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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA Maria de Lourdes Sirgado Ganho O essencial sobre FRANCISCO DE HOLANDA

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

Maria de LourdesSirgado Ganho

O essencial sobre

FRANCISCO DE HOLANDA

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INTRODUÇÃO

Traçar o perfil biográfico de um autor renascen-tista, quando não existem livros de assentos para taisfactos, acaba por implicar proceder a uma pesquisade modo indirecto. Contudo, à boa maneira renascen-tista, o culto da personalidade começa a emergir e,por isso mesmo, Francisco de Holanda fala de si nasua obra. É por esta razão que podemos apontar da-dos biográficos, enquanto artista, ficando o homemno seu quotidiano silenciado, embora alguns traçosdo seu carácter também possam ser apontados.

Quanto à sua obra, pictórica e literária, far-lhe--emos uma referência própria, embora tenhamos dereconhecer que é a obra Da Pintura Antiga que maisnos interessa analisar e que, ao mesmo tempo, emergecomo a mais relevante na economia da sua produ-ção literária e artística.

Como refere Jorge Segurado, «estamos perante oprincipal artista da nossa Renascença» (Imagens dasIdades do Mundo, p. 19). Nas palavras de André deResende, estamos perante o Apeles Lusitano.

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CAPÍTULO I

VIDA

Nasceu na cidade de Lisboa, conforme refere naobra Da Pintura Antiga, tendo provavelmente nasci-do em 1517 ou 1518, portanto, no reinado de D. Ma-nuel I. Faleceu também em Lisboa, em 1584. Filhode António d’Ollanda, iluminista, desenhador, retra-tista, de origem holandesa. Seu pai terá nascido cercade 1480 e falecido por volta de 1557. Artista ligadoà corte portuguesa, a sua profissão exerceu clarainfluência na futura orientação deste seu filho, que,desde muito novo, mostrou clara propensão para aarte da pintura.

De facto, o artista frequentou a escola de seu pai,sendo este um período de aprendizagem fundamen-tal, conforme ele próprio reconhece no prólogo deDa Pintura Antiga: «E muito grandes e infinitasgraças dou eu primeiro ao Summo Mestre e imor-tal, e depois as dou a meu pai […] de me não des-viar minha própria índole natural, e me deixou se-

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guir a arte da Sabedoria a mi mais segura e exce-lente de quantas há n’este grão mundo» (PA, p. 8,ed. INCM). Seu pai, instalado em Évora, na alturapólo cultural e onde residia a corte portuguesa, deu--lhe a formação necessária para se iniciar nas artesfigurativas. Além disso, estudou Humanidades. Du-rante alguns anos e até 1537, Évora foi a capitalcultural de Portugal e centro onde os mais diferen-tes artistas trabalhavam, bem como homens de le-tras. Nesta cidade, certamente, contactou com osmais eminentes humanistas que aí residiam, tendosido amigo e discípulo de André de Resende, Mi-guel da Silva e Nicolau Clenardo. Sabe-se que estu-dou línguas clássicas na Escola Pública de Letras, deque foi fundador André de Resende. Até aos 20 anostemos o seu período de aprendizagem e de certoamadurecimento, de contacto em Évora com anti-guidades, provenientes de ruínas romanas, e que lhepermite reconhecer que um aprofundamento do seusaber só é possível se se deslocar a Roma, o grandecentro cultural da Europa culta de então, no que àarte diz respeito. O seu gosto pelas novas concep-ções de arte, o seu entusiasmo de jovem promissornas artes, levam a que seja apelidado de LusitanusApelles, conforme já foi mencionado. D. João III,

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em Évora, é nesta altura claramente favorável àcultura humanística, que apenas será travada quandoem 1555 entrega à Companhia de Jesus o ensino.

Com 20 anos dá-se o facto fundamental da vidade Francisco de Holanda como artista: obtém umabolsa a fim de se dirigir a Roma e contactar comos grandes vultos da arte renascentista. Mas quan-do vai para Itália é já um pintor claramente vocacio-nado para a arte, ansioso por se encontrar com osgrandes mestres do seu tempo, com os grandes mo-numentos da antiguidade e com as maiores referên-cias da arte sua contemporânea.

Esta viagem, por ele tão ansiosamente esperada,e que teve a duração de três anos (1537-1540) é ummarco central na sua vida, como ele mesmo men-ciona no agradecimento que faz a D. João III, noprólogo de Da Pintura Antiga: «E a Vós, muitoGlorioso e Augusto Rei e Senhor, dou eu outrastantas graças pola ajuda que ategora me tem dado(mandandome ir ver Itália) em bens que, inda quandose a náu alagasse, e a cidade saqueada steuesse ar-dendo, eu posso sem empedimento de carga leue-mente comigo trazer a nado […] porque dizem queo saber é só de todos o que em nenhuma alheapatria é strangeiro» (p. 9).

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Destinava-se esta viagem, segundo Jorge Segu-rado, a corresponder ao desejo do rei D. João III,de o jovem artista se instruir em arquitectura e «ad-quirir técnica segura para construir castelos e forta-lezas à maneira italiana, tendo em vista, sobretudo,a defesa e a soberania do património de além-mar.Apurámos e não resta dúvida, que a Arquitectura daRenascença italiana foi o alvo principal da viagem,o qual foi de facto atingido com êxito» (IM, p. 30).O itinerário da viagem é descrito, no último diálogode Da Pintura Antiga, pondo em evidência as cida-des e os lugares por onde passou à ida. Sem querer-mos ser exaustivos, enunciamos alguns: Santarém,Valhadolide, Lérida, Barcelona, Salces, Narbona, Ni-mes, Avinhão, Fréjus, Antibes, Mónaco, Nice, Gé-nova, Pisa, Florença, Siena, Roma. Deste itinerárioregistou em desenho muitos dos lugares que visitou,num livro para tal efeito: «que fortaleza, […] nãotenho eu ainda no meu livro?» (1.o diálogo de Roma).Claro que se está a referir ao conjunto de desenhosque deram origem ao seu Álbum de Antigualhas. Che-gado a Roma, no Verão de 1538, recomendado pelorei português, teve acesso à casa papal (cf. 1.o diálo-go de Roma). Esta sua ida para Roma tinha a inten-ção declarada, na sua qualidade de artista, de contac-

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tar com os novos paradigmas artísticos, imbuir-sedesse novo espírito a fim de no regresso a Portugalos pôr em prática. Era, simultaneamente, uma mis-são e uma devoção. Na Páscoa de 1539, em Roma,recebe a comunhão das mãos do Papa, facto quemuito o emocionou. O seu grande fascínio por estagrande metrópole tinha uma componente artística eoutra claramente religiosa. Mas durante esta sua es-tada deslocou-se a outros lugares, quer do sul querdo centro da Itália, mais uma vez desenhando, noslugares por onde passava, aquilo que consideravamais significativo e digno de reter. Podemos apre-ciar o seu critério no Álbum dos Desenhos das An-tigualhas. De facto, viajou até Tivoli, Nápoles, Bar-letta, no Sul de Roma, Orvieto, Spoleto, Ancona,Pesaro, na região centro, Veneza, Ferrara, Pádua,Bolonha, Milão e Pavia, na região norte.

De regresso a Lisboa, a data actual está calculadaentre o final de 1541 e o início de 1542, segundoJorge Segurado, vem pelo Norte de Itália, passandoa Turim, Toulouse, Nîmes, Bayona, San Sebastien.

Se quando partiu de Portugal para o Lácio Fran-cisco de Holanda já tinha em mente adquirir umasólida formação no contacto com os novos paradig-mas artísticos da sua época, quando regressou vi-

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nha embrenhado dessa atmosfera renascentista, des-ses fermentos, que fazem dele, sem dúvida, um dosseus representantes.

Após a chegada a Portugal, D. João III encarre-gou-o de algumas obras de natureza arquitectónica(cf. Felicidade Alves, Introdução ao Estudo da Obrade Francisco de Holanda, p. 187). Só mais tarderedige a sua obra-prima, de carácter literário, a DaPintura Antiga, cuja primeira parte terminou a 18de Fevereiro de 1548, enquanto a segunda parte foiacabada a 18 de Outubro do mesmo ano. O regres-so a Portugal assinala a emergência do artista e doliterato. Toda a sua actividade será a de um homemdo renascimento, com todo o peso que este termocarreia nesta altura.

Trabalha intensamente no período compreendido en-tre o seu regresso de Itália e a morte de D. João III,em 1557, tendo neste período viajado pelo País e mes-mo por Espanha. Com a morte súbita de D. João III,que era seu inequívo protector, a carreira de Fran-cisco de Holanda é afectada. Com efeito, é afastadoda corte e dos trabalhos de arquitecto de que estavaempossado.

Na obra Da Fábrica que Falece à Cidade de Lis-boa, de 1571, no prólogo, além de elogiar uma vez

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mais D. João III, como grande mecenas da arte,lembra a seu neto D. Sebastião que desde a mortedo seu avô que ele, Francisco de Holanda, deixoude poder servir o reino e deste modo colocar à suadisposição o seu saber. A mesma mágoa extravasa--a na obra Da Ciência do Desenho, dirigindo-se,uma vez mais, a D. Sebastião, a quem menciona, àmaneira de um desabafo triste, que sente que o seudom de artista é desprezado: «E por que razão mevenho antes fazer lavrador e viver no Monte comohomem inútil e que de nada serve neste tempo»(p. 19). Este monte de que fala tanto na Fábrica,como na Da Ciência do Desenho estaria a meio ca-minho entre Lisboa e Sintra, talvez no lugar de VendaNova. Em 1573 vivia em Lisboa, em Santa Clara,segundo referencia na obra Imagens das Idades doMundo.

Em 1572 escreve a Filipe II de Espanha e colo-ca-se à sua disposição para o servir, sem, no entan-to, ter tomado uma atitude de aprovação quanto àinvasão de Portugal. Entre os dois, o tratamento édistante e frio. Diz-nos Felicidade Alves: «Mas pa-rece-nos mais provável uma posição de retraimentoe muda rejeição da invasão. Filipe II não perseguiuFrancisco d’Holanda. Mas parece tratá-lo com dis-

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tante frieza: não lhe confia qualquer cargo profissio-nal» (Introdução, p. 210).

Terá falecido a 19 de Junho de 1584, com 66 ou67 anos, de acordo com uma carta de Filipe II àviúva do artista, Luísa da Cunha Siqueira, de 9 deAgosto de 1584. A sua obra, quer literária, quer plás-tica, permanece praticamente silenciada até meadosdo século XVIII, início do século XIX. Contudo, aoanalisarmos a obra, no seu conjunto, verificamos quenos encontramos, sem sombra de dúvida, perante umdos grandes vultos do Renascimento português.

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CAPÍTULO II

O RENASCIMENTO ITALIANO

A fim de melhor compreender o renascentismo deFrancisco de Holanda, é necessário, em nosso en-tender, fazer uma alusão ao Renascimento italiano, deque tanto se alimentou, espiritualmente, o nosso ar-tista. Assim sendo, quando nos referimos ao Renas-cimento, mencionamos um determinado momento dahistória do Ocidente que se situa entre 1300/1350 e1600, período que, do ponto de vista cronológico,assinala o final da Idade Média e o início da IdadeModerna. Contudo, 1453, data da queda de Cons-tantinopla, marca convencionalmente o final de umaépoca e o início de outra. O Renascimento reconhe-ce-se e afirma-se como uma atitude global de opo-sição, não propriamente à Idade Média em geral, massobretudo em relação à Escolástica: «ele é, antes detudo, uma manifestação de cultura, uma concepçãoda vida e da realidade que impregna as artes, asletras, as ciências, os costumes» (Eugenio Garin,

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O Renascimento, p. 14). Esta oposição chega mes-mo a ser perspectivada como ruptura com a Esco-lástica, com as suas autoridades, com o método dadisputa, bem como com o modo como Aristótelesera interpretado. Encontramo-nos perante um fenó-meno total e que se estende a todas as esferas daacção humana: cultura, filosofia, aspectos económi-co-sociais, bem como institucionais, políticos e artís-ticos. Confrontamo-nos com uma diferente maneirade estar no mundo, com um outro posicionamentodo homem, quer do ponto de vista da sua actuaçãono quotidiano, quer mesmo a nível de novas visõesdo mundo, sistematizadas, teorizadas. Esta nova ati-tude é a de rinascita, ou seja, de renascer, e invadeos diferentes domínios do agir. Arte, ciência, moral,religião, configuram uma outra visão do mundo, di-ferente e em oposição à medieval. Assiste-se a umaoutra dinâmica na acção e no pensar.

