma coisa a se pensar, é uma reflexão a se levar adiante.

Tania Lima- Eliete Maximino

Eliete Maximino - É para a Solange e não é uma pergunta, é mais uma dúvida. Com

relação às avaliações dentro do processo do EIA, quando o pesquisador entrega ao

empreendedor o relatório, ele tem alguma forma de controle do fim que esse

empreendedor dará a esse relatório, ou, se o pesquisador não tem, o IPHAN tem ?

Solange Caldarelli - Grande parte dos relatórios que são apresentados no final dos

EIAs tem sido absolutamente desrespeitada e a Fernão Dias é um caso desses. Quando

eu penso o quanto me esfalfei, com as poucas horas destinadas à pesquisa

arqueológica, para desenvolver uma metodologia de pesquisa que permitisse

estabelecer critérios eficazes para avaliação dos impactos, de uma forma a que

levantamentos complementares posteriores fossem obrigatórios, em função da

extensão da área potencialmente arqueológica ameaçada, para, depois, ficar sabendo,

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pelo pessoal de Minas, que isso simplesmente não ocorreu nos trechos em que a

rodovia começou a ser construída em Minas Gerais. Em São Paulo, houve maior

respeito às recomendações feitas no EIA. Em Minas, ao menos até o momento, isso

aparentemente não aconteceu, o que representa uma prova cabal de que meu relatório

não surtiu o efeito almejado, foi praticamente inócuo. Talvez ele funcione como um

documento que permita aos arqueólogos mineiros moverem ações contra o DNER, ou

os empreendedores, ou ambos em conjunto. Sem uma pressão mais forte, no entanto,

ele vai continuar sendo desrespeitado e o patrimônio arqueológico sendo ignorado e

destruído. Pelo que eu saiba, a duplicação da rodovia se deu na parte mais próxima de

Belo Horizonte, o resto ainda não foi mexido; portanto, ainda dá para agir. Seria o

caso de o IPHAN, de posse do documento, também tomar uma atitude a respeito.

Posso ainda relacionar outros casos, como Porto Primavera, por exemplo.

Foram feitas descobertas interessantíssimas na área, que vão ser relatadas na outra

mesa, de recursos intangíveis, pela Emília Ulhôa Botelho. Nada daquilo que foi

recomendado, no entanto, foi seguido, embora o trabalho tenha sido extremamente

elogiado. O que se quer não é um diagnóstico bonito e sim que os estudos e

recomendações que constam do EIA tenham efeito real.

Eliete Maximino - E quais as sanções?

Solange Caldarelli - Quais as sanções é uma questão para o Direito. Agora, se o

IPHAN quiser participar, tem como. O problema do IPHAN é que ele está acordando

para a questão ambiental agora. Ainda não há uma política centralizada do órgão, que

oriente as coordenações regionais sobre como agir. A minha opinião é que precisa ter

mais técnicos no órgão, mais arqueólogos, gente que possa ir atrás, exercer o poder

que ele tem. Legalmente, ele é competente para isso, para interferir no processo de

licenciamento.

Tania Lima - Walter Neves

Walter Neves - Nós estamos explicitamente pegando uma carona com o Sistema

Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional do Meio Ambiente, que tem um

órgão secular, que é o IBAMA, cujo conselho tem resoluções entre as quais esta, cujo

impacto de existência nos últimos 10 anos nós estamos discutindo. Pessoalmente, eu

acho que nós devemos trabalhar no sentido de pegar a melhor carona possível e é isso

que esse simpósio está tentando fazer - melhorar a acuidade da coisa arqueológica

dentro do contexto ambiental.

Preocupa-me profundamente o fato de nós não termos um sistema nacional de

bens culturais ou patrimônio cultural, de não haver um conselho nacional de bens

culturais, temos um órgão secular.

Tania Lima - Me permita: uma Política Nacional de Bens Culturais.

Walter Neves - Isso é o de menos, quando houver essas coisas, obviamente vai haver

uma política. Nós temos um braço secular parecido com o IBAMA, que é o IPHAN,

mas isso aí não esta dentro de um sistema que tenha um conselho, tenha resoluções.

Pessoalmente, até com moral provisória, acho que é uma boa coisa nós continuarmos

pegando uma carona na questão ambiental. Eu acho que há 15 anos atrás, antes de

haver toda essa onda de preservação e valorização da biodiversidade, também não se

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sonhava ter um Sistema Nacional de Meio Ambiente, ter um Conselho Nacional de

Meio Ambiente e ter resoluções como as que temos agora, que depois inclusive foram

incorporadas à Constituição. Acho que devíamos trabalhar em dois sentidos. Num

primeiro sentido, assegurar que continuemos pegando a melhor carona possível nos

estudos de impacto ambiental, forçar para que nós tenhamos não uma resolução que

obriga a um estudo de impacto ambiental, mas uma resolução que obriga a um estudo

de impacto sócio-cultural. Isso causa problemas práticos terríveis, porque obviamente

a escala que produz impacto na biodiversidade é muito diferente da escala que

provoca impacto sobre a sóciodiversidade. Eu duvido que o impacto de 10 x 10 m

comprometa qualquer tipo de sucessão e evolução da biota, exceto se você destruir

exatamente os 10 m em que esta envolta a árvore onde tem a única ararinha azul

remanescente; é um caso excepcional. Agora, uma área de 10 x 10m pode afetar o

conhecimento de uma sóciodiversidade passada. É hora (eu já escrevi vários

documentos para a UNESCO, nesse sentido) de mostrar que sóciodiversidade e

biodiversidade são dois lados de uma mesma equação e não adianta termos conselhos

nacionais, resoluções nacionais, órgãos seculares que de fato estão tomando conta da

biodiversidade se nós não tivermos o correspondente paralelo referente à

sóciodiversidade. A coisa só ocorre quando detonada por uma questão ambiental,

porque não se pode detoná-la simplesmente por uma questão sócio-cultural. Devemos

continuar trabalhando no sentido de pegarmos a melhor carona possível dentro desta

conquista que nós já fizemos de cidadania. A cidadania de fato, nós, arqueólogos,

vamos estar exercendo, quando tivermos para as questões sócio-culturais, para as

sóciodiversidades, os mesmos mecanismos e os mesmos instrumentos que o país já

conseguiu com referência à biodiversidade.

Tania Lima - Rossano Bastos.

Rossano Bastos - Eu tenho ouvido o problema da descoberta do sítio arqueológico, se

ele foi ou não encontrado. O sítio arqueológico é protegido pela Lei 3.924,

independente de estar descoberto ou não. O capítulo quarto das descobertas fortuitas

(nós que trabalhamos no patrimônio histórico tratamos assim) afirma que a posse e a

salvaguarda dos bens de natureza arqueológica e pré-histórica constituem, em

princípio, direito do estado. A descoberta fortuita de qualquer elemento de interesse

arqueológico e pré-histórico, histórico, artístico ou numismático deverá ser

imediatamente comunicada ao IPHAN e o proprietário ou ocupante do imóvel onde

ocorreu o achado é responsável pela sua conservação. Então, não adianta agora tirar

uma resolução ou mais uma complementação para a legislação, só porque não está

escrito no texto constitucional. A Lei 3.924 já é suficiente, junto com a portaria 07 e

com a Constituição Federal, para a proteção devida do patrimônio arqueológico. O

que existe é um grande problema de entendimento da legislação. Eu não sabia que o

sítio arqueológico existia, então, por isso, eu o destruí. Nós temos de ter o cuidado de

não estarmos nós mesmos arranjando subterfúgios para defender os outros, que estão

arrasando com o patrimônio arqueológico. Devemos esperar do estado e do município

uma ação não concorrente, mas concomitante, uma ação complementar e suplementar

no sentido de equacionar esse problema, da preservação e da conservação de sítios

arqueológicos. Isso em todos os âmbitos, inclusive no âmbito urbano, porque é

impensável hoje, nos projetos de governo que aí estão, ampliar os quadros do IPHAN

ou contratar serviços de um arqueólogo em cada regional, o que seria o ideal. Deve-

se é procurar instrumentalizar os estados e municípios, no sentido de arranjar os

parceiros ideais. Isso porque o sítio arqueológico que está em São Paulo está em São

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Paulo, não em Katmandu, o sítio arqueológico que está em Belo Horizonte está em

Belo Horizonte, não está em Florianópolis e a população local é que tem que se

aproveitar disso. Esses bens são de alcance social, são da União, quer dizer, união de

todos, então, não faz sentido a União ficar emitindo muitas resoluções no momento

em que a tendência é valorizar a comunidade, resgatar os bens intangíveis e valorizar

o poder de decisão local, para se poder democratizar e fazer com que esses bens

atinjam definitivamente a cidadania. Logo depois da Constituição de 88,

instrumentalizamos municípios com leis municipais (como no litoral de Santa

Catarina) no sentido de cooperar e dividir essa responsabilidade que o IPHAN não

consegue, às vezes, cumprir. Na própria legislação há essa abertura para os estados e

municípios serem os parceiros ideais, porque são eles que estão lidando com a

realidade local. É principalmente o município que detém a legislação de parcelamento

do solo e isso é fundamental na questão do licenciamento de qualquer imóvel. Se o

prefeito tem lá alguém, se existe uma legislação, um aparato da educação patrimonial

preparado para isso, ou em preparação, fica mais fácil caminhar na direção da

preservação do patrimônio cultural, do que simplesmente achar-se o seguinte: existe

uma legislação, existe um órgão, agora eu passei ali e vi um sítio arqueológico sendo

destruído, mas isso é problema do IPHAN, eu lavo minhas mãos, no máximo dou um

telefonema avisando. É necessário se apropriar tanto da legislação como da

responsabilidade de cidadão para proteger o patrimônio histórico.

Chegou a hora de se fazer parceria com municípios, estados e com a

própria população no sentido de resgatar o patrimônio, porque se for só meia dúzia de

iluminados e arqueólogos para fazer essa preservação vai ser um fracasso geral.

Solange Caldarelli - Estou plenamente de acordo: em nenhum momento aqui se

pensou em pedir para o IPHAN aparecer em qualquer sítio ameaçado; não são os

casos pontuais que estão em debate. A maior parte das exposições, aqui, tratou de

grandes empreendimentos e de grandes destruidores, com muito poder. Aí nós

precisamos de uma sólida diretriz de ação do IPHAN, para agir frente aos grandes

impactadores.

Rossano Bastos - Todas as áreas merecem ser preservadas e há dever legal para isso.

A diferença está em quando se faz o empreendimento, em quando se aprova o

EIA/RIMA. Esse é o tema em debate. Aproveitando o gancho, eu acho que a carona

da arqueologia é indissociável da ambiental. O meio ambiente cultural é um dos itens

do meio ambiente como um todo, o que talvez precise ocorrer é o IPHAN deixar de

ser IPHAN e ser um dos departamentos do IBAMA, para que participe diretamente da

questão ambiental.

Tania Lima - Maurício Taan.

Maurício Taan - Eu quero dizer que o empreendedor exerce a cidadania tanto quanto

vocês. Quando ele está trabalhando para algum projeto determinado pela União e que

tem a ver com outros tipos de pessoas que não aquelas que viveram há muito tempo

mas que vivem hoje, quando está desenvolvendo sua tarefa, ele não é um destruidor.

Por exemplo, quando se tem um projeto da União e se dispõe de uma área para se

fazer uma usina de energia elétrica, então o projeto não é do empreendedor, o projeto

é dado a um empreendedor para que o faça. Então é chamado um dos empreendedores

da União ou do Estado, no caso a SERPES ou FURNAS, para que realize alguma

coisa aprovada no Congresso Nacional. Se a região, ao mesmo tempo, tivesse reserva

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de ouro ou manganês, poderia ter debates sobre se está sendo feito o melhor uso

daquele local e, não tendo, fazendo a hidroelétrica, ou tem que se aproveitar o

manganês e o ouro ou tem que se preservar isso ou aquilo. Eu quero deixar claro o

seguinte: quem determina o projeto não é o empreendedor e como ele, às vezes, é a

pessoa mais próxima, você o vê como agente da destruição, quando, na verdade, o

agente da destruição vem de uma decisão tomada por um Congresso Nacional, eleito

por todos nós.

Então, quando se determina um empreendimento dessa natureza, mesmo que

se faça tudo certinho, o EIA/RIMA muito certo, pode ocorrer que, nos trabalhos de

prospecção, se encontre um sítio, uma coisa de valor inestimável. Tem-se que parar e

discutir a questão porque ali, às vezes, podem estar um bilhão ou dois bilhões de

dólares já alocados. Então a própria sociedade tem de discutir se ela vai em frente ou

não. Agora se há somente valores absolutos, vai ficar mais fácil discutir. Por exemplo,

esbarrei nisso, então, não faz, acaba. A sociedade não somos só nós que estamos

sentados aqui, a sociedade é bem mais ampla. Eu quero dizer que exerce-se a

cidadania tanto cuidando do patrimônio histórico-cultural, ou, como muitos

desenhistas, atrás de uma prancheta fazendo uma chaminé de equilíbrio. Eles não são

agentes destruidores, simplesmente estão trabalhando oito horas por dia, recebendo

um salário para fazer aquele trabalho. Eles atendem a quem? A maioria dos projetos é

aprovada pelo Congresso Nacional, então, é uma coisa imposta pela União, que

chama profissionais para fazer o seu serviço. Talvez tenhamos lutas desiguais entre

empreendedor e quem fiscaliza, talvez tenhamos uma nova etapa do Ministério

Público, agora muito atuante.

A questão maniqueista vai ser a pior do mundo; não é mocinho, não é bandido,

todo mundo está precisando de um insumo, todo mundo precisa preservar o

patrimônio. É preciso buscar a questão do desenvolvimento sustentável onde ela

estiver e trazer discussões que vão permear tanto a questão arqueológica, a de

mercado de trabalho, como a de disputa de poder dentro de uma sociedade, enfim, mil

coisas, porque nós somos seres humanos e somos afeitos a essas questões todas.

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3ª MESA-REDONDA:

ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE

PROGRAMAS DE RESGATE E MONITORAMENTO DE

BENS PRÉ-HISTÓRICOS E HISTÓRICOS

COORDENAÇÃO:

Dra. Solange Bezerra Caldarelli

Scientia Consultoria Científica

Consultora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

EMÍLIA MARIKO KASHIMOTO

Mestre em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (Área de

Concentração: Arqueologia)

Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

USP

Pesquisadora contratada pela FAPEC-UFMS

Professora responsável pelas disciplinas “Geomorfologia” e “Antropologia”, no curso de

Geografia da UCDB

Coordenadora do “Projeto Arqueológico Porto Primavera, MS” - CESP/UFMS

Pesquisadora convidazda do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico de Serra da Mesa, GO” - Furnas/UFGO

Pesquisadora convidada do grupo de pesquisa arqueológica “O Conteúdo Paleoetnográfico

da Décima Região” - FCT/UNESP.

DILAMAR CÂNDIDA MARTINS

Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo

Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo

Coordenadora científica do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico da Usina

Hidrelétrica de Serra da Mesa, GO”, desde 1995 - Furnas/UFGO

CARLOS MAGNO GUIMARÃES

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais

Doutorando em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Professor Assistente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais

Coordenador do “Projeto de Salvamento Arqueológico Histórico da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, GO‟, desde 1995 - Furnas/UFMG

MARIA DO CARMO MATTOS MONTEIRO DOS SANTOS Bacharel e licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo

Mestranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo

Atua como arqueóloga na área ambiental desde 1986, em projetos de regularização de

Áreas de Proteção Ambiental e em Estudos de Impacto Ambiental de empreendimentos

rodoviários, ferroviários e hidrelétricos, desenvolvendo atividades de levantamento e de

resgate do patrimônio arqueológico e histórico

Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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O USO DE VARIÁVEIS AMBIENTAIS NA DETECÇÃO E RESGATE

DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS ARQUEOLOGICAMENTE

POUCO CONHECIDAS

Emília Mariko Kashimoto12

A pesquisa arqueológica de contextos amplos tem seus limites definidos a

partir de fatores culturais - a área abarcada por uma determinada cultura ou uma de

suas unidades de estabelecimento -; naturais, relativos ao ambiente físico, como uma

bacia hidrográfica ou compartimento de relevo; ou “arbitrários”, não enquadrados

nas categorias anteriores (PLOG, et alii 1978).

As duas primeiras categorias são usuais na delimitação de universos de

pesquisas acadêmicas, considerando-se que a Arqueologia visa, em essência, a

descrição e classificação da forma dos vestígios antrópicos, a análise das funções

destes testemunhos materiais e, posteriormente, a interpretação de processos

culturais envolvidos (SHARER & ASHMORE, 1979); necessitando,

fundamentalmente, da interdisciplinaridade com as ciências afins.

Esses objetivos também são pertinentes ao salvamento arqueológico, que

particulariza-se, apenas, por abranger áreas de dimensões específicas, correspondentes

à superfície impactada pela obra, sendo que esta também determina o tempo

disponível para a execução da pesquisa (BEZERRA DE MENEZES, 1988; MORAIS,

1990).

Dessa forma, as pesquisas arqueológicas de salvamento, decorrentes de obras

de engenharia, são elaboradas na conjunção de cronogramas específicos, tanto do

empreendedor da obra, quanto dos pesquisadores e Instituições/Empresas correlatas -

responsáveis pelo “produto” científico -, assim como do IPHAN, fiscalizador dos

trabalhos.

Tal fato contribui para a dinâmica específica de cada pesquisa de salvamento,

com retroalimentação entre etapas de trabalho, reavaliações frequentes e alterações

em procedimentos previstos, teoricamente, no projeto de pesquisa original, exigindo

grande disponibilidade de tempo por parte da equipe de pesquisadores efetivos.

Paralelamente, deve-se considerar que cada projeto tem um desenvolvimento

singular, em função das características ambientais e possibilidades de acesso à área -

relacionadas às formas de relevo, estado de conservação das estradas, índice de

desmatamento, navegabilidade dos cursos fluviais, entre outros -, diferenciadas em

cada espaço pesquisado.

Assim, um projeto numa área arqueologicamente pouco conhecida, e,

principalmente, com poucos estudos de detalhe do ambiente físico, tende, num

primeiro momento, às atividades de campo voltadas ao reconhecimento de variáveis

ambientais locais, relacionadas a sítios arqueológicos, permitindo um melhor

delineamento das hipóteses norteadoras da pesquisa. Neste contexto, as amostragens

probabilísticas sobre a totalidade de uma área, tendem a ser opções passíveis de serem

1Pesquisadora associada à FAPEC-UFMS, professora da UCDB, doutoranda em Arqueologia na

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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aplicadas após o reconhecimento destas variáveis ambientais associadas a dados

arqueológicos (CUSTER et alii, 1986).

Uma abordagem geoarqueológica, entendida enquanto “contribuição das

Ciências da Terra, especialmente Geomorfologia e Petrografia Sedimentar, para a

interpretação e reconstituição ambiental de contextos arqueológicos”

(GLADFELTER, 1977), auxilia o entendimento da localização dos sítios numa

determinada paisagem, tratando de temas como a influência das formas de relevo nos

padrões de assentamento humano, análises da formação de sítios arqueológicos e suas

transformações subseqüentes. O estudo abrange entrevistas com a população local,

para uma ampla inserção espaço-temporal destes sítios, estabelecendo relações entre

registros arqueológicos e históricos, sendo estes relativos ao povoamento da área e

alterações no meio ambiente, pretéritas e atuais.

A pesquisa arqueológica possui duas etapas básicas de campo: detecção de

sítios, ou seja, levantamento em contextos ambientais amplos; e resgate, que

centraliza-se em estudos de detalhe de sítios, em profundidade, por meio de

escavações científicas.

1. DETECÇÃO

A percepção das variáveis ambientais arqueologicamente relevantes

embasam a seqüência da pesquisa, sejam elas aplicáveis na cobertura total (“Full-

Coverage”), que consiste no caminhamento em todas as parcelas acessíveis do

terreno, seguindo intervalos espaciais determinados conforme as características da

área (PARSONS, 1990); ou na definição de áreas-teste para levantamento intensivo,

por amostragem, com abertura de cortes de verificação do solo. Em ambos os

encaminhamentos, é interessante a verificação em áreas que não aparentam potencial

arqueológico, para não se localizar apenas o que se procura.

O levantamento, ou detecção de sítios arqueológicos, por cobertura total,

priorizando áreas favoráveis selecionadas, também é definido de acordo com a

disponibilidade logística de cada projeto e características ambientais locais. Possui

como procedimento básicos o caminhamento em setores selecionados, realizando-se

cortes de verificação e coletas comprobatórias de material antrópico ou do contexto

ambiental em geral. A navegação, quando possível, constitui importante veículo de

levantamento, pois permite observações da topografia, em geral, e das variações sutís

de declividade do terreno, por conseqüência, o acesso às partes mais elevadas, a partir

do curso fluvial, além de frequentemente representar meio de locomoção mais rápido

em relação às estradas de rodagem.

A análise preliminar de bibliografia visando, particularmente, o levantamento

de dados da Etno-história regional, bem como resultados de outras pesquisas,

arqueológicas ou ambientais, realizadas em áreas próximas, permite estudos

comparativos e a delimitação de parâmetros de ocupações pretéritas da área,

considerando suas relações com a paisagem.

Paralelamente, o estudo do material cartográfico, fotos aéreas e imagens de

satélite, visando a investigação de variáveis ambientais, a definição de técnicas a

serem aplicadas, bem como o planejamento geral dos trabalhos de campo, representa

importante apoio ao direcionamento da pesquisa, uma vez que proporciona uma

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percepção ampla da área enfocada, e suas transformações, considerando períodos

diferentes.

Tais atividades preliminares podem ser drasticamente abreviadas em função

da compatibilização com os cronogramas dos incrementadores da pesquisa, acima

citados, do tempo disponível e das estações do ano de menores índices

pluviométricos, mais favoráveis aos trabalhos de campo.

As variáveis ambientais de relevância arqueológica são específicas a cada

contexto pesquisado. Entretanto, particularmente com relação a sítios a céu aberto,

destacam-se, com freqüência, alguns referenciais ligados à hidrografia e à

geomorfologia, como:

- área de foz de afluente;

- diques marginais expressivos;

- margens contígüas às corredeiras, favoráveis à captura de animais aquá-

ticos, principalmente em períodos de vazante;

- margens fluviais de topografia favorável ao acesso ao fluxo d’água

corrente, não associadas a “brejos”, que são frequentemente utilizadas como

“bebedouros” de gado;

- margens fluviais próximas a ilhas;

- ilhas fluviais;

- terraços fluviais preservados da inundação de cheias periódicas, princi-

palmente em margens côncavas;

- margens de lagoas;

- área de afloramento do substrato no leito fluvial, com perspectiva de

“ancoradouro” e favorecimento à pesca;

- bancos de deposição sedimentar na margem do curso fluvial, por vezes

associados a cascalheiras, formando “praias”, que favorecem o

embarque/desembarque, assim como o acesso vertente acima;

- elevações topográficas em áreas de várzea, marcadas por vegetação

arbórea diferenciada do entorno, que, por vezes, são interpretadas como aterros;

- terraço ou média vertente de declividade suave, em relação ao entorno,

mais favoráveis ao assentamento, estando protegidos da maior intensidade dos

ventos, em relação às porções mais elevadas do relevo;

- colos, ou seja, depressões que se destacam na linha de crista de serras,

sugerindo áreas de passagem;

- topo suavemente aplainado de colinas de dimensões menores, em relação

ao conjunto topográfico local;

- áreas de afloramento de matéria-prima, como cascalheiras, ou depósitos

naturais de seixos; locais de afloramento do substrato possuidor de diques de rochas

aptas ao lascamento fino, como o arenito silicificado (MORAIS, 1983), etc.

Em ambientes fluviais, é interessante a análise em períodos de cheia e de

vazante, para observar variações na cobertura vegetal e possibilidades de acesso a

áreas específicas.

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Com relação a sítios em abrigos sob rocha, que podem conter inscrições

rupestres, alguns parâmetros, ainda no âmbito das ciências ambientais, se destacam

como instrumentos potencialmente indicadores, por exemplo, levantamentos de áreas

calcáreas, ocorrências espeleológicas, relevos residuais de composição arenítica,

formações geomorfológicas de cuestas ou furnas, além de análises toponímicas

(“itacoatiaras”, “morro dos letreiros”, etc.) e das tradicionais informações orais.

Pode-se acrescentar ainda, a necessidade de verificação de ocorrências de lajedos

extensos ou grandes blocos rochosos isolados no terreno, que podem ser suportes para

inscrições rupestres.

Sítios arqueológicos podem estar parcialmente alterados ou, por vezes,

destruídos por agentes erosivos desencadeados pela ação antrópica recente, fato que

não os exclui da pesquisa, uma vez que fornecem dados importantes à análise de uma

determinada área. Dentre estes agentes, pode-se destacar o desmatamento, pastagem

ou culturas anuais, alterações em vazões fluviais, e edificações em geral.

Paradoxalmente, as feições produzidas acabam funcionando como “variáveis

ambientais” a serem vistoriadas nas observações de campo, ou seja, linhas de

barranco ou outros processos evidenciadores de camadas do solo, como, por exemplo:

- sulcos, ravinas e voçorocas, sendo que os primeiros podem ser produzidos

pelo pisoteio do gado, que, inclusive, produz os “bebedouros” fluviais;

- erosão fluvial, que atua por entalhe lateral, notadamente nas margens

côncavas;

- erosão laminar das enxurradas, evidenciadora de camadas arqueoló-gicas;

- edificações de sedes de propriedades rurais, sendo que as mais antigas,

cujas implantações visaram o aproveitamento dos respectivos cursos fluviais

próximos, navegáveis e proporcionadores de água potável, preferencialmente

piscosos, estão, portanto, em áreas favoráveis à ocorrência de sítios arqueológicos;

- cortes no terreno produzidos por estradas;

- áreas de extração de sedimentos, ou “caixas-de-empréstimo”, onde a

abertura de extensos perfis pode evidenciar níveis arqueológicos, como, por exemplo,

os sítios MS-PD-02 e MS-PD-03, possuidores de nível lítico a aproximadamente 1,5

m de profundidade, localizados no âmbito do “Projeto Arqueológico Porto Primavera,

MS”13

As observações nas áreas supra-citadas não excluem a abertura de cortes de

verificação, por vezes denominados sondagens, e retificações de perfis, fundamentais

na detecção de sítios não erodidos, ou seja, que não apresentam exposição de material

arqueológico na sua superfície. Tais sítios são localizados com a abertura intensiva

destes cortes e perfis, em amplas superfícies, selecionadas a partir de variáveis

ambientais de relevância arqueológica, acima citadas.

2. RESGATE

As variáveis ambientais auxiliam a inserção espacial de sítios arqueológicos,

sua contextualização em relação à área total e zonas ambientais, assim como a análise

13 Projeto desenvolvido a partir do contrato CESP/FAPEC-FUFMS, de nº 99000-94000/0143.

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de relações entre alterações ambientais e registros arqueológicos. Tal entendimento,

aliado à análise do material arqueológico advindo das coletas comprobatórias da etapa

de detecção, permite a seleção de sítios mais representativos, e menos alterados, a

serem escavados.

A análise geoarqueológica de variáveis ambientais, contemporâneas e

pretéritas, no decurso das escavações arqueológicas centraliza-se em alguns ítens,

listados a seguir, a partir da adaptação da proposta de HASSAN (1979):

- Confecção de cartas topográficas, ou de localização, dos sítios e das

estruturas arqueológicas, cuja análise final visa contribuir para o entendimento de

contexto de formação e utilização dos recursos ambientais.

- estudos da estratigrafia regional, com o registro de perfis de solo dos sítios

arqueológicos e demais contextos intra-sítios, aliado a análises sedimentológicas em

laboratório, que incluem o tamanho das partículas, taxas de pH, cálcio, etc. Tais

procedimentos visam interpretar as variações que ocorreram no ambiente sedimentar,

desde a formação do sítio, até o momento da pesquisa.

- análises geomorfológicas, auxiliadas pela confecção de perfis topográficos.

O enfoque estratigráfico pode evoluir para medições de deslizamentos de solo e taxas

de sedimentação, obtendo-se índices de mudança das formas de relevo no sítio ou

área em estudo, por processos ambientais como inundações, enxurradas,

deslizamentos, períodos de seca prolongada, etc, visando reconstituir a seqüência de

eventos ocorridos desde a deposição dos vestígios pelas populações pretéritas, até o

momento da pesquisa arqueológica: a formação do sítio e do arranjo espacial das

atividades humanas nele desenvolvidas; o abandono do local por estas populações;

transformações posteriores que modificaram os dados arqueológicos, como fluxos de

enchente que transportam material, ou animais fuçadores que fazem “galerias” e

provocam o deslocamento de peças para níveis inferiores. Paralelamente, o

conhecimento da atuação local dos agentes modeladores do relevo, permite melhor

seleção das técnicas de campo a serem aplicadas;

- análises petrográficas, das matérias-primas utilizadas e fontes poten-ciais.

Portanto, ao nível das escavações arqueológicas, as variáveis ambientais

contribuem para:

- a revisão das estratégias mais adequadas a cada local, tratando de questões

como “o que salvar”, quais os vestígios mais relevantes a serem registrados e

coletados; “como escavar”, considerando métodos e técnicas mais adequados a cada

caso; e “até onde escavar”, ou seja, quando a escavação já alcançou o nível “estéril”

arqueologicamente e já possui um abrangência espacial suficiente à interpretação,

conside-rando-se o ambiente tropical úmido;

- a reconstituição de processos de formação do sítio e transformações

subseqüentes, por meio de análises estratigráficas e sedimentológicas;

- os estudos de utilização dos recursos ambientais, que remotam à Zooar-

queologia, Palinologia e Arqueobotânica, no tocante à quantificação e interpretação

de vestígios alimentares detectados, bem como dos utensílios associados.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao se considerar as relações da Arqueologia com as Ciências Ambientais, há

que se lembrar que existe uma reciprocidade, na medida em que a primeira necessita

da utilização de técnicas específicas à segunda, para coletas de dados mais frutuosas

às suas interpretações paleoetnográficas, e, em “contrapartida”, as inscrições rupestres

ou as camadas arqueológicas fornecem dados - climáticos, biológicos,

geomorfológicos, entre outros - que podem ser datados, compondo referência

fundamental aos estudos do quaternário em ambiente tropical, cujos “pacotes”

sedimentares têm composição macros-copicamente homogênea.

Ainda ao nível da complementaridade, deve-se ressaltar que a pesquisa

bibliográfica de estudos do ambiente físico, e a conseqüente identificação de variáveis

ambientais de relevância arqueológica, específicas a uma determinada área,

constituem significativo parâmetro para encaminhamento dos trabalhos de campo e

respectivos estudos interpretativos. Entretanto, para tais interpretações arqueológicas,

é necessário que a abordagem seja integrada às entrevistas com a população local,

que vivencia aquela realidade ambiental, assim aos estudos de Etno-história, entre

outros enfoques interdisciplinares.

A partir da comparação os entre resultados obtidos em pesquisas específicas,

desenvolvidas por pesquisadores distintos, sejam elas acadêmicas tradicionais ou de

salvamento, adentra-se o nível da proposta mais ampla de síntese regional. Para tal

objetivo, faz-se necessária a explicitação dos procedimentos e conceitos utilizados,

para uma classificação conjunta de dados, sugerindo-se os seguintes

encaminhamentos:

- tornar explícito o conceito de sítio arqueológico empregado, considerando-

se que o mesmo tende a ser singular a cada área de pesquisa.

- o registro dos locais prospectados, sítios arqueológicos ou não-sítios, com

o emprego do GPS (“Global Positioning System”), para o entendimento da

intensidade da abrangência espacial da pesquisa de campo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEZERRA DE MENZES, U. T. Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma

avaliação crítica. Texto apresentado no SEMINÁRIO SOBRE POLÍTICA DE

PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA. Rio de Janeiro, PUC, 1988. 19p.

CUSTER, J. F. et alii. Application of Landsat data and synoptic remote sensing to

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GLADFELTER, B. G. Geoarchaeology: the geomorphologist and Archaeology.

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HASSAN, F. A. Geoarchaeology: the geologist and archaeology. AMERICAN

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MORAIS, J. L. A utilização de afloramentos litológicos pelo homem pré-histórico

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PAULISTA, vol. 7, 1983.

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126

--------------. Arqueologia de salvamento no Estado de São Paulo. DÉDALO, S.

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PARSONS, J. R. Critical reflections on a decade of full-coverage regional survey in

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PLOG, S. et alii. Decision making in modern surveys. ADVANCES IN

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RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS DE

IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA

DE SERRA DA MESA - GOIÁS

Dilamar Cândida Martins

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RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS HISTÓRICOS EM ÁREAS DE

IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA

DE SERRA DA MESA - GOIÁS

Carlos Magno Guimarães

Introdução

O presente trabalho, embora contemple questões que dizem respeito a

projetos em áreas afetadas por hidrelétricas, tem como objeto o Projeto de

Salvamento, financiado por Furnas S.A, desenvolvido pelo Setor de Arqueologia da

UFMG na área atingida pela Usina de Serra da Mesa no estado de Goiás. Este é pois o

projeto em torno do qual se desenvolverão nossas reflexões.

O texto será dividido em quatro partes. Na primeira trataremos da montagem

do projeto e da perspectiva teórico-metodológica que a orientou. A segunda parte trata

da organização da equipe e do trabalho de campo. Em seguida o trabalho de

prospecção, e a tipologia dele proveniente, são tratadas na terceira parte e finalmente a

quarta parte trata de questões referentes a avaliação e monitoramento.

I

Quando em 1994 o Setor de Arqueologia da UFMG foi convidado por

FURNAS/SA a apresentar um projeto arqueológico de salvamento para a área a ser

atingida pelo reservatório da Usina de Serra da Mesa, a primeira questão que veio à

tona dizia respeito ao processo histórico que ali se desenvolveu.

Ocupada pela colonização a partir das atividades minerais no século XVIII, a

área se integra ao movimento de expansão das fronteiras coloniais (1)

, que acabou por

definir a maior parte do atual território brasileiro.

Evidenciando não só ocupações pré-históricas como o contato, já a partir do

século XVIII, entre as três grandes etnias formadoras da população brasileira, a área é

de grande expressão no processo histórico goiano. Compreender esta particularidade é

fundamental para se aquilatar tanto sua importância quanto a do patrimônio cultural

nela contido.

Ocupada por povos indígenas desde épocas muito antigas, teve seu processo

de colonização iniciado a partir dos interesses mercantilistas da coroa portuguesa

pelos metais preciosos (2)

no século XVIII.

A mineração na história do Brasil colonial foi atividade que envolveu

diferentes modalidades de mão de obra (3)

sendo que a predominante em algumas

regiões foi o escravo africano. Os indicadores apontam para uma expressiva utilização

do escravo africano também na área afetada pela Usina de Serra da Mesa. A

população de várias localidades evidencia um passado de intensa miscigenação, onde

o elemento negro foi fundamental.

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As constatações acima remetem pois à formação étnica da população

brasileira e remetem à importância de salvamento do patrimônio histórico cultural

existente na área em questão.

Sem dúvida alguma os elementos ali contidos poderiam permitir a

compreensão de uma gama variada de aspectos da dinâmica histórica da sociedade

colonial brasileira. Dentre eles podemos citar a possibilidade de

- captar a dinâmica do ciclo de mineração colonial;

- compreender aspectos da sociedade escravista;

- apreender elementos da dinâmica dos contactos interétnicos e a decorrente

interação / conflito cultural daí advinda;

- captar elementos do processo de transformação social ao longo do período

que vai do século XVIII ao século XX.

Definida a linha geral do processo histórico é necessário fazer algumas

considerações sobre o projeto. A definição do objeto e da metodologia de certa forma

definem alguns dos traços fundamentais da sua natureza.

Em arqueologia a incerteza do achado está sempre associada à sua

possibilidade. Um projeto desta natureza permite o cruzamento de diferentes tipos de

informações, o que certamente pode reduzir sua margem de incerteza, que mesmo

assim permanece grande.

No caso que estamos tratando a articulação entre incerteza e probabilidade

deve ser entendida dentro das especificidade da arqueologia histórica. A grande

questão não é a dúvida entre encontrar ou não os vestígios procurados e sim onde

estão e qual sua dimensão.

A pesquisa bibliográfica aponta para a riqueza arqueológica histórica da

região, acumulada ao longo de um período de quase trezentos anos. A vastidão da

área, por outro lado, aponta para a existência de um enorme volume de vestígios a

serem detectados e resgatados.

Se por um lado existe a certeza de que será encontrado, por outro a questão

que se coloca é definir seu volume. É neste ponto que se localiza a dificuldade em

adequar necessidades, realidades e possibilidades.

A perspectiva teórico-metodológica que orientou a montagem do projeto foi

definida a partir de um conhecimento prévio de história da área a ser trabalhada.

Partindo de um dado real, a dimensão da área inundável (± 1780 Km2) e da

constatação da grande diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é

que foi estabelecida a grande linha de trabalho.

Na realidade o primeiro ponto definido foi a impossibilidade de trabalhar

com amostragem já na fase de prospecção.

A diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é tão grande

que adotar previamente um percentual (qualquer que fosse ele) e tomá-lo pelo todo

seria correr o risco, posteriormente comprovado, de não ter uma amostra que

realmente fosse a expressão daquele todo.

Este aspecto deve ser entendido numa perspectiva dialética. Se por um lado

certo conhecimento prévio da área foi a justificativa para tal conduta, isto só se deu

porque este conhecimento veio constatar a ignorância sobre sua realidade histórica,

tanto geral quanto específica.

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Dito de outra forma, o conhecimento que foi atingido preliminarmente veio

por um lado demonstrar a riqueza do patrimônio histórico-cultural e por outro

evidenciar que a adoção de um critério de amostragem não seria capaz de captar

amostras suficientemente confiáveis de toda esta realidade, que por sua vez ainda é

desconhecida.

É nesta medida, que a perpectiva dialética se coloca como definidora do

universo a ser trabalhado. O conhecimento, ainda que difuso, deste universo é o

elemento que aponta para a necessidade de recuperar todo o desconhecido patrimônio

histórico-arqueológico existente na região.

Esta perspectiva que contempla por um lado o conhecimento e por outro o

desconhecido é que acabou por definir a linha geral do trabalho (de prospecção e de

salvamento).

Na fase de prospecção, realizada de maio a novembro de 1995, as

informações orais, bibliográficas e documentais associadas à necessidade de cobrir a

maior parte possível da área acabaram por definir o universo a ser trabalhado.

A área de 1780 Km2 foi subdividida em sub-áreas sendo seus limites

estabelecidas com referência a bacias hidrográficas relevantes, fazendas ou outros

acidentes geográficos.

Em nenhum momento foi cogitada a possibilidade de descartar alguma sub-

área do trabalho de prospecção. O princípio adotado foi o de checar efetivamente

todas as informações (orais, bibliográficas ou documentais) obtidas. E quando, para

determinada bacia, não houvesse informação a estratégia adotada foi a da prospecção

exaustiva através da qual a bacia era percorrida de ponta a ponta.

Esta orientação mostrou-se extremamente rica no seu resultado final. Muitos

dos sítios localizados através da prospecção exaustiva já haviam desaparecido no

registro da tradição local. O resultado final foi um universo de 190 sítios levantados

dos quais 137 estão dentro da área inundável e 53 na sua periferia.

No que diz respeito à estratégia adotada poder-se-ia objetar que

necessariamente haveria redundância na obtenção de dados já que o pretendido era a

cobertura da maior parte possível da área. Tal objeção foi refutada largamente pelos

resultados atingidos. Se por um lado há um conjunto de informações que se repetem,

por outro lado o universo das diferenças é extremamente rico para justificar a

estratégia adotada. Além do que o argumento, que tenha justificado a eliminação das

diferenças com base na existência de semelhanças, ignora que a realidade é dialética e

que ambas fazem parte de um todo. Privilegiar um dos polos desta contradição é

distorcer a visão que se possa ter desta realidade.

II

A envergadura do projeto, considerando o fator tempo e a dimensão da área a

ser pesquisada exigiu uma modalidade de trabalho coletivo onde a equipe foi dividida

em quatro grupos de trabalho (GT) em função das atividades a serem desenvolvidas:

* GT de História e Documentação - encarregado dos trabalhos de

levantamento, catalogação, leitura, fichamento e organização dos dados

provenientes da bibliografia, dos documentos, relatos de viajantes e

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jornais. O objetivo é fazer um histórico de área e transformar as

informações levantadas em instrumento para a arqueologia;

* GT de Geografia e Cartografia - encarregado dos trabalhos de foto -

interpretação, cartografia, fotografia e coleta de informações sobre o

ambiente dos sítios e entorno;

* GT de Arqueologia - encarregado das atividades de prospecção e

salvamento, tendo como suporte as informações dos dois grupos

anteriores;

* GT de Computação - encarregado da montagem de um banco de dados

geral e do tratamento das informações levantadas tanto na fase de

prospecção quanto de salvamento.

O trabalho de campo, na fase de prospecção, foi realizado dentro dos

parâmetros tradicionais. A partir da localização de cada sítio foram realizadas as

tarefas básicas exigidas: definição/delimitação da área de ocorrência dos vestígios;

identificação do tipo de sítio; localização precisa na planta da área; descrição do

conjunto de evidências e levantamento fotográfico.

Como já foi dito, na fase de prospecção não foi adotado critério

classificatório nem estabelecidas prioridades com relação a áreas ou a sítios

identificados. O trabalho de levantamento tinha o objetivo de atingir todos os locais

de ocorrência de vestígios arqueológicos.

Na fase de salvamento entretanto, a orientação que se colocou foi outra.

Neste caso foi considerada uma dupla perspectiva:

* a primeira que considerou a complexidade que cada sítio apresenta no

contexto e no peso global da reconstituição da dinâmica histórica;

* a segunda ligada às medidas de salvamento a serem adotadas em cada caso.

A primeira perspectiva parte da constatação de que vestígios arqueológicos

diferentes apresentam diferentes necessidades no que diz respeito ao seu salvamento.

A segunda parte da constatação de que a cada sítio caberá um conjunto de medidas

que deverão ser adotadas em função de suas especificidades. Assim, um sítio

classificado como fazenda por certo deve receber um tratamento diferente de um sítio

de mineração.

Estas duas perspectivas estão na origem da tipologia estabelecida a partir dos

trabalhos de prospecção.

III

Uma avaliação do conjunto de sítios levantados permitiu estabelecer uma

tipologia , considerando as atividades (ou funções) neles desenvolvidos.

É importante lembrar que o material não evidenciou surpresas quanto à sua

constituição e/ou utilização. O conhecimento prévio da ocupação histórica de Goiás,

pelo movimento bandeirantista a partir do primeiro quartel do século XVIII, de certa

forma antecipou o que seria encontrado durante os trabalhos de prospecção.

A análise dos dados levantados levou a uma classificação em oito categorias

e à distribuição dos sítios conforme o quadro que se segue:

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TIPO Dentro da Área Fora da Área Total de

Sítios

Lavras (garimpo) 72 23 95

Fazendas (criação e agricultura 43 15 58

Mistos (lavra + fazenda) 8 1 9

Cemitérios 3 4 7

Núcleos Urbanos 3 1 4

Contato (índio + colonizador) 1 2 3

Portos 2 0 2

Presídios (4)

0 1 1

Diversos 5 6 11

Total 137 53 190

Cada uma destas categorias define um conjunto de elementos que podem ser

encontrados ainda em evidência, ou então, se expressam em raros vestígios que só

adquirem sentido quando respaldadas por informações orais ou documentais. Tal é o

caso, por exemplo, dos portos e do presídio Santa Bárbara.

Uma análise do quadro acima mostra de imediato a predominância de

vestígios ligados à atividade mineradora. Evidentemente, não poderia ser de outra

forma, considerando que a área em questão foi ocupada/colonizada a partir de um

surto de mineração no século XVIII. A mineração foi atividade nuclear, em torno da

qual se desenvolveu o processo de colonização. Isto não significa, entretanto, que

apenas a atividade mineradora tenha sido praticada. Significa que as outras atividades

que se desenvolveram (agricultura, pecuária, artesanato, etc) tiveram sua referência na

atividade mineradora.

Outro motivo que nos leva a compreender o fato de predominarem vestígios

da atividade mineradora é a própria concepção (mentalidade) mercantilista (metalista)

que no momento tratado, a primeira metade do século XVIII, tinha um peso

fundamental. A política das nações, particularmente dos impérios coloniais, se regia

pelas teses mercantilistas. A crença na riqueza das nações (condicionadas à

acumulação de metais) levou ao estabelecimento daquela acumulação como

prioridade, o que acabou por determinar a dinâmica das sociedades coloniais.

Em seguida, os vários tipos de sítios são caracterizados a partir de seus

elementos. fundamentais.

As Lavras

Com relação a essa tipo de sítio, o primeiro ponto a ser levantado diz respeito

ao tamanho do empreendimento. Uma lavra pode ser definida como uma área de

pequenas dimensões que era trabalhada por um ou poucos indivíduos, ou ainda como

uma grande área trabalhada por dezenas ou centenas de escravos. Isto quer dizer que o

termo - lavra - não define por si só as dimensões do empreendimento, mas apenas o

tipo de atividade desenvolvida.

No conjunto deste tipo de sítio predominam lavras de grande porte que

envolveram certamente, e quase sempre, algumas dezenas de indivíduos. Tal

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avaliação se fundamenta nas dimensões das áreas trabalhadas, no volume de

sedimento revirado e na quantidade de obras (canais, açudes, aterros, mundéus,

galerias, muros, etc) executadas. Enfim, na massa de trabalho humano que se expressa

nos vestígios de sua realização, ou seja, trabalho humano acumulado.

Revirar até a profundidade de um metro uma área de alguns hectares não é

certamente trabalho para um único indivíduo. Principalmente, se levarmos em conta

que para a lavagem de sedimento revirado foi necessária a construção de açudes, de

canais quilométricos, e ainda, se foi necessário fazer o desvio de um rio ou córrego do

seu leito original.

Enfim, a natureza da atividade e as dimensões da sua execução exigiam

trabalho coletivo sob comando unificado. Tal conclusão nos remete à mão-de-obra

escrava porque o trabalho assalariado está descartado enquanto possibilidade histórica

dominante, no período aqui tratado: o século XVIII.

O segundo ponto que merece nossa atenção que merece nossa atenção diz

respeito à articulação dos elementos que compunham cada uma das unidades

mineradoras. Esse ponto afeta diretamente a pesquisa arqueológica, na medida em

que, o que resgatamos são fragmentos de conjuntos, que tinham uma dinâmica tanto

na sua integração quanto no seu funcionamento.

Com isso queremos dizer que o fundamental não é apenas localizar tais

vestígios mas resgatá-los e entendê-los enquanto elementos que formavam sistemas,

alguns dos quais imensos e complexos. Esses dois aspectos - o qualitativo e o

quantitativo - merecem maiores esclarecimentos.

Se lembramos que alguns desvios de rios ou canais, para transporte de água,

podiam atingir a dimensão de quilômetros, estamos diante de uma realidade onde um

único sítio arqueológico pode também atingir dimensões quilométricas. Do ponto de

vista quantitativo, com certeza, essas unidades mineradoras constituem alguns dos

maiores vestígios arqueológicos do mundo.

Do ponto de vista qualitativo há que se destacar todo o conhecimento, que

está implícito, na aparente simplicidade de cada um desses sistemas hidráulicos.

Denominamos de hidráulicos os sistemas que tem na água o elemento fundamental,

seja como força motriz ou para lavagem de sedimentos. E são denominados sistemas

pelo fato de serem conjuntos de elementos articulados, cada um dos quais

evidenciando uma etapa na divisão e na realização (ou dinâmica) do processo de

trabalho.

Baseados nos princípios fundamentais da hidrodinâmica os sistemas

hidráulicos expressam, tanto as potencialidades quanto os limites da tecnologia

mineradora setecentista, e portanto, a necessidade de seu resgate e de sua

compreensão.

Os sistemas hidráulicos aos quais nos referimos eram constituídos por

elementos distintos, integrados e que merecem um pouco mais de nossa reflexão. No

conjunto desses elementos destacam-se canais, mundéus, açudes, aterros, muros e

catas.

Os canais, do ponto de vista de sua função (que era o de transporte de água)

estavam voltados para a satisfação de duas necessidades: o abastecimento de água

para consumo humano e/ou animal e o abastecimento das lavras para prática da

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mineração. Não há, entretanto, uma distinção técnica no que diz respeito ao fato da

água ser utilizada para um ou outro fim.

Um aspecto importante a ser lembrado é o fato de que a declividade desses

canais geralmente é mínima, o que pode ser explicado por dois motivos:

* quanto menor a declividade do canal, maior seria distância que o

abastecimento poderia atingir

* quanto menor a declividade, menor é o risco de que a água desenvolva

algum processo de erosão, tanto no leito quanto nas paredes do canal.

A versatilidade desses sistemas hidráulicos é notável no fato de que a água

retirada de uma mesma fonte (que pode ser um olho d‟água ou um curso d‟água)

poderia sempre ser remanejada, o que permita a sua utilização em diferentes locais (e

épocas). Assim, áreas absolutamente distintas e distantes poderiam ser trabalhadas ou

abastecidas, com o mesmo fluxo de água a partir da construção de canais diferentes. É

o que explica o fato de podermos encontrar canais que partindo de um mesmo lugar

podem se dirigir a locais totalmente diferentes. Pelo que percebemos, existia uma

estratégia que utilizava um mesmo curso d‟água para atingir uma área diferente a cada

momento.

Um tipo de canal comum era aquele construído paralelamente aos rios. Esses

canais poderiam alcançar dois objetivos: possibilitar a utilização da água desses rios

para a lavagem do sedimento (mineral) e permitir que a água do rio fosse desviada de

seu leito original para que esse leito pudesse ser trabalhado a seco. O levantamento

realizado permitiu detectar a construção de canais destinados aos dois objetivos

descritos.

Outro elemento típico de determinados sistemas (técnicos) de mineração são

os mundéus. De forma mais objetiva, mas sem correr o risco de uma simplificação

exagerada, podemos dizer que os mundéus eram poços ou tanques onde, através de

um processo de decantação o mineral mais pesado (ouro e/ou diamante) tende a ficar

depositado no fundo, para um posterior trabalho de apuração.

Do ponto de vista da sua construção, tanto poderiam ser grandes tanques com

paredes de pedras e argamassa, como poderiam ser buracos feitos no leito de córregos

e canais por onde a lama aurífera ou diamantífera deveriam passar. Este segundo caso

certamente é inspirado nas ocorrências que a geologia denomina de “pilões”. No

conjunto dos trabalhos de prospecção, os indicadores apontam para a predominância

de mundéus escavados (denominados pilões), ao invés de mundéus construídos. A

escolha por uma das técnicas certamente estava condicionada pela quantidade de mão-

de-obra disponível, pelo rendimento que se esperava atingir, bem como pela

expectativa de duração da fase produtiva de cada lavra.

Dito de outra forma, quanto maior a expectativa de retorno e a oferta de força

de trabalho. maiores seriam os investimento em cada unidade mineradora. Por sua

vez, uma lavra que não prenunciava grandes rendimentos (nem grande período de

produtividade) certamente não receberia o emprego de vultosa mão-de-obra.

A construção de açudes, no conjunto da atividade mineradora antiga,

também foi uma constante. O trabalho de prospecção tem evidenciado exemplares

diferenciados tanto no que diz respeito às técnicas de construção, quanto no que diz

respeito às funções. No conjunto de sítios levantados, destacam-se pelas dimensões o

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açude próximo ao arraial de Santa Rita e outro que faz parte de um dos complexos de

mineração do Rio do Peixe.

Do ponto de vista técnico os muros de represamento poderiam ser

construídos com a utilização de terra, de terra e pedras, de pedras e argamassa e ainda

de madeira, terra e pedras. Como se percebe, a oferta de materiais era bem

diversificada.

Ao que tudo indica a utilização dessas técnicas diferenciadas estava ligada às

dimensões da obra e ao volume d‟água que o muro deveria conter. Quanto maior o

volume d‟água, ou a altura do reservatório, maior deveria ser a amarração dos

elementos componentes do muro de represamento.

No que diz respeito às funções, os açudes cumpriam basicamente duas:

reservatórios de água, como no caso dos sistemas de mundéus ou elevar o nível de um

determinado curso de água para que ela pudesse ser utilizada em locais mais altos.

Merece citação ainda, a prática do represamento que não implica

necessariamente na construção de açudes. essa prática era utilizada sempre que se

pretendia desviar um determinado curso de água de seu leito original. nesse caso a

técnica quase sempre as restringia à construção de muros de terra e pedra, nas

proporções que o curso de água em questão exigia. Algumas dessas obras

conseguiram resultados realmente impressionantes, obtendo o desvio de rios de médio

porte por vários quilômetros, como é o caso do Rio Traíras na fazenda Água Parada,

denominação derivada dos efeitos provocados por esse tipo de desvio. Informações

orais não confirmadas apontam para a possibilidade de que até o Rio Maranhão tenha

sido desviado de seu leito.

Outro tipo de elemento muito comum em sistemas hidráulicos de mineração

foram os aterros. Essa construção tinha como objetivo fundamental, em geral, a

elevação do nível do solo, para que sobre essa elevação pudesse correr um canal de

transporte de água. Embora de técnica de construção simples, suas dimensões às vezes

exigiam grandes quantidades de material (geralmente pedras e terra) e de mão de

obra. Os aterros também evidenciam a utilização de trabalho coletivo sob comando

unificado, ou seja: trabalho escravo. Geralmente associados a essas construções

encontramos as vestígios (buracos) de onde foi retirado o material para sua

construção.

Um dos mais expressivos tipos de vestígios que o trabalho de prospecção tem

evidenciado são muro de pedras. Eram constituídos a partir de duas técnicas básicas.

A primeira tinha como resultado o muro minhoto, também denominado de “junta

seca” pelo fato dos blocos serem empilhados sem a utilização de argamassa. A

segunda técnica consistia na utilização de argamassa para unir os blocos e fechar as

reentrâncias entre eles.