A origem deste movimento de rinascita podemosreconduzi-lo a Itália, que foi, sem dúvida, o seuberço, adquirindo, no seu momento genesíaco, naToscânia, a sua coloração mais intensa, estendendo--se em seguida a Roma. Diz-nos Eugenio Garin: «foiem Itália que o movimento teve o seu ponto de par-tida mais fogoso e dois temas o caracterizam: o re-

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gresso ao mundo antigo e ao saber clássico: a pro-clamação de que uma época da história humana,a época medieval, estava terminada» (p. 15). Mas,então, estamos perante o renascer de quê? Funda-mentalmente daquilo que é clássico, ou antigo, poroposição ao velho, ou seja, ao medieval-escolástico.Os representantes desta nova atitude sentiam des-prezo por tudo o que era medieval e, nesse sentido,operavam conscientemente uma ruptura com o pas-sado próximo. E, no entanto, o movimento renas-centista está mais ligado e depende mais da IdadeMédia do que estes homens podiam supor. A estepropósito, a obra de Eugenio Garin Medioevo eRinascimento vem precisamente chamar a atençãopara este aspecto. Mas, não há dúvida, uma novaatitude se desenhava e definia: na arte, medicina,ciência, filosofia e política. E esta nova atitude pro-curava na antiguidade clássica, grega e romana so-bretudo, os modelos para imitar. Dá-se pois um re-torno ao antigo, ao clássico, mas inevitavelmentenuma interpretação diferente, ou seja, numa reinter-pretação. Este retorno ao antigo como paradigma aseguir é um autêntico renascer, que permite abrirnovos horizontes. Este é, também, o momento dasdescobertas geográficas, do emergir de uma nova

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concepção de natureza, do aparecer da ciência ex-perimental, da difusão rápida da cultura devido àinvenção da imprensa, tão importante e decisiva parauma melhor disseminação do saber em geral. O Re-nascimento adquire diferentes colorações segundo omomento epocal e geográfico. Nele emergem gran-des personalidades, diferentes entre si, de tal modoque não é possível considerar que haja uma querepresente esta época tão cheia de contradições e denovidades.

Francisco de Holanda é, precisamente, conside-rado um italianizante, na medida em que foi influen-ciado por esta matriz italiana. Mas há que ter emconsideração diferenças. O século XIV, cujas figurascimeiras são Dante, Petrarca, Coluccio Salutati, aindaestá perto do medieval, mas já anuncia o moderno.O século XV, com Lorenzo Valla, Leonardo Bruni,Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola, Ma-saccio, Verrocchio, Leonardo da Vinci, incarna, deum modo muito claro, este momento aúreo do idealda rinascita. O século XVI, no qual vive e age Fran-cisco de Holanda, recebe a herança precedente ecom Miguel Ângelo, por exemplo, no domínio daarte, avança já para o maneirismo, que de um modo

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ténue anuncia, e que irá influenciar o nosso artista,quanto ao tema das liberalidades que o artista deveter para criar.

Este renascer do que é antigo é protagonizado poraqueles que de si próprios dizem serem «estudiososde humanidades» e que cultivavam o saber numaatitude muitas vezes enciclopédica. Estes humanis-tas, como Marsilio Ficino ou Giovanni Pico dellaMirandola, encontram estímulo e apoio na chegadaa Itália dos eruditos gregos, os chamados filósofosbizantinos, a maior parte deles platónicos e que, coma queda do Império Romano do Oriente, eram aco-lhidos em Itália, trazendo consigo a cultura grega edando um contributo decisivo para a mudança deatitude. Destes eruditos gregos destaca-se a figurade Jorge Gemisto, chamado Pléton, por semelhançacom o nome de Platão, que muito admirava, sendoao mesmo tempo um antiaristotélico declarado. Comestes pensadores bizantinos dá-se um autêntico re-torno de Platão, um Platão diferente daquele que eraconhecido na Idade Média. O conhecimento da suaobra no original, e, praticamente, na íntegra, permiteque este momento seja profundamente platónico,marcando, nesse sentido, todas as áreas do saber,mas de conciliação com Aristóteles. Portanto, há que

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ressalvar: critica-se o Aristóteles escolástico, mas oEstagirita nunca é afastado. Marsilio Ficino tipificaa atitude renascentista, pois, sendo sem dúvida umhumanista de raiz platónica, tradutor de Platão e dePlotino, apresenta-nos uma filosofia platónica deconciliação com Aristóteles. O mesmo acontecequanto ao domínio da arte.

Nesta época de transição e de instabilidade dedoutrinas e mesmo nas instituições, surgem os es-píritos inquietos, as curiosidades relativas ao ocul-tismo, alquimia, magia, astrologia. Como nos dizEugenio Garin, esta é uma época, simultaneamente,magnífica e trágica. Os astros, a astrologia, assu-mem para alguns uma grande importância. MarsilioFicino, filósofo, médico e teólogo, é um dos que,verdadeiramente, não consegue fugir a essa ideia defatum, de destino, sendo este que o determinou aser filósofo e não médico, como seu pai queria, aindaque tivesse obtido o grau de médico. A MarsilioFicino, devido à influência, ainda que indirecta, queexerceu sobre a arte, dedicamos o capítulo seguinte.Mas, nessa divergência própria da época, GiovanniPico della Mirandola, na mesma altura e no mesmoespaço geográfico, opunha-se a uma tal teoria, quevia nos astros a possibilidade de determinarem o

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destino do homem. Pico, ansioso por salvaguardara liberdade e a dignidade humana por ela afirmada ereconhecida, opõe-se precisamente a esta tese. Es-tamos perante as aporias da multiplicidade, que tãobem caracterizam este momento da história do Oci-dente. Há nesta época uma diversidade, uma riquezaque se traduz exteriormente num esplendor. Estes ho-mens, humanistas, cunharam a expressão studia hu-manitatis (estudo de humanidades) para a aplicar aosseus estudos que promoviam uma nova atitude cultu-ral assente numa outra mentalidade, ao mesmo tempoque reconheciam nos antigos, ou clássicos, o apoionecessário a fim de levarem para a frente o novoespírito. Refere Eugenio Garin: «Os studia humani-tatis transformam as escolas de gramática em es-colas de verdadeira formação humana» (O Renasci-mento, pp. 29-30). A defesa da poesia, nesta época,centra-se, sem sombra de dúvida, na valorização dosantigos e recusa dos escolásticos. Mas, simultanea-mente, assiste-se a uma expansão da cultura laicanos domínios da literatura, historiografia, pensamentomoral. E este dado tem inequívoco impacto sobre aarte.

A laicização da cultura, que promove um diferen-te olhar sobre a realidade, não significa falta de re-

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ligiosidade, não estamos perante um período de re-jeição do dado religioso, bem pelo contrário, mas osaber, neste momento, não está sediado apenas nasinstituições eclesiásticas ou a elas estreitamente liga-das. Ele encontra abrigo nas Academias, criadassobre o paradigma das academias platónica e peri-patética. As grandes problemáticas, que ocupam epreocupam estes homens, podem ser reconduzidas,na interpretação de Paul Oskar Kristeller, a três, asaber, problema de Deus, da liberdade humana e daimortalidade da alma. Mas, se a filosofia dá contadestas questões, não é menos verdade que tambéma arte as manifesta muito claramente. O Renascimen-to é platónico e os seus representantes insistem naharmonia entre religião e filosofia. Ora, esta atmos-fera também era representada na arte. Pensemos, porexemplo, e para mencionar um artista tanto do agra-do de Francisco de Holanda, em Miguel Ângelo, oqual na pintura da Capela Sistina mostra como oproblema de Deus é uma referência constante, te-nhamos presente o seu Juízo Final, ligado ao pro-blema da morte e da imortalidade, pensemos na ino-vação que introduz e que tem a ver com uma novaatitude que pressupõe uma clara liberdade de cria-ção artística. Mas outros exemplos podemos trazer

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à colação: a matriz profundamente religiosa da artede Fra Angelico, as pinturas recorrentes do temabíblico da Anunciação, de que destacamos a de Leo-nardo da Vinci. De facto, verificamos que os artis-tas, na arquitectura, na estatuária, na pintura, se li-bertam dos cânones medievais, para se apoiarem nosparadigmas antigos e para criarem em função de umaliberdade de criação que reivindicam como sendoprópria do verdadeiro artista. A arte é saudada ecelebrada como forma superior de cultura. Diz-nosEugenio Garin: «Leonardo da Vinci e Miguel Ângelopronunciaram a mais alta palavra do Renascimento,mas além disso, eles continuam a mostrar o seusentido e o seu valor, melhor do que qualquer outroescrito de literato, de sábio, de filósofo» (O Renas-cimento, p. 186). Podemos, sem sombra de dúvida,afirmar que nunca até este momento a arte tinhasido celebrada como expressão maior do engenhohumano. Os artistas, ou melhor, os grandes artistase verdadeiros, na expresão de Francisco de Holan-da «os valentes pintores», são os grandes heróisdesta época. Nesse sentido, o contributo de Marsi-lio Ficino foi relevante na época e marcou, como ve-remos em seguida, o pensar artístico do seu tempo.

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CAPÍTULO III

A INFLUÊNCIA DE MARSILIO FICINO SOBRE A ARTE

Não há dúvida, e alguns estudos têm evidenciadoeste aspecto, que Marsilio Ficino influenciou, como seu neoplatonismo, a produção artística do seutempo, ainda que indirectamente, pois não se lheconhecem tematizações sobre a arte suficientemen-te esclarecedoras, ou mesmo referências a artistasseus contemporâneos. Contudo, na sua obra-prima,Teologia Platónica, bem como noutros escritos demenor envergadura, apresenta tematizações que, cir-culando na época, foram construindo uma atmosfe-ra própria e que podia, muito bem, ser aproveitadapelos próprios artistas, conscientes do seu estatutosocial muito elevado.

André Chastel, em 1954, redige uma obra intitula-da Marsile Ficin et l’Art, que iremos, em parte,seguir, conjuntamente com a Teologia Platónica, afim de mostrar que no seu pensamento estão apon-

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tados fundamentos, portanto, declarações de matrizmetafísica, que propiciaram certas afirmações e ati-tudes próprias dos artistas do Renascimento. A teseque este comentador defende, e a meu ver compropriedade, é a de que existe um parentesco entreo neoplatonismo do Renascimento e o ideário artís-tico, marcado claramente pela figura de Marsilio Fi-cino. Como nos diz Jean Wirth, no prefácio à ediçãoque usamos, aquilo a que os artistas do seu tempoforam sensíveis foi «ao paralelismo fortemente ex-presso por Ficino entre o Deus Criador e o artifex»(p. IV). Ideia que, como mostraremos, está bem pre-sente, enquanto tese metafísica, na obra Da PinturaAntiga de Francisco de Holanda. Mas, como refereAndré Chastel: «sob a veste do humanismo ou dafilosofia, a cultura platónica desenha os contornosde um novo universo artístico» (p. 57). De facto,na obra In Commentaria Platonis Proemium MarsilioFicino considera que a admirável ordem do mundo,ou seja, a estrutura do céu e a hierarquia dos seres,bem como a trama inteligível do real, supõem comoseu fundamento um artifex, ou um arquitecto subli-me. Diz-nos o filósofo na Teologia Platónica: «a inte-ligência atinge a causa prória da ordem quando des-cobre Deus artífice daquela» (TP, II, XIV, p. 243).

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De acordo com a sua obra-prima, Teologia Pla-tónica, a criação está organizada como um ser vivo,na qual nada é inútil e que pode ser comparada auma obra de arte. O universo deve ser consideradocomo uma primeira obra de arte e uma espécie dematriz originária de todas as obras de arte, que se-rão produzidas pelos verdadeiros artistas.

Precisamente por isso, André Chastel, ao temati-zar a questão da arte, na primeira parte do seu es-tudo, refere-se ao deus in terris, ou seja, ao homemartista universal. Assinale-se que há como que umatensão entre Deus, sumo artífice e sumo arquitec-to, e o verdadeiro artista que, mediante o furor, imitaeste atributo divino. Deus, como nos diz na Teolo-gia Platónica, é um perfeito compositor. Está, destemodo, consignado o princípio da harmonia, mas emque tudo está determinado segundo um princípio deordem (ordo) e de decência (decentia). E o homemvive no templo do grande arquitecto (cf. TP, II,XVIII, 3, p. 429). Como refere Chastel, esta é umametáfora que está presente não só na obra de Mar-silio Ficino, como também na de Leon Battista Al-berti. Veja-se, também, a referência de Giovanni Picodella Mirandola, no seu Discurso sobre a Dignidadedo Homem: «Já o Sumo pai, Deus arquitecto, tinha

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construído segundo leis de arcana sabedoria este lugardo mundo como nós vemos, augustíssimo templo dadivindade» (p. 51). Contudo, há que sublinhar, estaé uma tese essencialmente metafísica, e é nessesentido que Pico della Mirandola a usa, pois não háneste pensador uma preocupação em reflectir acer-ca da arte. Referimo-la para acentuar como a no-ção de Deus arquitecto e artífice da criação é umatese bem presente na época.

Mas, para aquele que é artista, esta tese permitea fundamentação da perfeição artística, pois estaúltima faz que se sinta, de um modo pungente, aobra divina. Desenha-se uma semelhança: do mesmomodo que o Criador está presente na obra da cria-ção, embora lhe seja transcendente, também o ar-tista, que é um criador, está presente nas suas obras.Nesse sentido, elas dizem do artista. Conforme re-fere Ficino, o Criador quis tornar a sua obra o maispossível semelhante a si. Ora, é muito claro, e Fran-cisco de Holanda também apresenta esta tese: o ar-tista imita este atributo divino, mediante a criação, aprodução artística.