Associados à atividade mineral encontramos tanto um quanto outro tipo de

técnica. No caso de contenção de barrancos, nas proximidades das lavras, a técnica

predominante era “junta seca”, limitando-se a dimensão do muro apenas à área que se

pretendia conter.

Quando construídos para o represamento das águas das águas, no caso de

açudes por exemplo, evidentemente os muros deveriam ser capazes de vedar no

sentido literal do termo, a passagem da água. Nesse caso, era necessário a utilização

simultânea de diferentes tipos de material: terra, pedras, madeira, palha e até mesmo

estrume de vaca. Na maior parte dos casos, os muros de açudes eram formados por

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dois muros paralelos de pedra, preenchidos de terra socada, evidenciando a

modalidade de taipa denominada de “pilão”.

Mas, os muros que compõem o conjunto de sítios prospectados tinham ainda

várias outras funções: delimitar propriedades, impedir que o gado penetrasse em áreas

de plantação (pomares por exemplo), ou ainda delimitar o espaço permitido aos

animais como currais, pocilgas, etc. Qualquer que seja sua função, os muros são

fundamentais para elucidar um aspecto de qualquer cultura, que é muito importante

para a arqueologia: a definição, distribuição e utilização do espaço.

Através da denominação de catas foram, e são conhecidos, os buracos feitos

para a extração do sedimento a ser lavado. Com dimensões e formas variadas

encontram-se em quase todos os locais onde a atividade mineradora foi desenvolvida.

Algumas chegam a atingir grandes dimensões, que eram determinadas pela dimensão

da “mancha” de sedimento no qual havia ocorrência do mineral a ser extraído.

A observação dessas catas nos permite perceber a necessidades da criação de

planos inclinados, que iam da borda ao fundo, para possibilitar o acesso dos

trabalhadores ao seu interior e para que pudessem retirar o sedimento e levá-lo ao

local onde seria lavado.

Outra prática, menos comum, no entanto mais perigosa, consistia na

escavação de pequenos buracos nas paredes das catas, onde trabalhadores pudessem

colocar as mãos e os pés para utilizá-los como escada esta segunda técnica implica em

riscos de queda, o que tornaria a atividade tanto mais arriscada, quanto mais profunda

fosse a cata. Além de arriscada, essa técnica era potencialmente mais onerosa já que

colocaria em risco a vida de escravos, um bem que pela lógica do escravismo sempre

era necessário preservar, enquanto investimento de capital.

A profundidade dessas catas era variável já que em alguns lugares o

sedimento a ser lavado se esgotava a menos de um metro de profundidade, enquanto

em outros lugares essa profundidade podia atingir de quinze a vinte metros, o que se

evidencia na existência atual de buracos gigantescos, que certamente demandaram

enorme quantidade de força de trabalho para a sua execução.

As Fazendas

Sob a denominação genérica de fazenda - entende-se o conjunto formado

pela propriedade territorial juntamente com os elementos que possibilitam a

permanência humana e o desenvolvimento das atividades econômicas, para as quais a

unidade produtiva está voltada.

Esse tipo de sítio pode apresentar restos de residências ou de outros

elementos constitutivos como currais de pedra e/ou madeira, engenhos, moinhos,

monjolos, pocilgas, canais para abastecimento de água, etc.

As evidências obtidas pelo trabalho de prospecção indicam construções não

muito grandes e nem muito luxuosas. Tendência que, ainda hoje, se percebe nas sedes

de grande número das fazendas nessa parte do território goiano. Isto significa que na

atualidade temos, de certa forma, a reprodução de uma tendência cultural, nos hábitos

de moradia, cuja origem deve estar no século XVIII. Estas evidências arqueológicas

são corroboradas pelo levantamento bibliográfico e documental. Os inventários e os

registros dos viajantes do século XIX atestam a pobreza do mobiliário destas

fazendas.

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Os vestígios encontrados apontam para uma predominância das fazendas

voltadas para a atividade agro-pastoril, que não exigem o investimento de grande

capital na sua instalação. As atividades de transformação como as desenvolvidas por

moinhos, engenhos, etc, não ocorriam na mesma freqüência.

Como foi dito, os vestígios das residências não indicam hábitos excepcionais

mas, apenas o cotidiano de uma vida simples, para não dizer austera.

No tocante ao material utilizado nas construções, predomina, sem dúvida

alguma a pedra, elemento típico do universo arquitetônico barroco colonial.

Logicamente esta predominância era determinada pela própria oferta de matéria prima

que a região oferecia.

Quanto à distribuição/ocupação do espaço nesses sítios, as informações ainda

não são suficientes para detectarmos uma possível tendência embora alguns traços

fundamentais tenham sido captados. Em primeiro lugar se destacam três tipos de

evidências ligadas ao processo de transformação dos alimentos: fogões, fornos e

fornalhas.

Os fogões geralmente de formato retangular se enquadram no tipo tradicional

caracterizado por dois alinhamentos paralelos sobre base mais elevada e que eram

utilizados para suporte dos recipientes. A base tanto podia ser ela mesma de alvenaria

(pedra por exemplo) ou um girau de madeira que deixava um espaço livre embaixo do

fogão (espaço este utilizado às vezes para depósito de madeira a ser consumida pelo

próprio fogão).

Os fornos, também de formato bastante difundido, são os denominados

“fornos de cupim”. De formato circular apresentam uma cúpula que varia do cônico

ao semi-esférico. A matéria prima vai do barro (argila) à pedra (com argamassa)

passando pela utilização eventual de pedaços de cupinzeiro. Existe ainda o

respiradouro cuja posição é variável podendo estar na parte superior ou posterior da

cúpula. O funcionamento deste tipo de forno também é simples: o fogo é colocado em

seu interior para o aquecimento prévio; posteriormente a madeira em combustão é

retirada e o alimento a ser cozido é introduzido no interior do forno e a entrada é

fechada com uma laje (plaqueta) de pedra. Detalhe importante: a entrada de

praticamente todos eles tem formato quadrangular e a moldura é constituída por três

pedras que se ajustam na posição de um U invertido.

As fornalhas também apresentam uma concepção tradicional onde a

funcionalidade é determinada pela utilização de tachos, ou outro tipo de recipiente

redondo, para o cozimento do caldo de cana ou a confecção de cozidos diversos

(sabão, doces, etc). O formato é circular, as paredes verticais e a entrada para a

alimentação do fogo acompanha a concepção utilizada para as entradas dos fornos

(quadrada e na posição de U invertido).

A esta descrição é necessário acrescentar que tais elementos nunca se

localizam dentro da casa de moradia mas estão geralmente afastadas dela e protegidas

por um tipo de cobertura. Esta disposição dos elementos no espaço doméstico na

realidade expressa uma prática comum na arquitetura rural colonial, não constituindo

algo excepcional mas a regra geral.

Outro elemento típico nas fazendas é a existência de vestígios de cercas de

madeira, (em que predomina absoluta a aroeira), geralmente usadas para delimitar

áreas como o pomar ou então currais.

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Do ponto de vista da técnica construtiva poderíamos classificar estas cercas

de duas maneiras: ou os esteios estão todos eles assentados verticalmente ou então,

através de um sistema de encaixe, parte é vertical e a maioria horizontal.

Os vestígios das casas supostamente utilizadas para moradia apresentam,

geralmente, um alicerce de pedras (com argamassa ou junta seca), às vezes vestígios

de esteios, baldrames e, quando existem vestígios de parede a técnica que se manifesta

é a de adobe; embora em alguns casos o pau-a-pique também tenha sido utilizado.

Outro tipo de evidência arqueológica que aparece com razoável freqüência

são os vestígios de monjolos e engenhos. E em pelo menos um caso, vestígios de um

moinho d‟água. Todos estes vestígios também apresentam elementos técnicos

tradicionais, não fugindo às regras que ainda hoje regem a construção destes

equipamentos. Em linhas gerais os elementos descritos são os mais notáveis que

caracterizam as fazendas voltadas para as atividades agro-pastorís e de transformação.

Sítios Mistos

Nesta categoria foram englobados os sítios que apresentam evidências de

atividades agro-pastoris e também de mineração.

A articulação destes dois tipos de atividades, de certa forma foi a maneira

encontrada para que o desenvolvimento da atividade mineral não fosse prejudicada

pelas deficiências de abastecimento. É provável que fatos ocorridos na região de

Minas Gerais tenham alertado para a possibilidade de desabastecimento aos

mineradores, comprometendo a perspectiva mercantilista da Coroa Portuguesa. Daí o

fato de que a própria Coroa se preocupou em criar nas regiões mineradoras

mecanismos de auto abastecimento, para que a atividade nuclear (a mineração) não se

visse na contingência de ser interrompida por falta de gêneros alimentícios.

Os sítios mistos não apresentam particularidades excepcionais, apenas a

fusão de atividades diversificadas na mesma unidade produtiva.

Se compararmos o número deste tipo de sítio com os dois anteriores (lavra e

fazendas) é possível perceber a tendência à especialização das unidades produtivas.

Dito de outra forma, se considerarmos apenas o universo dos três tipos de sítio

dominantes (lavra, fazendas e mistos) a categoria dos sítios mistos participa deste total

com apenas 5,5%, cabendo às lavras a participação com 58,7% e as fazendas

perfazem o total de 35,8%.

O reduzido número de sítios mistos, em princípio, pode ser visto como

indicador de uma tendência à especialização. Entretanto, tal assertiva não pode ser

vista como uma conclusão definitiva. As informações obtidas pelo levantamento

documental apontam para uma maior diversidade do que esta apontada pela

prospecção arqueológica.

Daí resulta o fato de que o trabalho de salvamento é que permitirá constatar,

se efetivamente, as unidades de economia diversificada (sítios mistos), tinham apenas

a expressão numérica apontada pelo trabalho de prospecção.

A conclusão da montagem do banco de dados com o cruzamento de todas as

informações disponíveis é que permitirá resolver esta questão.

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139

Os Cemitérios

Os cemitérios prospectados encontram-se na sua maior parte fora da área de

inundação. São constituídos, em geral, por uma área na qual se percebe a existência de

sepulturas, ou porque ainda existem cruzes ou fragmentos ou porque o abatimento do

terreno não deixa dúvidas quanto à sua existência.

Um indicador cultural expressivo se manifesta no costume de plantar piteiras

nos locais de sepultamento, para que tais plantas servissem de indicadores do local.

Esse hábito contribuiu para demarcar de forma inequívoca alguns desses sítios. O

plantio de apenas um exemplar de piteira é suficiente para que após alguns anos toda a

área do cemitério esteja ocupada por dezenas de indivíduos da espécie.

Outro aspecto ligado a esse tipo de sítio é o costume de cercá-los com muros

de pedras, ou com cercas de madeira vertical (aroeira) para evitar que animais

pudessem depredá-los. Não foi constatada nenhuma prática de construção de túmulos

e/ou alguma forma de mausoléu. Tais práticas são, aparentemente, tardias na região, e

no meio rural não parece existir indicadores de que tenham se desenvolvido.

Embora classificados aqui como material arqueológico (e inegavelmente

estes sítios o são, pela suas origens históricas e pelo seu contexto de localização) estes

sítios serão objeto de uma reflexão específica dada a sua natureza.

A premissa que deverá notear esta reflexão parte da constatação de que estes

cemitérios ainda estão em uso/atividade.

Tal constatação se fundamenta em dois dados da realidade: o fato de que

alguns destes cemitérios terem recebido sepultamentos em anos recentes, e o fato de

parentes dos sepultados ainda cumprirem ali, periodicamente, seus rituais de culto aos

mortos.

A realidade expressa neste dados envolve ainda uma questão de cidadania

que passa pelo direito de preservação de crenças e valores.

É evidente que nenhum destes moradores que tem seus ancestrais, ou

parentes imediatos ali sepultados. admitirá a possibilidade de ver seus mortos serem

retirados e transformados em objetos de museu.

Pelo exposto consideramos que no caso dos cemitérios não se justifica uma

intervenção arqueológica que passe pela escavação. A obtenção de dados deverá

necessariamente contemplar esta realidade.

Os Núcleos Urbanos

Os núcleos urbanos, evidentemente não apresentam as características dos que

modernamente podem ser assim denominados. Tais núcleos não apresentam critérios

modernos de organização do espaço, mesmo porque, os surtos de mineração

geralmente subordinam tais critérios à dinâmica da própria atividade (mineração),

motivo que levou Sérgio B. de Holanda a fazer a célebre comparação entre as cidades

coloniais portuguesas e espanholas (5)

.

É importante que fique claro que estamos entendendo por núcleos urbanos os

aglomerados de casas que acabaram por se tornar vilas ou aldeias. Muitos desses

locais, com a crise da atividade mineradora entraram em decadência e desapareceram,

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restando apenas ruínas como no caso de Água Quente, Cocal. Traíras e Santa Rita,

dentre outros.

Dos antigos núcleos desaparecidos a maior parte está fora da área inundável.

No caso do arraial de Santa Rita, apenas parte do sítio deverá ficar submersa. As

evidências mais expressivas deste núcleo são conjuntos de muros e canais. Os muros,

todos eles de pequena altura (nunca vão além de 1,0m) parecem indicar limites de

propriedades (quintais) e áreas de circulação (arruamentos).

A pequena altura dos muros pode indicar o fato de terem sido parcialmente

destruídos ao longo do tempo ou pode indicar que sua função era evitar a entrada de

animais nos pomares. Se a segunda explicação é correta não haveria necessidade de

serem muito mais altos do que se apresentam hoje.

Próximos deste núcleo destaca-se a ruína de uma grande açude que represava

as águas do córrego Santa Rita. As dimensões dos vestígios apontam para uma obra

realmente expressiva nas dimensões do que pode ter sido o seu espelho d‟água. Sua

utilidade provavelmente estava ligada à atividade mineral e/ou abastecimento. O

trabalho de salvamento permitirá a reconstituição tanto da malha do núcleo urbano

quanto a forma e dimensões do açude e demais elementos a ele articuladores.

Sítios de Contato

Foram definidos desta maneira os sítios onde as evidências arqueológicas

apontam para a possibilidade de coexistência de duas ou mais culturas (indígena,

européia e africana).

Antes de mais nada, é necessário deixar claro que apenas o trabalho de

salvamento (e a posterior análise do material coletado) poderá permitir afirmar, com

segurança, que tais sítios foram efetivamente locais de contato de diferentes culturas.

Não pode ser descartada a possibilidade de diferentes culturas terem se

estabelecido no mesmo local em épocas diferentes e nesta medida não terem

estabelecido relações. Neste caso a evidência arqueológica de culturas diferentes, no

mesmo local, não indicará contato, mas apenas uma sucessão cronológica de

ocupação.

A solução deste problema passa, por uma lado, pelo processo de salvamento

e, por outro, pela elucidação de como se deu a formação e ocupação do território

goiano por suas populações indígenas. Particularmente no que diz respeito à

população dos avá-canoeiros.

Dos três sítios classificados como de Contato apenas uma está efetivamente

dentro da área inundável (Córrego Três Ranchos I). O local teria sido ocupado por

avá-canoeiros em período histórico o que aponta para a possibilidade de ocorrência de

vestígios que evidenciam contato cultural. Uma análise do local e a coleta de

informações orais confirmou tratar-se não de um sítio de contato mas de área ocupada

por índios e brancos sem continuidade entre as ocupações.

Os Presídios

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Os presídios, diferentemente do conteúdo que o termo possui atualmente, no

período colonial eram geralmente locais fortificados, daí a origem do nome, que

funcionavam como entrepostos e como posições avançadas do poder público colonial.

Enquanto posições avançadas exerciam o papel de fiscais das atividades

econômicas, evitando contrabando por exemplo, e funcionavam também como linha

de frente para a expansão da fronteira agrícola e para a contenção de possíveis ataques

indígenas.

A construção e manutenção desses locais foi uma das soluções para o

problema dos vadios no Império Colonial Português(6).

Começando por uma

construção precária poderiam, com o tempo, vir a constituírem embriões de núcleos

urbanos, na medida em que seu funcionamento como entrepostos permitia o

estabelecimento de fluxos regulares de pessoas e produtos.

O Presídio de Santa Bárbara, único identificado pelo trabalho de prospecção,

está localizado fora da área inundável. De qualquer maneira, os vestígios que dele

restaram são mínimos, pelas inúmeras vezes em que o terreno foi arado para a

formação de pastagens. No local, os vestígios perceptíveis são pequenos fragmentos

de cerâmica além da madeira vertical de uma cruz que teria restado do cemitério

existente. Fragmentos melancólicos de um núcleo que por informações documentais,

parece ter sido dinâmico em épocas passadas.

Os Portos

A navegação por trechos dos Rio Tocantins, Maranhão, das Almas e outros,

foi uma constante desde o primeiro quartel do século XVIII, quando teve início o

processo de ocupação do território goiano em função dos interesses do Império

colonial Português.

Esta navegação exigiu desde o início o estabelecimento de locais onde os

barcos pudessem atracar com alguma segurança, principalmente pelo fato daqueles

rios serem caudalosos em muitas partes de seus cursos. Percebe-se por esse motivo a

necessidade de implantação de portos em alguns pontos daquelas partes navegáveis.

A documentação pesquisada é explícita na indicação da existência desses

portos. Muitos deles eram apenas lugares onde havia o estreitamento da largura de

algum rio. Como esses lugares eram aproveitados para a travessia de uma margem a

outra, ao se constituírem em pontos de travessia acabaram por atrair o movimento dos

barcos e se tornaram portos. O próprio governo colonial, e posteriormente o imperial

tiveram interesse na preservação desses locais.

O trabalho de prospecção realizado identificou apenas dois destes pontos:

Porto da Lavra e o Porto do Bagagem. Nenhum dos dois apresenta vestígios de

construção ou outros indicadores mais precisos; apenas a tradição oral os indica como

antigos locais utilizados como portos.

Diversos

Nesta categoria estão englobados todos os sítios que apresentaram vestígios

para definir sua função ou então apresentam um caráter excepcional no conjunto dos

sítios como é o caso da “Trilha dos Bandeirantes”.

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Vários destes sítios apresentam pequenos segmentos de muros de pedra em

condições tais que sua atividade não pôde ser precisada. Um ou outro vestígio de

canal também foi enquadrado nesta categoria. Neste conjunto de sítios mereceu

destaque a “Trilha dos Bandeirantes” localizada nas imediações de N.S.da Abadia do

Muquém e um “forno de queimar telhas” localizado na Fazenda Engenho Novo na

margem esquerda do Rio Tocantinzinho e que está fora da área de inundação.

A Trilha dos Bandeirantes é constituída de segmentos de uma estrada calçada

com lajes, evidenciando por uma lado trabalho escravo e por outro a importância da

própria via. No período colonial apenas as estradas reais recebia este tipo de

tratamento (requintado para a época) pelos altos custos envolvidos na sua construção.

IV

Vejamos agora alguns aspectos que dizem respeito a avaliação e

monitoramento. A avaliação de um projeto desta natureza deve sempre levar em conta

vários aspectos. O primeiro deles certamente passa pela determinação da fase de

desenvolvimento em que ele se encontra.

No caso específico que estamos tratando, o projeto encontra-se na metade de

seu processo de execução. Evidentemente isto traz implicações de diversos tipo sendo

a maior delas o fato de não permitir uma avaliação definitiva do trabalho total

realizado. Apenas parte dele pode ser avaliado.

É importante lembrar aqui que trata-se de um projeto de arqueologia

histórica, o que o diferencia sobremaneira de um projeto de arqueologia pré-hitórica.

Os critérios de avaliação são necessariamente diferentes num e noutro caso.

O segundo aspecto a ser considerado diz respeito aos objetivos propostos

pelo projeto, e os resultados atingidos, não só em sua fase final mas também nas

etapas intermediárias. Mesmo considerando que o trabalho arqueológico está em

grande parte marcado pela incerteza, que antecede tanto a fase de prospecção quando

a da escavação, um projeto não pode ser montado sobre critérios que não se

sustentam.

A maior ou menor proximidade entre os objetivos propostos e os resultados

atingidos é por certo um elemento de avaliação, tanto da montagem do projeto quanto

da sua execução. Quanto maior a distância entre os objetivos propostos e os resultados

atingidos maior é o erro de avaliação durante a fase de montagem. Evidentemente tal

tipo de erro não invalida um projeto executado, mas certamente o coloca em posição

de fragilidade no que diz respeito a este pronto.

No que diz respeito aos dois primeiros aspectos colocados a avaliação que

fazemos do projeto em questões é positiva. Embora apenas sua metade tenha sido

realizada é possível afirmar sem margem de erro, que do ponto de vista dos objetivos

propostos o resultado não podia ser melhor. Antes de mais nada porque as

informações (orais, bibliográficas e documentais) tem sido confirmadas a cada passo

da realização do salvamento. Se por um lado a quantidade de sítios levantados foi

novidade, do ponto de vista qualitativo não houve surpresas: o que foi encontrado era,

em grande parte, o esperado.

Um terceiro aspecto a ser considerado, quando se trata de avaliar um projeto

(concluído ou em execução) é como seu cronograma de campo tem se desenvolvido.

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Este aspecto adquire maior relevância quando o projeto tem seu cronograma atrelado

ao da obra, como em Serra da Mesa. Neste caso uma avaliação objetiva deverá

trabalhar com informações precisas, do processo de enchimento do reservatório, e

contar com o risco de perda de sítios, diante da velocidade de subida do nível da água.

Este último ponto levantado nos remete ao quarto aspecto que deve ser

considerado. Qual é a relação que pode ser estabelecida entre a dimensão do

patrimônio resgatado e a extensão da área inundada? Esta questão é crucial quando o

projeto é desenvolvido a partir de critérios de amostragem. Até que ponto pode se

considerar expressiva de uma totalidade uma amostra que tenha contemplado, 25%

por exemplo, da determinada área? Para o caso do patrimônio arqueológico histórico

da área de Serra da Mesa podemos afirmar com segurança que este índice jamais

permitiria uma amostra efetivamente significativa, tal a diversidade da realidade

resgatada.

O último aspecto que gostaríamos de tocar diz respeito a custos financeiros.

Trata-se no caso de estabelecer relações entre alguma variáveis como: a dimensão da

área e do patrimônio a ser resgatado; o tempo gasto no projeto e seu atrelamento ao

cronograma da obra; a dimensão da equipe e o ritmo de execução dos trabalhos.

É evidente que os resultados atingidos por uma avaliação desta natureza

serão diferentes se o projeto é desenvolvido por amostragem ou não. É fundamental

perceber que apenas a relação entre o custo global do projeto e a área total do mesmo

não é suficiente para avaliar qualquer aspecto de qualquer projeto. Em que pese a

visão equivocada de que os custos de um projeto devem ser entendidos na perspectiva

neoliberal de sua regulação pelo mercado.

Quanto à questão do monitoramento gostaríamos de tocar em dois aspectos

embora muitos outros possam estar relacionados.

No primeiro caso trata-se da circunstância em que o trabalho de salvamento

está atrelado ao processo de enchimento do reservatório, como é o caso de Serra da

Mesa. Neste caso o monitoramento deve ser desenvolvido no sentido de otimizar o

trabalho de campo para escapar dos riscos de perda do material arqueológico pela

subida da água. A estratégia adotada deverá levar em conta a velocidade de subida da

água e a altimetria.

A articulação entre velocidade e altimetria deverá estar na base desta

perspectiva de monitoramento.

O segundo caso diz respeito à guarda do patrimônio arqueológico resgatado.

É evidente que tal patrimônio pertence à comunidade de onde foi retirado; e para ela

deveria retornar desde que nela existissem condições mínimas de conservação. No

caso do patrimônio arqueológico histórico de Serra da Mesa reza o contrato que ele

deverá ficar, devidamente acondicionado em local da UFG que deverá estabelecer

uma política para sua preservação. Caberá a quem de direito fazer o monitoramento

para avaliar suas condições de conservação.

À guisa de conclusão gostaríamos de lembrar que quaisquer que venham a

ser os critérios de avaliação e monitoramento adotados esses deverão, sempre, ser

adequados à realidade de cada projeto. E mais, a generalização indiscriminada de

critérios de avaliação para quaisquer projetos pode levar à invalidação destes mesmos

critérios.

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NOTAS

1. ver, dentre outras, a obra de Basílio de Magalhães, Expansão Geográfica do

Brasil Colonial, São Paulo, Nacional/MEC, 1978.

2. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial.

São Paulo, Hucitec, 1979.

PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português. São

Paulo, Nacional/MEC, 1979.

VILAR, Pierre. Ouro e Moeda na História 1450-1920. Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1981.

3. HOLANDA, Sérgio B. de. (org). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de

Janeiro, Difel, 1977. Tomo I, 2o vol. Livro quarto, cap.II,V e VI.

IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. São Paulo, Difel, 1962.

PRADO JR. Caio.Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense,

1989.

______________. História Econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1961.

4. O termo Presídio era usado para designar entrepostos ou posições avançadas do

Estado Colonial.

5. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras,

1955. Ver especificamente o capítulo “o semeador e o ladrilhador”.

6. Uma análise desse fenômeno, para o caso de Minas Gerais, pode ser encontrada em

Desclassificados do Ouro, de Laura de Melo e Souza, Rio de Janeiro, Editora

Graal, 1986.

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DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE

IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS

Maria do Carmo Mattos M. Santos

INTRODUÇÃO

A Resolução CONAMA N 001/86, que institui a obrigatoriedade de

elaboração e apresentação do Estudo de Impacto Ambiental - Rima para o

licenciamento de atividades consideradas modificadoras do meio ambiente, constitui

importante instrumento na prevenção da destruição indiscriminada dos recursos

arqueológicos sem o adequado registro e estudo, o que não era conseguido até então

apenas na vigência da legislação de proteção do patrimônio histórico e pré-histórico

nacional. Isto deve-se ao fato de que, no escopo dos EIAs, o patrimônio arqueológico

histórico e pré-histórico constitui uma das variáveis a serem avaliadas no contexto dos

fatores ambientais do meio antrópico.

No que se refere à Arqueologia, os Estudos de Impacto Ambiental

apresentam-se como uma oportunidade de geração de conhecimento e avanço

científico quando consideramos que: a) a exemplo do que dizem Scovill, Gordon &

Anderson (1977, p. 46) para os Estados Unidos, o conhecimento que se tem do

patrimônio arqueológico brasileiro também é pequeno, fragmentário e inconclusivo

diante do potencial de conhecimento não estudado e ainda não destruído; b) que os

recursos arqueológicos são recursos não-renováveis e finitos; c) que os impactos

negativos sobre estes recursos tem caráter cumulativo e irreversível; d) e que a

mitigação destes impactos será possível através do levantamento da informação

contida nestes recursos, a partir de pesquisas baseadas em estratégias científicas e

profissionais. Além disso, a iminência de perda de informação sobre culturas

pretéritas, considerando-se o caráter não-renovável e finito dos recursos

arqueológicos, está estimulando inclusive o desenvolvimento de métodos e técnicas

arqueológicas adequadas à realidade dos EIAs.

É sabido que as especificidades de um empreendimento (área definida por

critérios não arqueológicos, restrições de tempo e de orçamento) são antagônicas às

condições ideais de pesquisa científica (investigação de longa duração respondendo a

programas de pesquisa cientificamente concebidos), mas é possível desenvolver

dentro de EIAs pesquisas com hipóteses de trabalho bem definidas, que gerem novas

informações, ampliando o conhecimento existente e, até mesmo, colocando novas

questões.

Nos primeiros anos de vigência da legislação ambiental, a idéia de

“salvamento” de sítios arqueológicos a serem afetados por grandes empreendimentos

impediu que o patrimônio arqueológico fosse considerado em seu pleno aspecto

científico e histórico - buscando contribuir para a compreensão do nosso passado

cultural-, e também contribuiu para estigmatizar (negativamente) as pesquisas

realizadas pela “arqueologia de salvamento”. É preciso que se questione a visão

simplista de detecção e posterior resgate de sítios arqueológicos como única e

suficiente medida de mitigação de impactos sobre o patrimônio arqueológico.

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O processo deve ser encarado em toda a sua amplitude, onde a detecção e o

resgate constituem momentos importantes mas não únicos ou suficientes, devendo ser

precedidos pela definição de uma estratégia clara de levantamento decorrente do

diagnóstico do potencial arqueológico da área a ser afetada, do estabelecimento de

critérios de significância para a escolha dos sítios a serem preservados ou resgatados,

e seguidos do estudo do material proveniente do levantamento e do resgate, da

elaboração de programas de acompanhamento e monitoramento, e de posterior

divulgação dos resultados e conclusões.

DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE

IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS

A Resolução CONAMA n 001/86 em seu artigo 2 , inciso I cita diversos

tipos de empreendimentos, dentre eles “as estradas de rodagem com duas ou mais

faixas de rolamento” como atividades modificadoras do meio ambiente que

dependem, para seu licenciamento, da elaboração de Estudos de Impacto Ambiental -

Rima. A análise e a aprovação do EIA-Rima é condição para a obtenção da Licença

Prévia (LP) nos empreendimento citados neste artigo.

O diagnóstico ambiental da área de influência de um projeto deve abranger

completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como

existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação

do projeto... (Res. Conama 001/86, Art. 6, Inc.I) visando inferir/analisar as variáveis

passíveis de sofrer impactos diretos ou indiretos nas fases de planejamento, de

implantação e de operação do empreendimento. No que se refere ao patrimônio

arqueológico, este diagnóstico partirá de uma contextualização arqueológica da área a

partir de fontes secundárias e permitirá, principalmente, propor questões a serem

respondidas pelo levantamento arqueológico sistemático a ser desenvolvido

preferencialmente nesta fase.

A análise dos impactos ambientais de um projeto dar-se-á após a

identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis

impactos relevantes, que terão sido avaliados enquanto impactos positivos e negativos

(benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo,

temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade... (Res. Conama 001/86, Art.

6, Inc.II). No caso do patrimônio arqueológico, se considerarmos que a destruição de

um sítio arqueológico constitui sempre um impacto negativo, direto, imediato,

permanente e irreversível, o levantamento arqueológico sistemático da área parece ser

imprescindível para uma correta avaliação (identificação/valoração/interpretação) dos

impactos que serão gerados pelo empreendimento, e para posterior proposição de

medidas mitigadoras e de programas de acompanhamento e monitoramento destes

impactos.

É importante ressaltar que o levantamento arqueológico não precisa,

necessariamente, completar-se com a avaliação dos impactos, podendo ser definida a

sua continuidade tanto no âmbito da proposição de medidas mitigadoras como no dos

programas.

A estratégia do levantamento arqueológico da área a ser afetada por um

determinado empreendimento deve procurar abranger toda a diversidade de recursos

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arqueológicos existentes na área de estudo, sendo condicionada por uma variedade de

fatores específicos de cada projeto, entre eles:

conhecimento já existente do contexto arqueológico da área em

estudo;

problemas de pesquisa a serem resolvidos;

natureza do empreendimento (linear - rodoviário, ferroviário,

dutoviário, linhas de transmissão, etc, ou em áreas amplas -

hidrelétrica, projeto urbanístico, distrito industrial, projeto

agropecuário, extração de minério ou combustível, porto/aeroporto,

etc);

extensão da área a ser afetada;

categoria de licenciamento (licença prévia/licença de

instalação/licença de operação);

tempo disponível e recursos alocados.

Qualquer que seja a estratégia adotada para executar o levantamento do

patrimônio arqueológico ela passa necessariamente por decisões condicionadas pelos

fatores acima, no que se refere aos seguintes aspectos:

1. cobertura - locais dentro da área de estudo onde serão aplicadas as técnicas de

levantamento arqueológico. Esta cobertura pode ser total ou utilizar métodos de

amostragem (aleatória ou estratificada), embora a cobertura total dificilmente se

justifique em termos das necessidades de pesquisa.

2. intensidade - grau de esforço dispendido no levantamento das áreas a serem

cobertas (homem-dia/km2) incluindo a opção pela investigação de subsuperfície -,

condicionada, também, por fatores como: capacitação profissional da equipe,

espaçamento entre os membros da equipe, cobertura vegetal, topografia, logística,

acessibilidade, natureza das informações a serem coletadas - inclusive coleta de

material;

3. visibilidade - interferência de fatores como cobertura vegetal, processos de

sedimentação e de erosão, re-ocupação da área etc, na possibilidade de observação

do solo;

4. acessibilidade - limitações no acesso de áreas a serem cobertas quer por fatores

topográficos ou de vegetação, que devem ser explicitadas e, se possível, reduzidas

ao mínimo. (SCHIFFER, M. & GUMERMAN, G., 1977, pp.184-187.)

Além de permitir estimativa do número de sítios arqueológicos a serem

afetados, o levantamento do patrimônio arqueológico deve trazer informações

individualizadas, por sítio, sobre implantação, profundidade e espessura do depósito

arqueológico, conteúdo cultural, estado de conservação e situação em relação ao

empreendimento (CALDARELLI, 1993), possibilitando a avaliação do potencial

científico da área como um todo e, também, dos sítios individualmente - o que

condicionará as opções por medidas de preservação ou de resgate.

O levantamento arqueológico delineia o universo de sítios arqueológicos na

área afetada por um empreendimento. A partir dele, e utilizando critérios de

significância, será proposto o resgate como medida mitigadora, que pode abarcar

todos os sítios identificados ou somente alguns deles. Isto será definido baseando-se

tanto no conhecimento pré-existente dos recursos arqueológicos da área quanto nos

resultados do levantamento, quando ocorrências já bem estudas e recorrentes podem

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ser negligenciadas em função de ocorrências inéditas dentro do contexto arqueológico

da área.

Desta forma, dentre os fatores que contribuem para as opções do resgate a ser

desenvolvido, podemos citar:

conhecimento prévio do contexto arqueológico da área;

número de sítios detectados no levantamento;

problemas de pesquisa a serem resolvidos;

o potencial informativo de cada sítio, condicionado principalmente

por seu estado de conservação;

espessura e profundidade do depósito arqueológico;

extensão da área do sítio;

tempo disponível e recursos alocados.

É importante que o sítio seja representado na sua diversidade de áreas de

atividade, daí a necessidade de delimitação da área do sítio considerando tanto os

vestígios em superfície como em profundidade, o que influencia diretamente a

estratégia de coleta a ser adotada.

Um dos problemas que se coloca no resgate de sítios identificados através de

levantamentos arqueológicos desenvolvidos em EIAs é o tipo de coleta (total, seletiva

ou por amostragem) que será desenvolvida (REDMAN & WATSON, 1979). Sabe-se

que a análise do material proveniente de um sítio arqueológico demanda muito tempo

para ser concluída, geralmente não se adequando às pressões do cronograma dos

empreendimentos. Assim sendo, existe a necessidade de adotar uma estratégia de

coleta que represente o mais fielmente possível o universo dos vestígios existentes no

sítio, procurando-se evitar tanto a recorrência quanto a ausência de elementos,

optimizando o volume de material coletado para análise.

É preciso que se saliente que o resgate de um sítio não se extingue na coleta

do material, que por si só não leva à produção de conhecimento, mas inclui a análise,

interpretação, e divulgação das conclusões elaboradas a partir do material coletado.

Para que a qualidade da pesquisa arqueológica não seja questionada, os financiadores

dos empreendimentos, e consequentemente dos EIAs, devem compreender a

singularidade dos recursos arqueológicos e da pesquisa arqueológica, e que a

mitigação de um impacto negativo sobre estes recursos passa necessariamente por

todas estas etapas.

PROJETO DE LEVANTAMENTO E SALVAMENTO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO DA

FAIXA DE DOMÍNIO DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO PARAÍBA, ESTADO DE

SÃO PAULO

A Rodovia Carvalho Pinto (SP-070), continuação da Rodovia Airton Senna

(antiga Rodovia dos Trabalhadores), apresenta-se como alternativa à Rodovia

Presidente Dutra interligando os municípios de Guararema a Pindamonhangaba, no

Vale do Paraíba, numa extensão de 70 km. Empreendimento sob a responsabilidade

da DERSA-Desenvolvimento Rodoviário S/A, teve suas obras iniciadas em 1989

(Fig.1).

O interesse na análise deste projeto reside no seu pioneirismo no Brasil, tanto

na elaboração de seu projeto técnico quanto na inclusão do patrimônio arqueológico

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em empreendimentos lineares. O projeto desta rodovia foi desenhado a partir de dados

ambientais, com acompanhamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente,

procurando não interferir agressivamente no corpo ambiental das encostas da Serra do

Mar, utilizando tecnologias de construção avançadas e buscando a preservação dos

recursos naturais. Além disso, pela primeira vez em obras rodoviárias o patrimônio

arqueológico surge como variável a ser considerada na avaliação dos impactos no

escopo de um Estudo de Impacto Ambiental.

O EIA-Rima deste empreendimento exigiu o cumprimento de alguns pontos

básicos da legislação ambiental, inclusive a preservação dos sítios arqueológicos,

tendo sido contratada a PROTRAN Engenharia Ltda. para monitorar os estudos

ambientais complementares.

Como o EIA apontava a possibilidade de dano ao patrimônio arqueológico

regional e considerando a importância histórica do Vale do Paraíba, tanto no que

concerne à ocupação indígena quanto ao seu papel de corredor de circulação no

período colonial e imperial, foi desenvolvido o levantamento e resgate do patrimônio

arqueológico e histórico da faixa de domínio da rodovia. A execução ficou a cargo da

SCIENTIA Consultoria Científica, com o apoio do IPARQ - Instituto de Pesquisa em

Arqueologia da UNISANTOS - Universidade Católica de Santos, sob a coordenação

da Dra. Solange Caldarelli.

É importante ressaltar que no EIA a avaliação do potencial arqueológico e

dos possíveis impactos negativos concernentes à área a ser afetada pelo

empreendimento desenvolveu-se a partir de fontes secundárias, não contando com

trabalhos de campo, daí a proposição do levantamento arqueológico e do resgate na

área diretamente afetada enquanto programas.

O levantamento arqueológico restringiu-se à faixa de domínio da rodovia,

com 130 metros de largura e 70 quilómetros de extensão. A metodologia empregada

buscou identificar vestígios superficiais e em profundidade, e teve a preocupação de

afastar a probabilidade de serem localizados apenas sítios arqueológicos com alta

densidade de vestígios materiais, pois isto implicaria uma recuperação tendenciosa

do patrimônio arqueológico regional, que não refletiria a realidade pretérita

(CALDARELLI, 1994; vol. 1, p. 16).

O levantamento desenvolveu as seguintes atividades:

caminhamento ao longo do eixo da rodovia (estaqueado a cada 20 metros) visando

detectar vestígios arqueológicos aflorados por fatores naturais ou antrópicos;

a cada 250 metros execução de limpeza (retirada da vegetação de superfície) em

áreas circulares de 1 metro de diâmetro, alinhadas transversalmente ao eixo,

visando melhor controle das observações de superfície (o número de pontos de

limpeza variou entre 4 e 6 dependendo da largura da faixa de domínio);

execução de sondagem atingindo 1 metro de profundidade no centro de cada área

de limpeza, visando a detecção de vestígios enterrados;

produção de documentação fotográfica e cartográfica.

Uma vez detectada uma ocorrência arqueológica, exigia-se a preservação de

uma área de 200 metros para cada lado do ponto de ocorrência dos vestígios para fins

de resgate.

O levantamento propiciou a detecção de sete sítios arqueológicos que foram

objeto de resgate (Quadro 1). O grau de intervenção em cada sítio variou de acordo

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com seu potencial informativo, uma vez que apresentavam distintos graus de

preservação.

No resgate dos sítios procurou-se equacionar adequadamente preocupações

com delimitação de sítio, identificação de áreas de atividade diversificadas intra-sítio,

e coleta de material com a necessidade de maximizar o tempo dispendido nos

trabalhos.

Interessante notar que apesar das pressões de cronograma (a obra havia

obtido a Licença de Instalação) e de recursos, houve a possibilidade de contar com a

infra-estrutura das empreiteiras que já encontravam-se no eixo da obra. Desta forma, a

exemplo do que vem ocorrendo em países com maior tradição em resgates

arqueológicos ligados a grandes obras (VAN HORN et al., 1986), foi possível a

utilização de maquinário como moto-niveladoras e retro-escavadeiras na retirada de

camada estéril e na confecção de trincheiras, o que agilizou incrivelmente os trabalhos

sem que houvesse qualquer perda de informação espacial ou de profundidade.

Pelo contrário, estas máquinas foram muito eficientes, principalmente nos

casos dos sítios que não apresentavam estruturas preservadas em superfície, tanto na

delimitação da área de dispersão dos vestígios como na detecção de áreas

diferenciadas, possibilitando uma rápida visualização do contexto geral do sítio e a

escolha das áreas que seriam objeto de escavação detalhada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O resgate dos sítios arqueológicos detectados na faixa de domínio da

Rodovia Carvalho Pinto trouxe evidências de ocupações diferenciadas no contexto do

Vale do Paraíba paulista, relacionadas em sua maioria à ocupação histórica da área,

além de uma ocupação indígena de grande interesse científico.

Os sítios arqueológicos históricos estendem-se desde o século XVIII até a

primeira metade do século XX, evidenciando um padrão comum na região, a saber:

assentamentos ao redor de caminhos percorridos por tropeiros,

uso de fornos de barro externos às habitações para cocção de

alimentos e de artefatos de barro,

construção de capelas em pontos elevados topograficamente, com

plantas quadrangulares padronizadas (CALDARELLI,1994; vol.1,

pp.133-134).

No que concerne a ocupação indígena da área, o Sítio Caçapava 1 apresenta-

se como um dado novo neste contexto. A cerâmica que ocorre neste sítio distingue-se

das ocorrências de cerâmica tupiguarani relatadas até então para o sul do Vale do

Paraíba paulista e os dados apresentados em MARANCA (1969) para o norte não são

suficientes para permitir comparações. A cultura material do Sítio Caçapava 1

assemelha-se à cultura material da Tradição Aratu, variedade Sapucaí, que segundo

PROUS (1992), ocorre desde o centro de Minas Gerais até o Mato Grosso, passando

pelo norte de São Paulo, com datação do século XI.

Desta forma, o Sítio Caçapava 1 comprovaria a expansão da Tradição

Aratu/Sapucaí até o Estado de São Paulo, hipótese aventada por alguns estudiosos,

mas apenas agora comprovada...(CALDARELLI, 1994, vol.1, p. 135). A descoberta

deste sítio, que constitui importante contribuição para a pesquisa arqueológica,

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demonstra a possibilidade de alcançar avanços científicos dentro do âmbito dos

Estudos de Impacto Ambiental.

Outro ponto positivo a ser ressaltado é o desenvolvimento e emprego de

novas técnicas de campo na delimitação dos sítios e evidenciação de áreas

diferenciadas, agilizando e optimizando o processo de resgate.

Cabe aqui ressaltar que a Rodovia Carvalho Pinto foi entregue à população

no final da gestão estadual anterior, acompanhada de denúncias de super-faturamento,

com apenas a pista Capital-interior concluída, necessitando da implantação de

operação de reversão nos dias de excesso de veículos, e sua conclusão não consta dos

planos da atual gestão.

Além disso, apesar do compromisso do empreendedor em financiar a

totalidade do projeto, houve a interrupção do projeto antes que a análise do material

fosse concluída, comprometendo a pesquisa e, principalmente, trazendo o risco de

destruição do material ósseo humano do Sítio Caçapava 1.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1993 CALDARELLI, Solange B. A Problemática dos Impactos Culturais em

Avaliação Ambiental. aula ministrada no Curso de Pós Graduação

“Avaliação de Impactos Ambientais de Projetos de Mineração” POLI-USP.

1994 CALDARELLI, Solange B. Projeto de levantamento e salvamento do

patrimônio arqueológico da faixa de domínio da Rodovia Carvalho Pinto,

Vale do Paraíba, Estado de São Paulo. Vol. 1 e 2, encaminhado à Protran

Engenharia Ltda.. São Paulo, SCIENTIA Consultoria Científica/IPARQ -

Instituto de Pesquisa em Arqueologia da Universidade Católica de Santos.

1992 COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL Estudo de impacto

ambiental - EIA; Relatório de impacto ambiental - RIMA: manual de

orientação. São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente (Série Manuais).

1969 MARANCA, Silvia Dados Preliminares sobre a Arqueologia do Estado de São

Paulo. Publicações Avulsas, 13. Belém, MPEG.

1970 REDMAN, C. L. & WATSON, P. J. Systematic, intensive surface collection.

American Antiquity, 35:279-291.

1977 SCHIFFER, M. B. & GUMERMAN G. J. (Ed.) Conservation Archaeology.

New York, Academic Press.

1977 SCOVILL, D. H., GORDON, G. J. & ANDERSON, K. M. Guidelines for the

Preparation of Statements of Environmental Impact on Archaeological

Resources. IN SCHIFFER & GUMERMAN (Ed.) Conservation

Archaeology. New York, Academic Press.

1986 VAN HORN, D. M. & WHITE, R. S. Some Techniques for Mecanical

Excavation in Salvage Archaeology. Journal of Field Archaeology, 13 (2):

239-244.

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SÍTIO/SIGLA TIPO MATERIAL MUNICÍPIO COORD. UTM F. IBGE 1:50.000 CONSERVAÇÃO PROSPECÇÃO RESGATE

Jacareí 1

SP-PB-Ja.1

histórico cerâmica/louça/

vidro/metal

Jacareí 7.418.000 N

395.550 E

Santa Isabel

SF-23-Y-D-I-4

Perturbado outubro/90 maio/92

Jacareí 2

SP-PB-Ja.2

histórico cerâmica/louça/

vidro/metal

Jacareí 7.421.456 N

407.999 E

Jacareí

SF-23-Y-D-II-3

Perturbado agosto/91 novembro/91

Caçapava 1

SP-PB-Ca.1

indígena/

histórico

cerâmica/ossos/

lítico/louça/metal

Caçapava 7.440.242 N

430.697 E

Taubaté

SF-23-Y-D-II-2

Perturbado outubro/90 julho/91

Caçapava 2

SP-PB-Ca.2

histórico cerâmica/louça/

vidro/metal

Caçapava 7.435.803 N

425.264 E

Taubaté

SF-23-Y-D-II-2

Perturbado janeiro/92 maio/92

Caçapava 3

SP-PB-Ca.3

histórico louça/metal Caçapava 7.436.837 N

426.541 E

Taubaté

SF-23-Y-D-II-2

Destruído janeiro/92 abril/92

Caçapava 4

SP-PB-Ca.4

histórico cerâmica/louça Caçapava 7.433.076 N

423.959 E

Paraibuna

SF-23-Y-D-II-4

Destruído maio/92 setembro/92

Taubaté 1

SP-PB-Ta.1

histórico cerâmica/louça/

vidro/metal

Taubaté 7.446.215 N

437.553 E

Taubaté

SF-23-Y-D-II-2

Perturbado fevereiro/92 junho/92

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Quadro 1 - SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PESQUISADOS NOS LOTES 1 A 7 DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO

PARAÍBA, SP. Fonte: Caldarelli, 1994, v. 1

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DEBATE

Coordenadora: Doutora Solange Bezerra Caldarelli - Scientia

Relatora: Catarina Eleonora Ferreira da Silva - DID/IPHAN

Solange Caldarelli - Peço a atenção de todos para o Prof. Jorge Eremites, que tem um

depoimento a dar sobre uma questão grave.

Jorge Eremites - O que eu gostaria de falar é sobre um diagnóstico arqueológico que

foi feito sobre o impacto da Hidrovia Paraguai/Paraná no patrimônio arqueológico

brasileiro. Este trabalho foi publicado em fevereiro agora e foi feito por arqueólogos

argentinos. Essa Hidrovia abrange, no Brasil dois estados: Mato Grosso e Mato

Grosso do Sul; ela pega basicamente o rio Paraguai, desde Cáceres aproximadamente

e vem até a divisa com Paraguai. Acontece que, nesta avaliação, arqueólogos se

utilizaram de modelo preditivo, que pressupõe um levantamento topográfico

exaustivo da área, o que não foi feito, e, em mais de 500Km, os arqueólogos citam

apenas sete sítios arqueológicos e chegaram à conclusão de que o impacto dessa

hidrovia no Pantanal é nulo ou mínimo. E nós sabemos, através de pesquisa que vem

sendo feita desde 89, que no Pantanal há milhares de sítios arqueológicos. Nós temos

cadastrados no IPHAN mais de 100 sítios e esses sítios não foram levados em conta

para fazer essa avaliação. O IPHAN me solicitou, então, um parecer sobre esse

trabalho; eu fiz o parecer e observei que, na verdade, os arqueólogos fizeram um

trabalho no Brasil desrespeitando toda a nossa legislação; não consultaram o próprio

IPHAN, não consultaram os profissionais que trabalham na área e chegaram a

conclusões absurdas: que essa obra não vai ter nenhum impacto no patrimônio

arqueológico e a gente sabe que vai ter impactos em sítios localizados na margem dos

rios, em aterros e em vários outros sítios. A questão que eu gostaria de colocar era

basicamente essa.

Solange Caldarelli - Eu achei que o depoimento era importante: afinal, o patrimônio

é nosso e gente de fora, sem verificar seriamente a situação, diz que o

empreendimento não acarreta impacto; acho muito grave. Por isso, como o Jorge

trouxe para o simpósio uma cópia do parecer que ele elaborou para o IPHAN, vamos

publicá-lo como anexo, ao final das Atas, como meio de documentar com maiores

detalhes a denúncia extremamente pertinente do colega.

Agora, chamo o primeiro debatedor, que é o Rossano, do IPHAN de Santa

Catarina.

Rossano Bastos - Antes de falar sobre o debate eu acho que merece um registro aqui

a denuncia do companheiro. Eu acho que o Fórum poderia tomar uma posição em

relação a isso, uma vez que está envolvido o patrimônio arqueológico do lado

brasileiro, principalmente se foi feito sem as prerrogativas que a lei no Brasil exige.

Eu acho que cabe a este Fórum, diante dessa denúncia, encaminhar aos órgãos

competentes, ao próprio IPHAN, ao Ministro da Cultura, uma moção de apoio aos

companheiros do Mato Grosso do Sul, no sentido da gente conseguir reverter e

resgatar essa problemática.

Sobre os expositores, agora, eu gostaria de fazer algumas considerações. Em

primeiro lugar, eu gostaria de parabenizar os participantes da mesa pelo excelente

trabalho que eles realizaram e que eles expuseram aí. Como arqueólogo, eu fiquei

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muito satisfeito; talvez tenha ficado um pouco insatisfeito como cidadão, então é disso

que eu vou falar.

No meu entendimento, a arqueologia é uma ciência social; então, ela não não

pode ser simplesmente uma técnica oriunda da razão instrumental iluminista; ela tem

que ir além disso, ela tem que ser uma coisa de impacto social, para poder se justificar

enquanto segmento da sociedade; então, nessa temática, a elaboração, implantação,

avaliação de programas de resgate e monitoramento de bens históricos e pré-

históricos, eu gostaria de ressaltar algumas questões que eu acho que são pertinentes e

que foram abordadas de forma acho que tangentes e, às vezes, nem mesmo foram

abordadas e que eu entendo que são prerrogativas para o bom relacionamento da

sociedade, das comunidades com a pesquisa arqueológica.

Os operários que trabalharam nas várias etapas da pesquisa, dos

levantamentos, são treinados, são da região, são da localidade? Existe um

envolvimento efetivo da comunidade ou das lideranças locais no trabalho como um

todo? Ocorrem incursões anteriores ao início da pesquisa em escolas, centros

comunitários, na população em geral, informando à população o que está acontecendo

e o que vai acontecer? Existe acompanhamento dos futuros interventores que virão a

posteriori, no acompanhamento das pesquisas arqueológicas e dos programas que

estão sendo desenvolvidos? No resgate propriamente dito, nas escavações, a

comunidade participa ativamente?. Como está previsto o retorno do material ou da

informação às comunidades, como prevê o inciso 5° da portaria 007/88? Por fim,

existem projetos educativos, culturais que possibilitam algum retorno à comunidade;

existe a previsão de pequenos museus e salas de exposições; existe a exposição da

pesquisa em leitura didática e universal e não uma exposição extremamente

arqueológica e técnica? Eu gostaria de saber como criar as condições para esse

material retornar às comunidades, uma vez que elas não estão a par desse instrumento,

que é o conhecimento arqueológico. Como é que eu posso criar condições de retorno

de material à comunidade, se eu não despertar a comunidade para o alcance social

desses bens arqueológicos? Eu acho que, nesse momento, em que nós estamos com

técnicas mais avançadas, estamos com a preocupação muito grande no registro da

informação, urge também ter processos e programas mais sofisticados de interação do

material arqueológico com a comunidade em geral.

E por fim, eu gostaria de finalizar com uma pergunta, resgate, para que, por

quê e, finalmente, para quem ?

Solange Caldarelli - Passo a palavra aos expositores que queiram responder às

questões do Rossano.

Maria do Carmo - No caso do projeto no Vale do Paraíba, a comunidade foi

sensibilizada e muito, participando do processo não na fase de levantamento, mas na

fase de resgate. Os museus locais participaram e vão ser os depositários do material.

Está previsto no programa que o material arqueológico deverá retornar para as cidades

do Vale do Paraíba, ficando depositados nos museus que, obviamente, apresentarem

condições de abrigá-lo. Além disso, foram incorporados pesquisadores locais nos

diversos estágios da pesquisa e estudantes das universidades regionais nos programas

de resgate, tentando sensibilizar ao máximo a comunidade.

Um outro aspecto que eu poderia ressaltar é que a professora Lúcia Juliani,

que fez parte da equipe de pesquisa e participou da mesa ontem, acaba de assessorar a

montagem de uma exposição arqueológica no Museu Antropológico do Vale do

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Paraíba,. em Jacareí, que versa sobre as pesquisas arqueológicas de resgate realizadas

no vale.

Dilamar Martins - O que nós chamamos de auxiliares de campo, na verdade eles

foram treinados, como estão sendo até este momento. Eles acompanharam todo o

trabalho, em toda a área de Serra da Mesa e passaram inclusive a fazer parte do grupo,

morando em nossas bases.

Em termos de liderança há uma diversidade, porque cada cidade tem uma

participação diferente; em algumas delas isso foi mais significante, em outras, a

participação foi menor, dadas as próprias características da cidade e do funcionamento

dela. A título de exemplo, a gente tem a cidade de Campinaçu, que é uma cidade

pequena, mas onde houve interesse muito grande por parte da população local, seja a

nível de cederem informação, de participar no trabalho; palestras que foram feitas nas

escolas, com os professores e com os alunos de todas as cidades por onde a gente

andou; a que houve menor envolvimento, tanto da municipalidade como também da

população foi Niquelândia, considerando as próprias características dela, que vive em

função de algumas empresas locais e a população é muito heterogênea, com pessoas

vindas de fora. A questão do acompanhamento local, Uruaçu foi uma cidade em que

inclusive a participação da municipalidade da população local chegou entre aspas até

a certo ponto atrapalhar, entre aspas, o trabalho, dada a participação, o interesse na

criação de museus, de convênios com universidades e até mesmo pensando na criação

de um campus avançado da UFG. Isso já está sendo tratado. (...)

Em termos de projeto educativo, eu coloquei em algum momento que o Museu

já faz isso em Goiânia há vários anos, desde o início da sua existência e isso foi

apenas acoplado a esse projeto, com exposições itinerantes que começaram a nível de

Goiânia e foram previstas e solicitadas pelas cidades, às quais serão encaminhadas. A

gente vai demonstrar amanhã, em termos de material didático e pedagógico, o que já

foi elaborado, inclusive o vídeo, voltado para o ensino fundamental, e os

documentários científicos, os CDs, etc, que agente está produzindo.

E aí eu acho que fica claro que a idéia que a gente tem de resgate, de

salvamento, é que é preservação, porque só se preserva qualquer bem cultural a partir

do momento em que ele é pesquisado, em que ele é conhecido, em que ele é estudado.

Então eu acho que aí fica respondido para que, por quê e para quem.

Carlos Magno - Do ponto de vista da comunidade onde nosso projeto tem sido

desenvolvido, a gente tem sempre tentado fazer contatos, por exemplo, através de

palestras em escolas, independente de serem de nível superior ou de 1° e 2° graus,

mostrando a natureza do nosso trabalho e a importância dele. Existe uma preocupação

também em fazer contato com as autoridades municipais, no sentido de que seja

possível trabalharmos em conjunto, o que significa dizer o seguinte: se por um lado

nós precisamos dessas autoridades municipais, e isso sempre acontece, por outro

lado, há contrapartida. Vou citar um caso acontecido: nós recebemos, em Belo

Horizonte, uma carta de um vereador de uma dessas cidades, acoplada a algumas

cartas de deputados, aonde vários deles apoiavam o projeto do vereador de criar um

museu local e o vereador então estava nos fazendo ciente de que estava encaminhando

aquele projeto e ia um pouco além, dizendo que o material arqueológico retirado tinha

que ficar na cidade. É evidente que a gente concorda com isso, mas acontece que,

nesse caso especifico que eu estou usando como exemplo, é um processo que ainda

está sendo discutido, eu não vejo porque a gente definir já de antemão voltar com o

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material arqueológico para essa cidade, sendo que ainda está-se discutindo o futuro

museu que vão criar.

Do ponto de vista do resgate, que é a última questão que você coloca, o resgate

para que, porquê e para quem, eu acho que, se há alguma validade nisso tudo, é que o

processo de constituição de identidade da comunidade de onde o material é retirado,

ele exige isso: é a história de todas as comunidades e enquanto tal merece ser

resgatada. Eu não vejo porque achar muitas outras justificativas mirabolantes para

justificar esses projetos de salvamento de resgate; evidentemente, não é para ficar com

o material entulhando uma sala, se o destino desse material está previsto dessa

maneira. É necessário que isso retorne, mas retorne de maneira adequada, seja através

do que os exemplos que a Dilamar está citando, de produzir material pedagógico para

uso das escolas ou através de exposições compreensíveis para o leigo e coisas do

gênero; isso está contemplado, agora isso não está colocado como prioridade diante

do andamento do projeto; isso é uma etapa futura, ou seja, nós não estamos

preocupados em montar exposições agora. A nossa preocupação, agora, é com o nível

da água que está subindo. Então, nós estamos preocupados com o trabalho de campo,

entende? Agora, é evidente que qualquer projeto dessa natureza deve contemplar

todas as possibilidades de divulgação dos resultados, inclusive divulgar em ambiente

dessa natureza aqui, quer dizer, num fórum dessa natureza. Eu acho que isso

responde, em parte, a questão do resgatar para quem.

Quanto à utilização do pessoal local nos trabalhos, o que tem sido possível é a

utilização do pessoal para ajudar na atividade de campo. Você pode chamar de peão,

operário ou qualquer outra designação. Eles não têm, inicialmente, quando fazem o

contato conosco, nenhum treinamento, sequer sabem do que se trata. Mas, ao longo

do tempo, geralmente eles adquirem uma perspicácia muito grande para perceber tudo

que a gente está querendo, e grande parte das vezes eles se tornam mais exímios do

que nós, no que diz respeito ao trabalho de prospecção, porque eles conhecem a área.

Esse pessoal é usado como ajudante de campo, até no trabalho de escavação e os

guias são alargamente utilizados o tempo todo. Nenhum de nós conhecia 1m² desse

território; temos conseguido, felizmente, guias que são verdadeiras obras primas, no

que diz respeito à sua capacidade de interpretação do vestígio inclusive, embora até

analfabeto nós tenhamos encontrado; ou seja, a desqualificação que poderia advir pelo

fato do indivíduo ser analfabeto, ela é totalmente revertida no que diz respeito à

capacidade que o indivíduo tem de fazer a leitura do ambiente, da natureza e até do

vestígio arqueológico.

Solange Caldarelli - Eu queria comentar a respeito disso que o professor Carlos

Magno falou. É interessante porque esses guias, e eu imagino que aconteceu a mesma

coisa com vocês, eles são muito motivados pela valorização que damos a vestígios

que normalmente não são valorizados, pois não são monumentais, são cotidianos.

Então, isso lhes dá a satisfação de ver o respeito, o interesse que um cientista tem por

um vestígio que na verdade é testemunho do passado dele; no caso da arqueologia

histórica, esse fato chama muita atenção.

Doutora Lylian Coltrinari, da USP.

Lylian Coltrinari - Vou fazer um comentário e duas perguntas aos colegas da mesa.

Em primeiro lugar, quero dizer que, da mesma forma que fiz ontem algumas reflexões

a respeito da interdisciplinariedade e outros tipos de trabalho conjunto, de maneira

alguma estou cobrando dos colegas, da PETROBRÁS, FURNAS ou quem quer que

seja pelos trabalhos que não foram realizados. Quero dizer simplesmente que os

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arqueólogos não precisam se preocupar com questões que não lhes dizem respeito

enquanto especialidade, e que outros especialistas deveriam ser envolvidos.

Gostaria de chamar a atenção para um fato que, me parece, é compreensível.

Nem todo geógrafo, nem todo geomorfólogo, está preparado para todo tipo de tarefa,

por exemplo o trabalho de resgate, ou o tipo de análise que o sítio arqueológico

precisa. Para ser mais clara, gostaria de comentar o que Maria do Carmo, Emília e

Dilamar apresentaram. Em relação ao trabalho de Maria do Carmo, como trabalho há

20 anos naquela área, para mim é de todo interesse o tipo de informação que esses

sítios podem fornecer. Fico, inclusive, com um pouco de inveja, já que gostaria muito

de ter contado, na época de minhas pesquisas, com maquinário do tipo que vocês

contaram para raspar aqueles centímetros superiores, por exemplo no topo das

colinas; vocês conseguiram, com isso, exposições contínuas dos materiais nos topos

das colinas e ao longo das vertentes, o que é precioso para o geomorfólogo e o

pedólogo. Só que nós temos que fazer isso a mão, contratar pessoal e gastar um

tempo enorme para conseguir fazer quatro buracos, e vocês têm em meia hora aberta

uma trincheira, que é o ideal. Além disso, queria dizer que, com base no que as

fotografias mostram sobre a limpeza e a abertura de trincheiras, elas não ofereceram

nenhum tipo de perigo para a estabilidade do material; os casos que eu conheço de

desestabilização não dizem respeito ao nível de intervenção da pesquisa arqueológica

e sim, por exemplo, à existência de falhas geológicas, que podem ter sido detectadas

nos levantamentos geofísico e geológico. Faço a menção porque foram mobilizadas

camadas sedimentares da base dos sedimentos da bacia que, inclusive, estão dando

lugar à pesquisas específicas de materiais; mas não se trata, repito do material

pedológico e do solo superficial, onde estão os sítios, é do material geológico que está

mais fundo. Do ponto de vista geomorfológico não há nada a criticar quanto à forma

de realização da pesquisa.

Em segundo lugar, uma reflexão sobre o que Emília mencionou quanto à

pesquisa de Porto Primavera. Gostaria de falar sobre a forma como, às vezes, as

evidências morfológicas não são totalmente completas. Não adianta muito fazer

somente a compartimentação, dizer "aqui é planície atual, o dique marginal, lá está a

planície subatual, e lá em cima é terraço". O que adianta é considerar a dinâmica,

atual e passada, testemunhada pelos depósitos que fazem parte desses diferentes

elementos da paisagem. Eu queria lembrar uma questão: às vezes é necessário

examinar o ambiente da várzea, no fundo do vale fluvial, que é extremamente

dinâmico. Isso porque, quando se fala da localização dos sítios, deve lembrar-se que

todo ano o rio invade sua planície de inundação, e que o que hoje são terraços já

foram planície de inundação; que o dique marginal é a faixa localizada na borda do

canal médio do rio e recebe o material mais grosseiro quando acontece o

transbordamento, porque o material mais fino vai embora com a água que inunda a

várzea.

Com isso quero dizer que eu tomaria muito cuidado antes de dizer que o sítio

está em seu lugar original; e segundo, dizer que o sítio que estou analisando está

formado por (...), estruturas correspondentes a uma só ocupação. É similar ao que

falei ontem a respeito da migração vertical nas vertentes e nos interflúvios, isso

também pode ocorrer na várzea e nos diques marginais. Como os diques marginais

estão formados por areia grossa - que é friável, a possibilidade de mobilização vertical

é muito grande e o retrabalhamento lateral mais ainda. Isso cria um problema,

realmente; só estou dando uma opinião, com base na dinâmica fluvial.

Outro comentário: pelo que acabei de dizer, me parece que cada uma das

estruturas de solos de ocupação tem de ser vista com um certo cuidado, porque pode

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haver combinação e mistura, não sei como chamaria... (...). Além disso, outra questão

que Emília frisou: hoje em dia instalações, casas e outras construções acima do

próprio sítio e, até, a própria ocupação pré-histórica posterior, podem contribuir para a

movimentação vertical desse material, ou seja, há processos de compactação que

necessariamente vão interferir na mobilidade do material que está na parte mais

profunda. Ainda a respeito do posicionamento: lembro que foi mostrado um perfil

com as duas várzeas, os dois níveis de várzeas, mas um tinha uma acumulação entre

o terraço e a várzea; é preciso analisar com muito cuidado porque, em geral, quando

se está em um degrau, ao longo dele o material se desloca com facilidade. Uma

acumulação hoje localizada no sopé de uma vertente provavelmente formou-se a

partir do material que o próprio recuo dessa vertente -causado pelo solapamento

lateral do rio, produziu: o vazio na base da margem "atrai" o material de cima, por

gravidade; isso é considerado quando se consideram critérios geológicos e

geomorfológicos. Agora, o material lítico tem um peso e volume maior e é possível

que possa ser removido, não porque alguém o colocou ali, mas porque foi

transportado naturalmente. Quero dizer que há uma série de considerações, que são de

domínio exclusivo dos arqueólogos, mas seria preciso contar com o apoio de um

especialista que chamasse a atenção para esses fatos. Não é para o arqueólogo fazer

esse tipo de pesquisa, mas para que ele exija a presença de alguém que o auxilie; esse

é o motivo de minha insistência. Como eu sei que muitos geógrafos não estão fazendo

isso, acho que deverá ser futuramente de interesse do próprio arqueólogo pedir a

alguém com capacitação específica para trabalhar com a estratigrafia e a análise dos

materiais ou solos não arqueológicos.

Finalmente, um comentário para Dilamar. Eu fiquei muito curiosa por saber

qual é o tipo de cimento que aparece no sítio em que mostrou a cerâmica com seixos;

se esse cimento é natural, ele é indicativo de um processo paleoambiental de evolução

pedológica, em que houve remoção de material em dissolução e reprecipitação

posterior. Se houvesse um pedólogo junto, poderia auxiliar na indicação da causa

dessa evolução. Muito obrigada.

Maria do Carmo - Rapidamente, sobre o equipamento e o maquinário utilizado, é

preciso frisar que, quando o trabalho foi efetuado nesses sítios, o empreendimento

estava em fase de implantação, com as empreiteiras já trabalhando no trecho;

dificilmente um arqueólogo conseguiria exigir esse maquinário antes que a

empreiteira já estivesse instalada.

Emília Kashimoto -Doutora Lylian, as questões são interessantes e bastante

pertinentes. Elas se colocaram desde o início do nosso levantamento. Será que a

questão de transporte fluvial não influencia na configuração daquele material

arqueológico, naquele determinado local? Essa pesquisa em Porto Primavera foi

cooordenada, desde o início da etapa de levantamento, pelo professor Gilson Rodolfo

Martins, que é um grande pesquisador de etnohistória. Ele fez um levantamento para

rever essa questão de implantação, principalmente em metade da área, que tem

características tupi-guarani marcantes pela cerâmica e, então, utilizar esses dados de

etnohistória para tentar auxiliar a compreensão da implantação espacial de ocupações

pretéritas indígenas.

Porém, acredito que é um campo, para o pesquisador, pegar um sítio, fazer

laboratório no local; mas, a princípio, nós fizemos coletas comprobatórias de material

cerâmico e lítico. Então (...), vou tentar colocar dois eixos: essa questão de mobilidade

lateral e vertical do material. Existem níveis cerâmicos e níveis líticos; aquele nível

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que nós chamamos de paleodique, é uma interpretação de geólogos da Universidade

Estadual de Maringá. O professor Kenitiro Suguio fez um módulo na área da

barragem, no momento da implantação; fez um estudo prévio para definir a

compartimentação da paisagem, então nós estamos utilizando essa conceituação de

paleodique, para chegar na questão do dique. No paleodique existe, no sítio MS- IV-

08, que foi mostrado na transparência, um nível cerâmico e as vasilhas estão inteiras,

in loco. Inclusive, tivemos condições de escavar; temos fotos, mas, infelizmente, não

saiu slides. Então, acreditamos que aquela vasilha cerâmica in loco, inteira, se ela

tivesse sido remobilizada de um nível de terraço superior, teria sido fragmentada, e

nesse mesmo sítio não imaginávamos, pela questão da várzea, que haveria um nível

lítico em profundidade. Por um teste que fizemos na trincheira e a 2m, localizamos

material lítico com uma dimensão menor, com uma intensa utilização de seixos e

artefatos pequenos, diferentemente do nível do material lítico lá dos diques atuais.

Então, esse material lítico estava no contexto sedimentológico que os geólogos da

Universidade Estadual de Maringá relacionam a um clima árido menos úmido, porque

é um sedimento siltoso amarelado, sem aquela característica de matéria orgânica

enegrecida; então, a priori, tem características diferenciais dos níveis superiores, que

realmente são de níveis aluviais, que dão uma textura mais grosseira, com a

tonalidade de matéria orgânica. Então, aquele nível profundo coaduna com essa

interpretação de provável deposição em ambiente semi-árido, ambiente mais seco;

isso está para ser discutido ainda com essa equipe de Maringá, porém percebemos que

a sedimentação é diferenciada e o material lítico é diferenciado; então, nesse sentido,

existe uma interpretação arqueológica de que realmente seria local de alguma

instalação e a própria morfologia favorece. Por outro lado, fazemos estudos conjuntos

com a outra margem. Apesar do professor Gilson ter dito que há uma divisão, nós

mantemos bom relacionamento com os pesquisadores da UNESP; participamos de

levantamentos na margem esquerda também e temos condições de comparar as duas

margens. Então, a margem esquerda, é anti-ético falar, mas tem características

distintas, que permitem comparar, em termos de material, bem como tipos de

implantação em relação ao relevo. Então, a proposta, nesse caso, é uma abordagem

geo-arqueológica, é o entendimento de que o arqueólogo pode entender um pouco de

geociência no sentido de que, por exemplo, no meu caso, eu tenho que fazer uma

abordagem geo- arqueológica porque eu fiz graduação em geografia e tentei ir atrás

do conhecimento básico e tento aplicá-lo à questão arqueológica de implantação e

alteração de sítios arqueológicos. Isso não implica só técnica pela técnica, no sentido

de aplicar uma interpretação geomorfológica a uma questão arqueológica, mas é um

dos itens para um entendimento maior. Então vai-se cruzar esses dados

sedimentológicos, estratigráficos, com análise do material arqueológico, para tentar

ver se existe seleção de material, se houve o transporte lateral fluvial, a tendência de

seleção de material ao longo do sítio, porque a estilha vai mais longe do que o bloco;

ou seja, esse tipo de análise auxilia também a tentar entender a questão do transporte.

Então é uma questão bastante complexa, mas essa abordagem se pretende geo-

arqueológica no sentido de que é possível fazer uma pesquisa, dentro da arqueologia,

com uma preocupação ambiental, de implantação e alteração dos sítios. Porém,

tentando contemplar questões arqueológicas, de tradição Tupiguarani, se o ambiente

influencia determinado tipo de implantação ou não, a partir da análise da cultura

material.

Dilamar Martins - Eu queria colocar uma coisa em que dá um gancho das

observações que foram feitas pela professora. Desde o início do nosso projeto, o

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entendimento nosso foi que, não só no trabalho de Serra da Mesa, mas em arqueologia

de modo geral, o arqueólogo não tem nem competência e nem obrigação de entender

das várias áreas de conhecimento que são necessárias para o desenvolvimento de um

bom trabalho em arqueologia. Então, dessa forma, foi uma exigência da nossa parte

que a equipe fosse constituída com a presença de especialistas da área, mas que

estivessem pensando nas suas especialidades não como um fim, mas como um meio

que propiciasse a colaboração para respostas pertinentes à arqueologia. Nesse sentido,

inclusive, estão presentes aqui o geomorfólogo que acompanhou ininterruptamente o

nosso trabalho, da mesma forma que não houve nenhuma campanha sem arqueólogo,

o geomorfólogo acompanhou o tempo todo. Isso também aconteceu com geólogo, em

função das especificidades da área e da localização dos sítios, e inclusive com

especialidade em hidro-geologia, também está aqui presente. Eu não me daria o

direito de falar dessas questões, considerando que eles têm acompanhado todo o

trabalho desenvolvido, inclusive o subprograma de geo-arqueologia. Eu acho que

seria muito interessante que o professor Roberto e o Edgar tivessem posteriormente

uma conversa em particular com a professora.

E, lembrando aí o caso daquele sítio que demonstrou, é um sítio lítico, uma

cascalheira, e aparece material cerâmico de forma cimentada, aquilo também levantou

para a gente uma série de questões: se aquela cerâmica era realmente (...) Como

saber, à medida que está próximo entre o interfluvio também e poderia ter vindo essa

cerâmica e poderia ser de um outro momento, quer dizer, uma série de questões que

foram levantadas e para isso a gente trabalhou com esses especialistas e com técnicas

que demonstraram que aquela cerâmica que hoje está alí cimentada, ela existiu

realmente em outro nível anterior, à medida que a gente abriu; acho que foi meio

rápido a questão dos slides, mas a gente abriu trincheiras no barranco do rio e pôde

perceber que a cerâmica estava a 3m de profundidade, exatamente na camada superior

ao material lítico cimentado. Portanto, essas questões foram lembradas e trabalhadas

junto com o profissional da área.

Solange Caldarelli - Doutor Walter Neves, da USP.

Walter Neves - Bom, eu tenho algumas observações para a Emília, para Dilamar e

para o Carlos. Emília, tive muita dificuldade, no seu trabalho, de entender o que era

ponto de partida e o que era ponto de chegada. Eu acho que isso aconteceu porque

você quis usar um tipo de modelamento e não assumiu isso explicitamente. Ontem

quando o Renato falou de modelamento, muita gente aqui protestou, mas, na verdade,

a gente trabalha sempre com modelo. Já que ele é inevitável, é melhor que ele seja

explícito do que implícito porque, quando ele está implícito, a gente nem sempre

coloca nele todas as variáveis que precisam ser colocadas, e aí me assustou um pouco,

porque você disse que tinha do rio para dentro uma faixa de mais ou menos 13Km; ao

invés de fazer um desenho amostral de maneira a diversificar os tipos de sítios que

poderiam ser encontrados, você fez um desenho muito bonito, mas favorecendo a

amostragem basicamente de um tipo de sítio, ou seja, os sítios ribeirinhos. Então,

minha pergunta é: se nós vamos fazer modelos preditivos, porque o que você esta

trabalhando é um modelo preditivo, você estará prevendo somente uma ou algumas

categorias de sítios. Então, nesse sentido, eu acho que é melhor assumir o modelo, é

melhor assumir que está trabalhando com modelo e utilizar o maior número de

variáveis possíveis, para que você dê chance a que todas as categorias de sítios sejam

amostradas

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Com referência à Dilamar, eu não entendi como é que a malha amostral foi

estabelecida na região. Também não entendi como eram as unidades amostrais e qual

foi o critério de espalhamento ou de distribuição dessa malha amostral na região. Por

exemplo, não ficou claro para mím, dado que eu não entendi isso, a porcentagem da

área levantada e sobre qual intensidade de caminhamento, por exemplo, essa

porcentagem da área foi percorrida.. Eu não entendi isso no levantamento e também

não entendi essa mesma coisa na questão das escavações; não ficou claro, para mim,

dos sítios que foram eleitos para escavações ou para uma interferência mais profunda,

qual a porcentagem ou a distribuição espacial dessa porcentagem e porque essa

porcentagem ou essas áreas foram escolhidas, dentro de um sítio, em detrimento de

outras áreas.

Com referência ao Carlos, eu acho o seguinte: que a necessidade de se fazer

um design ou um desenho de levantamento arqueológico vem exatamente para afastar

a gente do subjetivismo. O desenho é, sem sombra de dúvida, o melhor instrumento

que você tem para afastar o subjetivismo; e você disse umas coisas assim: eu não fiz

uma amostragem, mas fiz uma cobertura máxima possível. Eu não entendo o que é

uma cobertura máxima possível; quer dizer, não fica claro para mim o que é isso. E,

novamente, em termos de parcela coberta e de intensidade de caminhamento dentro

dessas parcelas. Depois, você usou uma outra frase, quando você falou dessa

cobertura máxima. Você disse: eu acho que a gente fez uma cobertura bastante

razoável. Eu também não sei o que é bastante razoável. Qual é o parâmetro que você

está usando? é quantitativo? é qualitativo? Então, eu acho o seguinte, sobretudo em

pesquisa de salvamento, onde a gente não vai ter a oportunidade de outro profissional

ou de outros profissionais voltarem com suas próprias subjetividades e trabalhar

aquelas subjetividades que já foram empregadas, eu acho que nós temos de trabalhar o

máximo possível com desenhos que eliminem o máximo possível de subjetividade, e

eu não vi isso no seu discurso. Só isso, muito obrigado.

Emília Kashimoto - Essa pesquisa de salvamento tem uma pecularidade conjuntural

de relacionamento da Universidade com a SERPES; ela tem uma duração longa, em

comparação com os outros projetos. Prevemos mais dois anos de resgate. Essa

questão de modelos preditivos, eu acho bastante complexa, uma vez que realmente eu

não me debrucei sobre ela, porque não é meu objetivo. Eu tento trabalhar em cima do

real, do que é palpável. A realidade dessa pesquisa de Porto Primavera foi, no

primeiro momento, empírica; nós selecionamos uma área e simplesmente

caminhamos ao longo do dique marginal para ver onde ocorriam os materiais

arqueológicos, desprezando aquela idéia inicial na foz, de confluência ou não, e aí

percebemos que a questão topográfica era fundamental; tinha material arqueológico e

a topografia era favorável, era mais elevada (...). Então, nós começamos a priorizar

essa observação. Vou tentar colocar como foi feito, para ver se chega a contemplar

sua questão.

A pesquisa foi feita essencialmente em dois grandes eixos: um, navegando

todo o curso fluvial, em 250Km, observando as margens e os locais de topografia

favorável, vistoriando os locais e plotando com GPS. O segundo grande eixo foi o

interior. Então, nesse ambiente de várzea ou lago de várzea, percebemos que tem

algumas elevações favoráveis, mas não tem como chegar nelas; é um lago de várzea

enorme, em volta o barco não consegue navegar, o carro não tem como chegar, então

é uma coisa improvável; nós atravessamos ali caminhando, então, na realidade,

chegamos aonde foi possível. Nesse eixo interior, priorizamos todas as estradas, todos

os locais de acesso, com base nos sítios localizados, tentando achar esses sítios ao

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longo dessa faixa exterior. E uma terceira etapa é a seleção de áreas potencialmente

favoráveis para retro-alimentar, voltar em campo e vistoriar essas áreas

intensivamente. Então, os casos topograficamente favoráveis foram intensivamente

abertos com tradagem, para tentar localizar o material. (...) No caso da imagem do

satélite, eu acho que o caminho seria primeiro essa primeira etapa de caráter mais

empírico, plotar esses sítios numa imagem, a partir daí identificar os locais relevantes

e voltar em campo para testar em outras áreas o que foi feito; voltar aos locais

potencialmente favoráveis e, a partir daí, ter um maior conhecimento arqueológico do

local, e numa terceira etapa, fazer leitura dos piques dessa imagem e tentar algoritmos

a partir de modelos que, eu entendo, seriam modelos preditivos mesmo. No meu

entendimento, a viabilidade é nesse sentido.

Dilamar Martins - Para tentar responder o que foi colocado eu gostaria de chamar, se

for permitido, os especialistas da área, no caso o professor Roberto e o professor

Nilton Ricete Nazareno, que trabalham especificamente para explicar essa questão do

trabalho que foi feito a nível de reconhecimento geral e, posteriormente, explicar a

questão das unidades ambientais. Como é que foi feito, por exemplo, todo o trabalho a

nível de reconhecimento geral, a preparação, os estudos de laboratório que dariam a

chance para a gente percorrer a área. Era isso que eu queria que o professor Nazareno

colocasse e no segundo momento o professor Roberto explicasse a questão das

unidades ambientais e a divisão de zonas ambientais.

Walter Neves - Não perguntei de unidades ambientais, mas de unidades amostrais.

Dilamar Martins - A questão da percentagem da área trabalhada, a grande

preocupação que a gente teve foi a seguinte: a área de Serra da Mesa ela não permite o

acesso a determinadas áreas, então ela foi percorrida por via terrestre e de carro e por

via fluvial, onde era possível acessar. Então a área trabalhada ela se restringe, em

nenhum momento a gente coloca que nós conseguimos atingir os 1.784 Km; nesse

sentido, a gente sabe que uma série de sítios arqueológicos estão ali escondidos, essa é

a primeira coisa. Então, a área percorrida não compreende toda da área do

reservatório; onde foi possível acessar, a gente foi. Daí eu não ter exatamente uma

percentagem da área que foi trabalhada, na medida que o percorrimento não se dá na

área total, mas a gente teria um critério específico na questão da distribuição, que foi

outra questão que foi levantada basicamente pelo estado de conservação do sítio.

Em alguns sítios, a distribuição espacial deles é impossível de ser definida e

isso representa uma grande percentagem, especialmente nos eixos do Rio Maranhão e

Tocantins e D‟ Almas, que deve ter sido observada por uma transparência nossa que

há um vazio, inclusive naquilo que nós chamamos de área dois para área um. Talvez

em função disso, essa área é onde se registra a maior parte dos sítios que nós

consideramos como sítios destruídos, ou seja, que todas as estruturas arqueológicas

praticamente já não existem mais, salvo escassos fragmentos que ainda existem nos

barrancos, nos rios próximos a áreas de atuais garimpos ou que são doadas por

pessoas que trabalham nas áreas do garimpo e que utilizam o sistema que o professor

Carlos Magno já colocou, das duchas etc. Então, a distribuição espacial foi observada

com muita preocupação a partir dos sítios que o estado de conservação permitiu,

então não foi trabalhado só na parte superficial, quer dizer o material que aparece na

superficie não é o delimitador da distribuição espacial do sítio, na medida em que ele

é falseado pelos próprios usos atuais que são dados às área; daí a tentativa de

demonstrar a distribuição espacial dos sítios a partir dos trabalhos verticalmente.

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Então isso foi muito claro por exemplo, nós trabalhamos naquela aldeia mostrada, tem

dezesseis cabanas e nelas a gente encontrava uma área muito grande em que o

material estava distribuído, mas descontextualizado; então a partir daí a gente

começou a trabalhar tentando demonstrar essa distribuição espacial, que ficou clara ao

final do trabalho,com o reconhecimento de dezesseis manchas que constituíam as

cabanas; as áreas ociosas estéreis arqueologicamente também foram trabalhadas (entre

uma cabana e outra nas áreas centrais do sítio), verificando se existia ou não algum

elemento, na medida em que havia o espalhamento total de testemunho cerâmico na

área.

A questão da malha, eu vou tentar colocar aqui para não alongar e se depois

quiser, dar uma conversada com os especialistas. No primeiro momento, a gente fez

aquela subdivisão de áreas de 1 a 5 e nós fizemos de forma diferente do pessoal da

Universidade Federal de Minas Gerais. Inclusive, isso foi questionado pelo Instituto

do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, quando a gente não teria uma idéia global

da área, para daí selecionar sítios para serem escavados. Então, como um retorno às

áreas demandaria um tempo muito grande, nós resolvemos trabalhar todas as etapas

num espaço definido artificialmente e passando por todas as etapas: primeiro a do

reconhecimento, que é feito à distância e, posteriormente, a do levantamento intensivo

da área, utilizando técnicas tradicionais e aquelas que o geoprocessamento nos

fornecia para o embasamento dos trabalhos de campo e, daí, a etapa de prospecção.

Muitos dos sítios já eram encerrados nessa etapa, porque não era possível fazer

escavação naquele sítio; o nível de informação era extremamente baixo e,

posteriormente, a escavação, só terminadas as quatro etapas do trabalho é que a gente

passava para uma área que nós chamamos de uma outra área artificial e nela também

foram aplicados os mesmos procedimentos. A dificuldade maior que a gente teve foi o

que nós chamamos de área quatro no Rio Tocantinzinho, que tem características

muito próprias, rio muito encaixado e que impossibilita a chegada, seja via fluvial seja

terrestre; então, o número de sítios naquela área é o menor de toda a área do

reservatório, mas nem por via aérea certamente seria possível chegar às margens do

rio ou na área em que o reservatório tomará.

Carlos Magno - Em primeiro lugar, eu quero reconhecer que é pertinente a

observação que você faz com relação às expressões que eu usei, o que significaria “o

máximo possível”. Acontece o seguinte: o nosso trabalho de prospecção se voltou

para cobrir todas as informações que nós conseguimos obter, fossem elas de caráter

oral ou documental e bibliográfico. Isso significa dizer que existe uma grande

quantidade de informações já publicadas por aí, particularmente no que diz respeito ao

ouro; é um período da história que está razoavelmente conhecido. Então, a idéia

inicial era a seguinte: se nós temos informações, se foram obtidas através de

informantes ou de informações de origem bibliográfica ou documental, vamos tentar

cobrir todas essas informações e tentar ver o que sai; então, essa foi a primeira

orientação no que diz respeito ao trabalho desenvolvido na fase de prospecção.

Se você me perguntar qual é o percentual da área coberta, eu não sei; para

falar a verdade, ninguém sabe. Nós só vamos saber isso no final do projeto. Eu digo

isso porque muitos sítios ainda vão aparecer. Se eu fosse tomar como referência esse

ano de 96, eu diria para você o seguinte: menos de 20%, não prospectado ainda, pode

aparecer no conjunto que nós temos, ou seja, no universo que nós levantamos e

trabalhamos no ano de 96; ainda temos precisão de trabalho de campo em 97 e, se

possível e necessário, alguma coisa ainda em 98, embora em 98 ainda não esteja

definitivamente certo. Então, o que ocorre é o seguinte: de todo o conjunto de

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informações que nós obtivemos, a idéia era cobrir tudo isso e ver o resultado final. O

resultado foi isso a que nós chegamos; posteriormente, no trabalho de salvamento, nós

avançamos o número de sítios levantados, ou seja, aumentamos o universo dos

resultados. Agora, eu não posso te dizer, por exemplo, 70%, 30% ou 15% da área foi

coberta, porque isso eu só vou poder te dizer na medida em que, dentro da área, eu

tiver todo o conjunto de sítios levantados e, ainda em cima disso, eu poder julgar

todas as bacias que foram percorridas inteiramente. Foi um trabalho de prospecção

exaustivo, que a gente usou várias vezes. Quando para um determinado rio não havia

informação muito consistente, às vezes foi feita a opção pelo trabalho de prospecção

exaustiva, em alguns casos de varredura, certo?

Então a minha resposta para você é isso: eu não tenho ainda os dados exatos;

no que diz respeito à quantidade de sítios levantados até agora, sim, eu posso te dizer,

até o final do projeto não sei, mas pelo resultado que se apresentou até agora, eu

acredito que menos de 20% de sítios desse total pode ser ainda acrescentado através

de descobertas futuras.

E com relação à área toda coberta, tem essa questão, na medida em que nós

tivermos no final do projeto a área coberta por todos os sítios, além das bacias que

foram prospectadas exaustivamente, nós vamos ter o resultado, a expressão

quantitativa tanto de um caso (número de sítios) quanto de outro (área coberta). Acho

que aí inclusive nós vamos poder checar com outros métodos de trabalho, para ver

qual que é a viabilidade ou validade, nessa perspectiva que a gente colocou. Mas, de

qualquer maneira, eu acho que sua observação é pertinente; dizer que foi feito “o

máximo possível” é pouco, nos termos de qual é a objetividade que essa expressão

contém.

Solange Caldarelli - Renato Kipnis, da Universidade de Michigan.

Renato Kipnis - Várias questões que eu gostaria de levantar já foram feitas pelo

Walter; portanto vou diminuir o número de questões que vou fazer. Aproveitando uma

resposta do Carlos a uma pergunta do Walter, há dois problemas suscitados e que são

importantes. Um dos problemas é a questão de se tentar fazer um levantamento

arqueológico total e de como avaliar o trabalho de prospecção, se realmente foi

eficiente ou não. O que foi dito é que, para se ter o “resultado máximo”, como ele

respondeu ao Walter, é preciso conhecer o universo e ele só obtém uma idéia do

universo quando ele conseguir prospectar tudo. Este pensamento fica claro quando ele

fala que “no final do projeto eu vou ter uma idéia de universo porque esses (os sítios)

que passaram do nosso design vão aparecer fortuitamente”. Isto coloca um problema

muito sério no contexto específico de Serra da Mesa, uma vez que a barragem já está

sendo inundada e têm áreas que já estão de baixo d‟água ou estão sendo alagadas e em

que pode haver ocorrência de sítios. Como há áreas que não estão sendo visitadas e

não serão mais, os sítios que não foram localizados na primeira etapa de prospecão

não irão ter a chance de serem achados fortuitamente; essa é uma questão que tem de

ser pensada, principalmente quando falamos que estamos fazendo prospecção total e

na prática não é uma prospecção eficiente. Não foi citado o potencial arqueológico da

área que está sendo inundada, de um ponto de vista teórico, e que poderia guiar o tipo

de prospecção a ser realizada, para ser mais eficiente. Por outro lado, já existe um

corpo teórico bem desenvolvido quanto ao emprego de métodos estatísticos amostrais

em levantamento arqueológico, no qual podemos nos basear para avaliar uma área

(nosso universo) a partir de uma amostra significante da mesma.

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O outro ponto que gostaria de lenvantar remete um pouco à questão que a

Solange mencionou ontem. O Carlos não estava aqui, mas ele discutiu um problema

de significância e redundância de informação, principalmente para arqueologia

histórica. Quando falamos o “Ciclo de Ouro”, já estamos fazendo um trabalho

concentrado sobre um tema específico, com bastante informação secundária. É

preciso então ficar bem claro e objetivo que o projeto não está simplesmente

reproduzindo informação que já existe. Isto é muito importante em termos de custo.

Os projetos têm que ser bem objetivos, para se poder avaliar o tipo de conhecimento

que será gerado, e que este conhecimento não seja redundante. Em outras palavras,

que não se está gastando dinheiro para reproduzir algo que já existe, que já é

conhecido. Estas questões precisam ser pensadas, principalmente pela arqueologia

histórica, que tem bastante dados históricos, bem mais abrangentes do que a

arqueologia pré-histórica. Acho que isto tem de ser pensado também para arqueologia

pré-histórica.

Outras duas questões que eu queria colocar são as seguintes: primeiramente,

martelar um pouco mais a questão do problema de viés amostral e dos modelos que o

Walter falou, referindo-se à exposição da Emília. Eu acho que o Walter está certo

quando diz que todo mundo tem modelos explícitos, mas na verdade eles são

implícitos. A Emília falou em um determinado momento o seguinte: “nós achamos

sítios em áreas em que nós não esperávamos encontrar”. Implicitamente, ela tinha

uma expectativa. O problema não é a falta de modelos, mas é construir bons modelos,

modelos que sejam eficientes, objetivos e testáveis. Isso eu acho que é complexo,

difícil. Mas todo mundo está usando algum tipo de modelo, acho que na fala da

Emília que acabei de citar fica claro que estão implícitas expectativas da ocorrência

ou não de sítios em determinadas áreas. O problema é estar sempre aberto para

reconhecer que existe, e sempre vai haver, viés no nosso design e temos que tentar

descobrir onde estão estes viéses, para poder redirecionar a pesquisa. Por exemplo, no

caso do Jorge, que falou ontem, no caso do projeto do Carlos, temos desenhos

amostrais de prospecção total e que mostraram-se ineficientes, uma vez que novos

sítios foram achados após o término da etapa de prospecções. No caso da Emília,

utilizou-se o relevo como uma das variáveis, áreas inundáveis e áreas que não são

inundadas. A partir desta variável, implicitamente criou-se expectativas de

ocorrências de sítios arqueológicos e sítios onde não se esperava ocorrerem foram

encontrados. É neste momento que precisamos parar e reconhecer que o desenho

amostral está errado; precisamos redirecionar a pesquisa porque tem áreas onde

ocorrem sítios, que não estão sendo amostradas; nós não estamos dando chance desses

sítios aparecerem. E mesmo que não ocorram sítios em uma determinada região, é

necessário incluir esta região na amostragem. Não se pode pressupor que em áreas

como o Pantanal ou a Amazonia, onde nós temos áreas que parte do ano estão

cobertas por águas, que as áreas alagadas não vão ter sítios, porque é assumir que as

populações vão estar sempre, o ano todo, nas áreas mais elevadas. Pode ser que

durante as secas eles vão fazer as roças nas áreas que estão inundadas, provavelmente

isto é o que ocorre, porque são áreas ricas, que contém solos ricos em nutrientes.

Então, prosseguindo neste raciocínio, tem que se pensar logo, desde o começo, em

sistemas sociais que estão interagindo num espaço e tem que se pensar que tem

atividades que são feitas em áreas diferentes. São viéses que podem ser detectados

durante a elaboração, avaliação e implantação do projeto de pesquisa.

Outra coisa que eu achei importante na colocação do Walter é que, apesar de

meio implícita, a questão fundamental desta mesa é levantar parâmetros para

avaliação de projetos e mitigações. Por exemplo, nós podemos criar vários parâmetros

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para servirem de instrumento de análise de projetos de salvamento e acho que uma

das questões do Fórum é discutir isto, segundo uma perspectiva de levantar subsídios

para o IPHAN e outros orgãos reguladores avaliarem os vários aspectos das pesquisas

que são feitas, dentro de um contexto de arqueologia de contrato. Por exemplo, vamos

pegar o projeto de Serra da Mesa como um todo. A área que vai ser impactada é de

1.780 km2 e o nosso objetivo é fazer prospecção total. A questão é: se eu disser que

vou trabalhar com duas equipes de 4 pessoas cada e precisarei de 2 anos, será que isto

é viável, pouco tempo, muito tempo?. Como podemos avaliar esta questão? O que

estou sugerindo é a criação de parâmetros mínimos para termos avaliações mais

objetivas. Como exemplo, vamos pegar a experiência que eu tenho de trabalhar em

São Paulo, que é uma condição ideal em termos de cobertura vegetal, que em muitos

dos casos virou pasto ou cultivo e o acesso aos locais é muito fácil. Nestas condições,

e trabalhando com uma equipe de cinco pessoas, na melhor das hipóteses a gente

conseguia fazer 2 km2 de levantamento, sem nenhuma outra atividade, tipo registro,

cortes-teste, etc. Então, fazendo uma conta utilizanto os dados que acabo de citar e

pegando os 1.784 km2 da área de Serra da Mesa que será inundada, dariam 892 dias

de prospecção: só levantamento para achar sítio, sem contar teste, escavação, registro,

topografia, etc, só achar o sítio e continuar andando. São 892 dias; se nós dividirmos

em duas equipes de 5 arqueólogos cada, são 450 dias - mais ou menos 3 anos

(assumindo 5 meses de trabalho de campo por ano), só de levantamento, se achar sítio

não pára, continua andando. E este cálculo utiliza um parâmetro mais ideal que a

realidade de Serra da Mesa, onde não há tanta utilização da terra como há em São

Paulo, e onde o acesso aos locais é mais complicado. Se formos pensar para projetos

na Amazônia, os parâmetros que temos que utilizar têm de ser mais restritos ainda.

O ideal é que tenhamos parâmetros regionais, porque para a região Amazônica

vai ser totalmente diferente; na melhor das hipóteses, não chega nem a 1 km2 por dia,

com uma equipe de 5 pessoas. A idéia de se criar parâmetros é para se ter

instrumentos mais objetivos para avaliação de projetos. Por exemplo, quando algum

projeto contiver levantamento total, teremos meios de avaliar, baseados em

informações objetivas, se a proposta é viável, segundo a metodologia sugerida. Deste

modo, as avaliações de projetos de salvamento podem ser pontuais e eficientes. Acho

que a questão da avaliação é muito importante, pois temos de lembrar que, no

contexto da arqueologia de contrato, estamos lidando com custos que algumas vezes

são muito altos e é nosso dever tentar ser o mais eficiente possível. Eu acho que estas

questões são importantes, têm que ser discutidas e decidir o que seria necessário

juridicamente em termos de torná-las aplicáveis.

Um último ponto que eu queria só lembrar, do qual até agora não se falou e

que é uma informação muito importante para avaliação e para se fazer estudos de

significância: datação radiométrica. É fundamental se ter uma cronologia,

principalmente para projetos pré-históricos, no começo das atividades específicas de

pesquisas, quando ainda é possível fazer mudanças no cronograma. Vamos supor que

um determinado sítio tenha várias ocupações e que as datações serão feitas somente

no final ou depois de feito o trabalho de campo. Imagine que descubrimos que uma

ocupação tenha uma datação de vinte mil anos. Esse sítio em contexto seria um sítio

muito importante para ser trabalhado e até a datação em si altamente discutível. Uma

vez que o projeto já acabou, você não teria como voltar; por outro lado, tendo essa

datação já no começo das pesquisas, ou pelo menos na metade, você tem como

redirecionar a sua pesquisa, em termos de significância e outros parâmetros.

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Solange Caldarelli - Antes de os colegas responderem, eu queria aproveitar uma

colocação do Renato, relativa a tempo de pesquisa para se fazer levantamento, para

me reportar a uma questão que eu coloquei ontem, mais para os empreendedores do

que para os meus colegas de pesquisa, pois eles também foram chamados muito tarde

no processo: se se tomar Serra da Mesa como exemplo, vê-se que o levantamento

arqueológico deveria ter ocorrido há uns cinco anos atrás, para evitar ocorrer um

problema já discutido aqui, de ter de levantar e resgatar ao mesmo tempo, no maior

atropelo, o que impede a reflexão científica sobre os dados oriundos do levantamento,

tão necessária para subsidiar as decisões relativas ao que e a como resgatar.

Emília Kashimoto - Vou tentar colocar alguns pontos. Essa questão do sítio que eu

disse que foi localizado e não era esperado, na verdade era um nível lítico profundo

no mesmo espaço; o que não se esperava era o nível lítico em profundidade de 2m,

naquele local onde havia cerâmica em superfície. Portanto, essa questão de ter sido

localizado um sítio onde não se esperava, na verdade, dizia respeito a sítios em

profundidade, a uma questão estratigráfica e não à questão da distribuição dos sítios

nessas elevações topográficas. Assim, essa pesquisa tem realmente a perspectiva de

cobertura total; a idéia é realmente cobrir tudo o que for possível. No caso, por

exemplo, do módulo da barragem, quando iniciamos a pesquisa a barragem já estava

em construção e a área toda já estava alagada. Então era realmente impossível

pesquisar boa parte da área, especialmente essas partes onde ocorreria uma ocupação

sazonal, num período mais seco. Nós temos uma premissa de que o arqueólogo é um

profissional e não tem que arriscar a vida, mergulhar nos brejos, coisas que não dá.

Então, fizemos testes em alguns locais que tinham características semelhantes;

fizemos sondagens intensivas e realmente não havia material arqueológico; pegamos

ilhas encharcadas, nesse caso com a equipe da UNESP, aquelas ilhas mais baixas que

são encharcadas, onde, inclusive, fizemos tradagens para ver se localizávamos alguma

coisa, mas realmente não havia nada. Nos diques menos elevados, fizemos

caminhamento no início, observando se não tinha nenhum material arqueológico, e

outras observações posteriores, que confirmaram que não haveria material

arqueológico.

A outra questão que eu queria colocar é complementar à interpretação do

Kipnis: é que o projeto Porto Primavera tem 15 datações de termoluminescência e três

de carbono quatorze e isso está auxiliando nossa interpretação sobre a questão dos

assentamentos cerâmicos e líticos.

Carlos Magno - Bom, deixa eu tentar responder. São informações que a gente

pretende atingir numa determinada área. Não trabalhando numa perspectiva imediata

da amostragem, é evidente que o risco existe, seria ingenuidade querer negar isso.

Agora, o que tem ficado para nós, nesse projeto, é que a riquezas das informações,

que não se repetem, compensa essa questão; é claro que ela tem de ser levada em

conta, mas, para falar a verdade, eu não sei até que ponto ela pode ser generalizada ou

não. No caso específico de Serra da Mesa, nós temos uma tal diversidade dentro de

cada um daqueles tipos (que são meia dúzia) que, mesmo que você considere que são

10 fazendas, cada uma delas é diferente da outra; então, não se trata de negar o risco

da redundância, mas de considerar que a diversidade supera a redundância.

Em segundo lugar, a questão sobre saber-se muito sobre o Ciclo do Ouro. As

informações são complementares, elas não são as mesmas que a arqueologia te

fornece; a documentação e a bibliografia não te dá as mesmas informações; então, eu

acho que a gente está avançando, no sentido de estabelecer ou de reconstituir o

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processo através do qual toda uma tecnologia é desenvolvida e aplicada ao longo do

período, que não é só século XVIII, mas o XIX também; mas no século XIX você

encontra um outro processo, onde a mineração já é residual, como continua sendo até

hoje. Então, eu não acho que é argumento de peso considerar que não tem sentido

fazer escavação, já que a documentação traz informações, na medida em que elas são

complementares e não repetidas ou recorrentes.

Quanto aos cálculos que você fez, aí, para falar a verdade, eu discordo; eu não

consigo imaginar a necessidade de cinco arqueólogos numa equipe de prospecção.

Para mim, dois são suficientes, para poderem trocar idéias e informações sobre o sítio

que está sendo prospectado. Veja bem, você tem recursos que permitem desmembrar

equipes; eu tenho uma equipe de oito arqueólogos, que eu posso desdobrar em duas

ou até em quatro equipes diferentes; o recurso do rádio, que é uma bobagem mas

quebra um galho tremendo e que te permite a troca de informações e otimizar o

rendimento do trabalho de prospecção. Esses recursos técnicos, eles tem de ser

levados em conta e aí, logicamente, nós vamos cair numa outra questão que você

levanta, que é a questão do custo dos projetos em geral e o que está sendo levantado

aqui, especificamente em relação à Serra da Mesa. Acho que um projeto dessa

envergadura não fica barato, não tem como, não há artifício possível para fazer que

um projeto dessa magnitude custe preço de banana e, além disso, eu tendo a acreditar

que projetos pequenos acabam proporcionalmente saindo a custos mais elevados.

Finalmente, para terminar a minha resposta, eu queria dizer que, quando você

faz o cálculo do tamanho da área a ser coberta, você julga a possibilidade ou a

necessidade de que a área inteira seja coberta; acontece que o conjunto das

informações obtidas previamente indicava uma diversidade de sub-áreas, sendo que

em algumas áreas, como a Bacia do Tocantinzinho, as condições não permitem ou

não são favoráveis ao desenvolvimento de atividades, nem de ocupação; é claro que

você tem atividade e ocupação, mas muito rarefeitas quando você compara com o Rio

do Peixe, esse que a gente atravessa quando vai para Muquém, ou o rio Traíras, por

exemplo, que são áreas de grande densidade populacional, já no século XVIII; então

eu acho que esta questão teria que ser colocada.

Solange Caldarelli - Paulo Mello.

Paulo Mello - Minhas questões eram parecidas com as do Walter, mas eu queria

ressaltar o seguinte: o problema de acesso não pode ser jogado como uma desculpa

para não se levantar certas áreas, principalmente pela vegetação. No projeto de

Corumbá, que foi apresentado no primeiro dia, foram prospectados, a pé, mais de

220Km, mais da metade disso foi feita abrindo picada. Como a própria professora

Irmhild percebeu, se não fosse essa metodologia, não teriam sido achados

determinados sítios, que são fundamentais para o estudo de padrões de assentamento,

um dos objetivos que a professora Dilamar apontou ter também para Serra da Mesa.

Para cumprir esse objetivo, fica complicado se certas áreas não são levantadas; tem

que se dar um jeito para isso, para levantar esses tipos de área que apresentam

dificuldades. Tem uma série de tecnologias que estavam sendo usadas, como sistema

geográfico de informação, imagens de satélite; fica complicado se você divide a área

de maneira artificial, como foi feito em Serra da Mesa, segundo entendi. Seria muito

mais lógico dividir a área de acordo com critérios ambientais e, já que não se quer

fazer transects nas áreas de difícil acesso, ver se há áreas semelhantes que sejam

acessadas mais facilmente e trabalhar nessas áreas. Era isso que eu tinha para dizer.

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Dilamar Martins - Eu queria colocar, em primeiro lugar, que há uma diferença muito

grande na relação que se faz entre Corumbá e Serra da Mesa. A área é completamente

diferente em termos ambientais, portanto, os procedimentos provavelmente utilizados

para Corumbá não seriam os adequados para Serra da Mesa. Então, nesse sentido, a

gente coloca que os recursos, a nível das ferramentas, como imagens de satélite, fotos

aéreas de levantamento geográfico, enfim, de toda a documentação cartográfica

existente, como Carlos Magno já havia colocado, descartam automaticamente

determinadas áreas que seriam realmente perda de tempo, porque provavelmente

jamais seriam utilizadas como áreas de assentamento humano, seja atual como

pretérito e quem conhece Serra da Mesa sabe disso perfeitamente e a própria

documentação cartográfica existente mostra isso. Então, eu não acho pertinente a

relação feita entre a situação de Serra da Mesa com a de Corumbá.

Paulo Mello - Você tem que amostrar, você tem que saber quantos por cento você

amostrou; em Corumbá a região é muito menor, eu posso amostrar uma área muito

maior, mas você tem que amostrar todas as variedades paisagísticas de Serra da Mesa

mesmo que seja 1% da área ou 10%, sei lá, quanto for necessário, a relação é a

mesma.

Solange Caldarelli - Catarina Ferreira da Silva, IPHAN.

Catarina Ferreira - Em relação à colocação do Jorge Eremites a respeito da Hidrovia

Paraguai/Paraná, queria dizer que o IPHAN vem acompanhando o assunto. É verdade

que foi solicitado pelo arqueólogo argentino uma autorização ao IPHAN e a

solicitação caiu em exigência porque não havia uma instituição nacional e

pesquisadores nacionais envolvidos. O consórcio que ganhou a execução do

diagnóstico nos comunicou a decisão de não mais fazer o trabalho de arqueologia.

Com essa resposta, o assunto foi encaminhado ao Ministério Público em Brasília, e

estamos aguardando um pronunciamento. Há portanto a preocupação do IPHAN em

que o trabalho seja feito. Aguarda-se agora que o EIA/RIMA dê entrada no orgão de

licenciamento ambiental, no caso o IBAMA e as Secretarias Estaduais para podermos

solicitar vistas aos documentos e, enfim, nos posicionar oficialmente e, caso

necessário, exigir a complementação ou a execução de um novo diagnóstico em

relação à arqueologia e ao patrimônio cultural da área a ser impactada.

Solange Caldarelli - Vou chamar o professor Glauberto Bezerra.