Além disso, um outro fundamento de ordem me-tafísica vem iluminar esta questão, a saber: a novaconcepção de homem. Uma nova antropologia está

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delineada por autores como G. Manetti, GiovanniPico della Mirandola. O homem adquire um outroposicionamento frente a Deus, diferente do medie-val, sem deixar de ser religioso, mas que possibilitaa referência ao antropocentrismo renascentista. Ora,esta nova antropologia, que marca a reflexão filosó-fica, estende também a sua área de influência aodomínio da arte e do artista.

A compreensão do homem como um deus in ter-ris significa, sem dúvida, que o homem está à al-tura da criação divina, porque foi criado para a con-templar e amar, bem como também é o único sercapaz de captar o mecanismo e a harmonia desta.E, ao mesmo tempo, o homem, que é fautor do seudestino, pelo poder de decisão moral, pelo quererguiado pela razão, é também um criador, de si mes-mo, e da arte também. Citando, mais uma vez, An-dré Chastel, «a aderência profunda do homem àcriação, a esse prodigioso poder que cobre todos osaspectos do real: o artista, o engenheiro, o técnico,estão no centro desta relação dinâmica e funcionalque visa o completar da criação» (p. 68). Assimsendo, o homem não é apenas um contemplador,mas também intérprete, e como tal intervém, nestecaso, como artista universal. Ora, esta tese só é

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possível ser sustentada porque para Marsilio Ficinoa alma do homem é simétrica de Deus. De facto,afirma o filósofo na Teologia Platónica: «Revelar--se-á aos nossos olhos a maravilhosa grandeza daalma, de tal modo que não se contenta em imitarDeus nos modos que dissemos, mas chega a identi-ficar-se com Deus» (TP, II, XIV, 1, p. 199).

Assim sendo, como é que esta tese se repercutena produção artística? Diz-nos Chastel: «Verrochio,Leonardo, G. da Sangallo, Miguel Ângelo. A suaactividade, no domínio da engenharia, decoração econstrução, realiza aquilo que Ficino descreve comoo papel eminente do deus in terris: eles organizame completam o universo, ilustram concretamente aantropologia metafísica de Ficino» (p. 69). Ora, umatal concepção significa que existe nos artistas apotência criativa. Mas na base desta sua concepçãoestá um outro aspecto, a saber, o conhecimento queadquiriu da tradição hermética, dado que foi o tradu-tor da obra de Hermes Trimegisto. De facto, é estatradição — que mais tarde se revelou apócrifa, masque era tomada como fidedigna por estes pensado-res — que suporta esta valorização da arte, porquanto,segundo os textos de Hermes Trimegisto, um dosprivilégios do homem foi o de ter inventado as artes.

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E, no entanto, embora tenhamos de reconhecerque Marsilio Ficino marcou a arte do seu tempo, nãoo fez directamente, pois nunca a sua obra revelouinteresse por esta área do saber. Conforme refere P.Oskar Kristeller, a única obra de arte que descreveufoi um relógio mecânico de figuras, que se fabrica-va na zona do Reno, e que teve a oportunidade dever em Florença (cf. P. Oskar Kristeller, pp. 327 esegs.). Esse mecanismo, com os seus automatismos,era uma espécie de imagem, ou de metáfora técni-ca, relativamente à ordem cósmica, portanto, indi-cava o poder criador do homem à imagem do po-der criador de Deus. Mas, sem sombra de dúvida,Marsilio Ficino criou uma atmosfera de pensamentoque os artistas podiam, sem dificuldade, apadrinhar,tornar sua, a fim de explicitarem e justificarem o seupapel na sociedade. De certo modo, os grandes ar-tistas sentiam que eram diferentes dos artistas me-dievais, grandes figuras da época, mecenas, papas,reis, procuravam atraí-los às suas cortes, comomodo de afirmação da sua magnificência.

No que diz respeito à pintura e ao génio do artis-ta, também há na obra de Marsilio Ficino achegaspara determinados temas que vemos estarem pre-sentes nos artistas do Renascimento e de que Fran-

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cisco de Holanda se faz eco na obra Da Pintura An-tiga. Um outro tema desenvolvido por este pensador,que era também médico, e que nesse sentido o inte-ressava duplamente, era o da fisionomia, apresentandoa ideia de que o rosto humano é o espelho da alma.Há no seu pensar uma teoria da fisionomia onde oolhar e o sorrir são valorizados. Também Leon Bat-tista Alberti referiu na sua obra De re aedificatorisque «o olho é por natureza o órgão mais especial-mente amoroso do Belo». Miguel Ângelo, na linhade Ficino, dirá — a propósito da sua Pietà de SãoPedro, quando foi exposta e lhe perguntaram comoexplicava o facto de a Virgem Maria parecer maisnova que o filho morto nos braços — que as mu-lheres castas e puras não se corrompem. Franciscode Holanda é também sensível a esta problemáticaque tematiza.

De notar que existem outros aspectos, como, porexemplo, alguns símbolos usados e valorizados porFicino, que também respondem a algumas inquieta-ções dos artistas, a saber, os de Eros, Hermes e deSaturno. De uma ou outra forma convinham a to-dos aqueles que eram, verdadeiramente, criadores,permitindo apresentar uma imagem nova e estimu-lante do artista. Eros simboliza o princípio de inspi-

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ração, Hermes, o da visão alegórica, e Saturno, odo génio atormentado (cf. Chastel, p. 128). MiguelÂngelo, como veremos na Da Pintura Antiga, nasegunda parte, Diálogos de Roma, corresponde aeste último símbolo. E Francisco de Holanda umpouco também, pelo que deixa entrever na sua obraescrita.

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CAPÍTULO IV

O RENASCENTISMO DE FRANCISCO DE HOLANDA

O Renascimento, como vimos, ligado a uma ine-quívoca expansão e promoção da cultura, na diver-sidade das suas manifestações, cria uma espécie deatmosfera. A arte, enquanto manifestação superior decultura, deixa de ser considerada artesanal, para seguindar a uma nova dignidade. A sua promoção éconcomitante com o reconhecimento de que o ar-tista, como seu intérprete, ocupava na sociedade umpapel central, de tal modo que este era disputado porpapas, reis, mecenas. De facto, a obra de um gran-de artista dizia da magnificência daquele que era oseu protector. Nas cortes dos papas, reis e mece-nas, filósofos, políticos, artistas, conviviam e cria-vam uma atmosfera de cultura envolvente e quemuitas vezes se estendia a outros domínios da acti-vidade humana.

Francisco de Holanda, após o seu regresso deItália e da sua estada em Roma — na altura, o cen-

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tro de peregrinação artística, pois «entre o fim doQuattrocento e o princípio do Cinquecento, a primaziaartística passa sem contestação de Florença para Ro-ma» (Eugenio Garin, O Renascimento, p. 184) —,procura sensibilizar para esta nova realidade culturalemergente, mas que em Portugal não era devidamentevalorizada. A obra Da Pintura Antiga procura pro-mover esta nova atitude frente à arte e ao estatutodo artista, dizendo que aquilo que era privilegiado láfora era desprezado cá dentro. Por isso faz umadefesa do estatuto social do pintor como homem deexcepção.

No conjunto das suas obras literárias, que passa-remos a analisar, encontramos, precisamente, estachamada de atenção para a nova dignidade da artee do artista, para o seu papel activo na sociedade,bem como para a necessidade de criar em sintoniacom os novos paradigmas, próprios de uma épocadiferente da medieval e que celebra, já em cunhoindividualista, o homem e a sua dignidade. Umaanálise da obra, na sua totalidade, dar-nos-á a pos-sibilidade de compreender mais aprofundadamente oprojecto existencial e artístico do nosso autor.

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CAPÍTULO V

A OBRA

Tendo presente que Francisco de Holanda foi ar-tista mas que o seu conhecimento e importância seafirmaram sobretudo através do contacto com a suaobra literária de reflexão sobre a arte, iremos apre-sentar as principais preocupações do artista come-çando por reflectir acerca da sua obra literária para,em seguida, nos determos na obra artística que co-nhecemos. Nesse sentido, iremos seguir uma ordemdiacrónica e, portanto, começaremos pela sua primei-ra e mais fulgurante obra literária, a saber, a DaPintura Antiga.

Da Pintura Antiga (1548)

Considerada a obra-prima literária de Francisco deHolanda, Da Pintura Antiga é a primeira obra portu-guesa de reflexão acerca da arte. De matriz huma-nista renascentista, toma a pintura como paradigma

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das restantes artes plásticas. Do ponto de vista for-mal, está dividida em duas partes: na primeira o autorapresenta-nos a sua teoria filosófica acerca da pin-tura, bem como dos atributos próprios do pintor; nasegunda, constituída por quatro diálogos e conhe-cida por Diálogos de Roma, apresenta-nos uma me-ditação em que intervêm algumas figuras de artistase de mecenas, onde emergem as figuras de MiguelÂngelo e de Vitória Colonna, bem como do próprioFrancisco de Holanda, que com todos dialoga. Entreas duas partes há coerência e unidade complemen-tar indiscutível.

No «Prólogo» da obra, esclarece qual o objectivo,a saber: chamar a atenção para a excelência da pin-tura, bem como colocar em evidência alguns pre-ceitos. Afinal, como nos diz, a razão de ser destaobra corresponde também a um acto da sua própriaconsciência: «Asi que pola nobreza da pintura e poloque eu em Roma aprendi, com o que mais voudescobrindo e conhecendo de sua excelencia, pornão o deixar perder, e enterrar de todo a cousa tãodina de ser conhecida de todos os ilustres engenhosde minha patria, em quanto com a mesma obra senão pode demostrar, determinei d’escreuer este liuroDa Pintura Antiga […] Mas sómente desejei d’es-

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crever sobre a minha arte algumas declarações malentendidas do que nella entendia. E bem me bastaserem estas poucas de que he cheo este liuro peraeu ficar satisfeito em alguma maneira com a minhaconsciencia parecendo-me cousa mal acertada nãofazel-o» (p. 14). Ao mesmo tempo, o autor procuramostrar que a pintura é digna de reis e de prínci-pes, questão que ele próprio queria ver reconhecidaem Portugal (cf. p. 15).

Uma análise da primeira parte da obra permitecompreender que o autor está preocupado em pôrem evidência a excelência da pintura, que é acom-panhada também pela emergente dignidade do pin-tor, a que deveria também corresponder um estatutosocial diferente daquele que existia em Portugal e quejá tinha sido superado em Itália, por exemplo. Defacto, a excelência da pintura decorre do facto de,do ponto de vista metafísico, Deus ter criado omundo mediante um acto pictórico, introduzindo aluz na sombra, e o pintor ser aquele que imita, aindaque imperfeitamente, esse atributo divino: «Da fonteda Pintura e primeira causa será o começo de nossaobra; onde podemos dizer ser Deos pintor eviden-tissimo, e nas suas obras se conteer todo o exem-plo e sustancia de tal arte. Porque de duas cousas

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a pintura é formada, sem as quaes não se poderiapintar alguma obra; a primeira é lux ou claro, asegunda he escuro ou sombra» (p. 21). Esta consi-deração permite que o pintor possa reivindicar, aliásem sintonia com o antropocentrismo emergente ecelebrado por alguns vultos do humanismo renascen-tista, como aliás já vimos, certa liberdade na pintura:«Stá bem ao raro desenhador ter algumas liberda-des e condições, assim no conversar sem compri-mento, como em outras cousas livres que lhe pedeo seu cuidado e a ocupação do seu intento, as qua-es cousas não são licitas a outro homem oucioso»(p. 58). A liberdade, categoria exaltada no Renasci-mento, é, então, uma condição fundamental para oexercício da criação artística. Ela é própria dos «ra-ros» pintores, ou seja, dos génios que, como nosdiz, possuem um dom divino: «o pintar não seaprende, mas somente se pode crer que com omesmo homem nasce, isto sem se saber como, poisno inocente menino, que há de ser famoso n’estaprofissão, tenho eu para mi que sta já enfundido eposta toda a profundidade do saber que depois sehá n’elle de descobrir quando for tempo de exerci-tal-o e descobril-o» (p. 55). Ora, este traço de indi-vidualismo está intimamente relacionado com a crí-