Glauberto Bezerra - Todos os atos do homem têm repercussão no ambiente natural e

no ambiente cultural também. Com relação à denúncia do professor Eremites,

repercute também no ambiente jurídico e repercute de maneira violenta. Ontem, já nos

reportávamos ao teor do texto constitucional, que considera o patrimônio histórico,

arqueológico, paisagístico, patrimônio da União no seu artigo 20. Também no artigo

216; aliás, esse é um dos patrimônios do Brasil, da União; está consignado em dois

sítios constitucionais diferentes; por isso mesmo, não posso em absoluto conceber

que, tendo havido um estudo de impacto ambiental, com catalogação de sítios, mais

de 100, me parece, venha uma equipe que desautorize em um documento o estudo

feito pelos arqueólogos brasileiros e registrado no instituto pertinente. Então, para

nós, dentro da visão, dentro da ótica jurídica, esse documento este documento

inexiste, não tem validade e qualquer cidadão que queria exercitar seu poder e seu

direito de cidadania, com embasamento no artigo 5º da Constituição, pode impetrar

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uma ação popular. Concordo e assino com a proposição do nosso colega, quando ele

disse que dever-se-ia impetrar ações políticas tentando reverter a situação. Acho

interessantíssimo, até porque a própria administração tem poder de revisar seus atos,

que seriam nulos. Todavia, eu acho que esse é o momento em que se deve examinar a

questão em todos os seus quadrantes: político, jurídico e científico. Me parece que

um trabalho científico realizado e concretizado, com a fixação de sítios, não pode de

repente desaparecer: se estão registrados e documentados; me parece que teremos

extrema facilidade até, senão politicamente, administrativamente, juridicamente,

através do Ministério Público, ou de outras instituições, porque Organizações Não

Governamentais podem e devem intentar ações dessa natureza. Acho que esse assunto

deveria ser trazido à baila novamente amanhã, quando estarão presentes especialista

de renome do mundo jurídico brasileiro nessa área: doutor Paulo Afonso Machado,

Roberto Monteiro e Carlos Caldarelli, que poderão examinar com mais consciência

esse fato específico, que pode ser levado como bandeira a partir desse Fórum. E

também uma questão ao Fórum: que seja consignado, nos seus estatutos, defesa do

patrimônio paisagístico, artístico e arqueológico também, muito obrigado.

Solange Caldarelli - Sandro Junqueira, da FEMAGO

Sandro Junqueira - Eu sou Sandro, tenho 16 anos de FEMAGO, e sou também

professor da Universidade Católica. Nós estivemos à frente do licenciamento da Serra

da Mesa. Dilamar já é companheira de longa data. Então, o que a gente quer colocar

são coisas gerais e perguntar se os modelamentos da arqueologia acadêmica ou da

arqueologia de salvamento, as matrizes variáveis, se elas foram suficientes para as

diversas etapas existentes: levantamento, prospecção, salvamento e resgate,

considerando que diversos profissionais têm tecido críticas ao enchimento do

reservatório da UHE Serra da Mesa, considerando a enorme área da Barragem

(1.784Km) e o fato de 20% dos sítios histórico-culturais não terem sido cobertos. Nós

estamos considerando aqui, custos, o tempo necessário, resultados obtidos e a

comparação com outros projetos, com eficiência e eficácia. Basta saber que o

Ministério Público Federal do Tocantins protocolou uma ação cautelar que nós temos

que suspender esse licenciamento e na análise que pude fazer, acurada, a conversa que

eu tive com a professora Dilamar (eu quero parabenizar os estudos que a UFG e

UFMG fizeram) e a gente está sendo uma vidraça de críticas (...) e uma outra

recomendação que eu faria é que esses resultados do encontro de vocês fossem

encaminhados aos órgãos ambientais, porque lá nós somos curingas. Eu sou geógrafo

e tive quatro horas de antropologia cultural, fui aluno da professora Irmhild, do

professor Altair Sales Barbosa, eu não trabalho direto na área, convivo com o pessoal

do IGPA desde 88, que sou professor aqui e que façam realmente esses contatos; eu

não acredito que os estados vão contratar arqueólogos, eles não estão dando conta de

pagar nosso décimo terceiro, nós temos que trabalhar em comum com uma equipe

multidisciplinar. É isso que quero falar aproveitando a oportunidade e agradeço o

respeito que vocês deram pelo avançar da hora. Obrigado.

Solange Caldarelli - Eu quero dizer que os resultados do Simpósio serão

encaminhados, através do documento-síntese, a todos os órgãos ambientais e ao

Ministério Público; isso já foi decidido.

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4ª MESA-REDONDA:

RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE

DIAGNOSTICÁ-LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E

MONITORAR SEUS IMPACTOS

COORDENAÇÃO:

Prof. Jézus Marco de Ataídes

Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/UCG

Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

ANTONIO CARLOS SANT’ANNA DIEGUES

Livre-Docente em Sociologia pela ESALQ-Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós/USP

Professor do Departamento de Economia e Sociologia Rural da ESALQ/USP

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental/USP

Coordenador do NUPAUB-Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Húmidas Brasileiras/USP e do CEMAR-Centro de Culturas Marítimas/USP

Membro da IUCN-International Union for Conservation of Nature no Brasil

Há vários anos dedica-se a estudos de sócio-antropologia de regiões litorâneas, do Pantanal e da Amazônia, em colaboração com várias universidades brasileiras e

organizações internacionais, tendo vários livros e artigos científicos publicados sobre o

assunto.

RINALDO SÉRGIO VIEIRA ARRUDA

Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP

Chefe do Departamento de Antropologia da PUC/SP

Sócio-fundador e coordenador do IPA-Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo

Desde 1982, tem realizado trabalhos de consultoria e assessoria para associações indígenas

e comunitárias, bem como em projetos de desenvolvimento regional. Dentre estes, destacam-se a avaliação do componente indígena do projeto Polonoroeste, em Mato

Grosso e Rondônia, de 1982 a 1986; a consultoria para o CNEC/ELETRONORTE para

avaliaçào de impacto de projeto hidrelétrico em áreas indígenas de Rondônia, de 1986 a 1988; a assessoria à Associação dos Moradores da Juréia, em São Paulo, em 1989/90; a

avaliação de impactos ambientais e culturais de projeto hidrelétrico na sociedade

Nambiquara em 1992. Atualmente, presta assessoria ao CNEC no projeto PRODEAGRO,

no Mato Grosso.

Tem livros e artigos publicados em revistas científicas, voltados principalmente para as

questões indígenas.

CARLOS EDUARDO CALDARELLI

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo

Advogado com escritório em São Paulo (SP)

Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica,

participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento Ambiental

Membro da IAIA - International Association for Impact Assessment

HELOÍSA S. F. CAPEL DE ATAÍDES

Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Goiás

Professora de História do Departamento de História, Geografia e Ciências Sociais da UCG

Historiadora do “Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da

UHE Corumbá, GO” - Furnas/UCG

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O PATRIMÔNIO NATURAL E O CULTURAL: POR UMA VISÃO

CONVERGENTE

Antonio Carlos Diegues

Introdução

A Constituição Brasiloeira, em seu artigo 216, considera como constituintes

do patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial ...

portadores de referência ã identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira. Esse artigo inclui como integrante desse

patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver. A mesma

Constituição, por outro lado, define como regiões prioritárias de conservação

ambiental a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Pantanal e outros ecossistemas

importantes, espaços territoriais onde existem sub-culturas importantes, como a dos

caiçaras do litoral do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, o Estado

implantou nessas áreas uma série de parques nacionais e reservas naturais que, pela

legislação em vigor, levam à exclusão e mesmo reassentamento das comunidades e

culturas tradicionais em outras áreas. Essa política ainda em vigor tem criado

inúmeros conflitos entre a administração de parques e reservas e as comunidades

tradicionais que, ainda presentes nessas áreas protegidas são pribidas de exercerem

suas práticas econômicas e sociais. A prática de pequenas roças, o uso de tecnologias

patrimôniais na pesca, no fabrico de farinha, na construção de canoas tem sofrido

severas restrições, colocando em risco a própria reprodução social e simbólica dessas

comunidades tradicionais cujos membros, frequentemente são forçados a migrar para

as periferias pobres das cidades da região. Aí sofrem um processo de perda de sua

identidade cultural, com o abandono de práticas simbólicas essenciais à sobrevivência

do grupo. Essas práticas preservacionistas oficiais, impulsionadas por grupos

ecológicos urbanos, desconhecedores das relações e práticas históricas desses grupos

com o mundo natural, em grande parte responsável pela conservação das florestas e

áreas costeiras tem, frequentemente ocasionado uma redução da diversidade cultural

brasileira e contribuido para um aumento da degradação de matas e mares.

A existência de comunidades tradicionais foi, por inúmeras décadas, ignorada

pelas instituições conservacionistas brasileiras e somente nos últimos anos, sobretudo

após o fim do período autoritário, veio à cena política como resultado de uma

organização incipiente dessas populações, de ações de organizações não-

governamentais sócio-ambientais (ex. Conselho Nacional dos Seringueiros) e de

algumas universidades e instituições de pesquisa. Como resultado de intensos debates,

o novo projeto de lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, cujo relator é

o dep. Fernando Gabeira, (substitutivo ao Projeto de Lei 2.892/92) reconhece o papel

positivo dessas populações tradicionais para a conservação. No entanto, as décadas de

uma política conservacionista inapropriada, baseada em modelo importado dos

Estados Unidos tiveram efeitos nefastos, que ainda perduram, sobre essas culturas

tradicionais moradoras de parques e reservas.

Na década de 80, a figura do tombamento, proposta pelo Serviço (Instituto) do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi também proposta seja para preservar o

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patrimônio natural (ex: o tombamento da Serra do Mar, das Ilhas do Litoral Paulista)

seja para preservar o patrimônio cultural (tombamento das vilas caiçaras como as de

Picinguaba e Icapara, nos municípios litorâneos paulistas de Ubatuba e Iguape,

respectivamente).

Este artigo pretende analisar a importância das culturas tradicionais para

conservação das florestas e áreas costeiras e a necessidade de, ao se implantar projetos

de proteção ambiental, levar em consideração a presença das comunidades humanas

que vivem na área há muitas gerações e dependem do uso sustentável dos recursos

naturais renováveis para sua reprodução social e simbólica. As comunidades caiçaras,

que vivem na Mata Atlântica de São Paulo são tomadas como exemplo para a análise

dos conflitos e do potencial que apresentam para novas políticas de proteção

ambiental e de conservação do patrimônio cultural da região.

O Patrimônio natural

A idéia de patrimônio natural já figurava no decreto-lei n. 25, de 30 de

novembro de 1937, visando proteger valores paisagísticos, “como sítios e paisagens

que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados

pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. (Fonseca, 1996). Nesse sentido,

o patrimônio natural tinha seu equivalente no primeiro parque nacional brasileiro, o de

Itatiaia, criado nesse mesmo ano. Já em 1934, o Código Florestal definia parques

nacionais como monumentos naturais destinados a proteger áreas de grande beleza

cênica, com composição florística primitiva. A idéia de parque nacional como

monumento natural, de onde os homens deveriam ser excluidos tomou força com os

preservacionistas americanos do século XIX. Herny Thoreau e John Muir afirmavam

que no mundo selvagem estava a salvação do homem e sua transformação em parques

nacionais era o antídoto para os venenos da sociedade urbano-industrial norte

americana, destruidora da natureza. No entanto, como afirma Simon Schama (1996),

os santuários naturais de Yellowstone e Yosemite, assim como a natureza selvagem

eram um produto cultural, uma “elaboração da cultura tanto quanto qualquer jardim

imaginado” (p.17). Como produto simbólico, o parque natural americano, um

santuário sem vestígios humanos, incorpora uma visão antiga do Éden primitivo de

onde os primeiros serem humanos foram expulsos. Nesse sentido, ele faz parte do

mito moderno da natureza intocada e intocavel. Como afirma Simon Schama, à

semelhança de todos os jardins que povoam a imaginação humana, o parque nacional

americano de Josemite “pressupunha barreiras contra a bestialidade. No entanto, seus

protetores inverteram as convenções, deixando os animais dentro e os humanos fora.

Assim, tanto as companhias de mineração que penetraram nessa área da Sierra

Nevada quanto os índios Ahwahneechee foram meticulosa e energicamente expulsos

do idílico cenário” (18).

Ou ainda, como afirma Simon Schama, as pradarias reluzentes de Josemite já

não eram simplesmente natureza selvagem, mas o resultado de frequentes queimadas

realizadas pelos indígenas para servir de alimento aos bizontes.

A noção de patrimônio natural selvagem, sem qualquer tipo de4 morador, não

esteve somente na base da criação do primeiro parque nacional brasileiro nos anos 30,

mas reapareceu também na defesa da transformação de espaços territoriais florestados

da Mata Atlântica, como sucedeu com a Juréia que, nos anos 70, ameaçada em

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transformar-se em condomínio de luxo e até em área de usinas nucleares, foi tombada

pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,

Arqueológico e Turístico) como área natural, ainda que fosse a morada de centenas de

famílias caiçaras. Os ecologistas paulistas que propuseram a implantação de uma

Estação Ecológica, uma das mais restritivas unidades de conservação ao uso humano

esqueceram-se também que as comunidades indígenas e caiçaras aí residentes, que

por décadas e mesmo séculos transformaram a paisagem da mata tropical e as zonas

costeiras circundantes através de suas tecnologias patrimoniais usadas na pequena

agricultura, na pesca e no extrativismo.

O Patrimonio Cultural não-consagrado

A idéia de patrimonio Cultural não-consagrado surgiu no SPHAN -

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também por volta da década de 70

designando os bens culturais que, até então, não integravam o conjunto do patrimônio

histórico e artístico nacional. Segundo Fonseca (1996), “tratava-se das produções dos

“excluidos” da história oficial; indígenas, negros, populações rurais, imigrantes, etc.

Para alguns funcionários do SPHAN, a exclusão desses bens culturais se justificava

pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura

desses grupos sociais, e por estarem esses bens, em geral, imersos em uma dinâmica

que inviabilizava o tombamento”. (Fonseca, 1996:159). A criação do centro Nacional

de Referência Cultural - CNRC- fundado em 1975, e em 1979 incorporado à

Fundação Nacional Pró-Memória contribuiu para a valorização da produção cultural

mais ampla, voltando-se para a valorização da cultura viva, sobretudo aquela

enraizada no fazer popular, com a intenção de tornar mais diversificada a

representação da cultura brasileira. O trabalho realizado pelo Pró-Memória serviu para

resgatar a cultura de importantes setores marginalizados das políticas culturais.Como

afirma Fonseca (1996), o reconhecimento desses setores não somente como objetos

de pesquisa, mas como produtores de cultura foi uma alavanca importante para a

afirmação da cidadania daqueles até então excluidos das políticas culturais. Como

resultado dessa nova proposta, várias manifestações da cultura viva dos grupos sociais

até então tidos marginais, como a dos negros, indígenas, caiçaras passaram a ser

objetos de tombamento.

Dentro dessa nova perspectiva, em 1976, o CONDEPHAAT, em São Paulo,

realizou o tombamento da vila caiçara de Picinguaba, no municipio de Ubatuba e

propôs também o tombamento da vila de Icapara, no município de Iguape com o

objetivo de preservar aldeias caiçaras como representativas de uma forma de

assentamento humano que fazia parte integrante da história do povoamento paulista,

ameaçada de extinção. Em abril de 1984, oito anos após o tombamento de Picinguaba,

a conselheira do CONDEPHAT, profa. Eunice Durhan propôs transformar o

processo de tombamento numa intervenção controlada permanente, tendo em vista as

transformações ocorridas, nesse período, na paisagem humana da vila, causadas pela

especulação imobiliária e pela construção de casas de veranistas. No momento do

tombamento, havia sido aprovado um plano diretor da vila, que se propunha a

regulamentar a densidade populacional, a doação de medidas para a conservação da

arquitetura original e da paisagem. Dez anos depois do tombamento pode-se dizer

que, ainda que tenha vida um certo controle da ocupação desenfreada, a vila passou

por um processo de descentralização cultural que acompanhou uma decadência das

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atividades econômicas tradicionais, sobretudo aquelas ligadas à pesca artesanal. E na

base desta, está o desafio básico para esse tipo de tombamento: trata-se de uma cultura

viva, cujas bases sociais e econômicas foram sendo solapadas pelo contato com a

sociedade urbano-industrial, sem que o Estado tomasse medidas de apoio a uma

economia local indefesa frente aos avanços da chamada modernidade. os caiçaras

foram perdendo o controle sobre o seu território, sobre suas areas de plantio, suas

praias enquanto lugar de trabalho e vida e sobre o fazer e conhecer tradicionais.

Infelizmente, para isso contribui não só a especulação imobiliária, mas a implantação

dos momentos naturais, os parques e reservas que restringiram as atividades

tradicionais caiçaras. Aqui se revela uma dos efeitos da aplicação das políticas

dissociadas de proteção ambiental e cultural praticada tanto IPHAN como pelos

órgãos de conservação ambiental. Frequentemente, o chamado patrimônio natural a

ser protegido faz parte integrante do patrimônio cultural das populações tradicionais e

não podem ser protegidos separadamente. Essa proteção dividida torna-se ainda mais

grave quando o território do chamado patrimônio natural é o lugar reprodução

economica, social e simbólica das populações tradicionais, como é o caso das

caiçaras. Toda tentativa de congelamento dessas áreas naturais onde vivem

populações tradicionais acaba por, a longo prazo, desarticular a vida dessas

comunidades e comprometer a própria conservação ambiental. Por outro lado, pode-se

pensar que a implantação de áreas naturais protegidas que incorporem os interesses

das populações tradicionais possa contribuir para transforma-las em verdadeiros

laboratórios para a realização de ações visando o desenvolvimento sustentavel, através

do qual sejam respeitados e valorizados o saber tradicional, a tecnologia patrimonial e

mesmo sejam introduzidas técnicas alternativas de uso sustentavel do solo e dos

recursos naturais.

A proteção ecológico-cultural: uma síntese da defesa do patrimônio cultural e

ambiental

Já existe, a nivel internacional uma consciente crescente que a proteção da

diversidade biológica, de espécies, ecossistemas e genes não pode ser dissociada da

proteção daquelas culturas tradicionais que possuem um vasto conhecimento do meio-

natural em que vivem. (Diegues, 1966). Uma das maiores instituições ecologicas

globais, a UICN- União Mundial para a Conservação (1993) tem alertado para a

nexessidade de proteger tanto a biodiversidade quanto a diversidade sócio-cultural.

Estudos recentes (Gomes-Pompa, 92; Balée, 1988; Posey, 1987) tem demonstrado

também que as populações tradicionais, tem contribuido, em inúmeros casos, para a

manutenção e até fortalecimento da biodiversidade.

Até recentemente, os ecologistas preservacionais norte-americanos e europeus,

e seus sequidores dominavam o cenário da conservação com sua proposta de parques

e reservas sem a presença de populações, mesmo as tradicionais. Essa política não tem

garantindo a conservação das florestas, sobretudo nos países do Terceiro Mundo,

onde, ao contrário dos Estados Unidos, vivem comunidades tradicionais indígenas e

não-indígenas ameaçadas de expulsão com a criação dessas áreas naturais protegidas.

A partir dos anos 70, em vários países do Sul, os ecologistas sociais tem

criticado essa ação impositora do Estado sobre as populações tradicionais, propondo

formas de harmonização para a manutenção da proteção ambiental e sócio-

cultural.Uma dessas propostas é a da reserva extrativa para os seringueiros da

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Amazônia. Uma outra, proposta pelo Nupaub-Núcleo de Pesquisa Sobre Populações

Humanas e Áreas Úmidas, da USP, agora incorporada no projeto de lei do Deputado

Fernando Gabeira é a reserva ecológico-cultural.Essa nova unidade visa proteger, de

forma dinâmica as relações entre populações tradicionais, como a caiçara e seu

ambiente, designando áreas de preservação permanente de florestas, estuários e rios.

O importante, nessas propostas recentes é a consideração que nem o ambiente nem a

cultura são fenôminos estáticos, mas que co-evoluem e se interpretam profundamente,

em processos complexos e dinâmicos. Nesse pocesso, na maioria das vezes

assimétrico, as culturas tradicionais se desorganizam, mas, em outros, elas resistem,

incorporando elementos novos, sobretudo aqueles que favorecem uma melhor

organização da produção e comercialização dos produtos agrícolas, pesqueiros e

artesanais. A proteção ambiental e cultural precisa levar em conta essa dinâmica, caso

contrário corre-se o risco de congelar as culturas tradicionais como peças de museu e

não como processos vitais relacionados com a produção e reprodução de um modo de

vida ainda existente.

Atenção especial deve ser dada ao turismo que, se de um lado pode contribuir

severamente para a desorganização das comunidades tradicionais, por outro lado, se

adequadamente planejado, pode ser um aliado importante na revitalização da

economia e da cultura tradicionais. No caso dos caiçaras pode-se observar que,

quando as comunidades litorâneas souberam manter seu território e suas atividades

tradicionais, seu relacionamento com turistas e veranistas não foi um elemento

desorganizador, ao contrário daqueles casos em que a perda das praias e das terras foi

uma das causas mais importantes da marginalização social.

Conclusões

A conservação do patrimônio natural e cultural não podem mais ser

considerados dois processos separados e opostos. O desafio maior é ainda o de

conservar processos e produtos sócio-ambientais que são dinâmicos e históricos. As

culturas tradicionais não são peças de museus como sugerem alguns folcloristas, mas

encontram-se profundamente inseridas em formas de vida que subsistem, ainda que

ameaçadas, em muitas regiões brasileiras, sobretudo em ecossistemas tidos até agora

como marginais, como florestas, mangues e estuários. Essas culturas coexistem em

diversos graus de integridade e identidade própria com a sociedade urbano industrial.

Sua identidade também é uma marca estática, mas se constrói e se reconstrói

continuamente em oposição à sociedade industrial envolvente. No caso da cultura

caiçara e de outras, essa identidade se reconstrói e se afirma, hoje, em oposição à

grilagem de seu território e às restrições às formas de vida das comunidades

tradicionais por parte de instituições preservacionistas que importaram modelos

inadequados de áreas naturais protegidas. A nosso ver, é preciso abandonar as formas

tradicionais de tombamento de áreas naturais separadas das culturas humanas que aí

tem o seu território de produção e reprodução de suas práticas econômicas, sociais e

simbólicas. Na área ambiental, a discussão, a nivel nacional de figuras como a da

reserva ecológico-cultural e reserva extrativista apontam alternativas novas para

conservação da diversidade biológica e sócio-cultural.

Referências Bibliográficas

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Challanges in Central and South America, Durhan: Forest History Society,

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DIEGUES, A 1996 O Mito Moderno da Natureza Intocada, São Paulo, Huicitec.

FONSECA, M.C. 1996 Da Modernização à Participação: A Política Federal de

Preservação nos Anos 70 e 80. in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, n.24.

GOMES-POMPA, A & KAUS, A. 1992 The Tropical Rainforest: A Non Renewable

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SCHAMA, S. 1996 Paisagem e Memória, São Paulo, Cia das Letras.

POSEY, D. 1984. Manejo da Floresta Secundária: Capoeiras, Campos e Cerrados

(Kayapó). in Ribeiro, B. (org.) Suma Etnológica Brasileira, Vol.1. Petrópolis,

Vozes.

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A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DOS

RELATÓRIOS DE IMPACTO SOBRE O MEIO AMBIENTE.

Rinaldo S. V. Arruda

1. Considerações iniciais

Agradeço o convite para participar do Simpósio “Política Nacional do Meio

Ambiente e Patrimônio Cultural” e parabenizo os promotores pela relevância e

oportunidade do tema.

No ofício de antropólogo tenho trabalhado há quase 15 anos em pesquisas e

projetos com comunidades indígenas, comunidades rurais tradicionais e até grupos

urbanos culturalmente diferenciados. De uma certa forma, como dizia Levi-Strauss,

por força dessa vivência, o antropólogo se converte em parte num estrangeiro entre

mundos culturalmente diversos. Para conhece-los neles nos imiscuímos e nesse

processo adquire-se uma visão dupla e reflexiva, de forma que a realidade de nossa

cultura e da do “outro” adquirem um mesmo grau de vitalidade e, ao mesmo tempo,

de afastamento.

Talvez por isso discorde e considere estranha a definição temática da mesa

em que participo14

que, denominando as tradições culturalmente diferentes de bens

intangíveis e classificando-as como manifestações do passado humano na

atualidade, de pronto as insere na categoria de folclore e de bens de museu. Esse viés

se acentua na sua denominação inicial como recursos culturais, termo de conotação

econômica e designativo de algo que pode ser usado com proveito por quem assim o

denomina.

Esses comentários não visam criticar, de forma alguma, os promotores do

evento, com alguns dos quais já tive oportunidade de trabalhar e de cujas

preocupações e perspectivas científicas e sociais tive o privilégio de partilhar. Na

verdade, essa definição reproduz, e permite colocar em discussão, a perspectiva

vigente sobre as populações tradicionais no contexto empresarial, financeiro e

governamental dos estudos de impacto ambiental.

Essa visão, infelizmente ainda hegemônica, se encontra profundamente

encravada nos pressupostos culturais de nossa civilização, os quais orientam nossa

percepção da natureza e do papel da humanidade em relação a ela, afirmando que:

a natureza é algo separado do homem;

o homem é superior a todas as outras formas de vida;

a natureza é hostil, caótica e perigosa, sendo necessário antes domá-la,

para poder utilizá-la na satisfação dos interesses humanos. Mais do que um direito,

é dever do homem transformá-la, domesticá-la;

a natureza não passa de “recursos” ou é apenas uma “paisagem”;

as sociedades com maior poder de transformação do ambiente natural

são, portanto, superiores às de menor poder de transformação da natureza. São as

promotoras do “progresso e desenvolvimento”. E aí, entram todas as variantes

históricas de legitimação científica/ideológica dessa concepção de superioridade:

racial, climática, civilizatória, etc;

14 O título da mesa era “Recursos culturais intangíveis: meios de diagnosticá-los e de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos”.

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e, finalmente, a natureza é vista como uma fonte ilimitada de

“recursos”. Mesmo a consciência recente de que estes recursos são limitados, e

portanto, o “progresso” e “desenvolvimento” infindável devam ser redirecionados,

encontram sua salvação na crença mágica do poder da ciência como redentora

deste impasse.

Em suma, nossa visão de mundo separa o homem da natureza e hierarquiza

as sociedades, legitimando todas as formas de sujeição da natureza e de outras

sociedades com base nestes pressupostos.

A antropologia clássica de cunho evolucionista foi uma das promotoras e

legitimadoras desta visão que, hoje, foi incorporada pelo senso comum e orienta a

visão da maior parte das pessoas. Por outro lado, o desenvolvimento da antropologia

se fez a partir da crítica a estas primeiras formulações introduzindo outras concepções,

baseadas tanto na reflexão teórica quanto nos intensivos e extensivos trabalhos de

campo etnográficos.

Nesse sentido, uma primeira contribuição da antropologia se funda na

reflexão sobre a constituição do ser humano, como ser cultural e natural, parcela

constitutiva dos ecossistemas nos quais se aloja. Por outro lado, tanto a idéia de

evolução, quanto a hierarquização das sociedades devem ser desnaturalizadas e

relativizadas num contexto de análise de dinâmicas históricas e culturais, onde a

diferenciação e a homogeneização são vistas como aspectos concomitantes de um

processo global de complexificação das relações sociais e ecossistêmicas.

O pressuposto da separação homem X natureza, além de naturalizar as

sociedades humanas, promove também o mito da “natureza intocada”. Pois bem,

estudos de ecologia cultural vem demonstrando cabalmente que até mesmo a “floresta

primária” é fruto do manejo milenar de populações locais (ex. Willian Ballée), Posey

e os Caiapós, etc. Promove o mito de que só a tecnologia mais moderna, a

monocultura e as espécies selecionadas pela “revolução verde” é que são válidas e

“produtivas”.

2. O trabalho antropológico na avaliação de impactos

Em geral o antropólogo é chamado quando se prevê que o empreendimento

provocará impactos diretos sobre populações indígenas ou “populações tradicionais”,

como seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, ou outros tipos de comunidades

culturalmente diferenciadas da população brasileira.

A avaliação do impacto sobre as outras formas de vida que compõem o meio

ambiente não é menos difícil ou complexo, porém é voltado para um contexto de

maior regularidade de comportamento, característicos das espécies vegetais e animais

ou dos efeitos sobre o terreno.

Quando se avalia impactos sobre populações humanas a equação é dupla, já

que os humanos são, ao mesmo tempo, mais adaptáveis e mais imprevisíveis. Como

espécie adaptam-se a situações muito mais variadas que outras formas de vida mas,

por outro lado, comunidades humanas tem história e culturas específicas e a

variabilidade e potencialidade de sua adaptação a mudanças depende do ambiente

sócio-cultural em que foram formados. A cultura é o gabarito através do qual vêem o

mundo, classificam e atribuem significado a seus aspectos, direcionando seu

comportamento. A classificação do mundo, sendo sempre valorativa, coloca restrições

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e impõe tendências de comportamento tão fortes quanto as de origem genética. No

aspecto alimentar, por exemplo, a existência de tabus (o que é considerado alimento, o

que não é) varia amplamente e seleciona o uso dos recursos naturais. Identidades e

papéis sociais estabelecem normas de relacionamento entre pessoas restringindo e

direcionando as formas de cooperação no trabalho, de resolução de conflitos, de

distribuição de alimentos, de acesso à terra e das possibilidades de ação conjunta. Isto

é, as mudanças no meio ambiente físico e social são mediadas pela grade cultural. Os

impactos ambientais sobre populações humanas, portanto, são equações diversas para

diferentes formas sócio-culturais, não podendo ser reduzidas ao quadro de

estereótipos atribuídos a populações humanas genéricas.

Apesar de óbvia, é necessário insistir nesta questão, sempre desprezada ou

mal aceita em suas implicações práticas. No caso de perdas territoriais indígenas

derivadas da implantação de empreendimentos variados, a legislação e o senso

comum prevêem a compensação por área contígua, da mesma amplitude e

características ambientais. Mesmo assim há perdas irreparáveis, seja pelo significado

mítico ou sagrado agregado a parcelas da área perdida, seja pelas modificações nas

redes de sociabilidade decorrentes da mudança de local de moradia. Mas, sempre,

nestes casos, emerge novamente um questionamento do direito indígena: „por que

tanta terra para estes índios, se os colonos “se viram” com muito menos terra?‟.

Quando populações tradicionais são deslocadas, o máximo que se consegue é a

indenização aos indivíduos com títulos ou posses antigas comprovadas. Mas, e aquele

território de uso comum, do qual ninguém é dono porque a posse é comunitária,

respaldada no direito costumeiro? Há questões relativas à especificidade de modos de

vida e utilização de recursos naturais, característicos de uma vasta população no

Brasil e no chamado terceiro mundo em geral, com jurisprudência ainda incipiente ou

inexistente, que encontram pouca acolhida nas empresas responsáveis pelos RIMAS.

A questão da diversidade/especificidade sócio-cultural é o motivo do

trabalho antropológico e nele imprime características próprias de investigação. A

primeira delas foi cunhada na história da disciplina como observação participante,

implicando num longo período de convivência, condição para a impregnação no

antropólogo do quadro simbólico de referência da população estudada, para a

observação detalhada das rotinas cotidianas e dos ciclos de atividades através dos

quais se reproduzem, único meio de compreensão da lógica social e comportamental

vigente localmente.

Além disso, o contexto de contato com as populações indígenas ou

tradicionais é sempre de conflito aberto ou latente, pressionados que são

permanentemente pelas frentes de expansão da sociedade brasileira. No caso das áreas

indígenas, cerca de 526 no Brasil, a maioria delas tem problemas recorrentes de

limites, invasões, etc.

Assim, a pesquisa antropológica, ainda mais quando se realiza em povos

indígenas, é sempre longa, exigindo em geral muito mais tempo que o cronograma do

empreendimento prevê. Portanto, a condição inicial para se trabalhar num RIMA é o

conhecimento já acumulado que o antropólogo tem sobre o povo em questão e a

região do empreendimento.

A utilização de estudos sócio-econômicos, ambientais, arqueológicos e

antropológicos, visando avaliar os efeitos de projetos de grande porte, tais como a

construção de usinas hidrelétricas, estradas, etc., sobre a natureza e sobre a vida das

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populações locais, é uma prática indispensável, já incorporada e normatizada pela

legislação brasileira e pelos proponentes de tais projetos.

Entretanto, para que esses estudos possam contribuir de modo realmente

efetivo, deveriam ter peso equivalente aos estudos de engenharia, geo-morfologia,

etc., na definição do local, tipo e porte do projeto, devendo ser realizados

conjuntamente desde a fase do inventário preliminar. O diagnóstico das implicações

ambientais, sócio-políticas e culturais deveria ampliar a abrangência, e ser parte

integrante, da equação custo X benefício normalmente restrita aos componentes

materiais da obra em questão.

Por sua vez, na fase de viabilidade, além da continuidade dos estudos

antropológicos, torna-se obrigatória a participação direta das populações locais,

indígenas ou de outro tipo, através de suas lideranças, como interlocutores dos

proponentes do projeto, nos processos de detalhamento dos problemas, da procura de

soluções e de decisão a respeito de alternativas diversas.

As possíveis respostas aos sérios problemas criados para as populações locais

costumam implicar no envolvimento de vários órgãos estatais (municipais, estaduais e

federais) e de grupos econômicos privados, na tentativa de harmonização de

interesses, por vezes contraditórios entre si, num contexto de alta tensão política e de

muita violência derivada da luta pela terra e pelos recursos naturais. Isso implica em

que os encaminhamentos devam ser procurados com grande antecedência, com as

empresas proponentes dando demonstrações práticas de respeito e defesa da

integridade tribal e dos territórios dos grupos atingidos, no caso dos povos indígenas.

No caso de relatórios de impacto ambiental, o estudo antropológico não se

configura como um estudo acadêmico. Não pretende comprovar teorias ou defender

hipóteses inovadoras, instaurando um debate relativo à questões priorizadas no

momento pela comunidade científica. Ainda que possa adquirir estas características,

seu objetivo principal é responder a questões pontuais e avaliar resultados de

processos práticos. Entretanto, são trabalhos que mantém as características científicas

e se apoiam sobre as contribuições teóricas acumuladas na história da disciplina, no

conhecimento sobre a região e as populações em questão e em pesquisa de campo

específica que complemente e estabeleça um maior grau de precisão à compreensão

da situação local.

Por outro lado, o eixo analítico “ambiental” impõe uma abordagem mais

“holística”, uma vez que a questão ambiental se constitui como um mosaico dinâmico

de interfaces interdependentes de múltiplas áreas de especialização. Nenhuma destas

áreas, isoladamente, é suficiente para a compreensão de todas as questões envolvidas.

Por esse motivo tornaram-se comuns, ao menos como proposta, os estudos

multidisciplinares. Em tese, os relatórios de impacto ambiental são fruto de equipes

multidisciplinares. Deveriam ser iniciados por um processo preliminar de trabalho

conjunto, visando a adequação dos objetivos específicos de cada área num plano de

pesquisa e trabalho comum, complementar e integrado. Dessa forma, as conclusões de

cada área se beneficiariam em precisão e abrangência com a incorporação, durante o

processo, dos dados levantados nas outras áreas.

Na prática corrente, raramente é o que acontece. O contato entre os

especialistas costuma ser mínimo, ou inexistente; suas metodologias e objetivos são

particulares e setorizados. Muitas vezes as informações básicas sobre o

empreendimento, necessárias para avaliação das implicações ambientais e sociais

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chegam mesmo a serem “maquiadas” de forma a amenizar as implicações negativas

do projeto.

Mas o RIMA é apresentado como uma peça única. Os relatórios setorizados

são reescritos pela empresa executora que, articulando as informações setorizadas,

detem o poder de estabelecer ênfases ou omissões que podem, em certos casos,

apresentar os impactos ambientais e sócio-culturais em graus diversos de afastamento

das conclusões dos especialistas. Nessa fase, a totalização feita na empresa é que

define a contribuição dos especialistas, os quais perdem a autoria de seus trabalhos e o

controle sobre os resultados.

3. Impactos de grandes empreendimentos sobre culturas tradicionais

O relato de algumas experiências de trabalho na avaliação de grandes

projetos permitirá que se visualize melhor algumas das implicações sobre as muito

tangíveis populações locais atingidas pelas transformações ambientais e sociais de tais

projetos .

A primeira delas antecede a resolução do CONAMA, mas ao mesmo tempo

já a antecipa. É o caso do Projeto Polonoroeste, do qual participei, de 1982 a 1986,

como membro da equipe de avaliação do componente indígena, coordenada pela

antropóloga Betty Mindlin no âmbito da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas

- FIPE - da Universidade de São Paulo. No final da década de 1970 pressões

crescentes de Ongs. sobre o Banco Mundial e sobre os países membros impuseram

medidas de proteção às comunidades tradicionais na zona de influência dos projetos

financiados pelo Banco, tal como o Polonoroeste, ainda que este projeto ainda não se

estruturasse na ótica da preservação ambiental, o que passaria a ocorrer quase uma

década após.

3.1. O POLONOROESTE.

No noroeste do Mato Grosso e, principalmente no Estado de Rondônia, o

Programa Polonoroeste foi um dos projetos mais impactantes, iniciado pelo governo

brasileiro em 1981. Centralizado ao longo do eixo da BR 364 (Cuiabá-Porto Velho), o

programa previa o asfaltamento dessa rodovia, a abertura de estradas vicinais e o

desenvolvimento e colonização da região. Com uma verba de 1,5 bilhões de dólares e

co-financiado em um terço desse valor pelo Banco Mundial, previa a destinação de 26

milhões de dólares para medidas de proteção às 60 comunidades indígenas na sua área

de influência. Na verdade, não chegou a alocar nem sequer a metade dessa quantia

para tal fim, tendo representado uma tragédia para a maioria dos povos indígenas

atingidos.

Algumas das áreas indígenas como, por exemplo, o território ocupado pelos

Erikbaktsa, pelos Kayabi e Apiaká, ficaram relativamente ao largo desse movimento,

ainda que atingidos pelo adensamento geral da população regional, pelo incremento

de doenças transmissíveis, pelos novos municípios surgidos, pelos empreendimentos

agro-pastoris e de mineração que avançavam e pelos projetos governamentais no

campo da produção de energia elétrica. Outras povos foram atingidas mais

fortemente, encontrando-se hoje em trágica situação, como os Nambikwara, os Cinta-

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Larga, Suruí, Zoró, entre muitos outros. Em apenas dois anos depois da pavimentação

da BR 364 já haviam sido destruídos 2 milhões de hectares de floresta (Junqueira &

Mindlin, 1987: 4) sob a ação de companhias madeireiras, afetando negativamente a

economia tradicional indígena e sua qualidade de saúde e vida. Embora tenha

demarcado cerca de 30 das 60 áreas indígenas atingidas, ao fim do Programa

Polonoroeste a maioria delas não estava com o processo demarcatório finalizado e boa

parte continuava sofrendo invasões.

Além das profundas mudanças regionais, o Polonoroeste se apresentou aos

índios principalmente através da mudança de atuação da FUNAI. Esta passou a impor

sua presença no campo de intermediação, legitimada pela sua exclusiva e pouco usada

capacidade de demarcar áreas indígenas, além da oferta de "projetos" econômicos,

educacionais, de saúde e outros, financiados pelo Polonoroeste.

No decorrer de sua vigência o Polonoroeste propiciou um necessário

melhoramento da infraestrutura da Funai, dotando-a de mais viaturas, sedes,

funcionários e maior capacidade de intervenção no campo dos projetos econômicos,

educacionais e no atendimento à saúde. Esta capacidade, apesar de produzir resultados

medíocres frente às necessidades indígenas, propiciava ao menos uma presença mais

marcante nas áreas e, para os índios, alguma perspectiva de apoio e alternativas frente

às pressões da sociedade envolvente.

Por outro lado, a política indigenista desenvolvida pela Funai, voltada para a

integração dos índios na sociedade regional e no modelo prevalecente de ocupação do

espaço e utilização dos recursos naturais não contribuiu para o fortalecimento da

autonomia indígena e muito pouco para a garantia de seus direitos. Os projetos

econômicos, educacionais e de saúde, praticamente não levavam em consideração as

estruturas e dinâmicas sócio-culturais próprias de cada etnia.

No setor agropecuário privilegiava-se a introdução de projetos

“comunitários” (roças comunitárias, criação de gado comunitária) de monoculturas

valorizadas regionalmente, cuja produção deveria destinar-se a obtenção de renda

monetária. O resultado foi uma interferência autoritária e paternalista nas estruturas

sócio-econômicas e políticas internas, promovendo o relativo abandono de práticas

sociais próprias, com resultados negativos sobre a dieta alimentar dos grupos

atendidos e a criação de uma maior dependência da continuidade da ajuda paternalista

da Funai. Além disso, as atividades econômicas que tradicionalmente geravam renda

monetária para os índios perderam importância monetária, como foi o caso da

borracha e da castanha, cujos preços tornaram-se tão baixos que desestimulavam a

produção para a venda.

A permanente incapacidade da Funai e do governo brasileiro de efetivamente

demarcar, desintrusar e garantir os direitos indígenas sobre seus territórios num

contexto de enormes pressões sobre suas terras veio agravar esta situação. Estes

fatores promoveram, em conjunto, uma deterioração das condições de vida indígenas

e abriram o campo para as transformações que viriam, em seguida, a agravar estas

condições.

De acordo com os relatórios da equipe de avaliação do componente indígena

do Polonoroeste, já no final do Programa as sedes regionais da Funai não tinham mais

verbas para a manutenção das viaturas, equipamentos e continuidade do atendimento

nas áreas indígenas, inclusive na área de saúde. A maioria delas encontrava-se tão

individada no comércio local que as verbas que chegavam destinavam-se a

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pagamentos atrasados, necessários para a liberação de veículos retidos em oficinas

mecânicas e outras dívidas pendentes. Os índios, por sua vez, enfrentavam o insucesso

dos projetos econômicos inadequados empreendidos pela Funai, os quais, entre outras

implicações, provocaram em quase todas as áreas indígenas a negligência em relação

à manutenção de suas roças familiares. Em muitas áreas o adensamento da ocupação

regional promoveu invasões nas áreas indígenas, cuja resolução dependia muito mais

da disposição de enfrentamento físico dos índios do que da garantia legal que o

governo deveria proporcionar.

As áreas em maior estado de penúria que contavam com recursos naturais

economicamente atraentes a curto prazo, principalmente minério e madeiras nobres,

viram-se mais do que nunca assediadas pelas frentes econômicas regionais, muitas

vezes contando com a “legitimação” ilegal da própria Funai. Em 1987, por exemplo, o

então presidente da Funai, Romero Jucá e funcionários regionais celebraram contratos

de venda de madeira do Parque Indígena do Aripuanã e de outras áreas indígenas

vizinhas com empresas regionais. Só num dos contratos, com a empresa Brasforest,

foi autorizada a retirada de quotas anuais de 40.000 m3 de mogno. Para os índios,

apesar das divergências internas, este passa a apresentar-se como o único caminho

para a resolução de seus graves problemas: melhor vender já que não conseguiam

estancar o roubo continuado de madeira renovado a cada estação seca. Apesar da

expoliação das madeireiras (baixo valor pago pelo m3, impossibilidade de controlar as

reais quantidades retiradas, etc.) o retorno imediato em dinheiro, crédito no comércio

local, possibilidade de atendimento à saúde, acesso a posse de veículos e gastos

variados, provocou a adesão quase total dos índios na continuidade desta relação.

Como vimos, a orientação da política indigenista oficial, potencializada pelo

Programa Polonoroeste, pressionava no sentido da adoção de práticas produtivas

típicas do modelo regional. Este, apoia-se no modelo agrícola da "revolução verde",

desenvolvido pelos países industriais do primeiro mundo, de clima temperado,

sustentado por fertilizantes químicos e maquinaria pesada. No caso do Centro-Oeste

Amazônico a predominância de tal modelo tem significado a erradicação da floresta

natural e sua substituição por monoculturas extensas de soja e arroz, pela proliferação

dos pastos, da mineração, da extração da madeira e dos conflitos sociais provocados

por uma estrutura agrária marcada pela concentração fundiária.

O índice atual de desmatamento do Estado do Mato Grosso é um forte

indicador da progressão do modelo “desenvolvimentista” vigente na Amazônia, cujo

avanço mais recente neste Estado foi incrementado pelo Polonoroeste. Dados do

INPA (Fearnside, 1995) mostram que o Estado já tinha em 1991 cerca de 16,4 % de

suas florestas originais derrubadas, sem contar as áreas de cerrado, extensamente

alteradas pelas monoculturas e pastos. Os dados referentes à totalidade da Amazônia

demonstram que cerca de 30% do desmatamento em 1991 pode ser atribuído a

pequenos agricultores com propriedades de menos de 100 ha. e 70% a médios e

grandes fazendeiros. O Estado do Mato Grosso sozinho representa 26% do total do

desmatamento anual de 11,1 mil km2 ocorrido na Amazônia legal entre 1987 e 1991,

coincidindo com o fato de que 84% das terras particulares são fazendas de 1.000 ha.

ou mais e apenas 3% são pequenas propriedades (IBGE - Censo Agropecuário de

1985).

A situação atual das áreas indígenas do Estado reflete a continuidade deste

movimento colonizador orientado e facilitado pelas políticas governamentais e pela

frágil posição nelas ocupada pela política indigenista.

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Sem contar as áreas invadidas por fazendeiros, posseiros e extratores, boa

parte das áreas indígenas do Estado apresentam hoje alguma forma de utilização dos

recursos naturais para finalidades estranhas aos índios.

Há dez áreas indígenas sob a ameaça de influência de usinas hidrelétricas

planejadas e uma sob a influência de uma UHE já construída. Há 13 áreas com

rodovias acompanhando um ou mais de seus limites. Há 6 áreas atravessadas por

rodovias. Duas áreas ameaçadas por rodovias planejadas. Há 14 áreas dentro das quais

foram concedidos alvarás de pesquisa mineral para empresas particulares.

Além disso, há superposição (não necessáriamente negativa) de duas

unidades de conservação sobre áreas indígenas - a Estação Ecológica do Iquê

encravada no território Enawenê-Nawê e a A. I. Rikbaktsa e A.I. Japuíra dentro da

Reserva Florestal do Juruena. Há também a superposição da gleba Matrinxã, das

Forças Armadas, totalmente dentro da Área Indígena São Marcos e da área Cachimbo

das Forças Armadas (PA) dentro da área indígena Panará. Finalmente, a A.I. Teresa

Cristina está ameaçada pela ferrovia planejada Ferronorte.

O fim do Polonoroeste (1986 em diante) coincide com um período, que se

prolonga até hoje, de falência dos serviços da FUNAI e do crescimento do assédio de

madeireiros e garimpeiros sobre as áreas indígenas.

A Funai se enfraqueceu mais ainda nos anos recentes a partir dos decretos

23/92 que responsabiliza a Fundação Nacional de Saúde pelo atendimento à saúde dos

índios, do decreto 24/92 que transfere para o Ministério da Educação os recursos

destinados a educação indígena e pelo decreto 25/92 que inclui o IBAMA nas ações

de fiscalização de limites e exploração de recursos das áreas indígenas. Os decretos

tiraram muito da, já muito baixa, capacidade operacional da Funai, reduzindo suas

competências e sua presença nas áreas indígenas.

O órgão indigenista padece de sérios problemas administrativos e de pessoal.

Os funcionários (Hargreaves, 1993) de modo geral desconhecem a vida dos índios,

são pouco qualificados, sem programas de reciclagem, tendo pouco envolvimento

com as questões indígenas. Por outro lado, quase não contam com apoio nas áreas: em

muitos postos indígenas não tem rádio, ou este não funciona, faltam veículos, casas,

etc. Os mais íntegros são ameaçados por garimpeiros, madeireiros ou fazendeiros, os

quais substituem a Funai - cobrando um alto preço que é o de exploração dos recursos

naturais das áreas indígenas - nas suas funções de auxílio aos índios.

Nas áreas em que a Funai, superando todas estas deficiências, apresenta um

trabalho sério no desempenho de suas obrigações, ela não consegue apoio judicial,

institucional e nem policial necessários nas operações de fiscalização. Há reclamações

reiteradas, de funcionários da Funai e de índios, de que a justiça local muitas vezes se

nega a fazer o auto de infração e apreensão de boa parte da madeira roubada,

apreendida nas áreas indígenas Quando o faz, muitas vezes, a madeira fica retida até

apodrecer ou então, antes que isso ocorra, acaba sendo liberada para a própria

empresa que a retirou ilegalmente. Por outro lado, pela precariedade do atendimento

jurídico da Funai e pela falta de apoio institucional e pela morosidade da justiça, os

processos de indenização movidos contra madeireiras dificilmente chegam a seu

termo, inviabilizando uma das melhores possibilidades de estancamento da retirada

ilegal de madeira das áreas indígenas. Sómente em relação as áreas indígenas Sararé e

Vale do Guaporé (Seilert, 1995) estão em trânsito na Justiça Federal de Mato Grosso

cerca de 20 processos (civis e criminais) relacionados a casos de esbulho e

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depredação. Cerca de 50 réus (muitos deles reincidentes) continuam impunes e

atuantes.

A Funai, sem recursos, capacitação e envolvimento dos funcionários e sem

autoridade, não tem demonstrado condições de competir com as pressões e ofertas

locais. De modo geral, os funcionários (com honrosas excessões) parecem preocupar-

se mais com a disputa por cargos no interior da burocracia do órgão do que com a

situação indígena. Não tem havido uma política indigenista definida e a política

oficial tem mudado a cada alteração nos escalões mais altos da instituição. As sedes

administrativas regionais tem funcionários em demasia os quais, sem apoio e

desmotivados, opõem resistências dos mais variados tipos para evitar longas estadias

em campo, as quais são imprescindíveis para o cumprimento das obrigações da Funai.

No âmbito da saúde quase não há mais atendentes nas áreas e nem estão em

andamento projetos sistemáticos de formação de monitores de saúde indígena.

Atendimento mais sistemático e projetos de formação de atendentes locais só alguns

realizados por entidades civis, como o da Missão Anchieta nos Erikbaktsa, o do

CERNIC nos Suruí, o trabalho da Escola Paulista de Medicina no Parque Nacional do

Xingú, da OPAN nos Enawenê-Nawê e poucos outros. A FNS por sua vez tem

dificuldades de articulação com a Funai e os distritos sanitários ainda não se tornaram

suficientemente operacionais.

Hargreaves (1993:) relata que no Grande Aripuanã “os remédios, exames,

carros, estradas, alimentação, combustível, funcionários, motoristas, professores,

atendentes, casas, hospitais, etc., são bancados com a venda da madeira e outros

recursos naturais”... “São 100.000 m3 mogno/ano nos últimos 5 anos = 500.000 m

3 da

área do Grande Aripuanã”...”Se somarmos as outras espécies vegetais, este número

dobra, superando 1 milhão de m3”. O mesmo relatório mostra que o envolvimento dos

índios na rede ilegal de exploração de madeira e minério, longe de resolver seus

problemas trouxe outros agravantes. A população Cinta-Larga, uma das mais

envolvidas por este processo, foi reduzida de 849 indivíduos em1989 para 643

pessoas em 1993...

Como acentua Seilert (1995:6) “o flagrante sucateamento dos serviços

públicos de assistência às comunidades indígenas, em curso nos últimos anos, está

favorecendo o surgimento de um novo modelo de exploração daquelas comunidades.

Neste modelo, sem oposição, os invasores passam a barganhar precária assistência por

livre acesso à exploração do patrimônio indígena”.

No caso dos grupos Tupi-Mondé e dos Nambikwara criaram-se situações de

conflitos continuados, com várias mortes acumuladas na última década, entre os

índios e os garimpeiros (nos Cinta-Larga parece que a cada conflito estes substituem-

se no acordo com os índios para exploração de ouro, cassiterita, diamantes); entre

índios e madeireiras e entre madeireiras (atualmente parece ter-se estabilizado uma

certa divisão de áreas de exploração entre as madeireiras); entre os próprios índios

(madeiras de uma área indígena são contabilizadas como de outra, índios de uma área

vendem madeira de outra, etc.); e, entre os índios aliados com madeireiras e/ou

garimpeiros contra Funai, Ibama e Polícia Federal. A fiscalização do IBAMA não tem

ocorrido com eficácia nem dentro nem fora das áreas indígenas. Os madeireiros e

garimpeiros (Hargreaves, 1993) “afirmam que estão lá ajudando a comunidade e que

pagam o IBAMA e que tem um “acerto”com o governo do Mato Grosso para não

serem molestados. Dizem que “esquentam” as notas fiscais e guias em Mato Grosso

ou em Rondônia”.

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Boa parte das áreas indígenas reconhecidas no Mato Grosso, encontram-se

em graus variados envolvidas em contextos semelhantes e ainda sofrendo invasões

(projetos de colonização privados e governamentais, fazendeiros, etc.) e roubo de

madeira (retiradas não autorizadas pelos índios).

Assim, os impactos sobre as culturas tradicionais decorrentes do

Polonoroeste podem ser sumarizados como se segue:

Impactos diretos:

* invasão de terras;

* roubo de madeira e pressões para a venda de madeira;

* invasão de garimpos;

* doenças: malária endêmica e crescente, doenças venéreas, tuberculose,

etc.;

* poluição dos rios: mercúrio do ouro, sujeira do diamante, poluição por

agrotóxicos.

Impactos indiretos:

* pressão sobre os limites territoriais de áreas indígenas já demarcada ou

em fase de demarcação;

* projetos econômicos paternalizados e inadequados as especificidades

indígenas, regionais e ambientais (desestruturação economia tradicional e aumento

dependência);

* educação inadequada ás especificidades indígenas;

* agravamento de tensões intertribais e no interior de cada sociedade

indígena;

* diminuição da oferta alimentar ( diminuição da fauna regional);

impedimento de acesso a recursos fora da área demarcada) , etc.

A apresentação desses processos sociais como “impactos”, jargão técnico

incorporado na linguagem dos R.I.M.A., dificulta a visualização de sua complexidade,

interdependência e das múltiplas potencializações.

Ocorre ainda como agravante que, como dizia anteriormente, tanto os

relatórios científicos referentes à situação quanto as sugestões de encaminhamento de

soluções acabam sendo menosprezadas pelos órgãos contratantes que, via de regra, só

solicitam sua realização por imposição legal e formal, não incorporando estes

“componentes” nos critérios de validade da obra ou projeto e evitando ao máximo

incluí-los como itens intrínsecos ao orçamento.

3.2. A USINA HIDRELÉTRICA JP-14

Essa situação fica ainda mais evidente quando se trata de grandes obras

realizadas por empreiteiras de porte, como a construção de usinas hidrelétricas. Este

foi o caso dos estudos de viabilidade da UHE JP-14 em Ji-Paraná, realizado pelo

CNEC/ELETRONORTE, dos quais participei de1986 a 1988.

Já sob a vigência da resolução CONAMA, participei da avaliação de impacto

sobre a área a ser inundada, que atingiria parte da AI Igarapé Lourdes dos índios

Gavião e Arara.

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O empreendimento se situava numa região que já vinha recebendo os

impactos mais profundos do projeto Polonoroeste e os povos indígenas atingidos já

viviam uma situação de grande complexidade.

O povo Gavião de Rondônia faz parte do complexo TUPI_MONDÉ, isto é,

sua sociedade se reproduz articulada a outras sociedades indígenas da região: Cinta-

Larga, Zoró, Suruí. Principalmente com os Zoró, suas relações são tradicionalmente

mais próximas: costumam realizar casamentos intertribais regulares, fazem festas

conjuntas, etc. Na época já estavam separados por um corredor de fazendas de grande

porte dificultando o contato entre eles.

Pressões sobre a área decorrentes do adensamento regional promovido pelo

Polonoroeste eram crescentes. Promovia-se invasões na área Zoró, Cinta-larga, Suruí

e Gavião. Área Gavião havia sido desintrusada em 1985 depois de mais de um ano de

conflitos, com grande dificuldades e as relações com a população regional era

bastante conflituosa. O empreendimento, neste contexto, aparecia como uma ameaça a

mais. Já em 1984 um helicóptero da empresa havia sido retido na área pelos índios ao

colocar marcos e realizar pesquisas sem sua autorização .

Os impactos diretos previstos eram a inundação de cerca de 11 mil ha. da

área indígena Igarapé Lourdes, inundação aldeia principal, roças, fruteiras, etc. ,

alterações no regime de águas no interior da área e repercussões negativas sobre a

flora e a fauna.

Previa-se também graves alterações no regime de águas (previsão de pelo

menos 30 dias de águas sem oxigênio a jusante da barragem) , na flora ciliar e interna,

na fauna, com repercussões por uma área calculada em 60 mil ha. da área indígena. O

deslocamento dos Gavião no interior da área poderia, além disso, provocar conflitos

com os Arara, que também habitavam a mesma área indígena.

Os impactos indiretos seguiam o padrão já apresentado no Polonoroeste,

somando-se aos impactos já detectados na região: aumento das pressões sobre as

terras, aumento das doenças, etc.

Os índios eram totalmente contra o projeto. Depois de um trabalho de

pesquisa de mais de um ano, realizado juntamente com Lars Lavold, um antropólogo

norueguês, elaboramos uma proposta de compensação que, se não houvesse outra

alternativa, seria aceitável pelos índios e, de alguma forma, contribuiria para refazer

em parte o padrão de convivência entre os Tupi-Mondé. Bàsicamente a proposta

previa o auxílio na formação de outra aldeia e para mudança e a compra e doação aos

índios de 60 mil ha. de terras (florestas preservadas) contíguas à reserva, formando

um corredor ligando a área dos Gavião com a área dos Zoró.

Pois bem, nem os relatórios científicos, nem a proposta jamais foram aceitos

pela empresa contratante, nem pela Eletronorte, as quais limitavam-se a fazer

reiteradas sugestões para a “reformulação” dos resultados dos estudos. O valor de tal

compensação era mínimo frente aos impactos detectados e era irrisório frente ao custo

do empreendimento. Em meio às negociações para que os relatórios e a proposta

fossem aceitos ocorreu um corte nos empréstimos do Banco Mundial para o setor

elétrico e a obra foi suspensa até hoje, assim como a do complexo de Altamira no

Xingú. Aliás, a retenção de tais verbas pelo Banco foi desencadeada por Darrel Posey,

antropólogo que fazia os estudos de impacto da hidrelétrica do Xingú, ao apresentar

denúncia da situação, juntamente com líderes Kaiapó, numa reunião do Banco

Mundial em Whasington.

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Não se trata, é óbvio, em advogar a paralização de todo e qualquer projeto

que provoque mudanças. A questão é abrir espaço para que as populações locais,

tradicionais ou não, possam participar de forma efetiva na identificação dos

problemas e definição das soluções, possibilitando a elas um espaço de mudança mais

autônomo. É a mesma questão central que sempre está colocada: a relação entre

interesses do Estado associados aos das grandes empresas e as populações locais,

principalmente as populações tradicionais.

A resolução CONAMA constituiu um avanço nesta direção mas, como

vimos, estamos ainda longe de atingir os objetivos que essa resolução pressupõe e que

as situações apresentadas demandam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Rinaldo S. V. - 1988 - Relatório de impacto ambiental e sócio-cultural

da UHE - Ji-Paraná sobre os povos indígenas Gavião e Arara da área

indígena Igarapé Lourdes; sobre o complexo cultural Tupi-Mondé do Parque

do Aripuanã e sobre os índios isolados da região. CNEC/ELETRONORTE,

julho de 1988.

ARRUDA, Rinaldo S. V. -1994 - “Existem realmente índios no Brasil? “. Artigo

publicado na Revista São Paulo em Perspectiva, volume 8, no 3, julho-

setembro de 1994, págs. 66 a 77. Fundação SEADE, São Paulo.

FEARNSIDE, Philip M. - “Quem desmata a Amazônia, os pobres ou os ricos?”. IN

Ciência Hoje, vol. 19, no. 113, set./95.

HARGREAVES, Maria Inês Saldanha - Levantamento Sócio-Ambiental do Grande

Aripuanã. PNUD, 1993.

JUNQUEIRA, Carmen - 1992 - A Questão Indígena no Brasil: evolução, principais

problemas e perspectivas de ação governamental. Texto inédito.

SANTOS, Leinad & ANDRADE, Lúcia (org.) - 1988 - As Hidrelétricas do Xingú e os

Povos Indígenas. Comissão Pró-Índio de São Paulo.

SEILERT, Fritz - Áreas indígenas em Mato Grosso. PNUD, 1995.

SEPLAN-MT - 1992 - Fisiomorfologia, solos e uso atual da terra: região Noroeste do

Estado do Mato Grosso. Secretaria de Estado de Planejamento e

Coordenação Geral. Governo do Estado do Mato Grosso.

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LEVANTAMENTO E DIAGNÓSTICO DE BENS CULTURAIS INTANGÍVEIS

Carlos Eduardo Caldarelli

Primeiro, devo a vocês uma explicação: era para estar aqui Emília Botelho,

que ia fazer esta exposição. Infelizmente, porém, ela teve um imprevisto e não pôde

comparecer a este Simpósio. Uma vez que eu também participei dos trabalhos que ela

iria relatar, fiz algumas notas daquilo que eu ainda pude retirar do baú da memória e

vou tentar expor algo acerca daqueles trabalhos para vocês, a fim de que tenham idéia

do que foi feito, então, e de que contribuição se pode extrair deles para a discussão do

tema que nos preocupa nesta mesa-redonda, qual seja, o dos recursos culturais

intangíveis.

Os trabalhos mencionados dizem respeito a Porto Primavera, que é um

projeto hidroelétrico, e a Ourinhos, outro projeto hidroelétrico. Em ambos, essa

questão cultural ligada a populações vivas foi muito sentida pela equipe

multidisciplinar que fez os estudos de impacto ambiental.

No caso de Porto Primavera, estava-se diante de uma Usina Hidroelétrica que

já estava em construção antes da edição da resolução CONAMA nº 1 e que foi

alcançada pelos efeitos da resolução CONAMA nº 10/87, pela qual era preciso que se

fizesse um estudo prévio de impacto ambiental para que se obtivesse a licença de

operação.

Formou-se, então, a equipe multidisciplinar encarregada de fazer o estudo, da

qual faziam parte um sociólogo, uma antropóloga, um arquiteto e um historiador, para

lidar com as questões relacionadas ao patrimônio cultural. Ocorre que, a essa altura,

como já ficou dito acima, a Usina já estava em estado avançado de construção, estava

praticamente pronta. Assim, o estudo prévio de impacto ambiental que foi feito ali,

em primeiro lugar, não foi prévio e, em segundo lugar, padeceu com o fato de muitos

dos impactos que deveriam ter sido estudados antecipadamente já estarem

acontecendo, ou mesmo já terem acontecido.

Tendo em vista essas dificuldades de ordem prática, interessa discorrer, aqui,

acerca de como foi que essa questão do patrimônio cultural, e mais particularmente a

da cultura das populações presentes e atuantes ali, na região afetada pela construção

de Porto Primavera, acabou, então, por ser colocada.

Em primeiro lugar, na cabeça do empreendedor, a idéia de patrimônio

cultural estava muito ligada ao patrimônio edificado, enquanto composto de bens

tangíveis, visíveis, facilmente identificáveis, ao mesmo tempo que havia a consciência

da proteção legal de que gozam os restos arqueológicos, ou seja, a idéia que permeava

a cabeça do empreendendor era a de que aquilo que iria ser atingido, aquilo que iria

ser destruído, aquilo que iria ser turbado pela construção da Usina, era quase que tão

somente aquilo que existia materialmente, ou seja, a água destinada ao reservatório da

Usina, a construção desta última, a do canteiro de obras, etc., que são atividades

exercidas sobre o mundo material, atuariam (destruindo, fazendo submergir, etc.)

somente sobre coisas que também existiam no mundo material e nisto se resumiam os

impactos negativos que a implantação de um empreendimento como o de que se

tratava podia exercer sobre o patrimônio cultural.

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Quanto aos outros aspectos da cultura local e regional, no máximo,

reconhecia-se a existência de festas religiosas populares, como a de N. Sra. dos

Navegantes, à qual se estava procurando dar um tratamento cujo rationale era muito

semelhante ao descrito anteriormente: buscava-se oferecer um novo local onde a festa

pudesse ser relizada, uma vez que aquele onde a maior parte dela se desenrolava

tradicionalmente, o bairro de Porto Quinze, ia ser inundado.

Porém, como é sabido, a cultura é um todo indivisível, sendo as suas

manifestações materiais, visíveis e palpáveis, inseparáveis da adesão a certas tradições

e valores e da posse dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para que

aquilo que ela torna possível que seja exposto aos sentidos seja produzido e

reproduzido. Não é possível sequer compreender eventos comezinhos e simples para

nós, como uma festa de aniversário, por exemplo, se não se pensa em instituições

como o ano civil e a idade cronológica das pessoas, esta computada com base na

regularidade da passagem ordenada, inevitável e infinda daqueles. É impossível

comparecer a uma dessas festas e dela participar, se não se conhece e adere a

costumes tais como os de oferecer presentes ao aniversariante e vê-lo apagar velinhas

espetadas em um bolo. É, também, desejável que se possuam algumas habilidades,

dentre as quais conta-se o saber cantar, em coro (ainda que desafinado), “Parabéns a

Você”. Por último, espera-se do participante da festa que este mantenha uma atitude

de alegria e receptividade. Promover uma festa dessas implica, evidentemente, saber

de tudo isto e ter as habilidades necessárias para lidar com todos os seus elementos.

Não menos sabido é que inexistem manifestações culturais que dispensem as

relações sociais que as engendram. No caso das nossas festas de aniversário, as

relações mais importantes são as de parentesco e amizade, que fornecem pessoas para

preparar a festa e a ela comparecer. Existem outras, tais como as que se estabelecem

entre quem compra e quem vende um objeto qualquer que será dado de presente ao

aniversariante; quem encomenda, quem prepara e quem transporta o bolo de

aniversário, etc.

A maior parte das manifestações culturais exige, também, uma base material.

Porém, uma vez que parece que ninguém duvida disto, não vale a pena perder tempo

encarecendo o fato.

Assim, há pelo menos três formas de um empreendimento de grande porte

produzir impactos negativos sobre o patrimônio cultural, vale dizer, sobre a cultura:

alterando a valoração que se atribui a tradições, conhecimentos, habilidades e atitudes

ligados a bens culturais, em geral, de natureza material ou imaterial; interferindo no

modo como as relações sociais se entretêm para permitir a realização das suas

manifestações e agindo sobre as bases materiais em que se assentam estas últimas.

Voltando a Porto Primavera, vejamos o que tem a ver o que se acabou de

dizer com o que ocorreu ali. Para tanto, vou expor brevemente os casos das olarias

locais e da arquitetura vernacular das habitações das ilhas fluviais e ribeirinhas.

Antes disso, porém, peço licença para a seguinte digressão sobre a

visibilidade dos fenômenos culturais: Assim como é fácil reconhecermos como tais

manifestações culturais muito diversas daquelas a que estamos acostumados, é difícil

admitir que o são, igualmente, aquelas a que estamos habituados. É estranho

observarmos uma festa de aniversário como uma manifestação cultural, do mesmo

modo que admitimos observar dessa forma um ritual em uma aldeia indígena.

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Muito bem, isto posto, é fácil compreender que, a olhos desatentos, a

produção artesanal de tijolos e outros artefatos de argila cozida, bem como o uso de

métodos originais de construção de residências, baseados em materiais pouco

utilizados em meio urbano, aliados a práticas construtivas e habitacionais adaptadas a

regiões ribeirinhas e a ilhas, possam parecer anacronismos e, mesmo, sinais de

miséria, ao invés de manifestações culturais locais.

Em Porto Primavera, aos olhos do empreendedor e dos seus prepostos, era da

primeira forma que apareciam a produção oleira e a arquitetura vernacular locais, isto

é, como excrescências que pouco ou nenhum valor possuíam e que podiam, quase

automaticamente e com vantagem, ser substituídas por bens de uso similar, só que de

valor mais alto e de utilidade maior, tais como pequenas propriedades rurais

agricultáveis, no primeiro caso, e casas de alvenaria, no segundo.

Assim, ofereceu-se aos oleiros tratos de terra para plantio e aos ribeirinhos e

ilhéus, casas de alvenaria, em troca das suas olarias e casas de madeira.

A esta altura, vale notar que esse é o primeiro impacto negativo importante

que os grandes empreendimentos costumam causar sobre os patrimiônios culturais

locais: a sua desvalorização e desprestígio, que conduz ao seu abandono,

principalmente porque, para oleiros e ribeirinhos, o acesso à terra e a residências de

aparência urbana acabaram parecendo, de fato, modos de ascensão social.

Por outro lado, a brusca alteração da composição e espacialização de grupos

domésticos e de trabalho acaba por alterar grupos de vizinhança e de amigos, bem

como rotinas diárias e de maior periodicidade, de modo que onde antes havia uma

comunidade, aparece uma população amorfa e desarticulada, sendo este o segundo

impacto negativo de grandes empreendimentos sobre a cultura, a que se fez alusão

agora, há pouco.

Em Porto Primavera, malgrado o que continha o tardio EIA-RIMA

produzido, tudo isso acabou ocorrendo: oleiros que, quando muito, cultivavam

pequenas roças complementares, voltaram-se para tentar viver principalmente do

plantio em pequenas propriedades isoladas e proprietários de casas de madeira

espalhadas pelo curso do rio foram levados a viver em aglomerações de casas de

alvenaria, tendo havido casos em que, em uma só pessoa ou família, materializaram-

se ambas as ocorrências.

Daí a desinteressarem-se todos, completamente, do destino das suas antigas

casas e olarias não foi preciso mais: submergiram, sem lamentações e sem deixar

qualquer testemunho, umas e outras, realizando-se, assim, o terceiro e último impacto

negativo mencionado, qual seja, a destruição pura e simples de parte do patrimônio

cultural local.

Então, devido a não se ter reconhecido que as pessoas com que se estava

interagindo detinham uma parte do patrimônio cultural local, cujas características só

elas mesmas podiam compreender e manipular, desastrada e talvez

irremediavelmente, acabou-se por destruir aqueles elementos do patrimônio cultural

local.

Deve-se ressaltar que, mesmo que se tivessem mantido as olarias e as casas

de madeira em uma redoma, estas e aquelas, sem os conhecimentos, habilidades e

atitudes a que estavam ligadas, pouco ou nada passariam a significar.

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Apenas tomar cuidado com aquilo que é palpável, que é material, que é cal

pedra e cimento, sem se preocupar com o conhecimento necessário para reproduzir

aquela pedra cal e cimento, de nada adianta, no que diz respeito à preservação do

patrimônio cultural.

Poder-se-ia, por outro lado, fazer restrições ao que acabou de ser dito,

trazendo à baila o inconformismo dos oleiros com o seu modo-de-vida, por exemplo,

que de fato existia e era manifesto em Porto Primavera.

Acontece que a atividade manufatureira ligada àquela atividade é muito

complicada: exige uma série de equipamentos e conhecimentos especializados a

respeito de como utilizá-los e vincula-se a fenômenos, naturais e não naturais, de

periodicidade especial, muito diferente da ligada às lidas do agricultor. Pretender

transformar repentinamente oleiros em agricultores é uma coisa que, no mínimo, é

muito difícil de ser feito. O que é provável que aconteça (que esteja acontecendo,

aliás) é que, num relativo curto espaço de tempo, não se tenha mais oleiros nem

agricultores, tampouco cultura ligada à olaria, na região.

Sem pretender ditar receitas infalíveis e aplicáveis a quaisquer situações,

parece óbvio que uma transição lenta e participativa de uma atividade à outra e que se

preocupe com valorizar a atividade que se está abandonando poderia conduzir a

resultados mais duradouros, menos destrutivos e menos traumáticos.

Outro tanto se pode e deve dizer das pequenas casas de madeira da zona

ribeirinha e das ilhas: a evolução que esse tipo de arquitetura vernacular ainda poderia

ter, ali, em Porto Primavera só poderia dar-se, se a essa cultura e a esse conhecimento

se tivesse dado a oportunidade de continuar desenvolvendo-se, ou seja, se, destruídas

aquelas casinhas de madeira, se tivesse procurado dar aos seus antigos proprietários a

possibilidade de reconstrui-las, em outro lugar, talvez em outros termos, mas

aproveitando o conhecimento que tinham acerca de métodos construtivos, materiais

de construção locais, etc..

Certamente esse aspecto da cultura da população ribeirinha teria sua própria

evolução e continuaria evoluindo em seus próprios termos.

Havia, ainda, em Porto Primavera, uma questão muito aguda que era a

necessidade de acabar-se com um dos bairros de uma das cidades atingidas pelo

empreendimento: tratava-se de Porto Quinze, de onde partia a procissão de Nossa

Senhora do Navegantes que, entre outras particularidades, tinha a especificidade de

acontecer no meio do ano e não no começo do ano como no resto do país.

A solução que se adotou implicou a retirada da população daquele bairro

para um outro local, de modo que a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes

passou a sair daquela outra localidade, com uma série de pequenos prejuízos que

acabaram considerados como tendo sido compensados pelo fato de o empreendedor

estar fornecendo aos deslocados novas casas e nova infra-estrutura.

Em suma, em Porto Primavera, casas de madeira compensaram-se com casas

de alvenaria; olarias, com terra agricultável e bairros e trajetos de procissões, com

outros bairros, “quase iguais, até um pouco melhores”, e outros trajetos para

procissões, tudo na velha tradição segundo a qual os incomodados que apanhem o que

puderem e se mudem!

Enfim, o que eu gostaria de ressaltar nessa experiência de Porto Primavera é

que, a partir de uma desconsideração da problemática posta pelas diferenças culturais,

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dificeis de serem vistas em determinados contextos, reconheça-se, o empreendedor,

deixando de lado o fato de estar diante de uma cultura viva, em evolução, na região

em que se ia instalar, acabou por levar as populações que a portavam a transacionar

com aspectos do próprio modo de vida, da própria cultura, da própria tradição,

oferecendo-lhes em troca apenas bens materiais, o que é, no mínimo confundir alhos

com bugalhos.

Assim procedendo, perturbou seriamente, quando não liqüidou de vez, os

aspectos do patrimônio cultural local com que interferiu, comprometendo-o todo,

dada a sua coerência interna e a sua irredutibilidade ao meramente material e

utilitário, numa palavra, dada a sua indivisibilidade.

Quanto a Ourinhos, que é a segunda experiência que eu queria relatar para

vocês, trata-se de uma cidade próxima ao rio Paranapanema, cujo nome foi dado à

represa que ali se iria construir.

Bem, em Ourinhos, as questões mais agudas não se prendiam à visibilidade

do patrimônio cultural local, nem à sua indivisibilidade, embora esses problemas

estejam sempre presentes, mas ao modo como aquele patrimônio é produzido e

reproduzido.

Isto era muito bem ilustrado por uma Folia de Reis que havia lá.

A Folia de Reis, em poucas palavras, é uma uma expedição petitória que

consiste de uma bandeira, atrás da qual vão músicos.

Faz-se uma coleta de dinheiro que é utilizado para que se faça, depois, uma

grande festa para honrar os Santos Reis.

A Folia de Reis é muito preciosa, porque ela é relativamente rara, no País,

hoje. Ela é permeada por relações de parentesco e compadrio, que fornecem os

colaboradores do promotor da Folia, e baseia-se em crenças e acontecimentos

peculiares.

É preciso que o Folião que promove a Folia sonhe com os Reis Magos e que

lhes prometa que vai realizá-la durante sete anos seguidos e que depois vai passar esse

encargo para outra pessoa, que também vai sonhar com os Reis Magos e continuar a

tradição.

É fácil notar que, além de depender de uma série de acontecimentos que não

se dão todos os dias, a Folia é um empreendimento de vulto considerável para as

pequenas comunidades em que acontece.

Tudo isto implica repousar a sua continuidade sobre a estabilidade das

relações entre as pessoas que a promovem e dela participam. Reassentá-las sem levar

essa questão em conta é o mesmo que inviabilizar a Folia.

Felizmente, isso não ocorreu em Ourinhos.

A problemática, no entanto, tinha de ser reconhecida enquanto tal e em suas

verdadeiras dimensões: uma Folia de Reis é uma jóia que não nos é permitido perder,

por deixar que se quebrem, abruptamente, os elos da corrente de colaboração e

transmissão de conhecimentos, crenças e habilidades que a tornam possível.

Dito isto, eu gostaria de encerrar, colocando essas questões da visibilidade,

indivisibilidade e fragilidade do patrimônio cultural para o debate que virá depois.

Obrigado.

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O RESGATE DA CULTURA INTANGÍVEL REFLETIDA NA

CULTURA MATERIAL

Heloisa Capel de Ataídes

Tendo como base a ênfase levantada em mesas anteriores à uma interpretação

legal que privilegia estudos e análises relacionadas à arqueologia e à arquitetura( por

parte tanto dos órgãos que administram a proteção do Patrimônio, quanto dos

empreendedores), e , ainda, considerando que tais estudos têm por referência a cultura

material; é que nós gostaríamos de contribuir com a discussão demonstrando a

indissociabilidade dos aspectos culturais mais amplos ou “intangíveis” de sua

expressão material e objetiva e, ainda, a partir de um exemplo concreto, fazer

considerações sobre as possibilidades de efetuar um resgate dessa natureza.

Após ouvir as exposições que destacaram a relação cultura / meio ambiente, o

impacto dos empreendimentos sobre as culturas tradicionais e os meios de

diagnosticar os bens culturais, cabe a nós refletir sobre o resgate da cultura intangível

e seu relacionamento com a cultura material.

Em todo trabalho que envolve o diagnóstico, a avaliação e o resgate de

Patrimônios Culturais é importante considerar, que, eles necessariamente,

correspondem a todas as “manifestações presentes do passado humano”

compreendendo tanto as formas materiais (pré-históricas e históricas), quanto as ditas

imateriais, normalmente relacionadas aos modos tradicionais de vida e de expressão.

Nesse sentido é importante observar que os elementos “materiais”, ou físicos

são indissociáveis de sua imaterialidade, relacionada ao terreno das idéias e das

instituições, das manifestações não visíveis, intangíveis da cultura.

Cientistas sociais como Kroeber já na década de 40, ponderavam que: “afinal,

o que conta não é o machado, a capa ou o trigo como coisas físicas, mas a idéia de tais

coisas e o conhecimento de como produzí-las e usá-las, ou seu lugar no mundo”...

Entre os historiadores, apesar do uso constante, de seu abandono e

revalorização através da historiografia francesa, as reflexões acerca da cultura

material ainda estão se processando. Nelas é possível encontrar a idéia de

imaterialidade da realidade objetiva e suas implicações. Como afirma o historiador

medievalista Georges Duby: “o estudo das realidades materiais e o das realidades

imateriais sâo indissociáveis, se quisermos explicar a situação de uma sociedade no

espaço e no tempo”.

A despeito dos avanços e do vigor em que se encontram os estudos que têm a

cultura material como referência para diversas áreas das Ciências humanas, é na

arqueologia que vamos encontrar um maior aprofundamento nas tentativas de utilizá-

la de forma mais abrangente, definindo-a como fonte e objeto de atuação social. Os

pré-historiadores têm-lhe conferido cada vez mais, um perfil antropológico e os

arqueólogos históricos, contribuído para a compreensão de sua natureza,

desvendando, por vezes, seu papel ativo na dinamização cultural em que está inserida.

Da definição fluida e demasiadamente genérica proposta por uma “proto-

arqueologia” social desde a década de 70, à visão passiva de simples reflexo da

cultura intangível desenvolvida pelos processualistas, é na arqueologia pós-processual

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que encontraremos uma visão mais dinâmica sobre a “imaterialidade” da cultura

material, encarada não sob simples reflexo das práticas sociais, mas como sujeito e

objeto da ação social. O comportamento humano é culturalmente constituído,

informado através do significado e ação dos indivíduos. A estrutura sempre em

mudança do seu significado depende do contexto em que está inserida e é negociada

através das ações dos indivíduos que produzem a cultura. Assim sendo, a cultura só

pode ser compreendida como um código ideacional e deve incluir função e

significado, processo e estrutura, entre outros aspectos. A cultura intangível é,

portanto, indissociável da cultura material encarada sob uma perspectiva ampla e

ativa, como a relação entre pessoas e coisas.

Portanto, há inúmeras possibilidades de análise sobre a cultura material. Ela é

uma expressão singular do Patrimônio Cultural por possibilitar interpretações que põe

à mostra a dinamicidade das culturas e épocas e locais historicamente determinados.

Através dela e nela própria pode-se compreender aspectos estruturais mais amplos ou

mesmo, elementos específicos pertencentes a um domínio micro-estrutural e único.

Como elemento ativo, sua ação pode ser desvendada e discutida, como reflexo

intencional, pode ser lida e exposta à crítica textual. Como expressão formal e física,

pode viabilizar o resgate do cotidiano histórico, lugar privilegiado de lutas sociais e da

memória.

O resgate da cultura dita “intangível” pode ser realizado, dessa forma, tendo

como referência a cultura material. As análises a respeito tem demonstrado que a

cultura material é bastante eficaz para fazer emergir os elementos que servirão de

apoio à discussão de problemáticas culturais levantadas em áreas impactadas. Nesse

sentido, como considerá-la apenas em seu aspecto físico, concreto ? As definições de

cultura são fluidas e amplas, hoje compreendidas não apenas no sentido antropológico

de invenção coletiva e temporal de práticas, valores, símbolos e idéias, como também

no sentido de trabalho cultural. Assim, cultura é mais do que o monumental ou o

artístico. Cultura é memória, é política, é história, é técnica, é cozinha, é vestuário, é

religião. Há cultura onde os homens criam símbolos, valores e práticas. Há também

cultura onde se criam o sentido do tempo, do sagrado e do profano, do prazer e do

desejo, da beleza e da feiúra. Portanto, há cultura naquilo que é material e visível,

assim como no que é intangível ou imaterial. Da associação desses elementos, num

trabalho de resgate científico elaborado a partir de problemáticas culturais relevantes,

o Patrimônio Cultural pode ser adequadamente resgatado.

Tomemos nossa experiência como exemplo:

O PROJETO DE LEVANTAMENTO E RESGATE DO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO CULTURAL DA ÁREA DIRETAMENTE AFETADA PELA USINA

HIDRELÉTRICA DE CORUMBÁ, realizado sob o patrocínio de Furnas Centrais

Elétricas, através do Instituto Goiano de Pré História e Antropologia da UCG,

demonstrou as potencialidades do resgate da cultura intangível tendo como referência

a cultura material. O Projeto desenvolveu-se entre 1994 e 1996, envolvendo os

municípios goianos de Pires do Rio, Caldas Novas , Ipameri e Corumbaíba.

A problemática da pesquisa nasceu da fluidez inerente ao conceito de cultura,

da extensão e complexidade da área e das discussões sobre a subjetividade de

conteúdos que tenham como objeto, a análise social. O rio Corumbá, referência

mestre do universo da pesquisa, eixo sobre o qual gravitaram os elementos culturais

mais rapidamente afetados pela construção da hidrelétrica, seria afinal, um elemento

de peso na ocupação, povoamento, e na dinâmica dos acontecimentos que se

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desenvolveram em dois séculos de história ? Foi a partir desta reflexão que nasceu a

hipótese norteadora de todo o trabalho: a suposição de que por suas características

naturais e histórico de ocupação, o rio Corumbá seria muito mais um obstáculo, do

que um estímulo à dinamização da área. O relacionamento com ele foi sempre

norteado muito mais pelos esforços em transpô-lo do que em fixar-se nele.

A ocupação da área, portanto, e sua dinâmica cultural estiveram relacionadas,

em certo sentido, a uma perspectiva de isolamento, em que traços culturais próprios e

identitários puderam ser reconhecidos.

Nesta visão, o patrimônio a ser resgatado relacionou-se diretamente com a

área de estudo, identificando-se a produção cultural de elementos sob uma ótica-

problema, que levou em conta, entre outros aspectos, a viabilidade de preservação no

tempo determinado. Para isso, adotou-se a idéia de cultura como normas de “controle”

subjetivo identificadas num tempo longo e expressas seletivamente através da

memória. A opção de cultura adotada implicou, portanto, numa seleção de discussões,

à medida em que a problemática cultural foi definida para a área.

A preservação foi realizada em consonância com estes princípios. Neste

esforço, os elementos do fazer cotidiano foram sempre incluídos, buscando-se, a partir

deles, traços de identificação cultural de toda a área. As fontes de documentos

preservados foram diversas e responderam às necessidades de análise do objeto. As

opções metodológicas se desenvolveram portanto, em torno de um princípio

norteador: o de que a cultura material é suficiente e eficaz para fazer emergir os

elementos de discussão da problemática cultural levantada.

A cultura material em interação com a problemática da área esteve, dessa

forma, relacionada à paisagem , à arquitetura e aos caminhos, pontes e portos. Estes

elementos materiais deveriam responder à questão norteadora da pesquisa. Sua análise

deveria ser suficiente para elucidar questões sobre o papel do rio Corumbá e as

especificidades definidas pelo isolamento da área de estudo.

Tendo como origem o princípio genérico de que a cultura material pode se

compreendida como qualquer elemnto do meio físico culturalmente apropriado, a

paisagem foi utilizada como instrumento legítimo de leitura. Por ser considerada

como documento histórico sobre o qual a população escreveu a respeito de si mesma e

de seus ideais, a paisagem pode revelar os recursos disponíveis e costumes

decorrentes de seu uso, além de laços abstratos que a ligaram afetivamente à

população.

Ao histórico da ocupação da área agregou-se suas características físico-

culturais. Associados às características da vegetação, da fauna, da geologia e da

geomorfologia foram observados os elementos de construção que, de acordo com as

fases históricas de constituição, modificaram-se no decorrer do tempo. Neste

contexto, os elementos construídos apresentaram-se em interação com os elementos

vivos (vegetação e água). Após vários anos de formação de plantações e pastagens

observou-se um equilíbrio entre as árvores e as sedes de fazendas, as pontes e o rio,

elementos que se constituiram em tempos diversos e contrastantes. A vegetação

mascara os desequilíbrios das proporções e ameniza a silhueta dura do meio

construído influenciando o psiquismo do homem na área de estudo - daí ter sido

importante enfatizá-la no processo de preservação.

A afetividade, como traço cultural ligado à paisagem, relacionou-se às

formações vegetais do conjunto das edificações. Estes elementos refletiram a

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interação natureza e meio construído, sob os quais a tradição local pode ser lida.

Foram, dessa forma, considerados como elementos do patrimônio selecionados pela

memória. As árvores e plantas inscritas na paisagem de algumas fazendas contaram

histórias familiares revelando a associação do homem com o meio e sua afetividade.

O rio Corumbá mereceu, neta análise, um destaque especial devido à

problemática levantada. A investigação sobre o papel afetivo e valorativo do rio

Corumbá reforçou a hipótese dos obstáculos relacionados à ocupação de suas

margens.

Ao ressaltar elementos da superfície visível da água, da qualidade visual e das

encostas do rio, além da vegetação e dos elementos valorizantes e desvalorizantes,

observou-se que o rio Corumbá influenciou e foi pela população influenciado muito

mais como obstáculo a ser transposto do que como potencial produtivo.

Outros elementos de peso na discussão da problemática cultural (tendo a

cultura material como pano de fundo) foram as expressões arquitetônicas. A

arquitetura da área foi levantada e reconhecida, identificando-se nela e através dela a

produção cultural necessária e suficiente para elucidar questões relevantes. As

influências arquitetônicas envolvendo materiais construtivos e elementos estilísticos

foram evocadas, buscando-se a constitução de procedência que conferiu às

construções urbanas e rurais da área algumas especifidades. Nesta trajetória, foram

evidentes as dificuldades de entrosamento com o rio Corumbá expressas na

dissociação de emprego de material construtivo ligado ao rio e na distância das sedes

de suas margens na área rural. Ainda sob este aspecto, outros elementos constribuíram

para a discussão da problemática como o isolamento expresso nas construções que, no

século XX, ainda conservaram técnicas construtivas próprias do século XVIII.

As questões relacionadas ao programa de necessidades das construções, ou

melhor, à organização interna que expressa a cultura de morar, foram importantes ao

descortinar usos quase indistintos na área rural das sedes de fazendas e casas de

agregados que se apresentaram com a mesma organização interna. A estes fatores

somaram-se as idéias do isolamento e da dinâmica própria do local que,

desenvolvendo desde o início do povoamento atividades relacionadas à pecuária,

estreitaram laços de solidariedade social.

Para complementar este estudo considerou-se, sobretudo, que o espaço

construído da casa é importante não apenas no entendimento de sua estrutura física,

mas do uso dos espaços que expressa a cultura de morar.

A análise do programa de necessidades demonstrou que a estrutura

arquitetônica reflete a estrutura sócio-econômica familiar da população rural em

Goiás. A separação das construções ligadas à família e ao trabalho, a criação de uma

faixa composta de sala de visitas e quarto de hóspedes, a existência de uma varanda

ou solar de convivência para onde estão voltados os quartos dos moradores e, ainda, a

valorização do espaço da cozinha como eixo cuore das residências, formaram um

tipologia da casa rural tradicional na área de estudo. Esta discussão proporcionou o

levantamento das atividades cotidianas e suas implicações na delimitação de tarefas

de natureza feminina e masculina, que se desenvolveram em espaços públicos e

privados. Através desses dados, elementos da estrutura familiar, econômica e mental

foram identificados e discutidos.

A materialidade das evidências arquitetônicas serviu, ainda, para se investigar

a religiosidade local - instituída e doméstica - identificando sua constituição no Brasil

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e suas características de singularidade local acentuadas pelo isolamento. Para discutí-

la, fêz-se uso da história oral, resgatando traços da memória seletiva dos moradores,

além do levantamento geral de fontes elucidativas de questões religiosas e suas

expressões diversas.

Ainda buscando expressões materiais significativas para a discussão da

problemática cultural da área de estudo, além da paisagem e dos elementos

arquitetônicos ligados às sedes de fazendas, foram examinados, sob orientação da

Arqueologia Histórica, as pontes, portos e caminhos. Estes elementos, em sua maioria

encontrados em estado de ruínas ou ainda, tendo sua integridade física ameaçada pela

construção da hidrelétrica, apresentaram uma forte base de apoio ao levantamento de

questões ligadas ao rio Corumbá, e seu papel como agente dinamizador do

povoamento e das atividades culturais que se desenrolaram em períodos históricos

subsequentes.

Enfatizou-se ainda, a análise artefatual em interação com estruturas

arquitetônicas permitindo a reconstituição de edifícios e seus espaços. A cultura

material de uso cotidiano revelou hábitos culturais significativos para a discussão dos

domínios públicos e privados nas construções, servindo de apoio às reflexões sobre a

problemática no restante do trabalho. Através dela, pôde-se reafirmar as concepções

iniciais sobre o papel do rio e as dinâmicas culturais associadas à vida cotidiana.

Portanto, através dos referenciais de aproximação objetiva, material,

elementos subjetivos ou “intangíveis” puderam ser examinados. Através da cultura

material, encarando-a de uma maneira reflexa e ao mesmo tempo atuante, os

elementos de discussão sobre o povoamento, o isolamento da área e do rio Corumbá

como agente dinamizador, puderam ser investigados. A cultura material demonstrou,

à luz de um olhar interdisciplinar, ser um recurso eficaz para a análise proposta. A

fundamentação teórica de referência representou um avanço na definição da cultura

material, encarando-a de maneira dinâmica e atuante sobre a cultura e não apenas com

a perspectiva reflexa e inerte de outros estudos. De natureza discursiva e subjetiva, a

cultura material tem poder transformativo. Ela dá opção a uma análise

multidimensional e pode ser até usada para criar, no plano imaginário, um universo

cujo conteúdo e forma diferem completamente da realidade social. Daí ter sido

valorizada no trabalho, a importância de se considerar a subjetividade nas

interpretações dos textos decorrentes da cultura material, sob os olhares da História,

da Antropologia, da Arqueologia e outras áreas afins.

Assim, o princípio metodológico adotado na pesquisa revelou eficiência ao

possibilitar uma discussão ampla e multidisciplinar sobre o objeto construído e a

problemática adotada. O Projeto Corumbá comprovou ser possível elaborar um

trabalho científico partindo de um objeto delimitado artificialmente. Envolvendo

procedimentos interdisciplinares e pouco ortodoxos, foi possível dotar de sentido um

resgate complexo e de grande amplitude. Este é um dos grandes legados de pesquisas

dessa natureza: oportunamente inventariar áreas nem sempre conhecidas, ou mesmo

lançar novos olhares sobre um mesmo objeto, demonstrando, na prática, a

possibilidade de construir problemáticas com referenciais coerentes e próprios. Que a

iniciativa seja imitada, para que o Patrimônio Cultural do homem, em seu aspecto

material e intangível, possa ser valorizado, estimulando trabalhos científicos sobre

áreas impactadas.

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DEBATE

Coordenador: Prof. Jézus Marco de Ataídes - IGPA/UCG

Relatora: Ana Guita de Oliveira - 14a. CR/IPHAN

OBS.: Esse debate, em consequência de falhas técnicas, foi gravado apenas

parcialmente. Seguem-se, aqui, entre aspas, as questões e respostas

trasncritas e, precedidos do aviso de “reconstituição”, alguns resumos das

outras intervenções ocorridas, feitos com base nas notas tomadas pela

relatora da mesa.

Ana Maria Martins - DEFA/GDF - Arquiteta - “Vou fazer um comentário e uma

pergunta para professora Heloisa. Eu sou do Departamento de Patrimônio Histórico e

Artístico do Distrito Federal. Fiquei muito interessada, porque os nossos trabalhos

cotidianos estão relacionados com uma cidade nova, cheia de problemas, cheia de

empreendimentos, cheia de relatórios de impacto ambiental. Então, eu fiquei muito

feliz com a exposição de todos vocês, porque eu acho que existe uma preocupação e

todas as pessoas demonstram isto na medida em que estabelecem medidas concretas

para que se preserve esses bens intangíveis. Eu tenho duas considerações a fazer,

apesar de ser arquiteta e não antropóloga: acho que existem as transformações que a

gente aceita e que vão ocorrendo sobre a sociedade, conforme os valores culturais

vão-se modificando; existem aquelas que são objeto desse Simpósio, ocorridas a partir

de alguma intervenção de grande porte e é sobre essas transformações que eu teria

algum comentário a fazer.

No caso, aqui, uma série de projetos de Usinas hidroelétricas foram

apresentados, em todos eles existem a necessidade de se realocar as populações; como

apresentou o Doutor Caldarelli, a questão de Porto Primavera foi bastante complicada,

na medida em que se tentou minorar os impactos, simplesmente dando um outro tipo

de realidade para população que nem sempre era aquele de que ela estava precisando.

Por outro lado, o que a Professora Heloisa apresentou foi verificado a partir de um

relatório, onde a comunidade desejava exatamente isso. Como sugestão para redação

do trabalho final, eu gostaria de colocar que seria interessante propor que os relatórios

de impactos ambiental, os EIAS principalmente, passassem por um momento de

analise como o do Projeto de Corumbá, que vocês desenvolveram. E que também

propusessem realmente medidas concretas, no sentido de chegar a resultados. Não

aquele obstáculo, no caso do rio, que era um obstáculo para o desenvolvimento da

comunidade e que eles não valorizavam esse elemento natural. Ou, então, chegar a

uma conclusão como em Porto Primavera, pelo menos pela notícia que eu fiquei

tendo, de que atualmente a comunidade toda se dispersou daquele território para qual

ela foi alocada, porque a concepção urbana não estava de acordo com os valores

culturais que a comunidade tinha. Então, que houvesse algum tipo de recomendação

nos relatórios de impacto ambiental a respeito das medidas que o empreendedor

deveria executar quando fosse feita a realocação da população ou fosse executado o

tipo de empreendimento.

Para a Doutora Heloisa eu tenho uma pergunta: vocês têm notícia de como

essa população ficou e para onde ela foi ?”

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Heloisa Capel - “A hidrelétrica Corumbá está terminando, o lago ainda não está

totalmente formado. O Jézus pode responder melhor, porque ele é coordenador do

projeto e pode dar informações mais atuais.”

Jézus Ataídes- “Bom, é um caso diferente, a hidrelétrica de Corumbá vai ocupar uma

área pequena, de 65Km/2. É uma área rural, pouco habitada, não houve grandes

problemas com a população; as fazendas quase todas só tinham um peão, as casas-

sedes quase sempre eram habitadas apenas por um peão, as casas de agregados já

tinham sido abandonadas; então, a população era muito pequena; não houve reação

dessa população, que já tinha se transferido, na sua maioria, para área urbana; não

teve problema como em outras hidrelétricas.”

Antônio Carlos Diegues - (reconstituição) - Falou dos bens tangíveis e das

percepções diferenciadas do ambiente. As medidas mitigadoras são apenas

compensatórias. Citou a experiência da USP. Sugeriu que as populações atingidas

façam seu estudo de impacto a partir do entendimento que possuem - seus próprios

valores. Explicitou as diversas racionalidades contidas nos grupos/segmentos sociais

envolvidos nos projetos.

Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Ressaltou as “racionalidades distintas”

envolvidas no processo de realocação. A noção de propriedade deve ser entendida no

âmbito das relações sociais e não são vistas como legítimas pela sociedade nacional.

A idéia de preservar como formas passadas. Preservar não somente a cultura, mas o

espaço de suas possíveis mudanças - de sua autodeterminação. Ressaltou o caráter

político das questões relacionadas à preservação da cultura.

Carlos Caldarelli - “Frequentemente, as populações submetidas passam a ver-se com

os olhos do outro e, consequentemente, perdem as próprias referências. Os meios de

evitar isso têm de ser formulados caso a caso. Portanto, não é o caso de haver normas

que antecipem o que o empreendedor deve fazer concretamente. Deve haver, isto

sim, normas que vinculem fortemente o empreendedor às conclusões e

recomendações do EIA/RIMA.”

Ana Lúcia Abrahim - 1ª CR/IPHAN - “Nos dois casos, Corumbá e Paraná, na

prática, que propostas de mitigação foram feitas ? Foram implementadas ? Foram

avaliadas?”

Carlos Caldarelli - “Em Porto Primavera, não pôde haver implementação,

monitoramento e avaliação das propostas de mitigação, porque os impactos já

estavam ocorrendo quando se fez o EIA/RIMA.”

Jézus Ataídes - “Em Corumbá, as sedes das fazendas, na sua maioria, já não estavam

mais na área a ser inundada, na época da pesquisa. A especulação imobiliária foi e

está sendo muito grande. Já existem loteamentos de várias propriedades que vão ficar

nas margens do futuro lago. Até então, a população não tinha nenhuma relação mais

íntima com o rio Corumbá, ele sempre foi um rio que causou medo. Não é navegável,

não é piscoso, nem atrai o turismo.”

Ana Lúcia Abraim - ( reconstituição) - Mencionou o boi de Parintins. Perguntou

como mitigar os impactos sobre a situação de saúde da população.

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Ana Cláudia Lima e Alves - IPHAN - (reconstituição) Falou da retomada dos

trabalhos referentes à cultura. Foram realizados no âmbito da Pró-Memória como no

caso dos impactos sofridos pela comunidade de pescadores por ocasião da

construção do Porto de SUAPE, em Maceió. Mencionou o ínicio da retomada destes

trabalhos. Falou sobre o tombamento do Terreiro da Casa Branca, na Bahia.

Estimulou a retomada desta prática.

Alenice Baeta - (reconstituição) Retomou alguns pontos: culpa das universidades em

assumir sua responsabilidade no sentido da proteção. Mencionou as escolas

indígenas que valorizam o etnocentrismo. Mencionou que projetos que deram certo

no Acre tentam intervir no contexto indígena em relação à arqueologia. Mencionou a

não inclusão dos territórios míticos nos trabalhos de demarcação (fala dirigida ao

Dr. Rinaldo). Perguntou como o impacto sobre o bem intangível pode ser mitigado.

Mencionou os Krenak e Caxixó. Trabalhou com sítios pré-históricos que são sítios

encantados para os Krenak. Mencionou que os índios se apropriam dos sítios pré-

históricos como territórios sagrados.

Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Na educação indígena, a arqueologia tem papel

fundamental, permite uma configuração mais sólida, quando comparados com os

relatos etnohistóricos e antropológicos. A idéia é a complementariedade entre as

disciplinas. A terra não é vista como mercadoria para as populações indígenas.

Reforçou a necessidade da multidisciplinaridade na avaliação dos impactos.

Dificuldade em avaliar por um único prisma os impactos. O empreendedor enfatiza

um único ponto de vista. Mencionou a necessidade de desenvolvimento de

metodologia própria.

Ana Isa Bueno - IPHAN - (reconstituição) Falou que, em Porto Primavera, a

população tinha emprestado os outros “olhos”. Mencionou o conjunto habitacional

construído nos moldes do BNH. A população removida retomou seus valores.

Reordenaram seu espaço. Perguntou se o Dr. Carlos Caldarelli tinha trabalhado com

os índios Ofaié.

Carlos Caldarelli - “Não”.

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5ª MESA-REDONDA:

GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO

FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO

DAS NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E

AMBIENTAL

COORDENAÇÃO:

Dr. José Luiz de Morais

Museu de Arqueologia e Etnologia/USP

Consultor do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

SUZANNA CRUZ SAMPAIO Licenciada em Geografia e História pela PUC - Instituto Sedes Sapientiae

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo

Diretora do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo (1985/6)

Conselheira Titular da Área de Patrimônio Cultural do CINC-Conselho Nacional de Incentivos à

Cultura (MinC)

Conselheira do Conselho Consultivo do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional

Presidente do ICOMOS/BRASIL - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - UNESCO

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS Graduado pela Faculdade Nacional de Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Rio de Janeiro).

Advogado no Rio de Janeiro.

Membro do Ministério Público Federal desde julho de 1982, atuando agora perante o Colendo

Supremo Tribunal Federal.

Subprocurador-Geral da República, integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal e é o

Coordenador da 4ª Câmara do Ministério Público Federal, incumbida da coordenação e revisão da

atuação da instituição em todo o país nas áreas do Patrimônio Cultural e do Meio Ambiente.

HELITA BARREIRA CUSTÓDIO Doutora em Direito e Livre-Docente em Direito Civil (pela Universidade de São Paulo)

Aperfeiçoamento em Ciências da Administração Pública, com especialização em Direito

Urbanístico (pela Universidade de Roma)

Especialização em Direito Municipal (pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo)

Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente (SOBRADIMA)

Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-SP

Mais de cem trabalhos publicados, notadamente em revistas técnico-jurídicas, sobre assuntos direta ou indiretamente relacionados com Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito

Urbanístico, Direito de Construir, Direito Ambiental, Direito Florestal, Direito Agrícola, Direito

Municipal, Direito Civil (normas gerais, Direito da Propriedade, Direito das Obrigações).

JOSÉ EDUARDO RAMOS RODRIGUES Advogado em São Paulo

Vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB- SP

Coordenador da Câmara de Patrimônio Cultural da Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP

Conselheiro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental

da Cidade de São Paulo

Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

CARLOS EDUARDO CALDARELLI Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo

Advogado com escritório em São Paulo (SP)

Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica S/C Ltda.,

participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento

Ambiental

Membro da IAIA - International Association for Impact Assesment

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AS CARTAS INTERNACIONAIS E A PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO

Suzanna Cruz Sampaio

RESUMO

1) Existência de uma centena de Convenções, Cartas, Recomendações, Declarações,

Manifestos, Compromissos e Resoluções escritos após debates e decisões

consensuais e promulgados ao final de congressos internacionais. Escolha para

análise: a Primeira (1932), a mais famosa Veneza (1964), a última “Autenticidade”

(Nara 94 e Brasília 95) e, pela importância, a Convenção de Paris - “Patrimônio

Mundial”, novembro de 1972.

2) Conjunto de preceitos para a orientação dos profissionais da preservação e

restauro, surgido nessa moderna versão em 1972.

I - Com a CARTA DE ATENAS: principais tópicos e fundamentos para o restauro de

monumentos e áreas históricas dos modernos centros urbanos. Estuda:

1) a cidade

2) os elementos coletivos e individuais

3) a situação geográfica e topográfica

4) sistema econômico

5) política e administraçào

6) defesa e rotas de transporte

7) população, habitação “era da máquina”

8) cidade: “Pequena Pátria”

9) estudo crítico das funções da cidade e propostade zoneamento e estabelecimento

ordenado de exigências

10) A Carta de Atenas propõe a salvaguarda do patrimônio histórico das culturas

anteriores

10.1) se constituírem a expressão do interesse geral

10.2) se não exigir sacrifício para as populações

10.3) se for necessário: desviar a circulaçào evitando destruir o monumento

considerado “obstáculo”

10.4) destruição de cortiços e criação de superfícies verdes

10.5) cópia servil do estilo do passado: o “falso” e o “verdadeiro”

11) Conclusões e doutrina

11.1) Caos urbano - cidades estudadas: Amsterdã, Atenas, Baltimore, Bandune,

Barcelona, Berlim, Bruxelas, Budapeste, Chalerdi, Colônia, Como, Dalat,

Detroit, Dessau, Estocolmo, Frankfurt, Geneve, Gênova, Haia, Los Angeles,

Litoria, Londres, Madri, Oslo, Paris, Praga, Roma, Roterdã, Utrecht, Verona,

Varsóvia, Zagreb e Zurich

11.2) Crescimento dos interesses privados. Transformação desordenada,

desequilíbrio. Nos planos espiritual e material, liberdade individual e ação

coletiva

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11.3) Escala humana para o desenvolvimento das quatro funções urbanas (9.1,

9.2, 9.3, 9.4)

11.4) “Alegrias Fundamentais”: subordinando o interesse individual ao coletivo:

“acesso ao bem estar do lar e à beleza da cidade”

11.5) Nascimento dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura

Moderna)

II - CARTA DE VENEZA (1964):

1) origem e abrangência

2) definições e finalidades

2.1) monumentos

2.2) sítios (urbanos ou rurais)

2.3) multidisciplinar e pluriprofissional

3) conservação e restauro

3.1) técnicas

3.2) acréscimos

4) escavações

4.1) normas da UNESCO

4.2) proibição da reconstrução

5) documentação

5.1) obrigatoriedade em todos os casos

5.2) criação de arquivos

6) criação do ICOMOS por Gazzola, Lemaire, Benavente, Campos, Castro

Mello, Gasperini - ao término do IIº Congresso Internacional de Arquitetos

(Veneza)

III - Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural -

Conferência Geral da UNESCO - Paris, 1972. Promulgada no Brasil em 1977

(Geisel)

1) ante a ameaça de destruição não só pelas causas naturais de degradação mas

pelas mudanças sociais e econômicas, e considerando que o desaparecimento

de um bem cultural ou natural é uma perda irreparável para a humanidade,

propõe-se a adoção de disposições convencionais que estabeleçam um sistema

de proteção coletiva de todos os patrimônios de maneira eficaz e moderna.

2) Definições do Patrimônio Cultural e do Patrimônio Natural

2.1) Proteção nacional e internacional dos ... Art. 4

2.2) Obrigações dos Estados Membros: Art. 5

conjunto de medidas (a,b,c,d,e)

3) Criação do Comitê Intergovernamental da Proteção ao Patrimônio Mundial

Art. 8º - Criação

Art. 9º - Estados Membros, obrigações e representação

Art. 10 - Regimento interno

Art. 11 - Candidaturas à lista do Patrimônio Mundial; valor universal

excepcional; patrimônio em perigo; pedido oficial do país interessado.