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tica feita à escolástica e à sua pintura velha, fazen-do uma apologia do que é antigo ou clássico: «Háahi grande deferença entre o antigo, que é muitosannos antes que nosso Senhor Jusu-Cristo encarnas-se, na monarchia de Gretia e tambem na dos romãose entre o antigo a que eu chamo velho, que são ascousas que se faziam no tempo velho dos reys deCastella, e de Portugal, jazendo a boa pintura indana cova. Porque aquele primeiro antiguo é o eicel-lente e elegante, e este velho é o pessimo e semarte» (p. 79). Deste modo temos identificada a ra-zão do título da obra, Da Pintura Antiga, ou seja,acerca da excelência da pintura clássica, greco-roma-na, que emerge como paradigma da verdadeira pin-tura, se bem que o homem do Renascimento nãoseja um mero imitador dos cânones clássicos. Na te-matização que apresenta de arte, a sua atitude é ade um neoplatónico renascentista, na qual se assi-nala uma conciliação entre aristotelismo e platonismo,conciliação essa feita em nome de Platão. Na suareflexão sobre a pintura confere grande importânciaà luz, pois Deus criou o mundo mediante o pene-trar da luz nas trevas, sendo a criação divina con-cebida como pintura animante e a humana comoimitação aproximada daquela, portanto pintura inani-

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mante: «porem esta de que fallo he pintura animan-te que fez o imortal Deos. Para d’alli deçer a inani-mante aos homens» (pp. 24-25). O pintor é, de fac-to, aquele que imita o atributo divino da criação e,nesse sentido, é também possuidor de algo divino,próprio apenas do «raro» pintor, ou desenhador, aque corresponde a noção de verdadeiro pintor, poroposição à noção de falso pintor, aquele que pintaem escola, como na Idade Média, ressalvando ogénio de Nuno Gonçalves, numa primeira referênciaà obra deste mestre. O verdadeiro pintor é aqueleque pinta segundo a ideia, como menciona: «dizemos philosophos que o summo inventor e imortalDeos, quando fez as obras taes como elle só enten-de e conhece, que primeiro no seu altissimo enten-dimento fez e teve os exemplos e ideas das obrasque depois fez, e as vio, antes de serem, tão per-feitas como depois vierão a ser» (p. 96). O pintorimita mediante a contemplação da ideia, sendo estao suporte de toda a concepção metafísica de artepresente nesta obra: «a idea é a mais altissima cousana pintura que se pode imaginar dos entendimentos,porque como é obra do entendimento e do spiritoconvem-lhe que seja mui conforme a si mesma, comoisto tever, ir-se há alevantando cada vez mais e fa-

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zendo-se sprito e ir-se-há mizclar com a fonte eexemplar das primeiras ideas, que he Deus» (p. 97).Esta afirmação central, de que a pintura é coisamental, é um topos da época. Miguel Ângelo numsoneto referia: «não tem o óptimo artista nenhumconceito / que num mármore não possa encerrar /com o seu cinzel, mas só consegue isto / a mãoque obedece ao intelecto». Com efeito, para Fran-cisco de Holanda, a invenção ou ideia é o momentomais nobre da pintura e não «se faz com a mão massomente com a grande fantasia e imaginação» (p. 90),a qual é semelhante à alma e não ao corpo. Con-forme refere Adriana Veríssimo Serrão, esta identifi-cação entre entendimento e imaginação, a partir dacorrespondência entre ideia e imagem, é algo denovo, na explicação do que é a arte (cf. «Metafí-sica da ideia e poética da criação em Francisco deHolanda», in História do Pensamento Filosófico Por-tuguês, vol. II, Lisboa, Ed. Caminho, 2001).

No capítulo XV, «Da Idea, que cosa é na Pintu-ra», apresenta-nos a sua teoria neoplatónica, centradana noção de ideia exemplar, contemplação desta e,concomitantemente, do necessário desprendimentosensível, só acessível ao pintor. Está aqui consagradaa tese de possibilidade de ascensão mística, mediante

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a pintura. Mas esta ideia, marca da criatividade ex-celente do verdadeiro pintor, está condicionada pelaquestão da imitação. E o homem do Renascimentoconsidera que o que se deve imitar é a antiguidadee a natureza, de tal modo que se tem de compreen-der a tensão entre ideia ou invenção e imitação doclássico e do natural. Ora, esta tese é, claramente,superadora do próprio clássico (cf. p. 72). Franciscode Holanda já antes nos havia dito que a pintura«é emitação de Deos e da natureza prontissima.É mostra do que passou, e do que inda será. É ima-ginação grande que nos põe ante os olhos aquilo quese cuidou tão secretamente da idea, mostrando o quese inda não viu, nem foi por ventura, o qual é mais.É também ornamento e ajuda das obras diuinas enaturais» (pp. 26-27). Imita-se, porém, a realidade,fundamentalmente, em função do que ela é como pa-radigma, e isto implica que o artista é aquele quereconstrói o mundo segundo não o que é, mas o quedeve ser. Para cumprir este desígnio, a pintura é daordem do universal e, como nos diz, a mais difícilde todas as artes, pois implica recriar o real na di-versidade das suas manifestações. Diz Leonardo daVinci: «Sabendo, pintor, que para ser excelente tudeves ter uma aptidão universal para representar

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todos os aspectos das formas produzidas pela natu-reza, mas tu não as saberás sem as veres e as re-colheres no teu espírito» (Léonard de Vinci par lui--même, p. 98). Assim, a invenção ou ideia tem deser apoiada por uma técnica pictórica e ao mesmotempo por um vasto leque de conhecimentos. Parapintar, diz-nos Francisco de Holanda, é necessáriosaber teologia, línguas latinas e gregas, história,aritmética e música, geometria, cosmografia, anato-mia, perspectiva, escultura, etc. O pintor deve serdetentor de um saber enciclopédico (cf. capítulo VIII,«Que sciencias convem ao pintor»). Por exemplo,a propósito da teologia, faz a seguinte menção: «Com-pre mais de obrigação ao pintor ter partes de theolo-gia para saber fundar e contemplar a verdade de suasaltas imaginações nas obras, e para que não pintecousas contrarias à cristã religião, nem outros des-concertos e descuidos que se pintão, antes que sópola razão n’esta parte da sua obra seja muito paralouvar» (pp. 64-65). Justifica-se, deste modo, a re-ferência feita à pintura ao serviço da Igreja e da reli-gião (cf. p. 46), a qual se consubstancia no factode os papas darem uma grande importância a estaarte, bem como aos artistas, que eram acarinhadose mesmo disputados (cf. p. 49). Há no verdadeiro

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pintor uma atitude por vezes quase mística quandocria, e que o conduz a fazer a seguinte afirmação,que, na economia da obra, é essencial para a com-preensão do acto pictórico: «E alguma vez lhe com-prirá em toda a vida passar adiante acima do decimoe impirio ceo, e com Dyonisio Ariopagita contem-plar em casto spirito os nove coros dos angelicosspritos e enteligencias té chegar ali onde ardendostão os serafins ante a primeira fonte e causa dapintura divina, que é o summo Deos, porque semelle té esta altura chegar, nunca poderá chegar téesta Alteza nem será perfeito pintor d’alguma obracelestial» (p. 67). Nesta afirmação vê-se, de ummodo muito claro, que há uma coerência total nopensamento do autor, em que o dado religioso fazparte integrante do seu modo de pensar.

Francisco de Holanda, ao aprofundar a noção depintura, considera que o pintor, para além do seudom, que lhe permite exercitar a fantasia, aprendetambém com a natureza e a antiguidade. A propó-sito da antiguidade, ou seja, do clássico, refere: «osegundo mestre por onde aprender deve, e o segundoabraçar-se, será com a mui discreta e mui fremosae magnanima Antiguidade, a qual de louvar nuncaserei satisfeito» (p. 75). Os antigos, como nos diz,

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consideravam a imagem humana como a mais no-bre criatura de Deus e, nesse sentido, procurarampintar e esculpir a «fegura mirabel do homem ou damolher (por que todo o outro é muito menos)», e amelhor maneira de representar a figura humana é empé (p. 83). Este critério dos antigos, que toma afigura humana como preocupação dominante, impli-ca reconhecer que o homem é o ser privilegiado dacriação. Ora, esta consideração é já uma interpreta-ção da sua época, pois vai de encontro aos propó-sitos dos humanistas renascentistas, que celebravamo homem como «grande maravilha», digno de seradmirado. Ora, se a antiguidade é um modelo a se-guir, Francisco de Holanda reivindica para si o factode ter sido o primeiro em Portugal a chamar a aten-ção para este aspecto: «mas n’este lugar seja me ami licito dizer como eu fui o primeiro que n’esteReino louvei e apregoei ser perfeita a antiguidade»(p. 87). A recorrente menção ao facto de ter sido oprimeiro no nosso país a divulgar o saber renascen-tista acerca da arte prende-se com uma dupla preo-cupação: mostrar a emergência de uma nova manei-ra de perspectivar a arte e, além disso, chamar aatenção para o estatuto social do pintor. Nesse sen-tido, e decorrente do que acima tinha afirmado, o

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estatuto social do pintor em Portugal não condiziacom a sua importante missão. Ora, um dos objecti-vos desta obra é, precisamente, salientar esse novoestatuto, em sintonia com a dignidade desta profis-são, e por isso nos diz: «Posto que minha tensãonão era mais que mostrar aos portuguezes, que stãomui alheos d’isso, que cousa é a pintura, se é arte,se oficio, se é cosa nobre ou inobre, se é cousa levee redicula, ou mui gravissima e intelectual, a qualdúvida não nasce senão entre os engenhos inobrese tristes» (p. 89). Está aqui equacionada a questãode se saber se em Portugal se irá continuar a pen-sar que a arte em geral e a pintura em particular éum ofício, portanto, apontando para uma mera exe-cução, sendo o estatuto do pintor equivalente ao dosarmeiros, ou se, pelo contrário, se começa a pen-sar, em termos já humanistas renascentistas, que estanão é mera execução, mas é um saber nobre, quetem na sua raiz a invenção ou ideia. Pintar implicaum acto criativo e esse acto tem a ver com a ideiaque precede a execução da obra de arte. Como Leo-nardo da Vinci refere: «O pintor que desenha a par-tir da prática e com o juízo do olho, sem crítica ra-cional, é semelhante ao espelho que reproduz tudoo que se lhe coloca na frente sem saber o que é»

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(p. 94). Se assim é, então, a pintura não é um ofí-cio, nem é algo de exterior, mas que brota do inte-rior do homem, do seu pensamento. A verdadeirapintura, e esta é uma tese central da obra, implica,em primeiro lugar, a invenção ou ideia e só em se-guida a sua execução material: «a primeira entradad’esta sciencia e nobre arte é a invençam ou ordem,ou eleição a que eu chamo idea, a qual há de starem o pensamento. E sendo a mais nobre parte dapintura, não se ve de fora, nem se faz com a mão,mas somente com a grande fantesia e imaginação»(p. 90). É a afirmação de Leonardo da Vinci, de que«a pintura é coisa mental», ou de Miguel Ângelo,de que «a mão obedece ao intelecto». Uma tal con-sideração da arte não é compatível com a sua con-cepção de ofício, e de integração corporativista dopintor, como simples artesão, como era o caso emPortugal. No nosso país, com efeito, os pintores es-tavam integrados na bandeira de São Jorge, equipa-rando os artistas aos ferradores, armeiros, etc. Talfacto tem de chocar a forma de pensar do autor,pois este tem bem presente a necessidade de umaalteração deste estatuto social. Esta reivindicação,consubstanciada no facto de o artista ser um inte-lectual e não um artesão, no nosso entender, se ti-

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vesse sido aceite, teria modificado, efectivamente, oestatuto social do pintor, como aliás Francisco deHolanda pretendia, em todos os sentidos. A propó-sito deste aspecto, diz-nos Sticchini Vilela: «A orga-nização corporativa mantém-se até bastante tarde: ospintores fazem parte duma corporação com o regu-lamento próprio que coincide nas linhas gerais comos das restantes corporações e trabalham em ofici-nas colectivas, de inspiração medieval» (p. 27). Ora,como é evidente, Francisco de Holanda não podiaconformar-se com esta situação, diametralmenteoposta àquela que se vivia em Itália. A pintura deviaser considerada uma arte liberal, aspecto que, po-rém, não viu reconhecido em vida.

A segunda parte, constituída por quatro diálogos,sediados em Roma, mostra-nos Francisco de Holandacomo um dos interlocutores presente em todos eles,ainda que seja o «divino Miguel Ângelo» o centrode atenção, bem como Vitoria Colonna, marquesa dePescara, mecenas e amiga deste génio do renasci-mento. No primeiro diálogo refere o autor que a suaida para Roma teve como intenção trazer para Por-tugal os novos conhecimentos acerca da arte: «E oque me era sempre presente era o em que poderiaservir com a minha arte a El-Rei nosso senhor, que

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me lá mandara, cuidando sempre comigo, comopoderia roubar e trazer a Portugal roubados os pri-mores e gentilezas de Itália, do contentamento de El--Rei e dos Infantes» (p. 221). Ao mesmo tempo,aqui é apresentada a teoria da solidão dos artistas,fazendo referência a Miguel Ângelo como homemsolitário, angustiado e esquivo, que se afastam domundo não por soberba, mas «por não corrompe-rem com a inutel conversação dos ociosos e abai-xarem o intelecto das continuas e altas imaginaçõesde que sempre andam embelezados» (pp. 230-231).Insere-se muito bem aqui toda a problemática queMarsilio Ficino apresenta acerca do génio saturnino,a que já fizemos referência e que visa salientar queo artista é um ser excepcional, superior aos outroshomens, devido ao seu engenho, que lhe permite imi-tar o atributo divino da criação. Daí a seguinte afir-mação: esse «terribel pintor» é o único a que cha-mam divino: Micael Angelo (cf. p. 239) Além disso,com a intenção de fazer uma apologia da pintura,apresenta a comparação entre a pintura da Flandrese a de Itália, mostrando, através das palavras deMiguel Ângelo, que há uma supremacia desta últi-ma, a única que pode ser considerada verdadeirapintura. Há aqui, sem dúvida, uma apologia do gé-

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nio saturnino, protagonizada pelo escultor florentino,mas que corresponde também às inquietações dopróprio Francisco de Holanda, que sem o dizer cla-ramente deixa entrever, ao longo da sua obra, quesente que faz parte deste tipo de homens.