Art. 13 - Assistência internacional para inclusão em listagem. Cooperação:

ICOMOS, ICOROM, VICN

Art. 14 - Assistência técnica da UNESCO

4) Fundo para Proteção do Patrimônio Mundial - Art. 19, 20, 21, 22 - Assistência

Internacional

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UNESCO - Comitê do Patrimônio Mundial - Diretrizes, 1976 (Revisão 1996)

Princípios Gerais - Exigências - Critérios - Procedimento

AUTENTICIDADE:

Uma das condições sine qua non para inscrição de um bem na lista do Patrimônio

Munidal, este tema tem atualmente norteado todas as discussões dos especialistas

do ICOMOS, devido aos vários significados que assume nas diferentes línguas dos

diversos países membros

CARTA DE NARA (Japão 1994)

Baseia o conceito de autenticidade na “diversidade cultural dos diversos

patrimônios” - diferenças entre Europa e Oriente

CARTA DE BRASÍLIA (1995)

Analisa “autenticidade“ em diversos aspectos: identidade ou identidades nacionais;

mensagem intangível do bem; contexto sócio-cultural; materialidade e

tangibilidade do bem; gradação e qualificação das diversas autenticidades;

preservação da autenticidade; homogeneização, massificação em oposição às

identidades nacionais e regionais

CONCLUSÃO As Cartas e a Legislação Brasileira

A UNESCO é extremamente rigorosa no que diz respeito à soberania das nações

e recomenda cautela e prudência aos órgãos a ela filiados (ICOMOS, ICOROM

e UICN). Art. 6º, Conv. 1972.

As normas prescritas pelas Cartas Internacionais não têm a força cogente da

legislação penal positivadanos códigos de cada país. A tarefa dos Comitês

Nacionais do ICOMOS é apelar às instâncias judiciais de seus países.

Apresenta-se denúncia de crime de dano ou destruição no Brasil de bens

tombados, cabendo ao denunciante (pessoa física em nome da entidade) o

ônus da prova (Art. 15 - Código de Processo Penal) (Art. 165 e 166 Código

Penal Brasileiro). O mesmo procedimento deve ser adotado nos processos

administrativos ou nas lides civis.

Recomenda-se consulta jurídica privada, quando a queixa for particular em

defesa de lesão ao seu direito personalíssimo (defesa da honra contra calúnia,

difamação e injúria - Arts. 138, 139, 140 e parágrafos Código Penal Brasileiro)

nos casos de denúncia contra atos do Poder Público, recomenda-se seja acionada

a consultoria jurídica da própria instituição acusada de não atender à legislaçào

vigente. Nesses casos, devem os autores da queixa atentar para que não sejam

cometidos os crimes de denúncia caluniosa ou de exercício arbitrário das

próprias razòes (Arts. 339 e 345 do Código Penal Brasileiro).

Tantas e tais têm s ido as lesões ao Patrimônio Cultural em todos os países

membros do ICOMOS, que advogados presentes à XIª Assembléia

representando os países íbero-americanos, redigiram moção (lida em plenário

pela Presidente do ICOMOS/BRASIL), solicitando a criação de um Comitê

Científico Internacional de Legislação. Acatado o pedido por aclamação,

avisamos que esse comitê está sendo organizado pelo Dr. Werner Von

Tsütchaler do ICOMOS/ALEMANHA, omde haverá reunião em abril. Deve

ser esclarecido que o comitê agrupará os países cujo Direito tenha origem

romanística, e portanto legislação codificada. Estados Unidos, Inglaterra,

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Canadá e putros entre os 87 membros do ICOMOS, que possuem sistemas não

codigicados, mas jurisprudenciais consuetudinários, deverão agir

separadamente.

Decreto-Lei 25 (1937) - Breve análise

Constituição Federal (1988)

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ASPECTOS JURÍDICO-PROCESSUAIS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO

Roberto Monteiro Gurgel dos Santos

Inicialmente, gostaria de agradecer a Universidade Católica de Goiás, através

do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, e ao IPHAN a gentileza do

convite.

Honra ao Ministério Público Federal e a mim pessoalmente o privilégio de

participar deste Simpósio, seja pela qualidade dos expositores - de que certamente

destoarei - seja pelo elevado nível de todos os participantes do evento. Para falar o

óbvio, é sempre extremamente enriquecedora e profícua a troca de idéias,

especialmente quando tem lugar em seu cenário ideal, a Universidade.

Na temática que me coube - Aspectos jurídico-processuais da proteção ao

patrimônio cultural brasileiro - não optei - e penitencio-me com a organização do

seminário e com os que prestigiam com a sua presença se deixei de fazê-lo

indevidamente - por uma abordagem acadêmica, que, de resto, seria feita com maior

proveito e incomparável proficiência por meus eminentes companheiros de mesa.

Optei, dizia, por trazer a vocês - permitam-me tratá-los com a informalidade

tão benfazeja ao debate de idéias - um panorama extremamente breve e superficial de

como vem se operando concretamente a proteção ao patrimônio cultural brasileiro e

ao meio ambiente como um todo.

Esclareço, neste passo, que ao longo da exposição muitas vezes me referirei

ao ambiente na sua acepção mais ampla, abrangente do patrimônio cultural).

Trata-se de panorama traçado, no âmbito federal, a partir do meu dia a dia

como Coordenador, modestíssimo, da atuaação do Ministério Público Federal em todo

o país nas questões afetas ao meio ambiente e ao patrimônio cultural.

Como todos sabem, a Constituição Federal de 1988 confiou ao Ministério

Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis”, outorgando-lhe, dentre muitas outras, a função de

“promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio

público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

Na ordem constitucional anterior, o Ministério Público Federal fora,

essencialmente, sem qualquer demérito para os valorosos colegas que então

compunham a instituição - eu mesmo nela ingressei em 1982 -, o representante

judicial da União e o titular da ação penal nos crime de competência da Justiça

Federal.

Titularidade da ação penal que acabou por revelar a figura notável do

inesquecível Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, que, ousando

resistir em tempos em que a regra era ceder, praticou, como inguém a independência

do Ministério Público e cuja morte despertou todos nós para a necessidade de

construir uma nova instituição, agora efetivamente voltada para a sociedade e a

serviço da sociedade.

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Veio a Assembléia Nacional Constituinte, que, pela feliz conjunção de

diversos fatores, consagrou, em dispositivos como os referidos, esse perfil de

servidora da sociedade para a instituição ministerial.

Neste quadro, o Ministério Público Federal, como todo o Ministério Público,

vem procurando, ainda com grandes deficiências e indesculpáveis omissões,

desincumbir-se da melhor forma possível das atribuições que lhe cometeu a

Constituição relativamente à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis -

novas atribuições que, saliento, representam hoje o maior atrativo para a opção de

tantos novos colegas pela Instituição.

Graças à dedicação, firmeza e competência dos colegas presentes em todo o

território nacional, a quem homenageio na pessoa dos Procuradores da República no

Estado de Goiás como os responsáveis efetivos pela construção do Ministério Público

com que todos sonhamos, têm crescido permanentemente as iniciativas na área do

patrimônio cultural e na área ambiental como um todo.

Não apenas crescido quantitativamente mas também qualitativamente,

modéstia à parte. Sim, a despeito de suas muitas imperfeições, as iniciativas

ministeriais, em regra, são hoje incomparavelmente melhor instruídas, mais

cuidadosamente elaboradas, mais consistentes enfim do que foram no passado.

E os seus resultados? Têm crescido na mesma proporção? Sabem todos que

não! Os resultados obtidos na via judicial ainda ficam muito aquém do que seria

razoável esperar.

Onde buscar a causa de tamanho descompasso?

Certamente no Ministério Público, que tem longo caminho a percorrer no

aprimoramento dos seus desempenhos funcionais. Estamos conscientes disso e todos

os esforços estão sendo enviados nesse sentido.

Talvez nas deficiências das nossas leis? Alterações e aprimoramentos

legislativos, tantas vezes reclamados em decisões judiciais queixosas do direito

vigente, serão necessários paramodificar essa situação?

Certamente que não.

Bem destacou o eminente Professor e Senador Josaphat Marinho, em

seminário promovido meses atrás pela Comissão de Direito Ambiental da OAB/DF,

de que tive a honra de participar, que já vivemos uma “inflação legislativa”e o que é

preciso “interpretar as leis a partir da Constituição e não pensar em mudá-las”.

Parcela extremamente significativa do Judiciário, entretanto,

lamentavelmente tem se mostrado incapaz de fazê-lo - mesmo em hipóteses em que

pouco ou nenhum esforço hermenêutico seria requerido para tanto - precisamente em

decorrência de inegáveis resistências aos temas pertinentes aos direitos e interesses

difusos em geral.

Afloro - bem o sei - tema em relação ao qual existe natural cerimônia mas

que é preciso enfrentar, evidentemente colocando-o no elevado plano da discussão de

idéias, sem qualquer intenção de críticas pessoais, ainda quando aludido algum caso

concreto.

Acompanhar, como faço, por dever do ofício de Coordenador, a atuação dos

valorosos colegas em todo o país é vê-los quase sempre nadando contra a maré

quando não investindo contra inamovíveis rochedos.

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Se no primeiro grau de jurisdição são mais numerosos a cada dia os

Magistrados imbuídos do inafastável dever de assegurar proteção a valores que a

Constituição - não o IPHAN, não as Universidades, não o Ministério Público, não as

ONGs - a CONSTITUIÇÃO considera fundamentais, o panorama nos Tribunais -

cinjo-me àqueles perante os quais o Ministério Público Federal atua - é, com as

exceções de estilo - algumas, aliás, notáveis - francamente desolador.

As causas do fenômeno, embora complexas, não parecem difíceis de apontar,

decorrendo, originalmente, do modelo tecnoburocrata adotado entre nós para a

magistratura e também para o Ministério Público.

O juiz consagrado pela nossa sociedade é o homem acima dos conflitos

humanos - vejam o paradoxo. Quanto mais impermeável for ao meio em que vive,

melhor juiz será nessa visão distorcida. Juiz “asséptico”, impossibilidade

antropológica nas palavras de Zaffaroni, em interessante obra publicada há cerca de

um ano no Brasil a respeito do Poder Judiciário.

A isso acrescente-se a circunstância de uma formação - da geração de hoje

nos tribunais - voltada para os direitos e interesses individuais, pouco adequada aos

direitos e interesses supraindividuais ou transindividuais que marcam o nosso tempo.

Neste ponto, gostaria de ilustrar com um exemplo, que me parece muito

relevante, de um lado, as dificuldades com que se depara o Ministério Público Federal

para fazer transitar perante o Judiciário os temas pertinentes aos direitos e interesses

difusos e, de outro, a aplicação, segundo entendo, limitada pelo Judiciário das normas

de proteção ao patrimônio cultural e ao ambiente como um todo.

Prevê a norma do $ 1° do art. 12 da Lei n. 7.347/85, a lei da ação civil

pública, a possibilidade de, a requerimento da pessoa jurídica de direito público

interessada, o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo

recurso suspender a execução da liminar concedida, para evitar grave lesão à ordem, à

saúde, à segurança e à economia pública.

Sem qualquer sabor de novo, a norma reproduz praticamente em, todos os

seus termos a disposição do art. 4° da Lei n. 4.348, editada em, 26/6/64, nos albores

da ditadura militar, cuja constitucionalidade foi mais de uma vez questionada e que

acabou ampliada mais recentemente pelo também art. 4° da Lei n. 8.437 de 30/6/92.

Pois bem: a aplicação que usualmente tem sido dada ao dispositivo

mencionado vem se erigindo em obstáculo virtualmente intransponível à efetividade

da tutela jurisdicional dos chamados direitos e interesses difusos.

O que vem ocorrendo na quase totalidade dos casos efetivamente relevantes?

Concedida a medida liminar, é prontamente requerida a respectiva suspensão,

imediatamente deferida quase que invariavelmente à invocação de grave lesão à

economia pública decorrente da paralisação da atividade lesiva.

Assegura-se, deste modo - confessadamente, algumas vezes - absoluta

proteção ao valor economia pública em detrimento da preservação do patrimônio

cultural e do meio ambiente, forte em que se cuida de incidente em que o juiz

aexercita cognição restrita à verificação da presença dos pressupostos aensejadores da

medida excepcional.

Não seria imperativo, nesta cognição que é efetivamente restrita, confrontar o

valaor da economia públicaa, por exemplo, com os valores que a medida liminar

buscou resguardar, especialmente quando de dignidade constitucional estes últimos?

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Antolha-se que sim e, procedido à luz da Constituição tal exame, a conclusão

inevitável deverá ser a de que encontram estes em posição proeminente.

Confira-se a lição seguinte de José Afonso da Silva:

“A Declaração de Estocolmo abriu caminho para

que as constituições superveniente reconhecessem o meio

ambiente ecologicamente equilibrado como um direito

fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua

característica de direitos a serem realizados e direitos a não

serem perturbados...

O que é importante - escrevemos de outra feita - é

que se tenha a consciência de que o direito à vida, como

matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem,

é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da

tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um

fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer

outras considerações como as de desenvolvimento, como as

de respeito ao direito de propriedade, como as de iniciativa

privada. Também estes são garantidos no texto

constitucional, mas, a toda evid6encia, não podem primar

sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando

se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a

tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no

sentido de que, através dela, o que se protege é um valor

maior: a qualidade de vida.”

(Direito Ambiental Constitucional, 2ª ed., rev., p.

43/44. São Paulo, Malheiros, 1995).

Ao negar-lhe primazia, penso que incide a decisão da Presidência do

Tribunal em inconstitucionalidade. Quase sempre, porém, é o que infelizmente ocorre,

mercê da concepção antes apontada.

Este quadro desfavorável tem levado o Ministério Público a voltar-se

crescentemente para as possibilidade da via negociada, mesmo porque a experiência

vem demonstrando o acerto do que há muito lembrava Edis Milaré: haverá casos em

que a não celebração do acordo iria contra a tutela do interesse público difuso

objetivado”.

Assim, no Ministério Público Federal, temos falado mais e mais em

desjudicializar sempre que possível as iniciativas no campo do patrimônio cultural e

no meio ambiente como caminho para viabilizar resultados que certamente não serão

os ideiais mas que, muito provavelmente, traduzirão uma proteção mais efetiva e

imediata desses valores do que aquela que talvez viesse a ser obtida na via judicial.

A celebração dos compromissos de ajustamento de conduta, prevista no art.

5°, $ 3°, da Lei n. 7.347/85, têm proporicionado se não os resultados ideais, até

porque envolve a idéia de transação - que sei gerar perplexidades em se cuidando de

direitos indisponíveis - progressos significativos e viáveis, que enfatizam, em minha

opinião, a sua conveniência.

Este panorama - não muito animador, reconheço - da proteção ao patrimônio

cultural brasileiro que trago a debate nesta oportunidade tão preciosa e que pode ser

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sintetizado em poucas palavras: via judicial com dificuldades extraordinárias,

especialmente a partir do segundo grau de jurisdição; consequente tendência à

desjudicialização das iniciativas e via extrajudicial ou negociada com perspectivas

favoráveis.

Assinalo, por último, que, não obstante essas perspectivas favoráveis da via

negociada, tenho como primordial modificar a situação relativamente à via judicial,

inevitável em muitas hipóteses.

É urgente modificá-la, é urgente que a sociedade, pelos seus organismos mais

atuantes, entre os quais desponta a Universidade, trabalhe concreta e constantemente

para sensibilizar o Judiciário, como fez com o Ministério Público, da relevância

abasoluta desses temas.

Mostra-se absolutamente indispensável que o Judiciário, ainda nas palavras

de Josaphat Marinho, “sob inspiração da sociedade, seja conduzido a dar uma

aplicação mais ampla, menos formal, mais humanista, à legislação existente”.

“Nem o juiz que resolva os conflitos como se não existente a lei nem o juiz

que deixe de lado totalmente as consequências de suas sentenças”. Precisamos do Juiz

consciente do seu papel político.

Afinal, “quanto mais consciente seja o poder judiciário acerca do seu papel

político, mais idôneo será para cumprí-lo e, assim, desempenhar as suas funções, que

são sempre políticas”(Zaffaroni).

Somente este Juiz poderá ser cumplice - cúmplice mesmo, por que não? - da

sociedade na defesa efetiva do patrimônio cultural e do meio ambiente como um todo,

desinstalando conceitos arraigados e concretizando um pensar novo que viabilize

também no âmbito judicial as iniciativas dos diversos atores sociais - o Ministério

Público, entre eles.

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AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

BRASILEIRO EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS NORMAS

AMBIENTAIS

Helita Barreira Custódio

I - INTRODUÇÃO

Para melhor compreensão sobre a abrangência do conteúdo e do alcance das

normas de proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro integrantes da Constituição

Federal e do direito Ambiental, direta e indiretamente relacionadas com a Política de

Desenvolvimento Urbano, com a Política Agrícola, com a Política das Atividades

Econômicas e com a Política em Defesa e Preservação dos Valores Culturais de

nosso País, tornam-se oportunas breves noções, notadamente, sobre meio ambiente

(com seus recursos naturais e culturais), sobre Patrimônio Cultural Brasileiro (em

confronto com as inquietantes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais ou

imateriais ali componentes), sobre o Direito como princípios e normas disciplinadoras

de condutas ou de atividades das pessoas (físicas e jurídicas de direito público ou de

direito privado) e sobre o Direito Ambiental como novo e relevante ramo do Direito.

1. Noções de Meio Ambiente

Para os fins protecionais, a noção de meio ambiente é muito ampla,

abrangendo todos os bens naturais e culturais de valor juridicamente protegido, desde

o solo, as águas, o ar, a flora, a fauna, as belezas naturais e artificiais, o ser humano, o

patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico, monumental, arqueológico, além

das variadas disciplinas urbanísticas contemporâneas.15

Considera-se o meio

ambiente humano o conjunto das condições naturais, sociais e culturais em que vive a

pessoa humana e são suscetíveis de influenciar a sua existência.16

O meio ambiente “é

tudo aquilo que nos cerca”. O meio ambiente não é “uma experiência utopística, mas

um direito para cada pessoa humana”.17

“O meio ambiente é, assim, a interação do

conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o

desenvolvimento equilibrado da vida humana “.18

Não resta dúvida de que ampla é a

noção do meio ambiente, uma vez que abrange, sem exceção, todos os recursos

naturais e culturais (nestes compreendidos os artificiais) indispensáveis à

concepção, à germinação ou a qualquer outra circunstância originária, ao nascimento,

ao desenvolvimento e à preservação da vida em geral, tanto da pessoa humana como

dos seres vivos em geral (animais e vegetais).

Como definição legal, “entende-se por meio ambiente: o conjunto de

condições, leis, influência e interações de ordem física, química e biológica, que

permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, considerando-se, ainda, o

15

P. Salvatore, Tutela Pubblica dell‟Ambiente, in Rassegna Semestrale dell’Unione Nazionale Avvocati degli Enti Pubblici,

Roma, 1975: 343. V. nossa tese, Autonomia do Município na Preservação Ambiental, Ed. Resenha Universitária, São Paulo,

1976, p. 1 e ss.

16

Guido-Colombo, Dizionario di Urbanistica, Pirola, Milano, 1981: 12. 17

Amedeo Postiglione, Manuale dll’Ambiente - Guida alla Legislazione Ambiental, La Nuova Italia Scientifica-NIS, Roma,

1986: 16. 18

José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, RT, São Paulo, 1981: 435.

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“meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e

protegido, tendo em vista o uso coletivo” (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, arts. 3º, I, e 2º, I).

Trata-se de ampla definição legal, pois atinge “tudo aquilo que permite a vida, que a

abriga e rege”, abrangendo “as comunidades, os ecossistemas e a biosfera”.19

Constitucionalmente, o meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui

direito de todos, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,

impondo-se ao Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e à

coletividade (todas as pessoas físicas e jurídicas, estas de direito privado com ou sem

fins lucrativos) o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presente e futuras

gerações (CF, art. 225).

2. Noções de Patrimônio Cultural Brasileiro e inquietantes condutas ou

atividades lesivas aos bens materiais ou imateriais ali integrantes

Em princípio, sem entrar nas particularidades doutrinárias, considera-se

patrimônio cultural o conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais,

decorrentes tanto da ação da natureza e da ação humana como da harmônica ação

conjugada da natureza e da pessoa humana, de reconhecidos valores vinculados aos

diversos e progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e

povos. Integrado de elementos básicos da civilização e da cultura dos povos, o

patrimônio cultural, em seus reconhecidos valores individuais ou em conjunto,

constitui complexo de bens juridicamente protegido em todos os níveis de governo,

tanto nacional como internacional.

Perante o Direito Internacional, de acordo com a convenção Relativa à

Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, aprovada pelo Dec.

Legislativo n.º 74, de 30.6.77, e promulgada pelo Decreto n.º 80.978, de 12.12.77,

consideram-se, como patrimônio cultural: a) “os monumentos: compreendendo as

obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas

de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um

valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) os

conjuntos: compreendendo grupos de construções isoladas ou reunidas que, em

virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor

excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) os lugares

notáveis: compreendendo as obras do homem ou obras conjugadas do homem e da

natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor

universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou

antropológico” (art. 1º). Tratando-se de noção interdependente, consideram-se, como

patrimônio natural: a) “os monumentos naturais: constituídos por formações

físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, ou tenham valor excepcional do

ponto de vista estético ou científico; b) as formações geológicas e fisiológicas: bem

como as áreas nitidamente delimitadas, que constituam o habitat de espécies

animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor excepcional do ponto de vista da

ciência, da conservação ou da beleza natural” (art. 2º).

De forma harmônica com as normas internacionais, abrangente é o conteúdo

do conceito de patrimônio cultural brasileiro introduzido inovatoriamente pela

vigente Constituição, segundo a qual: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os

bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,

portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

19

Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, RT, São Paulo, 1982: 4.

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formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:” I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e

tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de

valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e

científico” (CF, art. 216). Pelo amplo conteúdo e abrangente alcance do conceito

constitucional, torna-se patente que a enumeração, que define os bens e valores

culturais integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, é apenas exemplificativa e

nunca taxativa, uma vez que ali se compreendem outros valores culturais, como

aqueles integrantes do Patrimônio Antropológico, do Patrimônio Espeleológico,

dentre outros, do País (CF, art. 216 c/c arts. 23, I, III, IV, V, VI, VII; 24, VII; 225). O

abrangente conceito constitucional de Patrimônio Cultural Brasileiro 20

compreende o

Patrimônio Cultural de todas as Unidades da Federação (União, Estados-membros,

Distrito Federal e Municípios), advertindo-se que qualquer conduta ou atividade

lesiva ao patrimônio cultural local, distrital ou estadual constitui crime e dano contra o

próprio Patrimônio Nacional, sujeitando-se os infratores (pessoas físicas ou jurídicas,

de direito público ou de direito privado) às ajustáveis sanções administrativas, penais

e civis (CF, art. 225, § 3º, c/c art. 216, § 4º).

Com estas sucintas noções, é oportuno relembrar, ainda que brevemente, as

inquitantes e crescentes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais e imateriais

integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro. Neste sentido, graves e prejudiciais aos

valores culturais são os impactos de natureza ambiental e cultural decorrentes

notadamente da execução de projetos de serviços, construções, obras ou extrações de

interesse público ou particular, da realização de atividades industriais ou comerciais,

da exploração ou utilização de recursos naturais (águas, solo e subsolo, ar, flora,

fauna), da aplicação maciça de agrotóxicos, seus afins e componentes na agricultura,

nos alimentos e bebidas em geral, além de outras condutas ou atividades efetiva ou

potencialmente poluidoras, sem as medidas preventivas ajustáveis, sem os

competentes estudos de impacto ambiental, relatórios de impacto ambiental e

avaliação de impacto ambiental, tudo constituindo efetivos e iminentes riscos e danos

ao patrimônio ambiental brasileiro e, consequentemente, ao Patrimônio Cultural

Brasileiro.21

3. Noções do Direito como princípios e normas disciplinadores de condutas das

pessoas (físicas e jurídicas)

Em ampla noção, o Direito, objetivamente considerado (norma agendi),

define-se como complexo de regras impostas coativamente pelo Poder Público

competente e disciplinadoras da condutas das pessoas (físicas ou jurídicas) na vida

social. como regra social de conduta obrigatória, mediante sanção, para a ordem e o

equilíbrio de interesses na própria sociedade, a finalidade fundamental do Direito é

aquela de assegurar a “pacífica convivência” da vida social, o que só será possível

mediante a realização de “dois objetivos essenciais: aquele da certeza do direito e

20

Sob este aspecto, reporta-se às oportunas observaçòes de Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, 6ª ed.,

Malheiros, São Paulo, 1996: 647 e ss. 21

Reporta-se à bibliografia científica citada em nossos trabalhos, sobre graves denúncias e preocupações da comunidade

científico-jurídida: Avaliação de Impacto Ambiental no Direito Brasileiro, in RDC 45: 68-105, Ed. RT, São Paulo, 1988;

Legislação Brasileira do Estudo de Impacto Ambiental: Uma visão multidisciplinar, organização de Sâmia Maria Taud, 2ª

ed., Ed. UNESP, São Paulo, 1995: 44-64; Monumentos Históricos, Artísticos e Naturais, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v.

53: 222, Ed. Saraiva, São Paulo: 222-239; Clayton F. Lino e João Allievi, Cavernas Brasileiras, Ed. Melhoramentos, São Paulo,

1980: 157 e ss.

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aquele da certeza da observância do próprio direito”22

Neste sentido, salienta a

doutrina que a noção do Direito, partindo originalmente da natureza humana, alcança

a organização social e visa à disciplina das condições de coexistência e

aperfeiçoamento, tanto dos indivíduos, como dos grupos sociais e da sociedade.

Disciplinando a vida social, o Direito não abandona o ser humano à sua própria sorte,

mas lhe proporciona condições para sua perfeição, seu desenvolvimento e seu

progresso, tanto de sua vida física e psíquica, como de sua própria vida social.

Essencialmente decorrente da natureza humana, o Direito é uma força social em sua

origem, em sua natureza e em sua finalidade. Como princípio de adequação do

homem à vida social, num dinâmico processo social de adaptação, a causa final do

Direito é a consecução da Justiça23

à realização do bem comum.

Noções do Direito Ambiental como novo ramo do Direito. Em princípio, com base

nas expressas normas constitucionais e legais vigentes, numa tentativa preliminar de

noção genérica da complexa matéria integrante, considera-se Direito Ambiental o

conjunto de princípios e regras impostos, coercitivamente, pelo Poder Público

competente e disciplinadores de todas as atividades direta ou indiretamente

relacionados com o uso racional dos recursos naturais (ar, águas superficiais e

subterrâneas, águas continentais ou costeiras, solo, espaço aéreo e subsolo, espécies

animais e vegetais, alimentos e bebidas em geral, luz, energia), bem como com a

promoção e proteção dos bens culturais (de valor histórico, artístico, arquitetônico,

urbanístico, monumental, paisagístico, turístico, arqueológico, paleontológico,

ecológico, científico), tendo por objetivo a defesa e a preservação do patrimônio

ambiental (natural e cultural) e por finalidade a incolumidade da vida em geral, tanto

a presente como a futura.

Como novo e relevante ramo integrante do Direito, o Direito Ambiental, de

natureza interdisciplinar e multidisciplinar, além de suas normas de caráter

essencialmente preventivo, contém, como todo ramo do Direito, normas de caráter

sancionador aplicáveis contra qualquer lesão ou ameaça a direito juridicamente

protegido e relacionado, direta ou indiretamente, como o patrimônio ambiental

ecológica e culturalmente equilibrado (tanto o natural como o cultural), no interesse

de todos, indistintamente.

Conteúdo e alcance das normas jurídicas integrantes do Direito Ambiental. É sempre

oportuno evidenciar que a legislação protecional, integrante da Política Nacional do

Meio Ambiente, pelas sua natureza interdisciplinar e multidisciplinar, compreende

normas de diversos ramos da Ciência Jurídica. Assim é que, pela própria evidência

dos elementos integrantes do meio ambiente, o conteúdo e o alcance da legislação

protecional correlata, além das básicas normas jurídicas constitucionais (art. 225, §§

1º 6º, c/c arts. 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, 24, I, VI, VII, VIII, 170, III, V, VI,

200, 216, §§ 1º a 5º, dentre outras) e legais (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, com a

respectiva legislação anterior e posterior à sua vigência), ora integram normas

notadamente do Direito Urbanístico, com sua legislação de uso e ocupação do solo,

do Código Florestal, do Código de Águas, do Código de Proteção à Fauna

(terrestre e aquática), do Direito Agrário com as normas do Estatuto da Terra e

legislação complementar, ora se relacionam direta ou indiretamente com normas do

Código de Mineração, do Código Civil (Direto das Coisas - Direito da Propriedade),

22

Paolo Barile - Istituzione di diritto pubblico, 2ª ed., CEDAM, Padova, 1975: 3; Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito

Civil, 7ª ed., Francisco Alves, São Paulo/Rio de Janeiro/Belo Horizonte, 1955: 11. Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito

Civil, v. 1, 3ª ed., trad. do original italiano por Ary dos Santos, Saraiva, São Paulo, 1971: 15 e ss. 23

Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, 2ª ed., v. I, t. I, Resenha Universitária, São Paulo, 1976: 3, 18, 19.

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do Código da Saúde Pública, Código de Proteção ao Consumidor, Código

Tributário, Código Penal, Direito Administrativo, Direito Econômico, dentre

outros ramos do Direito (Público ou Privado).

Evidentemente, as genéricas noções previstas, além de contribuírem para a

formação profissional nos diversos ramos da Ciência e para a consciência pública em

geral, indicam a conduta legítima e oportuna das pessoas (físicas e jurídicas) à defesa

e à preservação dos direitos referentes à vida, à saúde, à segurança, à liberdade, à

propriedade, ao sossego, ao trabalho, à cultura, direitos estes diretamente relacionados

tanto com o Direito Ambiental como com as normas de proteção ao Patrimônio

Cultural Brasileiro, todos constitucionalmente garantidos ao bem-estar das presentes e

futuras gerações.

II - NORMAS JURÍDICAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

BRASILEIRO

Dentre as normas jurídicas constitucionais, legais e regulamentares

integrantes da Constituição Federal e do Direito Ambiental, direta e indiretamente

relacionadas com a proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro, destacam-se as

seguintes:

1. Normas jurídicas constitucionais

A vigente Constituição Brasileira, reafirmando e ampliando as normas da

Política Nacional do Meio Ambiente, introduz, de forma inovatória, relevantes e

oportunas regras conciliatórias do desenvolvimento sócio-econômico-agrário-

urbanístico com a defesa e a preservação do patrimônio ambiental (natural e cultural),

evidenciando-se, dentre as normas mais significativas, aplicáveis direta ou

indiretamente à questões ambientais, aquelas sobre: a) Organização político-

administrativa; b) Competência das Unidades da Federação em matéria ambiental; c)

“Princípios gerais da atividade econômica a serem observados para a conciliação do

desenvolvimento sócio-econômico-urbanístico-agrícola com a proteção ambiental.

a) Organização político-administrativa. A organização político-administrativa da

República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal

e os Municípios, todos autônomos (art. 18).

b) Competência das unidades da federação em matéria notadamente ambiental,

econômica e cultural. Dentre as atribuições as Unidades da Federação, direta e

indiretamente relacionadas com a proteção do meio ambiente, com reflexos às

questões econômicas, agrárias, urbanísticas e culturais, destacam-se as seguintes:

Competência exclusiva da União. A Constituição define a competência da União

para, dentre outras prerrogativas: elaborar e executar planos nacionais e regionais

de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX);

planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas,

especialmente as secas e as inundações, evidenciando-se a previsão de incentivos

às regiões de baixa renda (art. 21, XVIII c/c art. 43, §§ 2º, IV, e § 3º); instituiu

sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de

outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX); instituir diretrizes básicas para o

desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes

urbanos (art. 21, XX); explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer

natureza e exercer o monopólio sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e

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reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus

derivados, atendidos os princípios e as condições, segundo os quais: a) toda

atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e

mediante aprovação do Congresso Nacional; b) sob regime de concessão ou

permissão, é autorizada a utilização de radio-isótopos para a pesquisa e usos

medicinais, agrícolas, industriais, e atividades análogas: c) a responsabilidade civil

por danos nucleares independe da existência de culpa (art. 21, XXIII, a,b,c);

estabelecer em áreas e as condições para o exercício da garimpagem, em forma

associativa (21, XXV).

Competência privativa da União. Estabelece a vigente Constituição que compete

privativamente à União legislar, dentre outras matérias: sobre direito civil

(propriedade imóvel, com seu solo e respectivos acessórios naturais e artificiais),

direito agrário, com a previsão de diretrizes de desenvolvimento urbano e de

planejamento agrícola de utilização racional dos recursos naturais disponíveis e de

preservação do meio ambiente (CF, art. 22, I, c/c arts. 182, 184, 186, 187); sobre

águas (art. 22, IV); sobre recursos minerais (22, XII); geologia (22, XVIII);

atividades nucleares de qualquer natureza (22, XXVI); sobre meios legais que

garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de

produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente

(CF, art. 22, XXIX, c/c art. 220, §§ 3º, II, 4º); sobre normas gerais de licitação e

contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e

indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público (União,

Estados, Distrito Federal e Municípios) e pelas empresas sob seu controle (art. 22,

XXVII); sobre normas gerais referentes à utilização racional da floresta

Amazônica brasileira, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Pantanal Mato-

Grossense, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,

bem como sobre a definição de localização de usinas que operem com reator

nuclear (art. 225, §§ 4º, 6º).

Competência privativa dos Estados-membros. Da mesma forma, a competência

privativa do Estado-membro para sua auto-organização é assegurada e garantida

pela Constituição Federal, demonstrando-se, de acordo com a regra geral, que: “Os

Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem,

observados os princípios desta Constituição” (art. 25). O princípio fundamental

para sua auto-organização é o próprio princípio constitucional da autonomia das

Unidades da Federação já citado. Complementando a regra geral, acrescenta a

Carta Magna que: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam

vedadas por esta Constituição” (art. 25, § 1º). “Os Estados poderão, mediante lei

complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e

microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para

integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de

interesse comum”(art. 25, § 3º).

A matéria ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio

ecológico do território estadual, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho,

à cultural e ao bem-estar da população, logicamente de evidente interesse

regional, constitui assunto de competência do Estado-membro, por força da

expressa regra geral do art. 25 da Constituição. Evidencia-se, ainda, que a matéria

ambiental, além de não ser vedada (não ser proibida) pelas normas

constitucionais (arts. 18, § 4º, 23, I-in fine, III, IV, VI, VII; 24, VI, VII, VIII; 170,

VI; 174; 200, I a VIII; 216; 225, §§ 1º, 2º, 3º, 5º), constitui, de forma preventiva e

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obrigatória, assunto de planejamento indispensável ao controle e à fiscalização do

uso racional dos recursos naturais, bem como à promoção e à proteção dos bens de

valor cultural, visando à defesa do patrimônio ambiental, tanto o natural como o

cultural, no interesse de todos.

Competência privativa do Distrito Federal. Integrando a organização político-

administrativa do Brasil, a Constituição assegura expressamente a autonomia do

Distrito Federal (art. 18), para o qual são atribuídas as competências legislativas

reservadas aos Estados-membros e aos Municípios (art. 32, § 1º). A matéria

ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio ecológico do território

distrital, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho, à cultura e ao bem-estar da

população, constitui assunto de inequívoca competência do Distrito Federal, por

força das expressas regras constitucionais (CF, art. 18 c/c art. 32).

Competência privativa dos Municípios. Dentre as normas constitucionais

relevantes sobre as atribuições municipais de interesse ambiental e cultural, de

competência privativa, destacam-se, particularmente, aquelas, segundo as quais

compete aos Municípios: legislar sobre assuntos de interesse local (logicamente,

em seus diversos aspectos sócio-econômico-urbanístico-ambiental-culturais - CF,

art. 30, I); instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar

suas rendas (art. 30, III); organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de

concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local (incluídos aqueles

de defesa e preservação dos recursos naturais e dos bens de valor cultural - CF, art.

30, V): promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante

planejamento e controle do parcelamento, da ocupação e do uso do solo urbano

(incluindo-se o zoneamento ambiental, com a previsão de todos os recursos

ambientais e culturais integrantes do território do Município, para fins de

preservação, no interesse de todos - CF, art. 30, VIII).

Neste sentido, observa-se a relevância das normas do art. 182 da

Constituição, referentes à política urbana a ser executada pelo Poder Público

municipal, mediante plano diretor obrigatório aos Municípios com dicade de

população superior a vinte mil habitantes e facultativo aos demais que não atendam

ao requisito constitucional. O plano diretor, como plano urbanístico geral a nível

local, deverá conter diretrizes aplicáveis a todos os usos suscetíveis na totalidade

do território de cada Município, inclusive a atividades agropecuárias e florestais,

tudo de acordo com as peculiaridades locais e com as respectivas zonas de uso

ajustáveis. Sem prejuízo de normas mais restritivas e ajustáveis às

peculiaridades de cada zona de uso, as diretrizes do plano diretor devem

compatibilizar-se com as normas gerais da lei federal sobre Direito Urbanístico

(CF, art. 24, I, § 1º), bem como com as diretrizes gerais da lei federal sobre

desenvolvimento urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos (CF, art. 21, XX, dentre outras diretrizes aplicáveis), além de outras regras gerais

previstas nas normas constitucionais (CF, arts. 21, XI; 22, I, IV, XII, dentre

outras).

Competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

(executiva), de forma cooperativa, sobre expressas e implícitas providências

tutelares ambientais, para a conservação do patrimônio público dos respectivos

territórios. Trata-se de competência sobre assuntos de interesse comum das

Unidades da Federação, em igualdade de condições, observando-se, todavia, as

normas para a cooperação, estabelecidas em lei complementar federal, sem

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interferências nas respectivas competências. Como atribuições de natureza

executiva, evidenciam-se, dentre os poderes de competência comum, relacionados

com a proteção do patrimônio ambiental e cultural, os seguintes: conservar o

patrimônio público (nos âmbitos nacional, estadual, distrital e municipal) (art. 23,

I); cuidar da saúde e da assistência pública (a melhoria da qualidade de vida

interessa à saúde de todos), compreendendo o sistema único de saúde, com

atribuições, dentre outras, para: fiscalizar e inspecionar alimentos, bebidas e águas

para guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e

radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o meio

ambiente do trabalho (art. 23, II, c/c os arts. 30, VII, 195 a 199, 200, I, II, III, IV,

V, VI, VII, VIII); proteger os documentos, as obras e outros bens de valor

histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os

sítios arqueológicos, bem como impedir a evasão, a destruição e a

descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou

cultural (art. 23, IV, V, c/c os arts. 215 e 216); proporcionar os meio de acesso à

cultura, à educação e à ciência (art. 23, V, c/c os arts. 30, VI, 205 a 214-educação;

215 e 216-cultura; 217-desporto; 218, 219-ciência e tecnologia); proteger o meio

ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI, c/c arts.

200, VIII, 225): preservar as florestas, a fauna e aflora (art. 23, VII, c/c art. 225, §

1º, VII); fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar

(art. 23, VIII, c/c art. 200, VI); promover programas de construção de moradias e

a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, c/c art.

200, IV); combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,

promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 23, X, c/c arts. 3º,

III, IV, 170, VII)24

; registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos

de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (art.

23, XI, c/c o art. 20, § 1º).

Além das relevantes atribuições comuns definidas constitucionalmente, a

Magna Carta, de forma inovatória, consagra um capítulo especial, referente à proteção

do meio ambiente (art. 225 ). O meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui

direito de todos, sem exceção, considerado bem de uso comum do povo e essencial à

sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de

defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações. Para assegurar a

efetividade deste importante direito, incumbe ao Poder Público ( União, Estados.

Distrito Federal e Municípios): preservar e restaurar os processos ecológicos

essenciais, bem como prover o manejo ecológico das espécies e dos ecossistemas (

art. 225, § 1º, I ); preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do

País, bem como fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de

material genético ( § 1º, II ); definir, em todas as Unidades da Federação, espaços

territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos ( § 1º,III ); exigir,

na forma da lei, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, para

instalação de obra e atividade potencialmente degradadora do meio ambiente ( § 1º,

IV ); controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos, e

substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (

24

Trata-se de oportuna norma constitucional aplicável à solução do grave problema da “forçada migração interna”, de

competência comum a todos os governos, no sentido de promover e oferecer condições mínimas (de trabalho, saúde, moradia,

alimento, educação, lazer) para a fixação da pessoa humana em sua zona urbana, de expansão urbana ou zona rural de origem,

visando a erradicar a pobreza e a marginalização das pessoas, notadamente nos grandes centros urbanos. Neste sentido, reporta -

se à nossa tese: “Força da migração interna e degradação sócio-ambiental das cidades brasileiras”, in Boletim de Direito

Administrativo, n.º 6/431, Editora NDI Ltda., São Paulo, 1988.

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§ 1º, V ); promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a

conscientização e o emprego pública para a preservação do meio ambiente ( § 1º, VI );

proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em

risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou a submetam os

animais a crueldade ( § 1º, VII ).

Dentre outras relevantes normas, evidenciam-se, ainda, aquelas que dispõe

sobre: a obrigatoriedade para recuperar o meio ambiente degradado, por parte

do explorador de recursos minerais ( art. 225, § 2º ).

Competência concorrente da União; dos Estados - Membros ( incluindo a dos

Municípios integrantes dos Estados e dos territórios sobre matérias específicas de

interesse local) e com o Distrito Federal. A competência legislativa concorrente das

Unidades da Federação é definida pelas expressas normas constitucionais, segundo

as quais: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar

concorrentemente sobre”, dentre outras matérias enumeradas nos incisos I a XVI:

direito urbanístico, direito tributário ( art. 24, I ); florestas, caça, pesca, fauna,

conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio

ambiente e controle da poluição ( art. 24, VI ); proteção do patrimônio histórico,

cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII ); educação, cultura, ensino

e desporto ( art. 24, IX ); previdência social, proteção e defesa da saúde ( art. 24,

XII).

Não obstante o silêncio da norma constitucional no tocante aos Municípios,

evidencia-se que a competência legislativa concorrente da União, com os

Estados e o Distrito Federal inclui implicitamente os Municípios, como

importante Unidade da Federação, autônoma e integrante da organização político-

administrativa da República Federativa do Brasil ( C, art. 18), no tocante às

matérias notadamente urbanísticas, tributárias, ambientais, culturais,

sanitárias, matérias estas de seu inequívoco interesse local ( art. 24, I, VI, VII,

VIII, IX, XII). Assim é que, por força das expressas normas constitucionais,

observadas as normas gerais da Lei de competência da União, ou inexistindo a lei

federal, as normas gerais de competência estadual ( onde se encontra o Município

), a competência legislativa concorrente do Município, para legislar sobre

específicas matérias de seu evidente interesse local corrente, justifica-se

constitucionalmente, mediante interpretação científica em conjunto, das normas

do art. 24, I, VI, VII, VIII, IX, XII, combinadas com as normas notadamente dos

arts. 18 (autonomia); 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI ( competência

comum da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios ); 29, 30, I,

III, V, VIII ( competência privativa do Município pata legislar sobre lei

Orgânica e matéria de interesse local ); 145 ( competência tributária das

Unidades da Federação ); 156 (competência tributária do Município ); 174 (

planejamento obrigatório do Poder Público ); 180 ( competência do Município para

política de desenvolvimento urbano plano diretor, ou seja, plano urbanístico geral

do Município ); 196 a 200 ( competência do Poder Público no setor de saúde); 215,

216 ( competência do Poder Público para a proteção do patrimônio cultural ); 225 (

meio ambiente - dever do Poder Público, União, Estados - membros, Distrito

Federal e Municípios - para defendê-lo e preservá-lo para as futuras e presentes

gerações.

Competência suplementar da Unidade da Federação ( Legislativa )

sobre matéria de seu mediato interesse. Por princípio de ordem geral referente à

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226

autonomia constitucional típica do regime federativo, qualquer uma das Unidades

da Federação tem competência suplementar sobre determinada matéria de

competência privativa ou de competência concorrente de outra Unidade Federada,

dependendo das circunstâncias e das respectivas peculiaridades. Assim é que,

dentre as expressas e implícitas normas constitucionais definidoras da competência

suplementar, destacam-se as seguintes:

No tocante à competência suplementar dos Estados - membros, a

nova Constituição, definindo a competência privativa da União sobre assunto

imediato interesse de aplicação nacional, prevê a competência suplementar dos

Estados sobre questões específicas das matérias relacionadas no art. 22, de acordo

com autorização expressa em lei complementar federal (C., art. 22, parágrafo único

). Em relação à competência concorrente da União limitada ao estabelecimento de

normas gerais, por força da norma constitucional, tal competência não exclui a

competência suplementar dos Estados para legislar sobre todas as matérias

relacionadas no art. 24 ( § 2º ).

A competência suplementar do Distrito Federal se encontra

implicitamente prevista nas normas do art. 32, combinadas particularmente com as

normas dos arts. 22, parágrafo único, 24, § 2º e 32, § 1º, da Constituição

Federação, referentes às competências legislativas suplementares reservadas aos

Estados - membros e aos Municípios, em vinculação às competências privativa (

C., art. 22 ) e concorrente ( C., art. 24 ) da União.

Quanto à competência suplementar dos Municípios, está

expressamente prevista na norma constitucional, segundo a qual compete aos

Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber ( C., art.

30, II ). Pela abrangência da expressão “no que couber”, patente é a competência

do Município para legislar suplementarmente sobre matérias relacionadas com os

recursos ambientais e culturais, de qualquer natureza, diante de atividades ou

condutas comprometedoras da qualidade ambiental local. No tocante ao patrimônio

histórico - cultural local, compete ao Município promover a sua proteção,

observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual ( C, art. 30, IX ).

Trata-se de patrimônio histórico - cultural que, apesar de localizado no território do

Município, se refere direta e imediatamente à história e à cultura do Brasil, em seu

todo, como, por exemplo, o Monumento do Ipiranga, ou com a história e a cultura

do Estado - membro. Assim, se trata de assunto histórico - cultural apenas de

ordem estritamente municipal, a competência, logicamente, para promover a sua

proteção é a privativa do próprio Município, diante do evidente interesse local, de

forma direta ou imediata. Se se trata de assunto histórico - cultural de interesse

comum de todas as Unidades da Federação, observadas as normas gerais da

cooperação estabelecidas pela lei complementar federal, a competência para a sua

proteção é a comum dos Municípios, da União, dos Estados e do Distritos Federal.

c) Princípios gerais da Atividade econômica a serem observados para a conciliação do

desenvolvimento sócio - econômico - urbanístico - agrícola com a proteção ambiental

(natural e cultural). Diante da degradação ambiental do momento, a Constituição,

objetivando a conciliação do desenvolvimento sócio econômico com a preservação

ambiental, estabelece relevantes princípios, visando a assegurar a todos existência

digna. Dentre os princípios relacionados com a ordem econômica, fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, destacam-se os seguintes a serem

necessariamente observados: propriedade privada (art. 170, II ); função social da

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propriedade, pública ou privada ( art. 170, III ); defesa do consumidor (art. 170, V );

defesa do meio ambiente ( art. 170, VI ); redução das desigualdades regionais sociais

( art. 170, VII, os arts. 3º, III, IV, 23, X ). O Estado, como agente normativo e

regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de

fiscalização, incentivo e de planejamento, sendo este obrigatório para o setor público

e indicativo para o setor privado ( art. 174 ).

Neste sentido, é oportuno salientar que todas as atividades

transformadoras dos recursos naturais e culturais se sujeitarão às normas de

proteção do meio ambiente, sendo sempre precedidas de adequado planejamento,

de prévio estudo de impacto ambiental e indispensável licenciamento,

obrigatorieades estas extensivas tanto às atividades agroindustriais, agropecuariárias,

pesqueiras e florestais, como às atividades exploradoras de recursos minerais em geral

( C, art. 225, § 2º ) e à atividade garimpeira de recursos minerais em cooperativas ( C.,

art. 175, § 3º ). A união, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e

incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico ( art. 180 ),

evidentemente de forma compatível com a preservação do patrimônio ambiental, tanto

o natural como o cultural ( C, art. 170, VI ).

2. Normas jurídicas Legais e Regulamentares Integrantes do Direito Ambiental.

Considerando-se os textos e as normas integrantes da legislação ambiental brasileira

de período anterior à Lei geral ambiental n.º 6.938, de 31-08-81, e do período

posterior a partir da vigência deste diploma legal, em ordem cronológica dos textos

básicos, destacam-se, dentre outras regras jurídicas legais e regulamentares, direta e

indiretamente relacionadas com o assunto em consideração, as seguintes:

a) Legislação Ambiental do Período Anterior à Geral n.º 6.938, de 31-08-81:

Lei n.º 3.071, de 01-01-16 ( Código Civil ): arts. 15, 159 ( responsabilidade civil );

arts. 43 a 46 ( bens imóveis - solo com sua superfície, seus acessórios, suas

adjacências, o espaço aéreo, o subsolo ): arts. 554 a 591 ( direitos de vizinhança );

art. 646 ( copáscuo ); arts. 713 a 716 ( usufruto sobre bens móveis ou imóveis );

arts. 863 a 1571 ( direito das obrigações );

Decreto n.º 24.114, de 12-04-34 - Aprova Regulamento de Defesa Sanitária

Vegetal; Port. MARA n.º 148, de 15-06-92, sobre aprovação das Normas e

Procedimentos Quarentenários de Intercâmbio Internacional de Vegetais e Solo,

para pesquisa e outros fins científicos ( revoga a Port. n.º 1.111, de 07-12-78 );

Decreto n.º 24.634, de 12-04-34 ( Código de Águas ), com as alterações do Dec.

Lei n.º852, de 11-11-38;

Dec. Lei n.º 25, de 30-11-37 ( Patrimônio Cultural: Proteção do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional ), com as alterações, notadamente, da Lei n.º 3.924,

de 26-07-61 ( monumentos arqueológicos e pré - históricos ); Lei n.º 8.029, de 12-

04-90 ( Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC ); Lei n.º 8.113, de 12-

12-90 ( natureza jurídica do IBPC ); Lei n.º 8.313, de 23-12-91 ( Programa

Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC - Dec. regulamentar n.º 455, de 26-02-

92, com as alterações posteriores ); Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na

estrutura do Ministério da Justiça, do Conselho Federal de que trata o art. 13 da

Lei n.º 7.347, de 24-07-85;

Dec. lei n.º 1985, de 29-10-40 ( Código de Minas ), com a nova redação dada

pelo Dec. lei n.º 227, de 28-02-67 ( Código de Mineração ) e com as alterações

das Leis n.º 7.085/82; n.º 8.982, de 24-1-95; n.º 9.055, de 1-6-95;

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228

Dec. lei n.º 2.848, de 07-12-40 ( Código Penal ) , arts. 161-II, 163-III, 165, 250 a

259, 270 a 278 ). O anteprojeto do Código Penal - Parte Especial ( D. O.U. de 28-

10-87, p. 17.793 ) - define os crimes com as respectivas penas contra o meio

ambiente e o Patrimônio Cultural ( arts. 401 a 416, 417 a 419 );

Dec. lei n.º 3.365, de 21-06-41 ( desapropriação por utilidade pública ), Lei n.º

4.132, de 10-09-62 ( desapropriação por interesse social ), Lei complementar n.º

76, de 06-07-63 ( Procedimento contraditório especial, rito de sumário, para

processo, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural,

por interesse social, para fins de reforma agrária - Revoga o Dec. lei n.º 554,

de 25-04-69 );

Dec. lei n.º 8.938, de 26- 01-46 ( regime de combate à peste e das práticas à anti

e desratização em todo o País );

Lei n.º 4.504, de 30-11-64 ( Estatuto da Terra ), com as alterações posteriores,

particularmente: Lei n.º 4.947, de 06-04-66 ( normas de Direito Agrário - Dec.

regulamentar n.º 433, de 24-01-92 ); Lei n.º 5.969, de 11-12-73 ( institui o

Programa de Garantia da Atividade Agropecuária - PROAGRO - com as

alterações da Lei n.º 6.685, de 03-09-79, Lei n.º 7.890, de 23-11-89 - Dec. reg.

n.º 175, de 10-07-91; Circular do Banco Central n.º 145, de 19-03-92, sobre custo

de medição de lavouras e pastagens; Por. Intermin. n.º 242, de 20-03-92, sobre

Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentado da Agricultura; Port. MARA

n.º 159, de 19-06-92, sobre normas para licenciamento e renovação de licença

dos Antimicrobianos de Uso Veterinário, elaboradas pela Secretaria Nacional de

Defesa Agropecuária ); Lei n.º 6.225, de 14-07-75 ( planos de proteção do solo e

de combate - Dec. regulamentar n.º 77.775, de 08-06-76 ); Lei n.º 6.662, de 25-06-

79 ( Política Nacional de Irrigação ); Lei n.º 6.746 de10-12-79 ( Altera arts. 49 e

50 do Estatuto da Terra ), Lei n.º 6.751, de 10-12-79 ( Melhoria da Habitação de

trabalhadores agropecuários - Res. Do Banco Central n.º 1.898, de 29-01-92 -

sobre condições para financiamento para habitação rural ); Lei n.º 6.894, de 16-12-

80 ( inspeção e fiscalização de fertilizantes e outros destinados à agricultura );

Dec. lei n.º 2.431, de 12-05-88 ( altera arts. 27 e 28 do E. T. ); Lei. n.º 7.889, de

23-11-89 ( inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal ); Lei n.º

8.171, de 17-01-91 ( Política Agrícola ); Lei n.º 8.174, de 30-01-91 ( Princípios da

Política Agrícola ); Lei n.º 8.177, de 01-03-91 ( Títulos da Dívida Agrária - art. 5º

- Dec. regulamentar n.º 578, de 24-06-92 ); Lei n.º 8.135, de 23-12-91 criação do

Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - SENAR ); Lei n.º 8.344, de 27-12-91 (

altera dispositivos sobre a competência do Ministério da Agricultura e da Reforma

Agrária ); Lei n.º 8.490, de 19-11-92 ( sobre a organização da Presidência da

República e dos Ministérios, sobre a denominação do Ministério da Agricultura,

do Abastecimento e da Reforma Agrária, sobre a criação do Ministério do meio

Ambiente, dentre outras inovações, revogando a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); Lei

n.º 8.629, de 25-02-93 ( sobre a regulamentação de dispositivos constitucionais

relativos à reforma agrária ); Lei n.º 8.661, de 02-06-93 ( sobre incentivos fiscais

para a capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária );

Lei n.º 4.591, de 16-12-64 ( Condomínio em Edificações e as Incorporações

Imobiliárias );

Lei n.º 4.771, de 15-09-65 ( Código Florestal ), com as Alterações e

complementações notadamente: Lei n.º 7.754, de 14-04-89 ( proteção de

florestas nas nascentes dos rios ); Lei n.º7.875, de 13-11-89 ( Parques nacionais

brasileiros - Dec. regulamentar n.º 84.-17, de 21-09-79 ); Lei n.º 7.803, de 18-07-

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229

89 ( altera dispositivos, define crime contra o meio ambiente e revoga as leis n.º

6.535, de 15-06-78, e n.º 7.511, de 07-07-86 );

Lei n.º 5.108, de 21-09-66 ( Código Nacional de Trânsito - Dec. regulamentar n.º

62.127, de 16-01-68, art. 65, I, II, III ); com as alterações posteriores: Lei n.º

6.731, de 04-12-79; Lei n.º 7.031, de 20-09-82; Lei n.º 8.052, de 20-06-90; Lei

8.102, de 10-12-90; Lei n.º 8.723, de 28-10-93 ( redução de poluentes por veículos

automotores );

Lei n.º 5.173, de 27-10-66 ( Plano de Valorização Econômica da Amazônia cria

Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM ), com as

alterações posteriores: Lei n.º 5.174, de 27-10-66 ( incentivos fiscais em favor da

Região Amazônica ); Dec. lei n.º 2.304, de 21-11-86 ( Fundo de Investimento da

Amazônia - FINAM ); Dec. lei n.º 2.454, de 19-08-88( prorroga prazo de

incentivos fiscais até dezembro de 1993 ); Lei n.º 6.796, de 10-07-89 ( cria a

CORPAM); Lei n.º 7.797, de 10-07-89 ( cria o Fundo Nacional de Meio

Ambiente, com prioridade a projetos na área de atuação na Amazônia Legal );

Lei comp. n.º 67, de 13-06-91 ( composição do Conselho Deliberativo da

SUDAM );

Lei n.º 5.197, de 03-01-67 ( proteção à fauna ), com asa alterações especialmente

das Leis n.º 7.584/87; n.º 7.653/88 ( crimes contra a caça e a pesca predatória );

Lei n.º 9.111, de 10-10-95;

Dec. lei n.º 200, de 25-02-67 ( Reforma Administrativa ), com as alterações,

dentre outras: Dec. lei n.º 900, de 29-09-69; Lei n.º 8.666, de 21-06-93 ( sobre

normas para licitações e contratos da Administração Pública - Revoga o Dec. lei

n.º 2.300, de 21-11-86, o Dec. lei n.º 2.348, de 24-07-87, dentre outras normas ),

com a consolidação determinada pelo art. 3º da Lei n.º 8.883, de 08-06-94 CF, art.

37, XXI );

Dec. lei n.º 221, de 28-02-67 ( Código de Pesca ). Observa-se a extinção da

SUDEPE, cujas atribuições foram transferidas para o Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ( Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ). V.

Leis n.º 7.643/87; n.º 7.679/88, n.º 9.059, de 13-06-95;

Dec. lei n.º 289, de 28-02-67 ( criação do IBDF, hoje extinto, com atribuições

transferidas para o IBAMA - Lei n.º 7.732, de 14-02-89 ); Lei n.º 7.735/89.

Lei n.º 5.318, de 29-09-67 ( instituição da Política Nacional de Saneamento e

criação do Conselho nacional de Saneamento );

Dec. lei n.º 1.117, de 21-06-71 (sobre aerolevantamento no território Nacional);

Lei n.º 6.001, de 19-12-73 ( sobre Estatuto do Índio ); Decreto n.º 94.946, de 23-

09-87 ( regulamenta dispositivos do EI ); Decreto n.º 22, de 04-02-91 ( processo

administrativo de demarcação de terras indígenas ); Dec. n.º 24, de 04-02-91 (

sobre ações à proteção do meio ambiente em terras indígenas ); Dec. n.º 25, de 04-

02-91 ( sobre programas e projetos para assegurar a auto-sustentação dos povos

indígenas ); Dec. n.º26, de 04-02-91 ( sobre educação indígena no Brasil ); Dec.

n.º 27 de 04-02-91 ( confere à Comissão Especial instituída pelo Dec. n.º 99.971,

de 03-01-91, atribuições para propor a revisão do Estatuto do Índio e da legislação

correlata );

Lei n.º 6.189, de 16-12-74 ( competência da CNEN ), com as alterações da Lei

n.º 7.781, de 27-06-89; Lei n.º 6.453, de 17-10-77 ( responsabilidade civil por

danos nucleares e responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades

nucleares ); Lei n.º 9.112, de 10-10-95; Res. n.º 13, de 04-09-96, de Ministério de

Minas e Energia, sobre inspeção de Serviços em Usinas Nucleoelétricas;

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230

Dec. lei n.º 1.413, de 14-08-75 ( controle de poluição do meio ambiente

provocada por atividades industriais ), com as complementações da Lei n.º

6.803, de 02-07-80 ( diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas

críticas de poluição );

Lei n.º 6.383, de 07-12-76 ( sobre processo discriminatório de terras devolutas

da União );

Lei n.º 6.513, de 20-12-77 ( criação de áreas especiais e locais de interesse

turístico ); Lei n.º 8.181, de 28-03-91 ( sobre Política Nacional de Turismo - Dec.

regulamentar n.º 448, de 14-02-92 ); Lei n.º 8.623, de 28-01-93 ( sobre a

profissão de Guia de Turismo );

Lei n.º 6.576, de 30-09-78 ( proibição do abate de Açaizeiro em todo o território

nacional );

Lei n.º 6.607, de 07-12-78 ( declara o pau-brasil com árvore nacional e institui o

dia nacional do pau-brasil );

Lei n.º 6.766, de 19-12-79 ( parcelamento do solo urbano );

Lei n.º 6.902, de 27-04-81 ( criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção

Ambiental );

Decreto n.º 86.028, de 27-05-81 ( instituição em todo o território nacional da

Semana Nacional do Meio Ambiente );

b) Legislação ambiental a partir da publicação da Lei Geral n.º 6.938, de

31.08.81:

Lei n.º 6.938, de 31-08-81 ( estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente,

define seus objetivos básicos à melhoria e à recuperação da qualidade ambiental

propícia à vida ). Regulamentada pelo Dec. n.º 99.274, de 06-06-90, com as

alterações do Dec. n.º 1.523, de 13-06-95 ( revogação de Dec. n.º 88.351, de 01-

06-83, e alterações sucessivas. Observa-se que a Lei da Política Nacional do Meio

Ambiente vem sendo objeto de complementações e alterações ajustáveis à nova

Constituição, destacando-se, dentre outras, as da Lei n.º 7.804, de 18-07-89, que,

com fundamento nos arts. 23, IV, VII, 225 da Constituição, altera, também,

disposições das Leis n.º 7.735, de 22-02-89, n.º 6.803, de 02-07-80, n.º 6.902, de

27-04-81; as da Lei n.º 8.490, de 19-11-92, que, dispondo sobre a organização da

Presidência da República e dos Ministérios, dentre outras alterações, cria o

Ministério do Meio Ambiente, com atribuições da extinta Secretária do Meio

Ambiente, da Presidência da República - SEMAM - PR, além de revogar

expressamente a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); as da Lei n.º 8.746, de 09-12-93, que

altera o nome do Ministério do Meio Ambiente para Ministério do Meio Ambiente

e da Amazônia Legal. A Medida Provisória n.º1.038, de 27-06-95, convalidando

as Medidas Provisórias a partir da n.º 752, de 05-12-94, altera o referido

Ministério para “ Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da

Amazônia Legal” ( além de revogar a Lei n.º 8.490/92 );

Lei n.º 7.347, de 24-07-85 ( ação civil pública de responsabilidade por danos ao

meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,

histórico, turístico, paisagístico). Decreto n.º 407, de 27-12-91, regulamenta o

Fundo de Defesa de Direitos Difusos referentes às Leis n.º 7.347, de 24-07-85; n.º

7.853, de 24-10-89; n.º 8.078, de 11-09-90; n.º 8.158, de 08-01-91 ( revoga o Dec.

92.302, 16-01-86 );

Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre, sobre criação, no Ministério da Justiça, do

Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85;

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231

Resolução 1, de 23-01-86, do CONAMA ( definição de impacto ambiental e

estabelecimento de critérios e diretrizes referentes ao estudo e conseqüente

avaliação de impacto ambiental, como um dos relevantes mecanismos da

Política Nacional do Meio Ambiente ). Dentre as Normas posteriores

complementares, destacam-se: Res. n.º 6, de 24-01-86; Res. n.º 6, de 16-09-87 -

CONAMA ( estudo de impacto ambiental para empreendimento de energia

elétrica ); Res. n.º 6, de 15-06-88 - CONAMA ( controle dos resíduos gerados ou

existentes no processo de licenciamento de atividades industriais ); Res. n.º 15, de

07-12-89 - CONAMA ( uso do metanol ). Diante da revogação das Resoluções do

CONAMA nele baseadas, devendo novas normas correlatas se ajustarem às

normas regulamentares do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90, com as alterações do

Decreto n.º 99.355, de 27-06-90; Decreto n.º 122, de 17-05-91;

Lei n.º 7.661, de 16-05-88 ( Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro ). V.

Decretos n.º 96.660, de 06-09-88; n.º 97.686, de 25-04-89; n.º 99.213, de 18-04-

90; Lei 8.617, de 04-01-93 ( sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona

econômica exclusiva e a plataforma continental brasileira );

Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ( extinção da Secretária Especial do Meio Ambiente -

SEMA e da SUDEPE ), criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, como entidade autárquica de regime

especial, vinculada a secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República.

Para o novo órgão foram conferidas as atribuições das extintas SEMA e

SUDEPE, bem como da Superintendência da Borracha e do IBDF - Lei n.º 7.732,

de 14-02-89 ). Dentre as normas aplicáveis, evidenciam-se as da lei n.º 8.490, de

19-11-92, que, dentre outras disposições, cria o Ministério do Meio Ambiente,

extingue a SEMAM/PR, revoga a Lei n.º 8.028, de 12-04-90;

Lei n.º 7.803, de 11-07-90 ( pesquisa, experimentação, produção, embalagem,

rotulagem, transporte, armazenamento de agrotóxicos e afins ),Decreto

regulamentar n.º 98.816, de 11-01-90; Decreto n.º 99.657, de 26-10-90; Lei n.º

9.294, de 15-07-96, sobre restrições a propaganda de produtos fumígeros, bebidas

alcoólicas, defensivos agrícolas ( Dec. regulamentar n.º 2.018, de 01-10-96; Port.

Normativa n.º 84, de 15-10-96 - IBAMA, sobre procedimentos a serem adotados

para efeito de avaliação do potencial de periculosidade ambiental de produtos

químicos, considerados agrotóxicos, afins e seus componentes );

Lei n.º 7.990, de 28-12-89 ( institui para os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios, compensação financeira pelo resultado de exploração de petróleo

ao gás natural, de recursos hídricos, de recursos minerais em seus respectivos

territórios, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica

exclusiva ), com as alterações da Lei n.º 8.001, de 13-03-90 ( Dec. regulamentar

n.º 1, de 11-01-91 );

Resolução n.º 2, de 08-03-90 - CONAMA ( institui, em caráter nacional, o

Programa Nacional de Educação e Controle da Poluição Sonora - Silêncio ).

Lei n.º 8.078, de 11-09-90 ( Código do Consumidor - Proteção do Consumidor );

com as alterações das Leis n.º 8.656, de 21-n.º 806, de 24-04-93 - reorganiza o

Fundo Nacional de Saúde );

Decreto 99.540, de 21-09-90 ( Institui Comissão Coordenadora do Zoneamento

Ecológico - Econômico do Território nacional ), com as alterações do Dec. n.º

237, de 24-10-91;

Decreto n.º99.556, de 01-10-90 ( sobre a proteção da cavidades naturais

subterrâneas existentes no Território Nacional );

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232

Lei 8.172, de 18-01-91 ( restabelece o Fundo Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico ); Dec. n.º 99.981, de 09-01-91 ( autoriza a Secretaria de

Ciência e Tecnologia a manter programa de cooperação com instituições

públicas ou privadas ).

Lei n.º 8.429, de 02-06-92, sobre a responsabilidade de servidores públicos em

geral por atos ilícitos e prejudiciais ao patrimônio público, incluído o patrimônio

ambiental ( natural e cultural );

Port. Normativa IBAMA n.º 77, de 13-07-92, sobre criação de Núcleos de

Educação Ambiental - NEA’s, nas Superintendências Estaduais do IBAMA.

Resolução CONTRAN n.º 761, de 05-08-92, sobre curso de condutores de

veículos que transportam cargas com produtos perigosos.

Decreto n.º 750, de 10-02-93 ( sobre o corte, a exploração e a supressão de

vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata

Atlântica, com a revogação do Dec. n.º 99.547, de 25-09-90 ).

Lei n.º 8.657, de 21-05-93 ( acrescenta §§ ao art. 27 da Lei n.º 6.662, de 25-06-79,

sobre a Política Nacional de Irrigação );

Lei n.º 8.851, de 31-01-94 ( sobre o Plano Diretor para o desenvolvimento do Vale

do Rio São Francisco - PLANVASF;

Lei n.º 8.874, de 29-04-94 ( sobre empreendimentos industriais e agrícolas em

áreas da SUDAM e SUDENE );

Lei n.º 8.918, de 14-07-94 ( sobre a padronização, a classificação, o registro, a

inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas );

Lei n.º 9.005, de 13-03-95 ( sobre a obrigatoriedade da iodação do sal destinado ao

consumo humano );

Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na estrutura do Ministério da Justiça,

do Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85;

Lei n.º 8.987, de 13-02-95 ( sobre o regime de concessão e permissão da prestação

de serviços públicos previstos no art. 175 da CF ). Com as alterações da Lei n.º

9.074, de 07-07-95;

Lei n.º 9.055, de 01-06-95 ( sobre a extração, industrialização, utilização,

comercialização e transporte de asbesto/amianto e produtos similares, bem como

fibras naturais e artificiais de qualquer origem ).

Observa-se o grande número de atos normativos ( Decretos, Portarias,

Resoluções, Circulares ) relacionados com a proteção do patrimônio ambiental,

tanto natural como cultural.

III. DEVER E RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DA

COLETIVIDADE PARA CUMPRIR, REFLETIR, ADEQUAR E

ATUALIZAR AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO INTEGRANTES DO DIREITO POSITIVO.

Conforme já se demonstrou no Capitulo II desta palestra, por força das

normas jurídicas constitucionais e legais vigentes, expressas são as competências de

todas as Unidades da Federação em matéria ambiental ( natural e cultural, do local do

trabalho ). Consequentemente, expressos são os deveres e as responsabilidades

impostos Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos

Poderes da União, dos Estados - membros, do Distrito Federal e dos Municípios, para

o desempenho, de forma responsável e eficaz, de suas atribuições, no interesse

público ( C., art. 37 ). Em matéria ambiental tais deveres e respondabilidades, além de

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233

inerentes aos Poderes Públicos, estendem-se à coletividade ( pessoas físicas ou

jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos ) por determinação

constitucional (C., art. 225 ). O descumprimento das vigentes imposições

constitucionais e legais sujeitará a autoridade, o servidor ou qualquer agente

competente, ou qualquer pessoa física ou jurídica infratora às responsabilidades e

respetivas sanções política, administrativa civil ou criminal aplicáveis ao caso

concreto ( C., arts., 37 §§ 4º, 5º, 6º, 216, § 4º, 225, § 3º).

IV.CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES

Em breves considerações finais, não obstante a consagração constitucional da

Política Ambiental ( C, art. 225 ) de forma harmônica com a Política Agrícola ( C, art.

187 ), a Política Urbanística ( C, art.182 ), a Política do Patrimônio Cultural ( C, art.

216 ) e a existência de grande número de normas jurídicas protecionais do patrimônio

ambiental ( natural e cultural ), adverte-se que, na prática, pela notoriedade dos fatos,

patente é a inaplicação ou aplicação inadequada e flagrante é a violação de tais

normas, em face do inquietante agravamento da degradação dos recursos ambientais

de forma geral. Bem como da destruição ou descaracterização dos bens de valor

cultural, tanto no âmbito nacional, como nas esferas estaduais e municipais.

Sem qualquer pretensão de esgotar a relevante matéria sobre a legislação

ambiental no Brasil, notória e reconhecidamente vasta, complexa, interdependente,

conclui-se que enorme é o desafio da problemática ambiental, tanto local, estadual e

nacional como internacional. Neste sentido, inadiável é a efetiva ação de todas as

autoridades e organizações ( governamentais e não governamentais ), dos técnicos,

dos juristas, enfim. Dos especialistas de todos os ramos da Ciência, da imprensa e da

comunidade em geral, em todos os Estados e Povos, para as indispensáveis medidas

informativas, orientadoras, educacionais, junto aos respectivos governos e

comunidades notadamente locais, essenciais à formação de sua sólida consciência

ambiental sobre a permanente necessidade de reflexões, de pesquisas científico -

tecnológico - jurídicas, de participação, de cooperação, de solidariedade e de

coresponsabilidade autenticamente recíproca e universal. Evidentemente, as novas

exigências sociais exigem permanentes medidas indispensáveis à conciliação do

desenvolvimento econômico - urbanístico - agrícola com a proteção do patrimônio

ambiental local, estadual, nacional e global.

Neste sentido, visando a facilitar a interpretação, a aplicação, a reflexão, a

adequação e a atualização das normas notadamente de proteção ao Patrimônio

Cultural Brasileiro, com base no Direito Positivo, na experiência e nas orientações

doutrinárias e jurisprudenciais, tornam-se oportunas as seguintes

RECOMENDAÇÕES:

1. Prévio levantamento ecológico do território nacional, estadual, distrital ou

municipal e conseqüente elaboração de inventário dos recursos ambientais

(especialmente águas superficiais e subterrâneas, solo, subsolo, espécies animais e

vegetais), visando a reprimir os atos lesivos, a restaurar ou a recuperar as áreas

degradadas (notadamente por irracionais desmatamentos), a prevenir novos atos

lesivos e a proteger o patrimônio florestal - ambiental correlato.

2. Prévio levantamento do patrimônio cultural (artístico, histórico, monumental,

paisagístico, turístico, arqueológico), para as medidas relacionadas com a sua

valorização, restauração, defesa e proteção.

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234

3. Urgente levantamento de todas as áreas públicas invadidas ilegalmente,

evidenciando-se que os imóveis públicos, revestidos ou não de florestas ou

vegetação de qualquer natureza, não serão adquiridos por usucapião (C., art. 183,

no tocante às áreas urbanas; art. 191, no tocante às áreas rurais).

4. Urgente elaboração de cadastro de todas as pessoas, físicas ou jurídicas (estas de

direito público ou de direito privado), cujas atividades se relacionam, direta ou

indiretamente, com o consumo de matéria - prima florestal ou vegetal, para as

oportunas medidas sobre as obrigações relativas à indispensável reposição

florestal.

5. Indispensabilidade, diante de pretensões a obras ou atividades efetiva ou

potencialmente degradadoras do patrimônio florestal e ambiental, do competente

estudo de impacto ambiental, com ampla publicidade, no sentido de facilitar a

informação e a participação da comunidade interessada e idônea ao oferecimento

de alternativas conciliatórias do desenvolvimento sócio - econômico - agrícola -

urbanístico com a preservação das florestas e das demais formas de vegetação e

conseqüente preservação ambiental, como imposição obrigatória diante da

natureza essencialmente preventiva tanto da Política Florestal como Política

Ambiental (C., art. 225, § 1º, IV).

6. Necessidade de aplicar-se o instrumento do estudo e da respectiva avaliação de

impacto ambiental não somente a novos projetos de atividades em vias de

licenciamento inicial, mas também a todas as atividades que, legal e

regularmente autorizadas, ocasionam comprovados perigos e danos ao meio

ambiente e à saúde pública.

7. Conveniência da revisão adequada dos critérios e das diretrizes gerais, de forma

clara e eficaz, para a definição expressa de efetivo processo de informação

extensiva ao público e às pessoas legalmente habilitadas e interessadas (naturais ou

jurídicas), para conhecimento. Em todas as fases, do estudo de impacto ambiental

sobre projetos de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, através de meios

de comunicação de massa (televisão, rádio, imprensa em geral, publicidade

mediante a afixação de anúncios em locais de fácil visibilidade), além do

tradicional e restrito processo de comunicação pela imprensa oficial, com a

previsão de prazo razoável e compatível com a complexidade da matéria e as

peculiaridades locais. O processo de informação deverá compreender

esclarecimentos sobre as vantagens e desvantagens da atividade, seu custo, seus

efeitos diretos e indiretos, principais ou secundários, permanentes ou temporários,

positivos ou negativos, cumulativos a breve, médio ou a longo prazo contra o meio

ambiente e a saúde da população, os órgãos e os locais para os esclarecimentos

oportunos, para as reais participações, contribuições e alternativas ajustáveis ao

equilíbrio sócio econômico - urbanístico - ambiental - cultural (Agenda 21, cap.

40).

8. Conveniência do reexame das normas regulamentares do estudo de impacto

ambiental, no sentido de suprimir a exceção de publicidade referente ao “sigilo

industrial”, evidentemente conflitante com os objetivos da Política Nacional do

Meio Ambiente e com as expressas normas constitucionais e legais. Assim, para a

compatibilização e fiel execução das normas constitucionais (C., art. 225, §§ 1º,

IV, 2º ) e legais (lei n.º 6.938/81, arts. 8º, II, 9º III), impõe-se a supressão das

expressões “Respeitada a matéria de sigilo industrial ,assim expressamente

caracterizada a pedido do interessado” e “Resguardado o sigilo industrial”,

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235

constantes, respectivamente, das normas do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90 (art.

17, §§ 3º, 4º ), bem como a expressão “Respeitado o sigilo industrial, assim

solicitado e demonstrado pelo interessado”, objeto do art. 11 da resolução

CONAMA n.º 1, de 23-01-86.

9. Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, para a expedição de

normas específicas sobre o estudo e a respectiva avaliação de impacto ambiental

de projetos, planos ou programas referentes a instalações nucleares em geral e a

depósitos do respectivo lixo atômico ou de outros rejeitos químicos e altamente

perigosos, com expressas exigências e cautelas, notadamente sobre a localização,

aspectos construtivos e de efetiva segurança diante da comprovada falibilidade da

indústria nuclear e da crise de sua confiabilidade pelos inerentes e temíveis riscos.

10.Necessidade, junto aos Poderes Públicos competentes, de sérias medias

relacionadas com permanente análise de riscos inerentes à produção, ao uso, à

comercialização e ao emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem

iminente risco, particularmente no setor agrícola e alimentar, para a vida, a

qualidade de vida e o meio ambiente (C., art. 225, § 1º, V).

11.Necessidade de coordenação integrada da ação governamental nos diferentes

níveis, para a execução harmônica da Política Nacional do Meio Ambiente. É

dever do Poder Público, juntamente com o setor privado, em matéria de meio

ambiente, agir com prudência, diligência, perícia, espírito científico, tornando-se

cada vez mais necessária e indispensável a ação conjunta e integrada de

intervenções coerentes, favoráveis e compatíveis à conciliação do desenvolvimento

das atividades sócio - econômico - urbanísticas com a qualidade ambiental

nacional, estadual, distrital e municipal.

12.Oportuna apuração, pelos meios competentes, da responsabilidade da

Administração Pública, solidariamente com os agentes públicos ou privados e com

servidores coniventes, pelos danos causados ao meio ambiente e à saúde pública,

quer em decorrência da negligência, imprudência, imperícia ou da aprovação de

projetos em defesa ambiental tendenciosamente aparente ou simulada, quer em

decorrência de aceitação do RIMA com base em estudo de impacto ambiental

insuficiente ou demasiadamente sumario e senhas básicas recomendações sobre as

mediadas necessárias à preservação ambiental.

13.Necessidade, mais que nunca nos dias de hoje, do efetivo exercício do direito de

representação, de denuncia, de petição, de ação ou de defesa, por parte de

qualquer pessoa física ou jurídica interessada, provocando o controle judicial,

diante da falta ou insuficiência de estudo de impacto ambiental de atividades

efetiva ou potencialmente poluidora, eminentemente prejudiciais ao patrimônio

ambiental, tanto natural ( ar, águas , solo, subsolo, espécies animais e vegetais,

alimentos e bebidas em geral ) como o cultural ( bens de valor histórico, artístico,

turístico, paisagístico ), à saúde pública, ao consumidor e aos interesses sócios -

econômicos tanto da coletividade como da nação, com base nas normas

constitucionais e legais vigentes.

14.Criação de comissão Multidisciplinar de Controle dos Estudos de Impacto

Ambiental, composta de profissionais legalmente habilitados dos diversos ramos

da ciência, independentes e representantes de órgãos ou entidades idôneos e

diretamente interessados pelas questões sócio - econômico - urbanístico

ambientais, como o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, as

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Universidades Públicas e Privadas, a Sociedade Brasileira para O Progresso da

Ciência, a Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente, dentre outras

entidades, para estudos de impactos e respectivos relatórios sobre projetos de

atividades pela sua complexidade, pelas repercussões práticas, pelos consideráveis

e iminentes riscos sócio - econômico - ambientais.

15.Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, de urgente revisão e

superado Código de Águas (Decreto 24.643, de 10-10-34), com a expressa

revogação particularmente de seu art. 111 que, delinqüentemente, permite a

poluição das águas nas explorações agrícolas e industriais, o que além de constituir

crime contra a saúde pública, é incompatível tanto com as normas constitucionais e

legais como com as circunstâncias ambientais e sanitárias do momento.

16.Necessidade da intensificação do intercâmbio nacional e internacional de pesquisas

científicas e tecnológicas, de informações e de experiências entre pessoas de

interesse conflitantes nas questões de ordem ambiental, visando à sensibilização e à

conciliação entre o desenvolvimento sócio - econômico e a preservação do meio

ambiente.

17.Necessidade de criteriosa seleção de profissionais idôneos e sensibilizados às

questões ambientais, para a integração de órgãos de controle dotados de

competência técnico - científico - jurídica em matéria ambiental e cultural.

18.Promoção da harmonização das legislações (federais, estaduais, municipais) em

matérias de meio ambiente, sem prejuízo de normas especiais ajustáveis às zonas

de alta sensibilidade ou risco ecológico e às peculiaridades locais e regionais.

Neste sentido, todo esforço deve ser dispensado para que as disposições

legislativas e regulamentares sejam redigidas de forma clara e unívoca, evitando-se

conceitos jurídicos vagos, obscuros que, além de prejudicarem a compreensão e a

adequada aplicação do texto, ocasionam enorme esforço interpretativo aos

advogados, juristas, tribunais e demais profissionais interessados.

19.Conveniência da substituição da agricultura predatória, com todos os seus

prejudiciais aspectos, por novos métodos e novas técnicas que possam contribuir

para a eliminação ou a redução da contaminação dos alimentos em geral e do meio

ambiente (natural e cultural - Agenda 21, Cap. 14).

20.Adoção de efetiva política educacional e de conscientização de todos. A

experi6encia de todos os povos tem demonstrado e vem demonstrando que

somente por um processo de orientações, de instrução e de informação permanente

se atinge grau satisfatório de sensibilidade ou de cultura, capaz de conciliar os

interesses privados, sociais e públicos, capaz de respeitar e proteger tanto os

recursos naturais, como os bens culturais em geral, no interesse da saúde e do bem

- estar individual e da coletividade. Evidentemente, a educação mediante processo

contínuo de instrução, formação, pesquisa científica e tecnológica,

especialização e ação, em todos os níveis escolares, profissionais e sociais,

constitui o pressuposto básico, portanto indispensável à sensibilização de todos,

para o justo e imprescindível equilíbrio, no real interesse e bem - estar tanto da

coletividade presente como das gerações futuras.

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ASPECTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL ARQUEOLÓGICO E PALEONTOLÓGICO

José Eduardo Ramos Rodrigues

O artigo 216, inciso X, da Constituição Federal, também considera

integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, os sítios de valor arqueológico e

paleontológico, cujas características específicas estão a exigir um regime jurídico de

regulamentação diferenciado.

Os sítios arqueológicos, pelo seu próprio nome, são aqueles de interesse para

a Arqueologia, ciência que busca descobrir, pesquisar e reconstituir, pelos seus restos,

culturas e civilizações hoje não mais existentes ou bastante alteradas. A Arqueologia

pode ser dividida em pré-histórica, cujo campo abrange todo o período em que o

homem viveu antes da descoberta da escrita e histórica, que atinge a fase posterior à

invenção da escrita.

No caso brasileiro, tendo em vista suas peculiaridades culturais, os sítios pré-

históricos referem-se às civilizações indígenas pré-cabralinas, ou seja, aquelas

anteriores à descoberta do Brasil pelos portugueses. Dentre estes sítios, avultam,

especialmente, os denominados sambaquis, situados na costa, ora em lagoas ou rios

do litoral, formados por acúmulos de conchas, restos de cozinha, enterramentos de

mortos e outros artefatos amontoados por povos indígenas que habitavam a área

litorânea em épocas pré-históricas (pré-cabralinas).

Tais sítios constituem-se em patrimônio cultural dos mais relevantes,

apresentando características “sui generis”, já que sua fruição exige desmonte para

estudo. Mesmo um desmonte cuidadoso, cientificamente programado e efetuado com

tecnologia adequada, por profissionais habilitados, não deixará de provocar o seu

perecimento, pelo menos parcial. Portanto, o Poder Público deve exercer rigoroso

controle nas explorações arqueológicas dos sambaquis, já que trabalhos mal

realizados, mesmo bem intencionados, podem implicar na perda inútil e definitiva de

importantes bens culturais. Por sua vez, o tombamento, com seu regime tutelar

protetivo, que visa a preservar um bem cultural o mais íntegro possível, para a

presente e futuras gerações, em princípio, não é instrumento adequado à preservação

de sambaquis.

Assim, os sambaquis e sítios pré-históricos assemelhados receberam

tratamento legal diferenciado através da Lei Federal 3.924 de 26.07.61, além de terem

sido constitucionalmente declarados como bens da União pelo artigo 20 da Carta

Magna vigente. O teor da Lei 3924/61 consiste essencialmente no controle das

escavações arqueológicas e no registro dos respectivos sítios.

Destarte, pela Lei 3924, ficam sob guarda da União (artigo 1º):

a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem

testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis,

montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e

quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da

autoridade competente;

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b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos

paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;

c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado

ou de aldeamento, “estações”e “cerâmicos”, nos quais se encontram vestígios

humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;

d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros

vestígios de atividade de paleoameríndios.

O mesmo diploma legal proibiu em todo o território nacional o

aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas

arqueológicas ou pré-históricas, mencionadas no artigo 2º supra-referido, antes de

devidamente pesquisadas (artigo 3º), equiparando tais atos a crimes contra o

Patrimônio Nacional (artigo 5º).

Estabeleceu ainda o direito do particular de realizar escavações para fins

arqueológicos em terras de domínio público ou privado, mediante prévia autorização

do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e expedição de

portaria autorizativa pelo Ministério da Cultura, a ser transcrita em livro próprio pelo

mesmo IPHAN (artigos 8º a 10), que se tornou o órgão administrativo responsável

pela fiscalização e cadastramento dos sítios arqueológicos ou pré-históricos em todo o

país (artigo 11). Caso o imóvel seja de domínio particular, o proprietário deve

consentir as escavações por escrito (artigo 11, “caput”).

Quando as escavações arqueológicas ou pré-históricas forem efetuadas pelo

Poder Público, em terrenos particulares, haverá necessidade de autorização federal

(artigo 13). Estas podem ocorrer, na falta de acordo amigável com o proprietário,

mediante ocupação temporária indenizável (artigo 36 do Decreto-Lei 3.365/41), pelo

tempo necessário à execução dos estudos (artigo 13, parágrafo único), ou, em casos

especiais e em face do significado excepcional da jazida, através de desapropriação

(artigo 15). Por outro lado, as escavações realizadas por órgãos públicos, sejam da

União, Estados, Municípios ou Distrito Federal, deverão, em qualquer circunstância,

comunicar previamente suas escavações ao IPHAN para fins de registro, mesmo

quando realizadas em áreas de seu respectivo domínio (artigo 16).

O grande problema da Lei 3.924/61, é que ela equivocadamente trata sítios

arqueológicos e pré-históricos como sinônimos, ignorando a existência de bens

arqueológicos históricos. Pela simples leitura, observa-se que o texto legal aplica-se

praticamente apenas aos sítios que necessitam de escavação, especialmente os

sambaquis. Tal preocupação é explicável pela destruição quase sistemática que os

sambaquis vêm sofrendo através da história, para aproveitamento econômico do

calcário das conchas na construção civil. Já nos tempos coloniais, as cidades

brasileiras do litoral, suas igrejas e construções mais expressivas, eram construídas de

pedra e cal, esta última preparada com calcário dos sambaquis. Sem dúvida, esta

situação agravou-se muito, porém não se justifica a omissão do legislador quanto a

outros sítios também de relevante interesse arqueológico-cultural. Por exemplo, as

inscrições rupestres, mencionadas na letra d do artigo 2º da lei, quando situadas a céu

aberto, estão a necessitar outro tipo de providências preservacionistas, na medida em

que é desnecessário escavá-las para estudo. Seria o caso de se lhes aplicar o clássico

tombamento. Aliás, já existe o precedente do tombamento pelo IPHAN das inscrições

pré-históricas do rio Ingá na Paraíba.

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Quanto aos bens arqueológicos históricos, posteriores ao descobrimento

cabralino, são eles tratados apenas de passagem, quando a Lei 3.924 menciona a

descoberta fortuita a ser obrigatoriamente comunicada ao IPHAN, não apenas quando

se tratar de objetos de caráter pré-histórico, mas também de importância história,

artística ou numismática (artigo 18). Estes mesmos bens também dependem de licença

do órgão preservacionista federal quando houver trasnsferência para o exterior (artigo

20). Entretanto, não há qualquer regra quanto à escavação, licença ou registro em se

tratando de arqueologia histórica.

Parece-nos que quando os trabalhos arqueológico-históricos ocorrerem em

imóvel ou sítio tombado, far-se-á necessária a autorização do órgão que efetuou o

tombamento. Quando se tratar de bem sobre o qual não recaia nenhum regime

protetivo especial, na ausência de legislação federal a respeito, deveriam os Estados,

Municípios e Distrito Federal legislar sobre o assunto, exercendo sua competência

concorrente e supletiva no que tange à proteção do patrimônio cultural (artigo 24,

inciso VII, c.c. artigo 30, inciso IX da Constituição Federal). Havendo superveniência

de lei federal sobre normas gerais, esta suspenderá a eficácia da lei estadual,

municipal ou distrital no que lhe for contrário (artigo 24, parágrafos 2º e 4º c.c. artigo

30, inciso II da Carta Magna).

Por sua vez, causa espécie a expedição da Portaria Interministerial nº 69 de

28.01.89, conjunta dos Ministérios da Marinha e da Cultura, que aprova normas

comuns sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens de valor

artístico, de interesse histórico ou arqueológico, afundados, submersos, encalhados e

perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terrenos de marinha e seus acrescidos e

em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna de maré.

Esta portaria atribui a competência de fiscalização e registro desse tipo de

bem arqueológico exclusivamente ao Ministério da Marinha. Embora o Ministério da

Cultura seja um dos signatários da portaria, esta ignora completamente a existência do

IPHAN, órgão integrante de sua estrutura, especialmente quanto à sua competência a

respeito de descobertas fortuitas definida em lei (art. 18 da Lei 3924/61).

Por outro lado, alijando completamente o Conselho Consultivo do IPHAN,

designa como responsável pela definição do valor cultural dos bens resgatados uma

comissão interministerial. Esta é designada especificamente, para cada exploração

científica, sem caráter permanente, exigindo-se de seus integrantes apenas habilitação

em arqueologia, história da arte e áreas afins, sem necessidade de notório

conhecimento ou especialização, como seria de se desejar, sem definir os critérios de

nomeação. A portaria informa apenas, de forma lacônica, que três membros serão

indicados pelo Ministério da Cultura e três pelo Ministério da Marinha, cabendo a um

destes últimos a presidência do colegiado. Portanto, da própria leitura observa-se a

precariedade e a ilegalidade das disposições contidas na referida portaria.

A situação do patrimônio paleontológico, isto é , aquele integrado pelos

fósseis, que são restos de vestígios de seres vivos contidos em rochas sedimentares,

diante do ordenamento jurídico, chega a ser estarrecedora.

A única norma existente a respeito é o Decreto-Lei nº 4146 de 4/3/42 que

declara, em seu único artigo e parágrafo, que os depósitos fosslíferos são propriedade

da nação, sendo necessário para sua exploração, autorização prévia do DNPM

(Departamento Nacional de Produção Mineral), à época integrante do Ministério da

Agricultura e hoje do Ministério de Indústria e Comércio, a quem cabe a fiscalização.

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240

As explorações efetuadas por órgãos públicos independem de autorização ou

fiscalização, cabendo-lhes apenas efetuar comunicação prévia ao DNPM. E nada

mais.

Esta regulamentação quase inexistente é que torna compreensível o fato de se

poder adquirir livremente quantos e quais fósseis se quiser em feiras espalhadas por

milhares de praças pelo Brasil afora. O nosso patrimônio fosslífero está sendo

depredado completamente enquanto o legislador designa um órgão licenciador de

atividades minerárias como responsável pela sua proteção, ou melhor, pelo seu

abandono.

Finalmente, talvez a única situação em que os bens arqueológicos e

paleontológicos não criam polêmicas jurídicas, é quando se encontram na forma de

coleção, cuja proteção pode ser efetuada pelo tombamento , já havendo diversos

precedentes a respeito.

Assim sendo, urge elaborar-se nova legislação para proteger adequadamente

o patrimônio cultural arqueológico- histórico e paleontológico, pois a continuar o

ordenamento atual, em breve não haverá mais o que preservar.

BIBLIOGRAFIA:

Bens Móveis e Imóveis Inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional. Ministério da Cultura/IPHAN. Rio de Janeiro, 4ª Ed.,

1994.

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241

LICENCIAMENTO AMBIENTAL E OS BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO

Carlos Eduardo Caldarelli

A elaboração de estudo prévio de impacto ambiental e do respectivo relatório

é condição necessária para o licenciamento de obra ou atividade potencialmente

causadora de significativa degradação do meio ambiente.25

Para a realização de ambos, estudo e relatório, é preciso constituir-se equipe

multidisciplinar habilitada que, dentre um mínimo de atividades técnicas obrigatórias,

deve considerar o meio sócio-econômico das diversas alternativas locacionais do

projeto em estudo, “destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e

culturais da comunidade”.26

O que se observa, examinando-se os estudos de impacto ambiental que se

produzem no País, é que, na sua elaboração e, portanto, na prática do licenciamento

ambiental, dentre todas as categorias de bens integrantes do patrimônio cultural

brasileiro, apenas os bens materiais passíveis de subsumir-se nas rubricas eleitas pelo

texto acima citado têm sido, em geral, objeto de alguma preocupação, ignorando-se

todos os outros.

Ainda assim, mesmo aqueles bens, freqüentemente, só são lembrados quando

gravados por tombamento27

ou protegidos por legislação específica, como é o caso

dos “monumentos arqueológicos e pré-históricos”.28

Em face disto, a problemática a que o tema proposto conduz prende-se às

questões suscitadas pela existência de outros bens que se incluem na universalidade

que é o patrimônio cultural brasileiro, além dos que têm sido comumente

considerados nos estudos prévios de impacto ambiental, aos quais, portanto, deve-se

dispensar idêntico tratamento.

No entanto, colocar essa problemática implica, antes, discutir e eleger

critérios que permitam decidir, em cada caso concreto, acerca de quais são, afinal, os

bens que se devem considerar como incluídos no patrimônio cultural brasileiro, tendo

em vista o que dispõem sobre o assunto a Constituição Federal e as normas

infraconstitucionais vigentes.

Esta última questão torna-se especialmente polêmica, examinando-se o que

dispõe sobre o assunto o D.L. nº 25, de 30.11.1937, à luz da sobrevinda Constituição

Federal de 1988.

Deve-se a Jorge Miranda, eminente constitucionalista português

contemporâneo, a proposta de ampliar-se a idéia de que as constituições

supervenientes “recebem” as normas infraconstitucionais anteriores a elas, pela de

estas últimas normas serem “novadas” pelas ordens constitucionais que lhes são

posteriores. 25

C.F., art. 225, § 1º, IV; L. nº 6.938, de 31.08.1981, art. 9º, III; D. nº 99.274, de

06.06.1990, art. 17, §§ 1º, 2º e 3º e Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, basicamente. 26

Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, art. 6º, I, c. 27

C.F., art. 216, §§ 1º e 5º; D.L. nº 25, de 30.11.1937; D.L. nº 3.866, de 29.11.1941,

basicamente. 28

L. nº 3.924, de 26.07.1961.

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242

O conceito de recepção foi lapidarmente exposto por Norberto Bobbio, da

seguinte forma: “A recepção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e

torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem

materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma”.29

Laborando sobre as consequências jurídicas do fenômeno da recepção e,

assim, aprofundando e enriquecendo o entendimento que se tinha dele, Jorge Miranda

delineou o conceito de “novação”, através da formulação dos seguintes corolários:

“As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova

Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se

conformes com as suas normas e os seus princípios” e, adiante: “As normas anteriores

contrárias à Constituição, mesmo que contrárias às normas programáticas, não podem

subsistir - seja qual for o modo de interpretar o fenómeno da contradição”.30

Entre nós, jurisprudência mais do que cinqüentenária do STF tem entendido

que, dado que legislador algum pode infringir constituição futura, a constituição

superveniente não torna inconstitucionais as normas anteriores que com ela conflitam,

mas revoga-as31

, sendo razoável, portanto, entender-se, aqui, que o nosso particular

“modo de interpretar o fenómeno da contradição”, referido por Jorge Miranda,

resolve-se, primordialmente, pela pura e simples revogação, o que, entre nós, tem-se

operado segundo o que dispõe o artigo 2º e parágrafos, do D.L. nº 4.657, de

04.09.1942, a conhecida Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.32

Isto posto, examinemos o D.L. 25/37, logo em seu artigo 1º e parágrafos, em

face da dicção do artigo 216 e incisos da Constituição Federal. O texto daqueles

dispositivos do Decreto-Lei é o seguinte:

“Art. 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos

bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público,

quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu valor

arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.”

29

Teoria do Ordenamento Jurídico, BSB, Ed. UnB, 1989, pg. 177. 30

Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, 2ª ed., pg. 243

- 4. 31

Veja-se, para um apanhado da jurisprudência do STF sobre o tema, Brossard, Paulo,

A Constituição e as Leis a Ela Anteriores, in Arquivos do Ministério da Justiça, v. 45,

nº 180, Separata.

32 Para os leitores menos familiarizados com o assunto, reproduz-se, adiante, o texto

meridianamente claro e auto-explicativo dos dispositivos legais citados:

“Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a

modifique ou revogue”.

“§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja

com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei

anterior”.

“§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já

existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.

“§ 3º - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei

revogadora perdido a vigência”.

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243

“§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte

integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro, depois de inscritos separada

ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o artigo 4º, desta

Lei.”

“§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também

sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que

importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela

natureza ou agenciados pela indústria humana”.

Por sua vez, o artigo da Constituição Federal mencionado, juntamente com

os seus incisos, traz o seguinte:

“Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira, nos quais se incluem:”

“I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados

às manifestações artístico-culturais

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.

Examinando ambos os diplomas, não há como não concluir que a matéria por

eles versada é a mesma, qual seja, a valoração especial que se atribui aos bens por eles

tratados, embora já tenha sido notado que a Constituição Federal de 1988 amplia,

“quase que exaustivamente, o que deve ser considerado como patrimônio cultural,

representando dessa forma, extraordinário avanço para o aperfeiçoamento do

instituto”33

, A conclusão é inevitável, ainda que a comparação deva ater-se apenas ao

que se contém no “caput” do artigo 216 do diploma constitucional, uma vez que a

lista que vem adiante é meramente exemplificativa. É, obviamente, indiferente o

nome dado à universalidade resultante, se “patrimônio histórico e artístico nacional”,

ou “patrimônio cultural brasileiro”.

Conseqüentemente, tendo em vista o que dispõe o § 1º, in fine, do art. 2º, da

Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro e o mais que se chamou à colação,

s.m.j., a superveniência da Constituição Federal de 1988 derrogou todo o § 1º, do

artigo 1º, do D.L. 25/37, dado que não se referiu à inscrição de bens nos Livros de

Tombo, como condição necessária para que venham a fazer parte do patrimônio

cultural brasileiro e, assim, serem, dessa forma, especialmente valorados.

Adicionalmente, a Constituição superveniente “novou”, no sentido dado à

palavra por Jorge Miranda, tudo o mais que se continha no restante do artigo 1º, do

D.L. 25/37, constatando-se isto, primordialmente, pelo fato de o diploma

constitucional vigente no País encarecer, como jamais se fizera antes em nossa

33

Queiroz Telles, Antônio A., Tombamento e seu Regime Jurídico, RT, SP, 1992, pg.

29.

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história constitucional, os princípios democrático e pluralista, não muito caros aos

dispositivos examinados do Decreto-Lei em discussão.

Não é o caso, aqui, de prosseguir na análise do D.L. 25/37, avançando sobre

as suas disposições acerca dos complexos procedimentos ligados ao tombamento, não

apenas por não ser esta a matéria que interessa a este escrito, mas, principalmente, por

escapar o assunto às luzes de quem o compõe. Importa ressaltar, no entanto, por ser,

isto sim, importante para o tema para o qual pede-se, aqui, a atenção do leitor, que,

estando corretas as considerações feitas até este ponto, a “novação” operada pela

constituição sobrevinda em 1.988 sobre o sistema instituído pelo D.L. 25/37 implica

entender que “o valor cultural de um bem preexiste à sua declaração pela

Administração”34

, não sendo mais dada a esta última a competência para decidir se

algum bem deve ou não incluir-se no patrimônio cultural brasileiro, cabendo-lhe, uma

vez constatada tal pertinência, tão somente por evidenciar-se a sua “referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira”, promover e proteger o bem assim considerado, “por meio de inventários,

registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de

acautelamento e preservação”.35

Desta forma, em cada caso concreto, quaisquer que sejam as circunstâncias

que tornem necessário decidir quais bens se incluem no patrimônio cultural brasileiro,

o que muito freqüentemente ocorre nos procedimentos que fazem parte do

licenciamento ambiental, estar-se-á sempre diante de questão indubitavelmente

complexa e aberta, cuja resposta demanda pesquisa séria e aprofundada, jamais

bastando, para obtê-la, recorrer (o que sói fazer-se em estudos de impacto ambiental)

a meras consultas apressadas a listas de bens tombados e a alguns poucos artigos

publicados em periódicos culturais, material que, além de fragmentário, reflete, em

sua maioria, opiniões e pontos-de-vista datados e parciais.

É preciso, a esta altura, sublinhar que o apelo que se faz à seriedade e ao

aprofundamento da pesquisa nos estudos de impacto ambiental não se justifica

somente pelo amor que se deve dedicar a tais virtudes, mas principalmente pelo fato

de constatar-se que, nas situações criadas pela implantação de empreendimentos de

grande porte, os resultados favoráveis daí advindos (tecnicamente, fala-se em

“impactos positivos”), em geral, difundem-se em larga escala, no espaço, ao contrário

dos desfavoráveis (“impactos negativos”), os quais, o mais das vezes, circunscrevem-

se a âmbitos locais: Aqui, trata-se de produzir mais energia que vai ser consumida,

principalmente, a grandes distâncias do ponto onde a sua geração vai,

inexoravelmente, alterar a paisagem, influir na distribuição da flora e nos hábitos da

fauna, desalojar e separar pessoas, dentre outros inconvenientes não menos

importantes; ali, de construir estradas que vão facilitar a ligação entre um grande

centro e outro, passando por localidades às quais raramente servem; acolá, de

implantar centros de compras e serviços que atraem consumidores que não residem

nas proximidades e que, de outra forma, jamais demandariam a infra-estrutura urbana

local, sobrecarregando-a, etc.

Em sede de direitos e interesses difusos, isto é, aqueles pertencentes a

“grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou

34

Milaré, Édis, Ação Civil Pública Ambiental - Patrimônio Cultural, in JUSTITIA,

143/118. 35

CF, art, 216, § 1º.

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fático muito preciso”36

, como são os que se consideram aqui, é preciso que, ao

auscultar a sociedade civil, com a finalidade de levar aqueles direitos na devida conta

e de bem interpretar aqueles interesses, tenha-se sempre em mente que ela é um locus

de diferenças que reclamam ser tratadas como tais e, assim, expressar-se.

Em tais condições, é absolutamente necessário dar-se conta de obviedade

que, ao arrepio da letra e do espírito da Constituição vigente, acaba sendo tão

freqüente e descuidadamente ignorada em estudos de impacto ambiental: trata-se da

que se constitui na existência, tão teimosa e recorrente quanto legítima, do ponto-de-

vista da parte da população que se verá mais atingida pelos custos oriundos da

implantação de empreendimentos potencialmente causadores de impactos sobre o

meio-ambiente, acerca de como definem os prejuízos que vão sofrer e de qual lhes

parece ser a melhor maneira de compensá-los, ponto-de vista que, muitas vezes, é

oriundo de concepções do mundo singulares, ligadas a modos de vida parcial ou até

inteiramente alheios àqueles que se vai beneficiar com a sua implementação.

A esta altura, embora o tema proposto não permita aprofundar o assunto aqui

tratado sob esse aspecto, vale a pena observar que, se o que se disse acima parece

poder aplicar-se, também, às outras questões que são examinadas em estudos de

impacto ambiental, além das especificamente relacionadas ao patrimônio cultural

brasileiro, isto ocorre porque não há como evitar, nem como eludir, o fato de a cultura

e as diferenças culturais serem realidades que se imiscuem em todos os aspectos da

vida social.

De tudo isto resulta, inevitavelmente, que, na constatação e no balanço dos

custos e dos benefícios que devem surgir da realização de projetos do tipo dos que se

trata neste escrito, é preciso dar, tanto quanto seja possível, voz a todos os

interessados e, dentre estes, principalmente aos que sofrerão turbações da mais diversa

ordem em muitos aspectos das suas vidas, incluíndo-se aí a eventual alteração ou

perda de preciosos bens culturais, tais como os fatores que formam e balizam a vida

quotidiana, dando-lhe base material e emprestando-lhe significado: caminhos,

referenciais, pontos de encontro, áreas de lazer informal, espaços e construções

tradicionalmente destinados a celebrações, à residência e/ou ao trabalho, etc., cujo

desaparecimento repentino ou exposição à mudança significativa e excessivamente

rápida torna inúteis, de um dia para outro, conhecimentos adquiridos, acumulados e

transmitidos ao longo do tempo e transforma em relíquias, de chofre, hábitos coletivos

e tradições locais, bens imateriais, estes últimos, que, vale ressaltar, nem por serem

desprovidos de impenetrabilidade, extensão, peso e das outras tantas propriedades que

a Física atribui à matéria, deixam de incluir-se na categoria dos bens culturais.

Na ordem de idéias a respeito do patrimônio cultural brasileiro esposada pela

Constituição Federal de 1.988, não há lugar para que os bens culturais mencionados

acima sejam considerados menos merecedores de valoração especial do que os que

freqüentam os Livros de Tombo e os artigos que se publicam em revistas eruditas,

tampouco havendo, portanto, razão alguma para que sejam “esquecidos” ou relegados

a segundo plano nos estudos e relatórios de impacto ambiental. Se a sua identificação,

avaliação e preservação exige esforços maiores de pesquisa e investimento, cabe ao

Poder Público exigir que isto se faça, em todos os casos em que couber fazê-lo, por

quem de direito.

36

Mazzilli, Hugo Nigro, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, RT, SP, 1992, 4º

ed., pg. 21.

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Isto posto, cabe considerar, finalmente, a outra ordem de problemas a que se

aludiu no início deste escrito, qual seja, a relativa às questões levantadas pela

ampliação da universalidade constituída pelo patrimônio cultural brasileiro, tendo em

vista o aumento não ter sido principalmente quantitativo, mas qualitativo, o que traz

ao centro desta problemática a questão das “formas de acautelamento e preservação”

adequadas, em cada caso, a cada bem especialmente valorado como pertencente

àquele patrimônio, já que, no contexto do licenciamento ambiental, está-se,

freqüentemente, tratando da inevitabilidade da superveniência de danos àqueles bens,

quando não se está diante da certeza do seu puro e simples desaparecimento.

Nestas últimas condições, isto é, se é certo o perecimento dos bens, indaga-

se: Em que casos cabe entender que a mera confecção de inventários e registros, que o

artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, institui como algumas das formas de

proteção ao patrimônio cultural, pode considerar-se um modo aceitável de compensar

o impacto negativo que será sofrido pelos bens em tela?

Por outra, na hipótese formulada antes, isto é, se se trata da ocorrência

inevitável de danos àqueles bens, deve-se compreender que a elaboração de um

programa de monitoramento de impactos realiza sempre, qualquer que seja o bem

turbado, a vigilância a que se refere os mesmos artigo e parágrafo da Lei Magna?

Em suma, entre o que dispõem a Constituição Federal e as normas

infraconstitucionais de proteção ao Patrimônio Cultural, de um lado, e os regramentos

administrativos que disciplinam o licenciamento ambiental, de outro, existe a

conformidade reclamada por Jorge Miranda para que estes últimos possam continuar a

regular toda a matéria cultural no contexto do licenciamento ambiental, de modo que

toda a problemática apontada acima acabe por revelar-se apenas uma questão de

aplicação da lei a casos concretos, vale dizer, de interpretação?