No segundo diálogo faz-se referência à boa arteem Itália, especialmente a que se pratica em Roma,embora reconheça que «tambem em França há al-guma pintura boa» (p. 259). Afirma-se também aexcelência da pintura sobre a escultura (cf. p. 260),bem como sobre a poesia, problemática debatida fre-quentamente na altura. Também Leonardo da Vincidebate este tema, dizendo: «A pintura é poesia muda,a poesia pintura cega. […] A pintura que está aoserviço do olho, sentido mais nobre que o orgão doouvido a que se liga a poesia, desperta uma harmo-nia de relações» (p. 107). Miguel Ângelo artista plás-tico era também versado na poesia, sabia a DivinaComédia de Dante de cor e era óptimo a escreversonetos. Mas, Francisco de Holanda, neste diálogopreocupa-se em mostrar a excelência da pintura, semmenosprezar a poesia, cujo estatuto intelectual esta-va desde há muito assegurado, pelo que refere:«Lêde todo o Vergilio, que outra cousa lhe não acha-reis senão o officio de um Micael Angelo» (p. 268).

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De qualquer modo há sempre, para o autor, umasupremacia da pintura sobre todas as outras artes.Aliás, em sintonia com Leonardo da Vinci, o pintorreconhece, sem dúvida, a superioridade da visão,relativamente aos outros sentidos.

No terceiro diálogo faz-se menção à função dapintura em tempo de guerra e de paz, mostra-secomo Portugal e Espanha não valorizam devidamentea pintura, enquanto na Itália ela é justamente cele-brada, sendo referido por Miguel Ângelo, a pro-pósito da defesa do grotesco em pintura, que ospoetas e os pintores devem ter liberdade para criar(cf. pp. 292-293). Mas mais uma vez se coloca aquestão relativamente à verdadeira pintura: «há hi pin-tores que não são pintores?», ao que respondeu Mi-guel Ângelo: «não é muito de spantar de errar tãoconstantemente acerca da pintura, arte dina senão dealtos entendimentos» (p. 297). Tal afirmação signi-fica que há aqueles que pintam, mas não são pinto-res, pois são meros artesãos, dado que não pintamsegundo a ideia ou invenção, a qual está orientadapara o bem: «mas nunca soube desejar bem nestasciencia senão aquele entendimento que entende obem e quanto pode alcançar d’elle». É mais uma vezo ideal neoplatónico a fazer-se sentir, como matriz,

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fundamento originário do acto inerente à produçãoartística. Por isso Miguel Ângelo refere que para seser grande pintor, e imitar a obra da Criação Divina,é necessário praticar o bem e ser virtuoso. O idealseria mesmo ser-se Santo (cf. p. 298). A questão dapintura como mimésis é, então, uma ideia fundamen-tal: o verdadeiro pintor e a verdadeira pintura impli-cam a imitação da obra do «imortal Deos» (p. 302),mas tendo em atenção que tal facto só é possívelmediante um dom recebido pelo homem. De facto,a noção de mimésis tem subjacente a questão dodom, de tal modo que o pintor nos diz: «o dom érecebido do imortal Deos que aquilo que outro stápintando em muitos dias, se faça em poucas horas»(p. 305). Tal afirmação significa que aquilo que éde difícil e demorada execução para o artesão, é, noque diz respeito ao verdadeiro pintor, de execução ex-tremamente fácil, porque nele existe o dom de pintar.

No quarto diálogo tratam-se questões ligadas àiluminura, faz-se, mais uma vez, o louvor das obrasantigas, especialmente das dos romanos, que mes-mo em Portugal se fizeram sentir: «A calçada daGeira, da serra do Geres a par de Braga é manifica,e cuido eu que Lusitania tinha muitas nobres obrasdos Romanos, depois que lh’as deixou fazer Viriato

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Lusitano» (p. 327). Um outro aspecto está ligado aospreços que tanto no tempo dos Romanos como emItália se praticavam e que davam conta da dignidadedo artista, pois este é o intérprete da nobreza da pin-tura. Na Itália, de facto, os artistas eram bem pagos,os mecenas, os reis, os papas, valorizavam a arte,o mesmo não acontecia em Portugal. Mais uma vezse entrevê a questão do estatuto social do pintor.

Na conclusão, volta a reiterar a ideia de que es-creveu para colocar Portugal e os Portugueses a pardo que se passa em Itália acerca da arte, por issotermina dedicando a obra ao Rei: «E com conselhodo muito atentado juizo de meu pai Antonio d’Ol-landa, eu dedico este livro a Vossa Alteza, muito altoe poderoso rei, clementissimo e felecissimo e au-gusto» (p. 345). É o culminar de uma argumenta-ção que visava defender em Portugal o estatuto daarte, bem como do pintor, dando a conhecer osnovos ideais neste domínio.

Após terem sido apresentados os dois tratados, opintor apresenta uma lista dos «famosos pintoresmodernos», considerando Miguel Ângelo como o«que a todos leve a palma», seguido de Leonardoda Vinci e de Rafael de Urbino, no entanto, se naprimeira e segunda partes da obra é Miguel Ângelo

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o paradigma da arte, como constituindo uma evidên-cia, na primeira parte da obra há como que umareferência a uma sua preferência. Referindo-se an-teriormente a Miguel Ângelo florentino menciona emseguida: «Mas a Lionardo e a Rafael tenho maisenveja que a este famosissimo pintor toscano: tudoisto segundo o ponto que eu entendo» (p. 43). Emmeu entender, Francisco de Holanda está a ser coe-rente consigo mesmo, no sentido em que, consi-derando-se Miguel Ângelo sobretudo um escultor(embora o nosso artista ponha na boca do florenti-no que a pintura é a mais excelente das artes), eFrancisco de Holanda um pintor, a sua preferênciavá para os que defendiam a supremacia da pinturasobre a escultura, porque, na verdade, eram pinto-res como ele próprio. Contudo, não deixa de apre-sentar também a lista dos «famosos scultores demarmor», dos famosos arquitectos e dos famososentalhadores. Por fim apresenta cinco provérbiosaplicados à pintura.

Em conclusão, esta obra, o primeiro tratado depintura português, dá conta da importância que a arteem geral e a pintura em particular adquiriram noRenascimento, propondo-se o autor salientar quer aexcelência desta como forma cultural, quer a digni-

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dade do pintor e o seu estatuto social, rejeitando aconcepção medieval de simples artesão. A arte e oartista são aqui celebrados, numa matriz humanistarenascentista, em que a influência do maneirismo étambém patente, embora não estejamos perante umpintor maneirista. Numa leitura filosófica, a primeiraparte é mais relevante, porquanto tematiza em gre-lha neoplatónica a problemática da arte, pondo emevidência os seus fundamentos metafísicos.

Do Tirar pelo Natural (1549)

Tratado acerca da arte de retratar ao vivo e que,de acordo com a referência do autor dada no «Pró-logo», se coloca no prolongamento do da Da Pin-tura Antiga. A obra foi acabada de redigir em San-tarém a 3 de Janeiro de 1549. Do ponto de vistaformal, esta é constituída por um prólogo, onze ca-pítulos e em apêndice uma carta do papa Leão Xao artista Rafael. Francisco de Holanda escolheu odiálogo entre Fernando, que corresponde ao própriopintor, e Braz Pereira, seu amigo, residente na ci-dade do Porto, que o acolheu e que o artista consi-dera ser um bom interlocutor. Como nos diz: «Masé este Braz Pereira um homem fidalgo de muito gen-

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tis partes e habilidades, e principalmente na arte dapintura tem muito engenho e natural, e no conheci-mento da arquitectura, por onde nos não enfadáva-mos muitas vezes de praticar alguns primores so-bre as tais disciplinas que se acham em mui poucosfidalgos portugueses» (p. 11). O diálogo está orga-nizado e concebido de tal modo que cabe ao amigoBraz Pereira suscitar as reflexões e as respostas, me-diante interrogações que vai fazendo acerca da me-lhor e mais perfeita maneira de retratar ao vivo. Fer-nando vai, então, explanando as suas teorias acercadesta problemática, apresentando-as pormenorizada-mente. Conforme o autor explicita no «Prólogo», asua intenção é a de tratar «dos primores da pinturae principalmente do tirar ao natural» (p. 12).

Logo no início, Francisco de Holanda refere quea arte «de pintura é a coisa mais digníssima que sóDeus faz por tão investigábil sabedoria como Elesabe». Como podemos verificar, está a reiterar, maisuma vez, a tese de Deus como Sumo Pintor e, por-tanto, o artista, que é homem, ao imitar este atri-buto divino, retira daí a sua dignidade e superiori-dade relativamente aos outros homens. A intenção éa de, mediante o interrogar do amigo, pôr em evi-dência que só «o pintor excelente» (p. 14) é que tem,

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verdadeiramente, a possibilidade de fazer retrato.Além disso, ao fazê-lo tem de ter presente a quali-dade e não a quantidade. Aqueles que pinta devemser poucos e bem escolhidos, tendo sempre comopreocupação a perfeição. Ora, isto significa que nemtodos os homens merecem ser retratados, pois estaarte tem como objectivo deixar um rasto de memó-ria, de tal modo que possam ser recordados pelaposteridade e, deste modo, sobreporem-se à mortetemporal. Mas, então, quem deve ser retratado?

O retrato é, pois, para os príncipes, os reis, masnão para todos, pois nem todos o merecem. Comonos diz: «os claros príncipes e imperadores» de queé paradigma o «benigníssimo e magnânimo e cató-lico rei nosso senhor, que por o resplendor de suasvirtudes, e singular liberalidade merece mui justamen-te ficar em memória e exemplo a seus sucessores ereino» (pp. 14-15). Está a referir-se a D. João III,que o pintor coloca ao lado de iminentes figuras comoas de Ciro, Alexandre Magno, Cipião, César, Cons-tantino, Teodósio, São Luís de França ou D. AfonsoHenriques (cf. p. 15). Mas também as rainhas eprincesas virtuosas têm este merecimento. Contudo,será que só as figuras de excepção ou as mulherese os homens virtuosos merecem ser retratados?

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Claro que não, para além destes há que considerarqualquer homem famoso em armas, desenho e le-tras, bem como aqueles que amam. Estes últimos,desejosos de possuírem pintado o vulto da pessoaamada, têm toda a legitimidade para levar à práticatal desiderato, na condição de este ser um amorcasto e fiel. Como podemos verificar, há nesta no-ção de mérito uma clara valoração moral, tão pró-pria dos homens do Renascimento. O retrato deveser feito àqueles que pelos seus feitos, pela sua vir-tude, merecem ser recordados e honrados, de talmodo que o amigo Braz Pereira acaba por afirmar:«Certo é que poucos merecem serem ao natural ti-rados e ser conhecida sua memória» (p. 15). E issoé de tal modo verdadeiro que, acrescenta Fernando,quando emerge um príncipe famoso, logo um escritore um grande pintor surgem para o celebrar. Só, po-rém, o excelente artista, como nos diz o «valentedesenhador» (p. 17), está em condições de o fazer.Contudo, há um pré-requisito necessário ao exercí-cio desta profissão, a saber, o estar rico, para en-tão com tempo e bem-estar se poder dedicar inteira-mente à sua obra e estar na frente do «príncipe oupessoa ilustre» (p. 17), sem a presença de mais nin-guém, a fim de que nada de exterior venha pertur-

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bar o acto de criação artística. Temos aqui, mais umavez, a apologia da solidão do artista, tão necessáriaà concepção da obra de arte, como coisa da men-tal. Como nos diz, «estar consigo mais recolhido esolitário» (p. 18) é necessário para que não haja nadaque o distraia. E mais uma vez citamos Leonardoda Vinci: «Para que a saúde do corpo não altere ado espírito, o pintor ou o desenhador deve perma-necer solitário e, sobretudo, quando se consagra in-teiramente às especulações e às meditações que sur-gem aos seus olhos, fornecendo à memória amplasreservas» (p. 102). Aliás, o ideal seria retratar dememória, sem ninguém presente, nem mesmo o re-tratado. E isto porque a obra de arte deve ser con-cebida e realizada longe dos olhares indiscretos e sódepois de acabada é que, então, deverá ser contem-plada. Mais uma vez temos uma crítica, indirecta,ao facto de em Portugal a pintura não ter o estatu-to de arte liberal e, nesse sentido, os artistas seremmal pagos. Contudo, para se poder verdadeiramentecriar é necessária a riqueza, sem ela corre-se o ris-co de nada poder fazer.

Mas, solicita Braz Pereira, «ensinai-me a tirar aonatural e a imitar uma obra divina em desenho oupintura» (p. 21), respondendo Fernando que «isso

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só Deus o pode fazer; mas dir-vos-ei como será»(p. 21). Retratar uma pessoa implica retratá-la se-gundo o seu carácter e personalidade, depois há queprivilegiar o ângulo, ou seja, pintar de frente, ou deperfil, ou melhor, usar o meio termo entre os dois,o «treçado» (p. 23), colocada a luz de modo con-veniente. Após estas referências introdutórias, Fer-nando passa à análise do rosto, pondo em evidênciao modo como cada um dos seus elementos deve sertratado. Aliás, considera que os olhos, nariz e bocasão os principais «indícios por onde se conhecemas pessoas» (p. 37). Nesse sentido, começa pelosolhos, pois estes são uma parte fundamental do ros-to, até porque neles a luz, motivo recorrente, é umelemento central. A propósito dos olhos refere: «de-les tem começo toda a luz, e eles são as janelas eportas por onde tudo tem entrada» (p. 25). Os olhostêm de ser retratados segundo a expressão de cadapessoa, sem esquecer que as sobrancelhas fazemparte dos olhos, aspecto que, como nos diz, só os«avisados e entendidos» (p. 26) têm em considera-ção, de tal modo que lhes dedica um capítulo. A suaimportância reside no facto de o eterno e perfeitomestre, que é Deus, as ter considerado um orna-mento perfeito do rosto, pois elas são um remate

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superior deste. As sobracelhas dão expressão à fisio-nomia. Em seguida, menciona a dificuldade quantoao traçar o perfil do nariz, o qual, se não for bemconseguido, põe em causa o sucesso do retrato. Há,pois, que ter presente a proporção. Contudo, exis-tem regras para desenhar um nariz perfeito e for-moso (cf. p. 30). Mas Braz Pereira considera que aformusura da boca é o principal elemento do rosto,respondendo Fernando que há muitos tipos de bo-cas e que, quanto à beleza, tanto são belas as pe-quenas quanto as grandes, mas chama a atenção:«não se querem vermelhas em nenhuma maneira,mas de uma cor de rosa música» (p. 31). Contudo,existem padrões, embora no retrato se tenha que«imitar a verdade do que tira» (p. 31). Também aorelha permite que se conheça o rosto.

Ao fazer uma reflexão acerca do corpo, Fernan-do refere que quando o retrato implica a pintura dasmãos, então encontramo-nos perante «outro rosto»,na medida em que elas são dotadas de expressão.Quanto ao retrato de corpo inteiro, em que a pes-soa está em pé ou sentada, eles mostram a pessoatoda, tal como Miguel Ângelo o fez nas suas escul-turas da Capela dos Medici em Florença. Ainda nestedomínio, no retrato há que ter em conta, e isto é

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um traço de sabedoria e de experiência na arte, quepor baixo dos fatos há «carne» e debaixo desta há«ossos», aspectos que têm de ser tomados em li-nha de conta, caso contrário não se é um bom ar-tista (cf. p. 36). É evidente que este é um claro traçorenascentista, o artista deve saber anatomia e aplicá--la na execução das suas obras. Precisamente porisso, o «vestido» deve deixar ver a pessoa que neleestá.

Nas conclusões finais, Fernando volta a frisar quea «pessoa ínclita» (p. 39) de que se fizer o retratonão pode ser parecida com nenhuma outra, pois deveser retratada de acordo com o seu modo de ser,alegre ou triste, magra ou gorda, procurando-se real-çar os seus mais belos traços. Assim, no que dizrespeito à idade, se for jovem, deve-se pintar demodo a parecer ainda mais jovem (cf. p. 39) e, sefor uma pessoa feia, que se procure pintá-la menosfeia. Outro aspecto a ter em consideração é o factode nos jovens se dar mais atenção à formosura docorpo e aos de idade madura à formosura da alma(cf. p. 40). Nesta arte do retrato também se deveatender à «pintura vista no espelho» (p. 41), poisesta é dotada de grande beleza. Neste último capí-tulo, volta a fazer referência ao seu Dom, como

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menciona: «os primores que desta ciência delesnasceram comigo, sem eu ter nisso louvor deles»(p. 41). Também volta a acentuar o ter praticado comMiguel Ângelo, bem como o muito que aprendeu emRoma, na pintura e escultura antiga, daí a seguintemenção: «E eu como bárbaro português, aventurei--me a subir por outros montes e degraus com ofavor do meu natural e de Miguel Ângelo, e da an-tiguidade, os quais não me deixaram passar daqui»(p. 41). Por fim, Braz Pereira interroga o artistasobre qual será o mais famoso pintor de retratos,ao que este responde ser Ticiano, bem como per-gunta por que razão os italianos retratam com umacandeia acesa? Responde Fernando: «para mais de-terminação de sombra e para mais clareza do claroe mais força do escuro» (p. 42). Deste modo, orealço (traço que faz sobressair os pontos claros)confere grande perfeição à obra.

Francisco de Holanda, de facto, não só escreveuacerca desta arte do retrato, como também nosdeixou alguns retratos na sua obra Álbum dos De-senhos das Antigualhas: de Miguel Ângelo, do papaPaulo III, de Pedro Lando, duce de Veneza. Outrosretratos, porém, são referidos, quer pelo próprio,quer por outros testemunhos, mas que até à data

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estarão perdidos, como os de D. João III e de suamulher, a rainha D. Catarina (cf. nesta obra a suareferência ao desejo de os desenhar, p. 37). Tam-bém lhe são atribuídos, ainda que também não te-nham chegado até nós, os retratos da infanta D. Ma-ria, irmã de D. João III, do príncipe D. João e doinfante D. Luís, bem como de D. Sebastião (cf. Fe-licidade Alves, Introdução, pp. 105-109). Todos elesestarão perdidos? De qualquer modo, para concluiracerca desta obra, temos de reconhecer que Fran-cisco de Holanda, mediante os preceitos do retrato,mostra o pressuposto individualista do renascimento,bem como salienta outra tese bem ancorada naépoca, de que o rosto é o espelho da alma.

De Quanto Serve a Ciência do Desenho (1571)

Tratado acerca da excelência da pintura e dodesenho, foi redigido no Monte, entre Sintra e Lis-boa, em Julho de 1571. Do ponto de vista formal,esta obra é constituída por um prólogo e oito capí-tulos, sendo o último de conclusão. Como refereFelicidade Alves, a obra permaneceu inédita até 1879.O manuscrito original está na Biblioteca da Ajuda.O seu título completo é o seguinte: De Quanto Serve

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a Ciência do Desenho e Entendimento da Arte daPintura, na República Cristã, assim na Paz comona Guerra. No prólogo da obra, Francisco de Ho-landa refere que, em nome da arte, irá apresentarao rei D. Sebastião o seu «queixume», devido aofacto de esta, em Portugal, não estar a ser devida-mente considerada e condignamente valorizada. Destemodo, menciona a sua dignidade, a qual reside, nasua essência, no facto de na origem e como fonteda pintura estar o «altíssimo seu inventor Deus».Acresce ainda que, nestes tempos, como na épocaclássica, ou antiga, reis, imperadores e até mesmoa Igreja católica a terem tido sempre em alta consi-deração e estima. Com efeito, os papas e os car-deais, em Roma, consideram-na excelente. Mas e emPortugal? Bom, na verdade, aqui a arte não é reco-nhecida do mesmo modo. Portanto, a intenção destetratadozinho é a de pôr em evidência quão relevanteela é, e quão estimado deve ser o artista que a exe-cuta. Após este prólogo, justificativo da sua inten-ção, entra, então, na problemática conducente à de-fesa da excelência da pintura, começando por realçaro valor dos pintores antigos, admirados, por exem-plo, por Alexandre ou César, de tal modo que estes,aos seus «artífices e mestres», pagavam bem por

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este trabalho (cf. p. 15). Há aqui, sem sombra dedúvida, uma clara defesa do estatuto especial que eraconferido aos grandes artistas, gregos e latinos.Contudo, como nos diz, poder-se-á objectar queestes eram gentios e pagãos. Também hoje, porém,na cristandade, os artistas são louvados e reconhe-cidos. Por exemplo, o papa Júlio II (grande mece-nas da arte), em Roma, reconheceu o talento e ogénio de Rafael de Urbino e de Miguel Ângelo, en-tre outros. O rei de França Francisco I, na mesmaépoca, protegeu Leonardo da Vinci, e de tal modoo tinha em grande estima que o próprio rei o assis-tiu na morte. Além destes grandes génios, outras fi-guras têm sido reconhecidas, como Ticiano, ou oalemão Alberto Dürer. A questão coloca-se, então, doseguinte modo: será que este reconhecimento da artee do artista não mostra a sua real importância nestaépoca? E, no entanto, ele mesmo, Francisco deHolanda, pintor também renascentista e que, de al-gum modo, está de posse dos mesmos conhecimen-tos e práticas destes grandes génios, tendo mesmoconvivido com alguns deles, em vez de poder dar aPortugal e ao seu reino o seu contributo para a va-lorização e promoção da excelência da pintura, ele,que também possui o engenho que lhe foi outorga-

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do por Deus, vê-se remetido para uma vida de la-vrador, no «monte», como «homem inútil e que denada serve neste tempo» (p. 19). E esta situaçãobizarra tem o seu fundamento no facto de em Por-tugal não se reconhecer «o excelentíssimo exercí-cio da pintura e do desenho» (p. 19).

Exactamente por não haver este reconhecimento,já muito claro e efectivo, na Europa, o autor propõe--se mostrar de que modo poderá servir a el-rei, bemcomo ao reino, com o seu engenho. Portanto, nãoirá fazer referência àquela pintura que se pratica emPortugal (sabemos que está a mencinar a pintura quesegue os cânones medievais, corporativa) e que paraele não é verdadeira pintura, como afirma: «Masescrevo daquela ciência, não só aprendida por ensi-no doutros pintores: mas naturalmente dada pelosumo mestre Deus gratuita no entendimento, proce-dida de sua eterna Ciência, a qual se chama DESE-NHO, e não debuxo nem pintura» (p. 20). Está aquiclaramente expresso o objectivo da obra: mostrar aorigem divina da arte e, a partir daí, pôr em evi-dência a sua dignidade. E se a pintura e desenho sãotão dignificados, o motivo de tal «glória neste ne-gócio» não se deve tanto aos excelentes pintores,como, por exemplo, temos na antiguidade Apeles, ou

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actualmente Miguel Ângelo, mas a sua promoção asua excelência deve-se sim ao «dador e inventor detodos os entendimentos que é Deus». Ora é estedesenhar, que tem a sua origem em Deus, que opintor genial tem a possibilidade de imitar. De fac-to, Francisco de Holanda coloca a excelência da pin-tura e do pintor no facto de este imitar o atributodivino que consiste em desenhar e pintar. Afirmada,assim, a origem divina da pintura ou desenho, segue--se a sua definição: «Principalmente chamo DESENHOaquela ideia criada no entendimento criado, que imi-ta ou quer imitar as eternas e divinas ciências incria-das, com que o muito poderoso Senhor Deus crioutodas as obras que vemos; e compreende todas asobras que têm invenção, ou forma, ou fermosura,ou proporção, ou que a esperam de ter, assim inte-riores nas ideias, como exteriores nas obras; e istobaste quanto ao desenho» (p. 21). Como podemosverificar, está aqui consignada a tese de que a pin-tura humana tem, na sua origem, a ideia, responsá-vel esta pela invenção, a que corresponde a noçãoapresentada pelo autor de que o desenho está «nadeliberação secreta do entendimento» (p. 21).

O entendimento, produtor de ideias, é, então, araiz e a fonte de todas as obras «manuais e visí-

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veis» (p. 23). Ora, isto significa, mais uma vez, aafirmação de que a criatividade própria do verdadei-ro pintor não é manual mas mental. E esta criativi-dade tem diferentes aplicações, nomeadamente noseio da Igreja. Como nos diz, o desenho serve «paradesenhar a divina figura e imagem da Hóstia viva queé o Nosso Senhor Jesus Cristo». Mas também ser-ve para fazer iluminuras nos missais (e dá o exem-plo do livro de iluminuras de D. Manuel I), ou parafazer os retábulos nas igrejas (cf. pp. 23-24). Mas,se a pintura está ao serviço de uma multiplicidadede realidades concretas, que podem ser figuradas,há na pintura uma função que nunca deve ser es-quecida ou subestimada: a pintura serve para elevaro espírito do homem até Deus. Com efeito, da par-te do pintor há elevação espiritual, devido aos temasque trata, enquanto da parte do que contempla há oaprender. Uma pintura, mediante a figuração, ensinaaquele que não conhece as letras e mesmo no quediz respeito aos letrados fomenta-lhes a devoção. Deonde se pode tirar a seguinte conclusão: a pinturaestá, claramente, ao serviço da Igreja. Após ter sa-lientado este aspecto, o autor propõe-se mostrarcomo é que ela pode servir ao rei e ao reino. Emprimeiro lugar, deve servir no que diz respeito às

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«coisas espirituais que devem preceder todas asoutras» (p. 26). Como já tivemos oportunidade dereferir, o que se pinta ou desenha deve elevar oespírito. Mas, a pintura, do mesmo modo que estáao serviço da Igreja, mediante a figuração, tambémestá ao serviço do rei, pois também serve para de-senhar o ceptro real, a espada, o punhal, a meda-lha, etc. Além disso, também serve para retratar arainha e o próprio rei e seus avós (cf. p. 28). E noque diz respeito ao reino, em tempo de paz, permi-te fabricar edifícios, paços, casas, jardins e fontes,oratórios e teatros, pórticos e templos, entre outrascoisas. Ou seja, o desenho é muito útil para a ar-quitectura. E devemos, em tempo de paz, tirar pro-veito desta sua utilidade. Em tempo de guerra, po-rém, sem dúvida que é mais necessária, pois permitedesenhar as armas, as armaduras, selas para oscavalos, etc., e, deste modo, conferir grandeza àstropas (cf. p. 31). Mas serve, sobretudo, o dese-nho, em tempo de guerra, para a edificação dasfortalezas, tal como acontece em Itália. E como opróprio Francisco de Holanda fez a propósito dafortaleza de Mazagão.

Além disso, no que diz respeito ao próprio rei,este também deve saber desenhar, para sua recria-

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ção pessoal, tal como outros imperadores e reiscostumavam fazer. E para reforçar esta ideia invocaa autoridade de Aristóteles, pois este filósofo consi-derava que era necessário que todos os nobres sou-bessem desenhar. E o rei, como pessoa mais emi-nente e exemplar, deve-o saber fazer na perfeição.Mas também há uma utilidade neste aspecto: o rei,ao saber desenhar, começa a adquirir uma competên-cia relevante, ou seja, começa a obter o saber ine-rente à fisionomia. Aspecto importante, porque, aoconhecer os homens pelo seu rosto, tem a possibili-dade de escolher bem os seus homens de confiança:vice-reis, embaixadores, capitães de África. Já naobra Da Pintura Antiga tinha dedicado um capítuloà teoria da fisionomia, mostrando como há uma espé-cie de dialéctica entre o interior e o exterior, entreo invisível da alma e o visível do corpo. Diz a estepropósito Leonardo da Vinci: «A figura mais dignade elogio é aquela que melhor exprime, mediante asua atitude, o sentimento que a anima» (p. 104). Estaé uma problemática que corresponde também a umapreocupação da época, e tem várias fontes, dandoa medicina também um contributo interessante.

Portanto, acerca deste tratado, a intenção do ar-tista ao chamar a atenção, sensibilizando para a im-

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portância que a pintura pode ter ao serviço do reino,do rei e do príncipe, é a de «engrandecer» queruns quer outros, numa atitude bastante pragmática.E acaba mesmo por afirmar: os reis portugueses,desde Afonso Henriques, sempre estimaram a pin-tura. E deste modo conclui a obra dizendo que a re-digiu a fim de lembrar a D. Sebastião que a arte dapintura é uma das mais ilustres realizações humanas,conferidas por Deus. E, ao mesmo tempo, relem-bra ao rei que ele, Francisco de Holanda, pintor,ainda pode contribuir para o engrandecimento dePortugal com a sua arte. Deste modo, esquecê-lo,como o fazem actualmente, é não dar importânciaa um aspecto essencial da vida humana.

Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa (1571)

Tratado acerca da necessidade que a cidade deLisboa tem de ser reedificada em sintonia com asnovas regras arquitectónicas da época, seguindo omodelo que o autor, quando «moço», apresentou,após a sua estada em Itália. A obra foi redigida em1571 no Monte. Do ponto de vista formal, é cons-tituída por um prólogo e doze capítulos. O prólogoinicia-o com uma lembrança ao rei D. Sebastião,

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estabelecendo uma comparação entre a fortaleza eo reparo espiritual da alma e a fortaleza e reparomaterial da cidade de Lisboa.

Mais uma vez oferece os seus préstimos ao rei,neste caso como arquitecto, e isto porque, segundomenciona: «considerando eu quão descomposta estáLisboa de fortaleza e quão desordenada do que muitolhe importa, sendo ela a cabeça deste reino e a co-roa dela Vossa Alteza, esforcei-me, dar para sua jus-tificação e ornamento esta lembrança a Vossa Altezae a Lisboa, ou para se servir dela em o presente,ou para o tempo que está por vir» (p. 12). Ora, afim de justificar esta sua oferta, Francisco de Ho-landa começa por fazer referência à antiguidade dacidade de Lisboa, que considerava ser mais antigaque a própria cidade de Roma. E diz-nos de Lisboa:«gentia e pagã e não conhecia o seu verdadeiro fun-dador Deus» (p. 13). Nesse sentido, traça, de ummodo muito breve, a sua história, referindo-se aosromanos, aos mouros, aos godos e aos reis portu-gueses até D. João III.

Contudo, como aliás já anunciara, aquele que sepropõe mostrar o que, em termos materiais, é ne-cessário à cidade de Lisboa está ciente de que, ante-rior a essa fortificação, há que fazer referência à

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«outra», mais fundamental, a saber: a «reedificaçãoda cidade espiritual da nossa alma» (p. 16). Esta-mos perante um momento, juntamente com a obraDa Ciência do Desenho, em que o dado religioso emístico do autor se faz sentir com maior acuidade.Por isso nos diz: «e com a cidade da nossa almaassim fortalecida, como digo, ainda que breve e igno-rantemente então podemos seguramente tratar do queé muito menos, que é de reparar e remendar a ci-dade de Lisboa, que tanto o merece de seus cida-dãos e vereadores» (p. 16). E para obviar a estafalta, considera que se deve tomar como modeloRoma, pois esta é exemplo, quer para a virtude, querpara a arquitectura, facto que se pode aplicar a Lis-boa, tanto mais que esta «não tem fortaleza nemcastelo de que se defenda de seus inimigos» (p. 18).Ora, como podemos verificar, «vemos que os San-tos, Reis e Papas costumam fortalecer suas cidades»(p. 18), pelo que D. Sebastião também o deve fazer,mas «ao modo das fortalezas modernas» (p. 19).

Além disso, D. Sebastião devia continuar a obrade seu avô (D. João III) acabando os Paços deEnxobregas e fazendo um parque melhor que o deFontainebleau (cf. p. 22). E o autor oferece-se paraexecutar as «heróicas pinturas e para todo o mais

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ornamento de tal obra» (p. 23). Acabando este Paço,D. Sebastião teria uma residência verdadeiramentecondigna da sua dignidade real.

Mas há que pensar outros aspectos. Uma obrafundamental a ser feita tem a ver com a distribui-ção de água, pelo que o rei se deve, deveras, preo-cupar em «trazer a Lisboa Água Livre» (p. 25), poiseste é um benefício inestimável, tendo o autor umdesenho que foi feito para D. João III, e que tinhacomo objectivo cumprir esta necessidade. Tambémmenciona o facto de dever haver uma preocupaçãorelativamente à reedificação e construção de pontese calçadas públicas, devido à sua muita utilidade, aliásjá entrevista pelos romanos, grandes construtores.Um outro aspecto que não deve ser descurado é odas cruzes e miliários, pelo que Francisco de Ho-landa aconselha a que «mande Vossa Alteza commuito cuidado que em todas as entradas e saídas deLisboa (e ainda por todo o Portugal) se façam for-mosíssimas cruzes de mármore ou pedra vermelha,e com letras na vasa que ensine os miliários ou le-guários das léguas, para saberem os caminhantes oscaminhos e léguas que andam» (p. 29).

Um outro aspecto a reter, e que assume a formade uma lembrança, é que, sendo São Sebastião o

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protector do rei, se justifica totalmente «reconhecere agradecer esta dívida a este vosso Santo e pro-tector dos portugueses», dado que, como se sabe,é o santo protector da peste. Por isso, o autor con-sidera ser relevante construir-lhe uma igreja com umagrade de metal em volta (cf. p. 33).

Após ter feito a enumeração das edificações quea cidade de Lisboa necessita, em sintonia com osmodelos italianizantes, facto que é bem visível, poisFrancisco de Holanda foi fazendo os esboços, temosa referência à Capela em Louvor do S. Sacramento.Como nos diz: «A bondade nem perfeição de qual-quer livro ou obra, não se conhece se não pela in-tenção ou Fim do por que se faz; e isso a faz boa,ou má, ou indiferente. Por onde, este pequeno ca-derno, se não tivera seu fim bem ordenado, eu nuncao pusera em execução, segundo as muitas tentaçõese motivos que para o não fazer me tem dado amalícia do tempo; dizendo-me alguns grandes ho-mens, que não servia de nada isto agora, e que es-cusadas eram estas minhas lembranças neste tem-po, e que doutras fábricas e edifícios se tratava; eoutras muitas coisas que não digo» (p. 34). Está aquibem patente o espírito inconformista do autor, a suaatitude de perseverança, relativamente àquilo em que

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acredita profundamente. E por isso mesmo, esta ca-pela, segundo pensa, deveria ser o «último edifíciode sua memória» (p. 35), que assinalaria a grandeobra do rei, onde estaria o seu jazigo, imitando oseu bisavô e avô (cf. p. 36).

Por fim, e para terminar a lista das obras neces-sárias, faz referência à Custódia do S. Sacramento,que é «tão fracamente de mim é desenhada por ter-mo desta empresa». E termina Francisco de Holan-da esta obra dizendo que certamente o rei terá mui-tos que o desejam servir, numa multiplicidade decoisas proveitosas. Ora, a redacção desta sua lem-brança e respectivos desenhos inscreve-se tambémnessa preocupação de bem servir a el-rei, mas como modo que é o seu.

Álbum dos Desenhos das Antigualhas (1540)

Conforme já referi, no capítulo sobre a vida deFrancisco de Holanda, o Álbum dos Desenhos dasAntigualhas foi feito, no seu núcleo mais significa-tivo, aquando da viagem a Itália, desenhando os lu-gares por onde ia passando, bem como aqueles queconsiderou mais importantes, com especial destaquepara as fortificações. Os desenhos foram realizados,

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aproximadamente, entre 1537 e 1540. No entanto,este foi terminado em Portugal. A edição que usa-mos é a preparada por E. Tormo, professor daUniversidade de Madrid. Trata-se de uma reprodu-ção fac-similada do códice que está na Biblioteca doEscorial, editada em 1940. Neste Álbum, o artistadá grande importância às fortificações militares,construídas segundo o estilo novo. O autor, conformemenciona E. Tormo, ao fazer o desenho de fortale-zas correu o risco de ser considerado espião e de,em virtude de tal facto, ser preso. Por exemplo, teveproblemas com o desenho da fortaleza de Pesaro(cf. p. 7). Mas, além desta, muitas outras desenhou,como, por exemplo, as de Nice, Génova, Caeta,Spoleto, Cività Castellana, etc. Tal preocupação es-tava ligada, sem dúvida, à missão de que estavaencarregado por D. João III, que seria mais a dearquitecto do que propriamente de pintor. Ora, Fran-cisco de Holanda desenha várias fortalezas cujosautores eram os grandes escultores e pintores doRenascimento, os quais também eram arquitectos eque foram os «grandes renovadores das construçõesmilitares» (p. 7). Mecenas desta época, como osEste, os Sforza, os Medici, foram criadores de for-tificações. E é este ambiente que os seus desenhos

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traduzem. Sabe-se que se aproveitaram os planos doartista para a fortificação de Mazagão, praça-forte dacosta atlântica de Marrocos, em poder de Portugal.De facto, como nos diz E. Tormo, o pintor «chegoua Itália para completar os seus estudos artísticos ehumanistas, residindo aí […] anos decisivos na suavida e muito excelentemente aproveitados» (p. 6).E os seus desenhos, neste seu álbum, correspondemao seu estilo, a saber, desenhar e pintar em pequeno.A maior parte dos desenhos centra-se em Itália, detal modo que apresenta grupos de estudo de indu-mentária feminina: sienesa, romana, napolitana, vene-ziana; máscaras trágicas, a boca da verdade, o tem-plo de Saturno no foro romano, os grotescos dasLoggia de Rafael, Roma triunfante e Roma desfeita,um díptico, em antítese, bem conseguido. Fez tam-bém desenhos de personagens da época: do papaPaulo III, de Miguel Ângelo, de Pedro Lando, ducede Veneza. Desenhou de memória a Basílica de Pá-dua, de Santo António lusitano. Outras referências,em função da realização da sua viagem, já foramapontadas, a propósito da sua viagem, no capítulosobre a sua vida. Para concluir, podemos conside-rar, nesta apreciação sumária do códice, que Fran-cisco de Holanda revela apreço em desenhar quer o

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que é clássico, antigo, bem como o que é já dodomínio da rinascita, do renascer que é um recriar,no sentido da emergência de um estilo novo, quemuito valoriza. Neste Álbum, o pintor dá-nos umavisão de conjunto do que foi, sem dúvida, para ele,algo de extraordinário, a sua viagem de ida e voltaa Itália, documentada por desenhos que mostram,sem lugar para dúvidas, que estamos perante umhomem do Renascimento.

De aetatibus mundi imagines (1547)

A obra Imagens das Idades do Mundo, de carác-ter pictórico, conforme o seu título indica, e o pró-prio Francisco de Holanda justifica, pretende ser umarepresentação das seis idades do mundo, seguindoEusébio de Cesareia (século IV), aspecto que tam-bém está presente na obra do presbítero portuguêsPaulo Orósio História contra os Pagãos (século V).Mais tarde, século VII, temos também uma referên-cia de Isidoro de Sevilha. Esta obra, verdadeiramenteum códice, foi descoberta por Francisco CorderoBlanco na Biblioteca Nacional de Madrid, em 1953.Jorge Segurado publica uma edição fac-similada docódice, na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, fa-

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zendo uma análise descritiva e crítica das 155 com-posições. Nas suas palavras, estamos perante uma«respeitosa alegoria sublimando a Divina Criação doMundo» (p. 271). Conforme nos diz Francisco deHolanda, começou estas imagens da criação do mundoem Évora no mês de Agosto de 1545 (cf. p. 273),tendo-as dedicado à Igreja Católica. A propósito destadedicatória, Felicidade Alves faz a seguinte menção:«Trata-se de um grande e sumptuoso manuscrito,que sem dúvida se destinava a ser oferta para umapersonalidade régia» (p. 37). O códice é, pois, cons-tituído por 155 páginas, a maior parte delas cobertapor aguada sépia, sendo 17 imagens coloridas, emaguarela, com cores vivas, aspecto que o homemdo Renascimento tanto apreciava. Hoje, por exem-plo, podemos ver na Capela Sistina, pintada por Mi-guel Ângelo, após a sua limpeza e restauro, o gostopelas cores vivas, aspecto que o autor deste álbumtambém aqui patenteia. Nesse sentido, é interessantea referência feita por Sylvie Deswarte: «A Semanada Criação pertence ao grande período italianizante»de Francisco de Holanda, em que, ainda sob o im-pulso da sua viagem a Roma (1538-1540), executaas suas maiores obras conhecidas (cf. As Imagensdas Idades do Mundo de Francisco de Holanda, p. 10).

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Com efeito, a obra foi realizada entre 1545 e 1547.Segundo a descrição do nosso artista, a PrimeiraIdade, que consta de 2242 anos, segundo Eusébioe os nossos cronistas, diz respeito à criação porDeus do céu e da terra, criando a luz e separando--a das trevas, chamando à luz dia e às trevas noite(cf. Jorge Segurado, p. 273). De facto, a imagemé uma clara referência à criação do mundo a partirdo Génesis. Seguindo Sylvie Deswarte, esta autorarefere que estamos perante um álbum concebido àmaneira dos de Alberto Dürer, autor que Franciscode Holanda muito admirou, conforme nos refere estacomentadora: «a citação que Holanda faz de Dürer,acrescentando o Apocalipse a seguir à Sexta Idadeé como que uma confissão desta dívida e desta de-pendência» (pp. 10-11). No comentário a esta pri-meira imagem vamos seguir esta autora, na medidaem que, ao mesmo tempo que a descreve, chama aatenção para aspectos interessantes e que mostrambem que Francisco de Holanda é, claramente, umautor do Renascimento. Assim, começa por dizerque, neste caso, o pintor é inovador, dado que nãoseguiu a tradição figurativa, própria da época, maspintou formas geométricas, para, como nos diz, «fa-zer confluir a versão do Génesis com a do Evange-

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lho segundo São João da Criação do Mundo» (p. 11).E a sua análise aprofunda-se, procurando mostrarcomo nesta primeira imagem a influência joanina estáclaramente presente, nomeadamente quanto à repre-sentação e fundamentação da Trindade, a partir deuma figuração puramente geométrica (um círculo etrês triângulos) que corresponde à afirmação de SãoJoão de que nunca ninguém «viu Deus». De facto,Francisco de Holanada nunca nos dá uma representa-ção antropomórfica de Deus Pai, na Semana da Cria-ção, tão-só do Filho. Quanto a esta primeira ima-gem, Cristo está figurado no triângulo que estabelecea ligação entre o mundo celeste e o terrestre, ou seja,a afirmação da tese de que Cristo é o mediador abso-luto. E neste contacto entre Cristo e a terra, a formada terra, segundo esta comentadora, é uma entorseà geometria das formas puras, a fim de estar em sin-tonia com os dados da Sagrada Escritura. Trata-se,como nos diz, de uma geometria mística, que já ti-nha uma tradição, quer em Joaquim de Flora, querem Raimundo Lúlio, autores que dão grande impor-tância, embora por razões diferentes, à Trindade eao jogo do triângulo e do círculo (cf. pp. 15-16).Temos, então, afirmado, de acordo com o que épróprio do humanismo renascentista, neste caso a

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nível da figuração, a atitude de conciliação, própriado neoplatonismo da época: conciliar Platão com oGénesis. Tal atitude não é de estranhar, pois os gran-des pensadores do humanismo renascentista, comoMarsilio Ficino e Giovanni Pico della Mirandola, sãofilósofos de conciliação. Há, de facto, nestes auto-res, a preocupação em concordar Platão e Moisés,em fazer remontar a Hermes Trimegisto a origemde um saber filosófico e teológico, que estaria naorigem da corrente neoplatónica. Sabemos que ostextos atribuídos a Hermes Trimegisto são bem maisrecentes. Mas Marsilio Ficino, que traduziu a pedidodos Medici de Florença estes escritos herméticos,sentia ser o último elo dessa corrente.

Marsilio Ficino, embora não tenha feito nenhumareferência concreta a obras de arte, escreveu sobreo lugar da arte no contexto da criação do mundo e,deste modo, influenciou com a sua doutrina a pró-ria arte. A sua obra-prima, A Teologia Platónica, dáconta precisamente deste aspecto, conforme já vi-mos. Esta tese está presente na época e tanto filó-sofos como artistas ou literatos a conhecem. Maso que importa reter é o facto de, se Francisco deHolanda veícula esta geometria mística, é porqueestava documentado acerca dela. Também Giovanni

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Pico della Mirandola nos diz na sua obra Discursosobre a Dignidade do Homem: «propusemos ainda,além das novas teses, um outro procedimento fi-losófico com base nos números, seguido pelos pri-meiros Teólogos, especialmente por Pitágoras, porAglaofemo, por Filolau, por Platão e pelos antigosplatónicos […] Escreve Platão no Epinómides quea ciência de contar é, entre todas as artes e as ciên-cias de contemplar, excelente e sumamente divina.E perguntando-se por que razão é o homem o maissapiente dos animais, responde: porque sabe con-tar. Esta sentença também Aristóteles recorda nosProblemas. Escreve Abumasar que foi opinião deAvenzoar, babilónio, que tudo sabe quem sabe con-tar. Tal coisa de modo algum poderia ser verdadeirase, por arte de contar, se entendesse a arte do côm-puto de que agora são peritos sobretudo os mer-cadores; e isto confirma também Platão quando nosadverte, com voz ampla, para não se confundir estaaritmética divina com a aritmética dos comerciantes(p. 89).

Fizemos esta referência, mais longa, para realçar-mos que este é um topos da época, e que o conhe-cimento que Francisco de Holanda possuía acerca

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das questões fundamentais que eram debatidas émuito real, tendo-o apresentado em parte na obraDa Pintura Antiga, e que ao mesmo tempo incor-porou nas suas obras pictóricas, durante este pe-ríodo, a que chamamos humanismo renascentista.

De facto, a Semana da Criação segue o Livro doGénesis; Francisco de Holanda vai pintando e co-mentando. Nesse sentido, diz-nos o pintor a propó-sito do 5.o dia: «Disse Deus: produzam as águasseres vivos e sobre a terra voem as aves sob o fir-mamento do Céu. E criou Deus os monstros mari-nhos, segundo as suas espécies e todos os seresvivos. E foi o 5.o dia» (cf. Jorge Segurado, p. 280).No que diz respeito à Criação do Homem, o últimoser a ser criado, refere: «Disse Deus: façamos ohomem à nossa imagem e semelhança, para quedomine sobre os peixes do mar, as aves do céu eos animais da Terra. E Deus criou o homem e foio 6.o dia» (cf. Jorge Segurado, p. 282). A imagemé a de Adão vivo.

Nesta obra, em que nem todos as imagens sãopintadas, mas a maior parte permanece a sépia, dequalquer modo estes desenhos são comentados, in-seridos em medalhõese, ao mesmo tempo, sãoacompanhados pela referência bíblica, conforme já

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salientámos. Não nos vamos alongar mais sobre aimportância pictórica deste seu álbum. Contudo, paraterminar, há que sublinhar que estamos perante umaobra fascinante, que ilustra muitos dos pressupos-tos teóricos que a sua obra escrita tematiza. O livrodas Imagens das Idades do Mundo é uma marcarelevante do espírito do Renascimento em Portugal.

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CONCLUSÃO

Da exposição feita ressalta, sem dúvida, a coe-rência interna do pensamento e da acção de Fran-cisco de Holanda, patente quer na obra literária querpictórica. Em toda ela perpassa uma intransigentedefesa, argumentada, dos valores artísticos do Re-nascimento. E, ao mesmo tempo, é seu desejo quePortugal acompanhe o que se passa na Europa, aeste nível, especialmente na Itália. Conforme pude-mos verificar, a partir de uma leitura da obra, adefesa que faz da pintura, como a arte das artes, érecorrente. A pintura representa a essência do artís-tico e possui uma dimensão metafísica, dado que oseu fundamento é, em rigor, também metafísico. NaDa Pintura Antiga, a sua obra mais relevante, comotivemos oportunidade de salientar, a sua figura emer-ge como o Apeles Lusitano, imbuído do ideal huma-nista renascentista, pleno de entusiasmo e de amorà arte, que o leva a escrever a obra. Mas, no finalda sua existência, já o encontramos mais amargu-

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rado, reconhecendo que as suas ideias não tiverama aceitação que esperava. E tal facto tornou-se claro,fundamentalmente, após a morte de D. João III.A partir daí sente-se marginalizado, como nos diz,remetido para o seu monte em Sintra, a fazer vidade agricultor. Ora, tal situação era a evidência de queem Portugal a arte não era, deveras, valorizada.Assim, como que passa de uma atitude optimista,enquanto jovem, para uma atitude progressivamentepessimista, amargurada, no final da sua vida, sem,no entanto, deixar de pugnar por aquilo em queacredita. Tanto a Da Ciência do Desenho como aobra Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboamostram o seu espírito lutador e inconformado.Mas, a sua vida dá conta do verso e do reverso deque a existência é feita: acarinhado em jovem pelacorte, priva com grandes figuras do Renascimentoem Itália, especialmente em Roma; regressado aPortugal, vai, progressivamente, perdendo influência,até chegar mesmo ao esquecimento. A sua existên-cia dá conta das aporias próprias da época em quevive. Acentua-se nele o pendor religioso e místico,mas que já a sua primeira obra, mediante a tese dametafísica da Criação Divina, salientava. Olhando de-sapaixonadamente para o seu itinerário existencial,

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vemos que o seu projecto nunca foi abandonado, oque permite captar na sua personalidade algo de mag-nífico e ao mesmo tempo trágico. Francisco de Ho-landa em Portugal sente que está a remar contra acorrente. A verdade é que, enquanto em Itália se viveo auge do Renascimento e já desponta o maneiris-mo, em Portugal afirma-se ainda o gótico, com aconstrução do Mosteiro dos Jerónimos e do Con-vento de Cristo em Tomar. São outras as opçõesinstitucionais. O artista, certamente, tem consciên-cia de que nunca verá reconhecidas em Portugal assuas ideias, nem mesmo o seu talento para as exe-cutar. Contudo, para nós, contemporâneos, que o le-mos e interpretamos, que contemplamos o poucoque conhecemos da sua obra pictórica, não pode-mos deixar de reconhecer a sua forte personalidade,marcada pelo ideário do humanismo renascentista,que nunca abandonou. Nunca é de mais salientar ariqueza da sua reflexão sobre a arte, a audácia deremar contra a maré, de se expor, em nome devalores nos quais acreditava e que sempre defendeu.A tese da metafísica da criação, de que o artista éo principal intérprete, é e será um momento maiorda nossa cultura filosófica e artística.

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BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

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ÍNDICE

Introdução .............................................................................. 3

Cap. I — Vida ........................................................................ 4Cap. II — O Renascimento italiano ................................. 12Cap. III — A influência de Marsilio Ficino sobre a arte 21Cap. IV — O renascentismo de Francisco de Holanda ... 30Cap. V — A obra .................................................................