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DEBATE

Coordenador: Dr. José Luiz de Morais - MAE/USP

Relatora: Alenice Motta Baeta- Setor de Arqueologia MHN\UFMG

José Luiz de Morais - Por favor, Sr. Rossano Bastos, do IPHAN.

Rossano Bastos - Bom dia, eu gostaria de parabenizar os membros da mesa pela

brilhante explanação sobre a questão que envolve patrimônio cultural e legislação.

Agradeço de público ao Fórum Interdisciplinar pelo Avanço da Arqueologia pelo

convite, um seminário que vem-se demonstrando fantástico, realmente esplendoroso,

uma importante forma de reflexão e debate.

Na verdade, eu trouxe uma questão para ser colocada em dicussão para o

conjunto dos debatedores e não especificamente para um. Eu acredito que o problema

central do patrimônio cultural, hoje, é que não existe uma política nacional de cultura

que contemple a complexidade do conjunto dos bens culturais que formam a

identidade cultural do Brasil. Dentro desse contexto, a legislação do patrimônio

histórico, de um modo geral, atende ainda a preceitos de exceção do regime Vargas.

Entretanto, a única política cultural levada a efeito nesse país, talvez seja ainda a

política do governo Vargas ( Decreto lei n. 25 de 1937). Através de uma ação

conjunta entre estados e municípios é que nós devemos esperar uma ação

complementar efetiva - política, jurídica e administrativa.

Eu acho que chegou a hora de olharmos de frente e não somente

valorizarmos a casa- grande, mas também a senzala, porque da senzala vem muito

suor que construiu essa Nação. Para onde iam os operários depois de construída a

muralha da China, as Acrópoles tantas vezes destruídas. Quem as ergueu?

Eu gostaria de terminar com a reflexão de uma pessoa que eu admiro muito,

que disse o seguinte: “Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do passado

antes que o tempo passe tudo a limpo” ( Cora Coralina). Muito Obrigado.

José Luiz de Morais - Eu pergunto aos membros da mesa se desejam se manifestar.

Suzanna Sampaio - O que eu poderia dizer em relação ao Decreto Lei n 25 de 1937,

é que ele não fere nenhum princípio constitucional, tanto que o legislador

constitucional em momento algum revogou-o. Toda aquela legislação que foi

considerada obsoleta ou inconstitucional pela nova Carta Magna, foi revogada. A

legislação do governo Vargas de 1937 foi feita em menos de um mês depois da

declaração do Estado Novo. Teve uma política cultural bastante sedimentada, com leis

que na época eram vigentes internacionalmente. Então, você vê que a própria carta de

Atenas traz princípios que nortearam todas as políticas de proteção ao patrimônio

histórico, artístico, hoje chamado „cultural‟ na Constituição. Acho que realmente ele

representou um momento feliz na nossa administração pública, em que pesem os atos

ditatoriais; depois, é preciso separar o joio do trigo, é preciso ver os atos ditatorias do

governo Vargas e separar os grande ministros que foram Gustavo Capanema e

Francisco Campos.

Das outras ponderações que você fez, eu me lembrei da casa grande e

senzala. Mais do que nunca, essa Constituição contempla em todos os momentos os

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modos de manifestações, tanto do patrimônio edificado como das manifestações

intangíveis e imateriais. Tem-se tombado modos de fazer e modos de viver; por

exemplo, foi tombado um terreiro de Candomblé na Bahia. É preceito constitucional.

Todos os remanescentes de quilombos em nosso país são protegidos por medidas

constitucionais, que é a lei máxima. Você pode tirar daí qualquer proteção possível

dentro dos institutos existentes. Essa garantia de que os quilombos sejam preservados

garante a preservação da memória africana, a memória negra no Brasil. E quando se

fala da memória negra hoje, as comunidades de luta pela igualdade, pela manutenção

da identidade negra preferem ser chamados de afro-brasileiras, como os afro-

americanos. Então chamemo-los, não é possível discutir. Os afro-brasileiros estão

contemplados, outras manifestações também. Existe hoje a Fundação Palmares, que é

responsável pela inventariação, pela codificação e pela propostas de inclusão no

patrimônio brasileiro de toda memória da escravidão e de toda memória da raça negra,

oprimida mesmo depois que a abolição se fez em 1888. Vou adiantar, por exemplo,

que estudos recentes descobriram remanescentes de quilombos em áreas

desconhecidas. Depois do quilombo de Palmares, que foi tão célebre, a história de

outros quilombos existentes no Maranhão, no Norte do Estado de Mato Grosso ficou

esquecida. Esta memória está sendo levantada e a sua história escrita por pessoas,

funcionários e profissionais do patrimônio brasileiro, de todos os institutos. Não sei se

respondi ou se alguém quer fazer mais alguma ponderação.

José Luiz de Morais - A Dra. Helita gostaria de fazer uma observação.

Helita Custódio - A Lei Geral de 1981 e também a legislação anterior e posterior à

Constituição de 1988 foram muito importantes, Sr. Rossano, relembrando a sua

colocação. Então, nós temos um outro problema, por princípio, de ordem geral do

Direito, nas normas da lei de introdução do código civil, que é norma de princípio

geral. Toda lei tem sua validade; quando ela é promulgada, foi promulgada por um

determinado motivo; se ela é perfeita ou imperfeita, não vamos entrar nesse detalhe.

Por princípio geral do Direito, a lei anterior a ela pode ser revogada ou não por uma

lei posterior. Nesse caso, nós temos que verificar alguns aspectos importantíssimos:

se a lei anterior for incompatível com a lei posterior, nesse caso ela vai ser revogada

ou porque a lei posterior já a revoga expressamente ou então a revoga implicitamente;

se é incompatível, não tem mais condição de sobrevivência. Então nós temos dois

tipos de revogações: explicita quando a lei expressamente declara - „revogam-se as

disposições da lei tal‟, e implícita quando, simplesmente analisando a lei anterior e a

lei posterior, há uma incompatibilidade inconciliável. Em se tratando das normas

constitucionais, se aplica da mesma forma: a Constituição é a norma que está

hierarquicamente superior às outras. Se a norma anterior for compatível com a norma

posterior, seja lei ou Constituição, ela permanece, perfeitamente. Se esta norma não

for suficiente, mas se o espírito dessa norma está de acordo com a proteção prevista

na lei posterior, então, nesse caso, a lei anterior é uma lei que não é incompatível.

Diante dessas normas insuficientes, ela dá uma definição que não é completa, então

vamos completar. Nós estamos aqui para analisar esses aspectos, de

incompatibilidades ou de insuficiências da lei anterior, em comparação com a lei

posterior, seja lei, seja Constituição, e é por isso que é importante esse levantamento

de normas que nós fazemos para realizar o estudo adequado. É preciso ter consciência

daquilo que é incompatível e daquilo que é compatível: o que é incompatível revoga-

se, o que é compatível permanece e o que é insuficiente se atualiza.

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José Luiz de Morais - Pela ordem, convido o Dr. Daury de Paula Júnior, da

Promotoria de Meio-Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Daury de Paula - Bom dia. Em primeiro lugar, eu queria cumprimentar a mesa pelas

brilhantes explanações, por ter dividido comigo, que acompanhei o evento todos esses

dias, um sentimento enorme de impotência. Eu teria algumas colocações e uma

pergunta específica. O artigo 216 da Constituição, combinado com o artigo 20 que diz

que “ o patrimônio histórico arqueológico e pré-histórico é bem da União”, permite a

interpretação desse arqueológico histórico e arqueológico pré-histórico. Eu

perguntaria se, por força da combinação desses dois dispositivos constitucionais, não

estaria revogado, por incompatibilidade, o artigo 2 da lei que trata dos sítios, que

repete essa expressão: arqueológicos pré-históricos, mas limita-se apenas ao pré-

histórico.

Um outro questionamento diz respeito também à combinação desses dois

dispositivos constitucionais, que transformam inequivocamente esses bens, que são

bens da União, em bens comuns do povo, porque seriam bens nacionais de caráter

coletivo. É uma outra questão que me deixou bastante angustiado, assistindo as

palestras dos arqueólogos: eu notei que todos eles apontam a pressão do tempo, de

não se ter tempo de fazer um estudo adequado, diante de uma pesquisa de arqueologia

de contrato dentro do EIA/RIMA, onde se tem que optar por explorar todos os sítios

localizados ou conhecidos ou explorá-los parcialmente, aplicando critérios técnicos.

Eu perguntaria: é possível, diante do texto constitucional, admitir dano a patrimônio

público de bem comum do povo nesses empreendimentos? É possível mitigar dano a

bem de uso comum do povo? Me parece que não.

Outro aspecto refere-se ao patrimônio arqueológico submerso e não gostaria

que fosse entendido como correção, mas existe lei específica; essa lei foi publicada,

eu não me recordo o número, mas uns dias antes ou depois da lei de ação civil

pública. Não me espanta nada o colega que falou a respeito não a ter localizado

porque ela mistura o navio naufragado de interesse histórico arqueológico com aquele

navio que pode ser explorado comercialmente, que afundou ontem; houve uma

mistura. Mas eu estou tocando no assunto não para trazer a existência da lei, mas para

fazer uma pergunta aos colegas da área de Direito, como também ao coordenador da

mesa, que é a seguinte: essa lei estabelece uma distinção entre o naufrágio com

potencial histórico arqueológico e o naufrágio sem potencial histórico arqueológico

por um critério exclusivamente temporal: o navio que naufragou de 1800 para baixo é

histórico arqueológico, de 1800 para cá não é histórico arqueológico. Basta dizer que

não são históricos arqueológicos nenhum daqueles naufragados na Guerra do

Paraguai, nenhum daqueles naufragados na Guerra da Independência e outros. Então,

eu gostaria de perguntar aos colegas da área jurídica se esse dispositivo de lei, diante

da combinação do artigo 216 e do artigo 20, não estaria revogado, e ao colega

arqueólogo se isso é correto tecnicamente. Muito obrigado.

José Luiz de Morais - Com relação à questão dos bens submersos, eu acho que é um

assunto extremamente mal resolvido, principalmente no âmbito da arqueologia, a

questão da data do que é arqueológico ou do que não é arqueológico. Eu perguntaria:

até o bem não submerso, quando ele passa a ser arqueológico? Então, eu acho que é

uma questão carente de debate e nesse caso fica novamente a segunda sugestão, que

eu faço ao Fórum para o Avanço da Arqueologia: que inclua este tema no elenco de

reflexões; eu me considero pequeno e inexperiente em relação à arqueologia

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subaquática. Em termos de Brasil ela existe e é praticada esporadicamente, mas eu me

sinto pequeno e insuficiente para expor alguma posição, de ordem pessoal ou

profissional.

José Eduardo Rodrigues- Com relação a essa questão, propriedade dos bens da

União, as cavidades naturais subterrâneas, os sítios arqueológicos pré-históricos e

históricos, faz surgir uma outra imprecisão. O que é um sítio arqueológico pré-

histórico, é fácil de deduzir, está na lei de 61; agora, e o sítio arqueológico histórico ?

Por exemplo, há uma casa bandeirista no sítio do Tatuapé, de propriedade do

município de São Paulo, desapropriada há mais de 30 anos. A prefeitura de São Paulo,

foi lá e fez um levantamento nas paredes, no chão e fez todo o levantamento no sítio

arqueológico. Ali é um sítio arqueológico até certo ponto. Nossas casas podem estar

em cima de sítios arqueológicos, porque muitos prédios situados na cidade de São

Paulo são sítios arqueológicos, basta que se cavem. É o caso da casa n0 1 do Pátio do

Colégio, em que em uma restauração encontraram alicerces de taipa de uma casa

muito anterior. Tecnicamente, é um sítio arqueológico, porém histórico; então, eu

estou entendendo que os sítios arqueológicos e pré-históricos que estão sendo

considerados bens da União, por uma imprecisão técnica devem ser aqueles mesmos

que são mencionados como arqueológicos pré-históricos pela Lei n0 3.924 de 26 de

junho de 61. Então, eu continuo entendendo que esses sítios que são lá descritos como

sambaquis, cemitérios indígenas, que são coisas razoavelmente determináveis, do

mesmo modo que as cavidades naturais subterrâneas, são bens de domínio da União.

Agora, eu não sei como considerar, por exemplo, o solo da minha casa, debaixo dos

tacos da minha casa, um sítio arqueológico. Aqui, no subterrâneo dessa universidade,

pode ser que tenha existido uma fazenda colonial, e seja encontrado um sítio. Eu não

sei até que ponto isso poderia ser transferido para a União, ou até que ponto a União

poderia ter uma emissão de posse; é uma coisa interessante. O que eu vejo é que, no

máximo, poderíamos ter uma outra interpretação, de que haveria uma fiscalização

específica. Isso daria um direito à União de praticar uma fiscalização específica,

porque no caso da lei de 61, também quando se faz um pesquisa arqueológica, o sítio

pode se situar em um imóvel particular. Eu não entendo necessariamente que ele

tenha de ser desapropriado; aliás, há a previsão da autorização do proprietário, quando

você requer licença junto ao IPHAN. Então, esse domínio da União, no sentido

fiscalizatório, talvez você possa excluir, mas esses sítios arqueológicos, para mim,

continuam sendo o que a lei de 61 diz que são. O sítio arqueológico histórico, eu não

imagino como da União; é o mesmo problema que foi levantado aqui, acertadamente,

sobre a antigüidade do navios. Era a tese original de Mário de Andrade que os

imóveis considerados antigos eram aqueles pelo menos com 50 anos; então, um

tombamento como o de Brasília, que é patrimônio da humanidade, seria impossível;

teria que se esperar que ela tivesse 50 anos.

O simples fato de uma coisa ser pré-histórica, indígena, não lhe dá mais valor

ou menos valor do que o fato de ela ter sido feita por portugueses no séc. XVII, no

séc. XVIII, inclusive porque os sítios arqueológicos indígenas se encontram nos

sambaquis e, em certas camadas dos sambaquis, encontram-se objetos que pertencem

à cultura branca, que marcam uma transição euro-indígena e a sua influência diante da

cultura portuguesa, da cultura do colonizador. Então, é lógico que eu acho que essa

questão ainda é polêmica, mas, resumindo, eu acho que esses sítios arqueológicos pré-

históricos são aqueles referentes aos indígenas e, com relação aos sítios históricos, a

competência do Estado, Distrito Federal e municípios continua vigorante.

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Helita Custódio- Com relação à preocupação do Dr. Daury, é sempre aquilo que nós

falamos, cada vez que formos considerar se uma norma é ou não, foi ou não revogada

diante de uma norma superveniente, nós temos que fazer uma análise para dizer, de

uma vez por todas, que não foi revogado. Não é muito para um jurista ou para

qualquer um de nós, profissionais, que temos que pensar na ciência do raciocínio.

Temos que dar uma conclusão, uma reposta àquela pergunta; nesse caso, nós temos

que fazer uma análise, uma interpretação científica, em conjunto. É muito difícil para

nós, às vezes, diante de textos combinados contra os textos anteriores, dizer que foi

revogado , não foi revogado, temos que ver bem qual o objetivo da norma. O objetivo

da norma é aumentar a proteção, é proteger a norma. Nós temos que interpretar,

refletir e analisar em conjunto todo texto, porque nós, juristas, temos que ter muita

cautela nessa questão de interpretação científica. Hoje, há uma necessidade muito

grande de se evitar interpretações contrárias ao espírito da lei. O importante é o

espírito da lei, se a razão da lei está prevista na lei anterior e na lei posterior, mas a lei

anterior é insuficiente, então vamos completar, vamos ajustar o seu espírito ao espírito

da norma posterior; se é incompatível, simplesmente não se fala mais na regra

anterior. Ela foi simplesmente revogada, expressamente ou implicitamente, porque ela

é incompatível; se ela é compatível, ela permanece; então, isso é uma questão de

interpretação científica diante de cada circunstância, diante de cada caso concreto.

No tocante à sua pergunta, se é possível haver dano a bem de uso comum do

povo, diante de empreendimentos degradadores, não tem dúvida que esse dano é

previsto na Constituição também, Daury. A própria Constituição, parágrafo 30 do

artigo 225, é taxativa, é claríssima nesse caso. Aqui não se faz nenhuma separação,

trata-se de empreendimento público ou privado, não interessa seja qual for a pessoa

responsável pelo empreendimento que causou o dano, esse deve ser necessariamente

ressarcido. Veja que é a norma do capítulo: todos tem direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo; é norma geral, devendo o

poder público e a coletividade defendê-lo e preservá-lo. Vem agora o parágrafo 3º: as

condutas e atividades consideradas lesivas - qualquer conduta, seja diante de um

empreendimento público/privado, licenciado ou não licenciado, não interessa: se

aquele empreendimento ocasionou dano ao bem de uso comum do povo, não tem

dúvida que o seu responsável os infratores, pessoas físicas ou jurídicas estão sujeitos a

sanções penais, administrativas e civis, independentemente, no sentido de reparar os

danos causados. Essa norma aqui não exclui ninguém: se há dano, como diz Pontes de

Miranda, “danou, pagou”. Outro dia, quando alguém começou a subestimar a

capacidade do brasileiro, chegou-me em casa um trabalho para eu emitir um parecer

sobre uma crítica sobre a expressão usada pela ONU, a respeito do Direito Nacional

de Desenvolvimento Sustentável; foi uma crítica violenta, porque um autor inglês

disse que isso aí foi para iludir os coitadas das pessoas dos países de terceiro mundo,

para tomar os nossos bens. Eu disse: tenha cautela com essas críticas precipitadas,

„desenvolvimento sustentável‟ é uma expressão talvez não muito simpática, mas é

uma expressão correta; foi concluída por mais de 500 cientistas do mundo inteiro,

tendo sido adotada pelo documento da ONU. É isso o desenvolvimento sustentável”:

evitar a exploração irracional que acabava com tudo; tem que haver uma exploração

racional, através de um planejamento, através de zoneamento, através de programas e

de projetos adequados, que sejam racionais no sentido de preservar. Vamos conciliar

o desenvolvimento social, econômico, agrícola ou urbanístico com a preservação; não

quer dizer que a natureza seja intocável; nós vamos conciliar, compatibilizar os

recursos ambientais e culturais para as presentes e futuras gerações, porque nós aqui

só temos remanescentes, nós temos que cuidar deles para as futuras gerações. Eu

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disse, também, que não vamos subestimar a inteligência da pessoa humana. A pessoa

humana é capacitada em qualquer lugar do planeta, pode estar nos países do primeiro

mundo, do segundo mundo ou do terceiro mundo, não importa. E voltando a Pontes

de Miranda, que foi um dos maiores juristas brasileiros, considerado e respeitado em

toda a Europa, seu trabalho sobre o tratado de Direito Privado não tem similar em

nenhum país do mundo. Então, não vamos subestimar a nossa capacidade intelectual.

Somos pessoas humanas e como tal temos capacidade para nos desenvolver e

aperfeiçoar continuamente e dar a nossa colaboração, a nossa contribuição, à solução

dos grandes problemas, como também para ver se uma norma é ou não revogável, ou

mesmo se um atentado ou um dano ao bem de uso comum do povo é ou não

ressarcível, e, nesse caso, se danou tem que pagar Não interessa se for poder público,

privado, físico ou jurídico, não tem importância, vai ter que pagar.

José Luiz de Morais - Surgiu uma pergunta ao Dr. Roberto e ao Dr. José Eduardo. A

pergunta é dirigida por Antônio Menezes Júnior e diz o seguinte: questão sobre a

competência do IPHAN em regular a proteção de bens culturais, através de portaria

ministerial: 1º) quais os limites de ação das diversas instâncias da administração

pública; 2º) como ficam a importância e as atribuições do poder local ?

Roberto Monteiro - Antes de mais nada, vou usar o microfone para reconhecer a

minha incompetência na matéria e vou deixar para o Dr. José Eduardo, mesmo porque

infelizmente eu estou com meu tempo ultrapassado. Eu apenas lembraria de forma

genérica, já que concretamente eu não teria aqui elementos para uma reposta

adequada à indagação, que isso é realmente um vezo realmente administração pública

brasileira, legislar pela via de instrumentos normativos como as portarias, e, sempre

que se faz uma pesquisa mais cuidadosa, a constatação é que muitas dessas portarias,

aliás, a grande maioria delas, incursionou num terreno reservado à lei. Embora essas

portarias acabem sendo observadas, acabem sendo invocadas, acabem disciplinando

essa distribuição de atribuições, com muita freqüência o resultado das pesquisas

levaria a uma conclusão meio catastrófica, de que a proteção de determinados bens

acaba construída ou erigida sobre um edifício extremamente frágil. Quanto ao tema

concreto, realmente afirmo a minha incompetência e passo a palavra ao Dr. José

Eduardo. Agradeço demais; foi uma oportunidade excelente de convívio com vocês e

espero que esses encontros sejam cada vez mais freqüentes, dentro daquela idéia de

que o Ministério Público não existe sem vocês, sem a ajuda de vocês e sem a

participação de cada um que compõe a sociedade. Muito obrigado.

José Eduardo Rodrigues - Essa questão é a questão crucial do Direito administrativo

brasileiro, especialmente o segundo tópico - quais os limites da ação das diversas

instâncias da administração pública. Eu colocaria aqui a questão sobre a competência

do IPHAN em regular a proteção de bens culturais através de portarias ministeriais.

Eu teria que lhe dizer o seguinte: depende de como está sendo elaborada essa portaria,

porque toda portaria, todo ato administrativo, está restrito ao princípio da legalidade;

então, tem que ter fundamento legal, a partir de uma determinação legal elaborada

pelo poder legislativo. Por exemplo: o conselho consultivo é responsável pelo

tombamento; como a lei não diz como ele deve funcionar, presume-se que ele

funcione, mas não diz como. Então, a portaria pode ser escrita por um regimento

interno e aprovado pelo conselho, um ato inferior, mas a lei abre espaço para isso. O

que não se pode fazer, e acaba-se fazendo no Brasil é o seguinte: primeiro, você tem

uma lei, depois você cria um decreto regulamentar repetindo a lei. Não precisa ficar

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repetindo o que está na lei; o que está na lei é básico. Você vê isso na consolidação

das leis da previdência social ou pelo menos o que era antigamente: você tinha a lei e

um regulamento que repetia tudo que a lei dizia, só acrescentava algumas coisas

estratégicas, que por um acaso não estavam previstas na lei e que, portanto, eram

ilegais. Você não pode inovar no regulamento, regulamento não inova. Regulamento

tem que se ater à lei.

Por outro lado, quais são os limites das diversas instâncias da administração

pública? Vamos dizer no aspecto do patrimônio cultural; é aquela questão da

competência concorrente e da competência comum, que foram colocadas aqui pela

Dra. Helita. Que existem conflitos, existem, sem dúvida. Agora, eu acho que, como o

dever maior constitucional é a preservação do patrimônio cultural, se um mesmo

imóvel tem tombamento federal, estadual e municipal, prevalece o tombamento que

tiver uma regra mais restritiva, mais protetiva. Não há uma hierarquia; não é a norma

federal que prevalece sobre a estadual, a estadual e esta sobre a municipal: cada uma

atua na sua esfera. E como fica a importância das atribuições do poder local ?

Fundamental, como se podem ver, nesses aspectos. Existe um entendimento no

CONDEPHAAT, de São Paulo, que eu também acho errado. Diz o seguinte: que o

IPHAN tomBa os bens de interesse federal, o CONDEPHAAT os bens de interesse

estaduaL e o Município, os bens de interesse municipal. Isso é uma bobagem, porque

aí você esta inovando em relação à Constituição. Neste caso, você pode fazer a

mesma analogia das portarias com a lei superior: a lei superior é a Constituição, uma

lei inferior não pode inovar. No caso, o CONDEPHAAT inovou por uma portaria:

esse é o entendimento que eles têm. Vamos dizer que eles coloquem na portaria que o

CONDEPHAAT só vai proteger os bens de interesse estadual. Agora, me diga uma

coisa: existe algum bem de interesse estadual, que não seja municipal ? Só interessa

ao Estado de São Paulo; o Estado de São Paulo faz parte do que? Não faz parte do

Brasil? A Constituição diz que tem patrimônio cultural federal, patrimônio cultural

estadual, patrimônio cultural municipal? Não diz, diz que tem um patrimônio cultural

brasileiro que é um todo, o resultado de todo o trabalho do povo brasileiro nas suas

diversas atividades, como bem colocou aqui o Dr. Caldarelli. Então, o

CONDEPHAAT não pode inovar nesse ponto, ele não pode dizer que o bem tem

valor, mas esse valor é só local. Então, eu me omito e o que acontece? O município

não tem tombamento, não tem nada, e o bem é perdido.

O que acontece, nesses casos, é que o judiciário de São Paulo tem feito um

trabalho muito bom, de declarar o bem preservado por via judicial, porque acontece

muita briga de Câmara com prefeito. O prefeito decide que quer preservar e o

CONDEPHAAT se omite; o Estado diz que aquilo é de interesse local, é bonito e tal,

mas é de interesse local. O prefeito é a favor, quer que desaproprie, a Câmara veta. Aí,

o que em geral acontece é que um vereador apresenta um projeto de lei e o prefeito

vai lá e veta. Aí, a Câmara vai lá e derruba o veto. Então fica naquela briga e, como se

diz: um cão com vários donos morre de fome. E ninguém se decide a preservar. O

Ministério Público fez isso em Ribeirão Preto: havia um imóvel chamado Hotel

Brasil, de importância para a cidade e, como ninguém se habilitava a preservá-lo e o

proprietário estava quase demolindo, o que ele fez? Entrou com uma ação civil

pública e pediu a preservação cautelar do imóvel. O juiz não concedeu a medida

liminar. Eu não estou recordando todo o andamento da ação, mas o que interessa é

que o Tribunal de Justiça decidiu que é possível tombamento por via judicial e anulou

a sentença do juiz, que dizia que o judiciário não pode tombar. O Tribunal questionou

essa sentença, dizendo que sim, pois cabe ao judiciário, como a todo o poder público,

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preservar o patrimônio cultural também. Então, na medida que existe também a ação

civil pública e que existe um dano, como ressaltou o Dr. Caldarelli, não visa a

Constituição o patrimônio cultural que é tombado, mas o patrimônio cultural citado

pelo Artigo 216. E a pretensão da população provou-se legítima, através de perícia de

técnicos, que confirmaram que o bem tinha valor cultural. Cabe ao juiz declarar o

valor judicial, na sentença judicial. Eu entendo que deve condenar a Prefeitura a

preservar o imóvel ou o Estado, se a Prefeitura não tiver condições e a União, se o

Estado não tiver condições de preservar, porque cabe aos três entes preservarem. No

Estado de São Paulo, o IPHAN só cuida lá das casas bandeiristas porque são as únicas

de interesse nacional; do século XIX, nada presta. No Estado de São Paulo, perdeu-se

tudo por omissão do IPHAN: Vitor Dubugras, não existe mais nada; Ekman, sobrou

só o prédio da FAU, provavelmente porque o CONDEPHAAT tombou. Eu me

pergunto, por exemplo: por que o IPHAN tomba o Teatro Municipal do Estado do Rio

e não tomba o de São Paulo? Porque o Teatro Municipal do Rio é de interesse

nacional e o de São Paulo não é, e o de Goiânia? Se o do Rio de Janeiro é de interesse

nacional, também é o de Jundiaí, o de Goiânia, o de Cuiabá, o de São Paulo, o de

todos. É de interesse de todo o Brasil que se tenha teatro e teatro antigos de valor

arquitetônico. O IPHAN parece o que diziam de D. Pedro II, que só cuidava do Rio de

Janeiro. Diziam que os prédios da avenida Rio Branco eram ecléticos, bolos de noiva,

e de repente decidiram tombar os que sobraram. Na avenida Paulista, não houve

nenhuma mobilização desse tipo, porque só é São Paulo, é província. O Rio Janeiro

não é mais a Capital do país, quer queiram ou não queiram. Muito obrigado.

José Luiz de Morais - Por favor, o Carlos parece que quer completar alguma coisa.

Carlos Caldarelli - Eu quero somente chamar a atenção para o seguinte: antes da

Constituição de 88, de fato, o tombamento tinha uma importância fundamental porque

ele era o único critério para se incluir um determinado bem no patrimônio histórico

artístico nacional. Hoje certamente não é mais assim. Hoje, entende-se que o valor de

um bem, o valor histórico, artístico, etc. de um bem, precede a sua declaração pela

autoridade administrativa. São muitos os julgados nesse sentido, mandando que se

tomem outras medidas, que não o tombamento, com o fito de preservar o bem, que se

reconhece pertencer ao patrimônio cultural brasileiro, não por ter sido tombado, mas

pelo seu valor intrínseco.

José Luiz de Morais - Dra. Lylian Coltrinari, da USP.

Lylian Coltrinari - Também congratulo os membros da mesa, e peço licença para

fazer algumas considerações e pedir esclarecimentos sobre aquilo que a lei atual ou,

digamos, os dispositivos legais atuais, incluem.

Começarei fazendo uma pequena correção ao Dr. José Eduardo, e dizendo

que granito não é fóssil. Granito é uma rocha formada dentro da Terra; não é fóssil

porque não é formada por matéria viva que ficou soterrada, mas originou-se a partir

de processos internos. Ainda que a definição de fóssil corresponda a aquilo que é

retirado da terra, só é fóssil o que foi vivo -ou produzido por um ser vivo, como as

marcas que o homem, as plantas e os animais deixaram. O petróleo, sim, é de fato

fóssil.

Queria me remeter à primeira questão e chamar a atenção, talvez, para

questões semânticas ou epistemológicas. Por exemplo, as considerações sobre o

conteúdo paleontológico que se encontra nos depósitos. Os paleontólogos que me

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desculpem, mas sou geógrafa, trabalho com geologia do Quaternário, e algumas

questões precisam ser esclarecidas. Vou considerar em parte o que Carlos Caldarelli

falou, com base no que atualmente se conhece sobre os estágios mais recentes da

história da Terra e que, às vezes, não é conhecido por todos os que trabalham na

interface da arqueologia, da antropologia física ou áreas semelhantes. Quero chamar a

atenção para um tipo específico de fóssi; para a maioria das pessoas, paleontologia

diz respeito ao homem, aos grandes mamíferos, mas não consideram, por exemplo, os

nanofósseis dos fundos marinhos, dos fundos de lagos e rios; ou, menos ainda,

lembram dos grãos de pólen, que são microfósseis vegetais, da mesma maneira que os

nanofósseis dos crustáceos fizeram parte do mundo animal. Eles são muito

importantes, não do ponto de vista arqueológico, mas do ponto de vista da

reconstrução dos paleoambientes terrestres. Não fosse pelos nanofósseis marinhos,

hoje não teríamos uma idéia mais precisa das divisões do tempo geológico mais

recente, que é o Quaternário. Por isso, se o sentido da lei fosse estendido, os fundos

marinhos também deveriam ser preservados, já que eles são um bem -e aí uma

distinção, a micro paleontologia e a palinologia estudam objetos naturais; o grão de

pólen é parte de uma planta e o nanofóssil é a casca de um antigo animal marinho. A

partir do momento em que se reconhece que eles informam a respeito da história do

ambiente global, natural e humano, passam a ser parte do patrimônio cultural, ainda

que, essencialmente, sejam bens naturais. Essa é uma questão.

Eu queria levantar outra, do ponto de vista não da paleontologia mas das

marcas fósseis. Não estou a par do código dos geólogos, os códigos de preservação,

mas penso que pode ser aplicado -do ponto de vista da reconstrução paleoambiental, o

mesmo critério às marcas de ondas de mares antigos em antigas praias, da mesma

maneira que às paleodunas. Muitas delas foram contemporâneas dos dinossauros, por

exemplo, estão preservadas nas rochas do Mesozóico. Então elas também são bens e

fazem parte do patrimônio cultural ainda que sejam essencialmente bens naturais.

Minha pergunta é se não seria possível, em algum tipo de instrumento legal a ser

proposto, que se considera-se aquela lista que Carlos denunciou, simplesmente como

exemplo dos casos a serem considerados; que se pensasse na possibilidade, não de

incorporar todo o detalhamento, mas de fazer com que, quem elabora os instrumentos

legais, fosse assessorado por especialistas. A ciência está fazendo continuamente uma

renovação e uma rediscussão dos conteúdos anteriores; seria interessante que a

legislação tivesse condições de acompanhar, ainda que de longe, essas mudanças. É

claro que isso não seria detalhado no EIA/RIMA, mas seria um grande avanço se

fosse levado em consideração. Que aquilo que o instrumento legal mumifica não fique

mumificado na realidade da pesquisa científica, que a complexidade do ambiente

esteja presente no espírito das pessoas que trabalham nessa interface. Nesse sentido, é

só o que tenho a dizer.

José Luiz de Morais - Eliete Maximino, da PUC - Santos.

Eliete Maximino - Dr. Eduardo, o senhor me desculpe, mas apesar das suas

explicações, eu ainda tenho dúvidas. Eu tenho uma licença do IPHAN para trabalhar e

resgatar o material submerso; a Marinha diz que eu não posso, porque o material

pertence a ela. Então, como eu faço: cumpro a portaria do IPHAN, retiro o material e

faço o trabalho, ou espero a Marinha me dar essa autorização? E a Marinha ainda

afirma que o material deve ir diretamente a ela, não pode ficar na região onde,

atualmente, se encontra submerso. E outra coisa: a lei me obriga a informar à Marinha

o local onde está o material submerso; sou obrigada a isso por lei?

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José Eduardo Rodrigues- Em primeiro lugar, ninguém é obrigado a fazer ou deixar

de fazer nada, se não em virtude de lei. Em segundo lugar, quando eu falei da portaria,

eu disse que ela não era em si inconstitucional necessariamente, porque ela buscava

regulamentar um tipo de atuação. Agora, sem dúvida, a portaria tem uma fragilidade;

é difícil encontrar um fundamento para ela na Constituição. (...) Você judicialmente

poderia defender a tese de que os bens, como bens de valor cultural, pertencentes ao

patrimônio cultural brasileiro, devem estar sob fruição da comunidade, do povo, como

diz mais ou menos o artigo 216. Se a Marinha vai retirar os bens e levá-los para fora

da comunidade, para onde não podem ser fruídos, é óbvio, que está causando, ao meu

ver, um dano ambiental. Se é patrimônio cultural, é patrimônio cultural do povo, não é

só da Marinha. É uma coisa à qual tem de ser dado tratamento museológico, de

exposição mesmo. Então, eu acho que cabe uma ação civil pública, cabe através de

entidade de preservação do meio ambiente há um ano instalada ou através até do seu

sindicato de classe; não existe sindicato dos arqueólogos, mas deve ter alguma

associação que defenda os interesses dos arqueólogos, a qual teria legitimidade para

propor essa ação, ou o próprio Ministério Público, porque é o caso do direito da

pesquisa científica. Haveria a necessidade de se fazer uma perícia que justificasse o

motivo, porque o bem não passaria à propriedade da Marinha, passaria à propriedade

da União, mas propriedade da União para que? Para fazer o que com ele? Sem uma

finalidade, não se justifica, porque o que você encontrou está no mar. Então, eu acho

perfeitamente defensável, nesse sentido, a sua proteção. Mas você falou de um

parecer: existe um parecer da Marinha a respeito?

Eliete Maximino - Doutor Eduardo, tem um probleminha, o parecer só seria dado a

partir do momento em que nós determinássemos o local exato aonde está situado o

material submerso.

José Eduardo Rodrigues- Aí, você pode propor uma ação cautelar preventiva; não

digo você, mas o Ministério Público, porque a ação civil pública não é possível que

seja movida pelo indivíduo, só por associação, por sindicato, pelo Ministério Público,

e haveria uma medida cautelar para assegurar a atividade de pesquisa. Porque, mesmo

que eles venham com parecer, esse parecer tem que ser justificado, não é dizer: olha,

o bem tem valor excepcional, porque nós entendemos que o valor é excepcional e

então tem que tornar-se bem da União. Não é assim, tem outros elementos, além do

elemento histórico. Esse é um ato administrativo. Ele é discricionário, mas por ser

discricionário, tem de ser justificado. Então, se você encontrou uma peça que seja

vendida em qualquer lugar por aí e eles disserem que vão tomar a peça porque é

excepcional, cabe a você discutir isso, inclusive em perícia judicial, através de ação

judicial.

José Luiz de Morais - Chamo agora Maria José Nazaré, do Ministério Público do

Estado do Amazonas, que dirigiu uma questão ao Dr. José Eduardo.

Maria José Nazaré: Gostaria que vossa excelência avaliasse a questão da

competência para analisar a questão dos recursos arqueológicos. A Resolução

CONAMA 01/86 fala sempre em licenciamento pelo órgão estadual competente; o

IPHAN, por sua vez, por uma portaria, diz que o empreendedor deve requerer

autorização para executar a atividade arqueológica; na prática, como fica o

empreendimento licenciado pelo OEMA e não pelo IPHAN?

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José Eduardo Rodrigues - É o seguinte: o licenciamento ambiental não exclui os

outros; aliás, um bom licenciamento ambiental deveria condicionar a realização de

outros licenciamentos. No tempo em que eu era conselheiro do Consema, era muito

comum. Você recebia um projeto de loteamento, não estava claro, mas requeria

previamente um licenciamento do Município, porque um licenciamento não exclui um

outro. Um outro caso clássico que acho claro, é o inciso 60 do Artigo 2º, que fala em

extração de minérios, inclusive os da classe dois, definidos no Código de Mineração.

Quando se aprova um EIA/RIMA de extração de minério, não se está a excluir o

alvará do processo de mineração, que começa pela autorização de pesquisa, depois

tem análise do relatório pelo DNPM, depois a concessão do alvará. Então, esses

processos podem ser tocados simultaneamente. Inclusive, eu anulei uma autorização

judicial. Resumindo, um determinado minerador tinha um alvará e o proprietário,

dono de uma área de mata nativa, estava impedindo a entrada dele porque considerava

danoso ao meio ambiente, mas ele tinha uma autorização de pesquisa do DNPM e foi

concedida a liminar para ele entrar na fazenda. Então, essa liminar foi cassada, com a

justificativa de que não havia o licenciamento ambiental, quer dizer, havia o

licenciamento minerário mais não havia o licenciamento ambiental. Do mesmo modo,

também podeM acontecer situações em que há o licenciamento ambiental e não o

minerário e, do mesmo modo, o arqueológico. Então, são processos que devem ser

paralelos e que devem procurar se compatibilizar entre eles, dentro da competência

comum da Constituição. Se você tem uma área de mata nativa, por exemplo, o

IPHAN só pode conceder autorização de pesquisa arqueológica se causar o mínimo

dano ambiental possível e a posterior recomposição da área. Então, na prática, a

questão de como fica a situação do empreendimento licenciado pelo OEMA - Órgão

Estadual de Meio Ambiente e não pelo IPHAN: é necessário a licença deste último,

também. Uma licença não exclui a outra.

Maria José Nazaré - Então Dr. Eduardo pela sua ótica, embora o estudo prévio de

impacto ambiental seja entregue para o Órgão Estadual de Meio Ambiente e

contemple, dentre outros assuntos, o patrimônio arqueológico, isso não significa

necessariamente que estão satisfeitas as exigências do órgão federal e nem que a

licença concedida pelo órgão estadual tenha a concordância do órgão federal: é um

outro processo, que inclusive pode demandar um outro estudo prévio de impacto

ambiental, junto ao órgão federal.

José Eduardo Rodrigues- O loteamento está autorizado pelo Município, mas o

estado entende que é área de manancial e tem que preencher requisitos. Aí, você

apresenta o EIA/RIMA; uma coisa não exclui a outra. Agora, o que tem que haver é

uma compatibilidade. Por exemplo, um órgão municipal, ou estadual pode entender

que não cabe EIA/RIMA, mas pode haver um órgão de preservação que entenda que

cabe EIA/RIMA. Sendo razoável a exigência, tendo fundamento legal, não há como

se eximir. Também pode haver situações em que o município exclui arbitrariamente,

como acontece no município de São Paulo, onde ele exclui projetos de menos de

60.000m2 do estudo de impacto de vizinhança. como é chamado. Isso é

inconstitucional, porque não interessa o tamanho, e sim o dano. Se eu faço um

depósito de gás num bairro residencial de 10m3, eu causarei um impacto ambiental

terrível.

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Maria José Nazaré - Então você já me esclareceu, é uma questão específica . No

caso, pode ser requisitado um novo estudo prévio de impacto ambiental, um outro

licenciamento para a questão arqueológica. Obrigada.

José Luis de Morais - Solange, por favor.

Solange Caldarelli - Eu só queria fazer uma colocação em relação ao que o Dr. José

Eduardo disse antes: cuidado Essa questão de você estar preocupado com sua casa,

porque você pode ter um bem do século XVI ou XVII, um bem bandeirista embaixo

do assoalho, atenção! se você escavar mais um pouco, mais para baixo, é possível que

encontre remanescentes indígenas. Sítios indígenas também se encontram nas áreas

urbanas; aliás, estas cresceram sobre eles. Agora, pelo que entendo, de acordo com a

legislação, você não precisa permitir que ninguém pesquise o subsolo de sua casa,

mas você não pode destruir, você é obrigado a preservar o bem arqueológico que se

encontra enterrado debaixo de sua casa.

José Eduardo Rodrigues - Essa colocação que você fez veio reforçar ainda mais a

questão de que, mesmo em relação ao sítio arqueológico pré-histórico, quando se fala

em domínio da União, não se fala em domínio-propriedade da União, e sim que a

União vai exercer uma fiscalização sobre ele. Isto reforça ainda mais o que eu disse;

eu te agradeço.

José Luiz de Morais - Agora Ana Cláudia, do DID/IPHAN.

Ana Cláudia - Eu queria fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, quero discordar do

professor Caldarelli. Não entendemos que o que houve na Constituição tenha sido

uma simples mudança de nome: patrimônio cultural e patrimônio histórico, artístico,

arqueológico e tal não são apenas nomes, são conteúdos. Portanto, houve uma

abertura, houve uma democratização do conceito, no sentido de que não apenas o

patrimônio consagrado pelos governos, pelas elites, sejam considerados; nesse ponto,

concordando com que o Sr. falou, é um avanço, sim. Agora, quanto às formas de

acautelamento, eu discordo. Acho que toda lei depende de interpretação, como, aliás,

foi reafirmado por alguns membros da mesa. Acho que o Decreto 25, a Lei 3924,

enfim, toda a legislação é um grande guarda-chuva e, como você mesmo disse, é uma

utopia a gente poder caminhar até lá.

A outra coisa, ainda em relação à Constituição, à legislação e à ação do

Estado na área de preservação do patrimônio, é que, se a gente defende que a

Constituição não consagra mais o termo Nação, e sim União, de Estados, Municípios

e Distrito Federal, afirma-se, em todos os documentos oficiais do Ministério da

Cultura, que não se tem uma identidade nacional, mas uma identidade de culturas que

são particulares. Já se admite isso, se coloca em documentos oficiais; não é possível

que se admita que o patrimônio nacional una tudo, que patrimônio local seja

patrimônio nacional. Sobre isso, de fato, o IPHAN não tem um critério claro.

Nós também temos grandes discussões internas. Por que é que o conselho do

IPHAN tombou isso e não tombou aquilo, que está esperando há mais tempo. Mas o

critério do que é representativo, do que é testemunho de uma história de construção da

sociedade brasileira, é diferente, sim, do que é representativo da história da sociedade

de um determinado município, de uma determinada região, de um determinado

estado. Portanto, é perfeitamente factível que tenha tombamento em nível local, em

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nível estadual e em nível federal, considerando que, assim, o estado nada mais faz do

que reconhecer a importância que a sociedade dá a esses bens em alguns momentos.

Porque quem propõe o tombamento não são os técnicos do IPHAN, mas pessoas da

sociedade, e, no caso, aplica-se sempre a legislação mais restritiva das três, quando se

tem os três tombamentos. Eu gostaria, não sei se todos conhecem, de recomendar o

livro “O Estado na Preservação de Bens Culturais”, de Sônia Rabello de Castro,

editado pela Renovar em 91, onde ela faz um estudo de toda a legislação disponível,

inclusive a Constituição de 88.

Carlos Caldarelli - Essas são questões apenas aparentemente polêmicas.

O que devemos ter presente para enfrentá-las são as regras da Lei de Introdução ao

Código Civil. Por elas, a revogação se dá tanto explícita quanto implicitamente e não

se pode considerar que uma norma só revoga outra quando diz textualmente isso.

O que a Constituição derrogou do DL 25, o que nesta última norma é incompatível

com ela, é o ranço autoritário de fazer a pertinência de um bem ao patrimônio cultural

depender do seu tombamento pela autoridade administrativa.

José Eduardo Rodrigues - Eu, como advogado, diria que a sociologia é ramo do

Direito e uma ciência social. O patrimônio seria do Direito, seria um patrimônio

jurídico da nação brasileira. Então, não tem finalidade essa discussão. Agora, com

relação ao patrimônio cultural, aí eu descordo completamente da colocação de que

existem patrimônios culturais que correspondem à nação, etc. Sou adepto do que diz

Tolstoi nos dois últimos capítulos da “Guerra e Paz”: a História é feita pelas massas;

essa é a minha opinião. Então, não tem sentido dizer que o Teatro Municipal do Rio

de Janeiro é mais importante para a formação da nação brasileira do que o Teatro

Municipal de Goiânia.

José Luiz de Morais - Professor Eurico Miller.

Eurico Miller - O que me preocupa profundamente é aquela grande massa de sítios

arqueológicos, lá no meio da Amazônia, que não estão facilmente ao alcance da

justiça, como as áreas urbanizadas, mas que estão nas mãos daqueles distritos, nem

estados, nem municípios de fins de linhas, como, por exemplo, um exemplo gritante:

Rondônia, que em poucos decênios tem dois milhões de agricultores em cima de

sítios, inocentemente destruindo o patrimônio cultural. Eu tenho feito trabalhos desde

a América do Norte até o sul da América do Sul, em lugares que agora são desertos,

que agora são pantanais e que há poucos milênios atrás possuíam aspecto

biogeográfico diverso. A evolução do homem é de predador para produtor; alguns

ainda se encontram no estágio de predadores e aí esse conceito de história e pré-

história se complica; por exemplo, no litoral do Brasil, o Uru-Eu-Wau-Wau ainda é

pré-história; então, tem muita coisa para discutir. O homem como predador

permaneceu em pequenos bandos nos últimos cinco milhões de anos, perambulando

pelo planeta. Pelos dados que a gente conseguiu aqui no Brasil, que não pode se

excluir do resto da Amércia do Sul, porque cultura não tem fronteira política e tem as

migrações, difusões, o homem, como nômade e predador, vai até cerca de seis mil

anos atrás, quando começam a surgir alguns produtores. Aceitando que o Brasil já era

todo ele ocupado há doze mil anos atrás, nós temos sete, oito mil anos de nômades

fazendo pequenos sítios por todo o território e, como está sendo comprovado agora,

também na Amazônia. O problema é que lá na Amazônia o avanço é muito mais lento

que nas áreas urbanizadas que nós estamos discutindo. A lei, nessas últimas,

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rapidamente pode tomar uma atitude, salvar pelo menos uma parte, mas aqueles não

estão ao alcance da lei. Tem tradições que a gente conhece na Amazônia

representadas apenas por um sítio arqueológico. Como é que ficam, então, esses

sítios arqueológicos, que são 60% do território nacional ou muito mais; tirando as

áreas urbanizadas que estão relativamente protegidas pela legislação, como é que

ficam os demais, perante a proteção efetiva? Como disse um participante, há poucos

dias, em quinze anos não teremos mais nada. Uma hipótese: haveria um mecanismo

para fazer com que os prefeitos de cada município, lá no fundo de Rondônia,

Roraima, Acre tivessem alguma responsabilidade?

Carlos Caldarelli - Eu queria oferecer, ao Sr. e à nossa colega de simpósio que

acabou de se retirar, uma resposta breve: Todos nós aqui presentes somos antes de

qualquer coisa advogados. Assim, a nossa perspectiva é sempre buscar a melhor

maneira de defender o direito ameaçado de lesão.

O problema que o Sr. está colocando, assim como a questão da nossa colega de

simpósio que se retirou, levam ao mesmo questionamento: Qual a melhor maneira de

ler essas leis todas, no sentido de proteger o patrimônio cultural brasileiro? A única

resposta para essa questão é dada pelo direito de ação...

Eurico Miller - Só um aparte: nós temos órgãos ministeriais, como a SUDAM, que

tem claros fins econômicos, suspeitos, ligados a grandes fazendeiros. Massacraram

dezenas de aldeias Nambiquara no rio Guaporé. E daí vem aqueles fazendeiros, com

moto serra e devastam tudo, 100Km de sítios arqueológicos; quando a lei chegar lá,

não haverá mais nada.

Carlos Caldarelli - Sem interromper, e já interrompendo, o instrumento que é posto,

hoje, à nossa disposição é o processo judicial e o processo judicial depende da nossa

iniciativa. Ele não atua sozinho, ele só funciona com a nossa provocação. Então, o que

eu aconselho a todos os que querem ver direitos efetivados é sempre estar vigilantes e

recorrer a esses instrumentos, porque isso é um direito que nos assiste a todos,

enquanto cidadãos brasileiros.

Helita Custódio - A pergunta é tão importante; a preocupação do Sr. é tão relevante:

nós temos que orientar, e muito, as entidades da federação. Eu gostaria dizer ao Sr. da

importância de um município bem orientado. Se nós não partirmos do município para

fazer um levantamento de seu território, para verificar todos os bens culturais, com a

colaboração ao Estado, que fará no seu território estadual, como a própria União, sem

esse trabalho harmônico nós não podemos fazer nada. Então, eu gostaria que o Sr.

pedisse à Dra. Solange uma cópia do trabalho sobre os municípios que nós

apresentamos, porque eu sou da área do município e é uma preocupação profunda

minha o que o município pode fazer, se nós orientarmos bem. Ele é que tem a

competência direta.

Eurico Miller - Os Municípios têm muita conotação política, que varia de 04 em 04

anos, o que é um perigo. Um grupo durante 04 anos cumpre de boa vontade a lei; o

seguinte não cumpre.

Suzanna Sampaio - Mas é uma questão de orientação, com responsabilidade, no

sentido de preservar os sítios. É um negócio de orientação, educação.

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Eurico Miller - Se o que eles querem é se manter no poder, daí o que manda é a

relação social do proprietário com o pretendente ao poder.

Suzanna Sampaio - Esse é o problema da educação ambiental. Se se tem

conscientização daquilo que se tem de fazer, isso será feito. Por isso é que eu me bato

sempre. Sem a educação ambiental em todos os níveis de governo, em todos os níveis

da sociedade, nós não vamos preservar. Isso é um problema nosso, por isso nós

estamos aqui tentando fazer isso: a conscientização nossa já é uma conscientização

que leva para o outros, não só para as pessoas físicas mas para as pessoas jurídicas. É

um desafio.

José Luiz de Morais - Bem, eu acho que está esgotado o tempo das discussões.

Passo, então, para a Solange encerrar.

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ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE

POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL

Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e

a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil

DOCUMENTO - SÍNTESE

“Tendo em vista o consenso de que a base de recursos arqueológicos

do país é finita e não renovável; constitui legado das gerações pretéritas às

gerações futuras, não sendo lícito impedir-se sua transmissão aos seus legítimos

herdeiros; para assegurar que estes não sejam lesados em seus direitos, o

Simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural”,

realizado em Goiânia, de 09 a 12 de dezembro de 1996, faz as seguintes

recomendações, no que concerne ao trato da questão arqueológica nos projetos

mencionados na Resolução CONAMA nº 001/86:

1. As pesquisas arqueológicas devem necessariamente ser implementadas

desde a fase dos estudos de inventário de empreendimentos potencialmente

geradores de impacto ambiental, uma vez que o objeto de estudo da

arqueologia não é facilmente identificável, encontrando-se na maioria das

vezes no subsolo e requerendo estratégias de longo prazo para a sua

identificação e avaliação.

2. Nos estudos de viabilidade ambiental e nos diagnósticos previstos nos

EIA/RIMA, deve ser sempre avaliado o potencial arqueológico de todas as

alternativas de estudo, com base em fontes secundárias e primárias.

3. Para avaliação dos impactos, deve ser sempre fornecido aos arqueólogos

documento detalhado sobre os procedimentos tecnológicos próprios do

empreendimento em estudo, para identificação dos fatores geradores de

impacto e avaliação de sua magnitude.

4. Uma vez escolhida a alternativa a ser implementada, durante o PBA (Plano

Básico Ambiental), recomenda-se levantamento arqueológico intensivo, com

intervenção no subsolo, para detalhamento adequado dos programas

propostos no EIA. Ao final do levantamento, os programas formulados ao

final do EIA poderão sofrer revisão e acréscimos, devendo a concessão da LI

(Licença de Instalação) estar condicionada ao compromisso do

empreendedor com a sua execução.

5. Os programas de mitigação, compensação e monitoramento dos impactos

arqueológicos devem considerar os estudos anteriomente realizados,

obedecer a critérios científicos e compreender, além das pesquisas de campo,

as análises de laboratório, a curadoria do material e a publicação dos

resultados.

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6. Em todas as fases dos estudos ambientais atrás mencionados, as pesquisas

arqueológicas devem estar previstas nos termos de referência

correspondentes.

7. Em todas as fases acima, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional - IPHAN deve ser ouvido, com relação à necessidade de concessão

de autorização prévia de pesquisa. Havendo necessidade dessa concessão, o

órgão deverá emitir a portaria de autorização em prazos compatíveis com o

cronograma dos estudos.

8. Todos os resultados dos estudos realizados nas fases acima mencionadas,

mesmo aqueles baseados em fontes secundárias, devem ser encaminhados ao

IPHAN, para conhecimento.

9. Embora todos os resultados dos estudos arqueológicos realizados possam ser

utilizados pelo contratante, o direito autoral é do pesquisador responsável.”

Goiânia, 12 de dezembro de 1996

Universidade Católica de Goiás

Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia

FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA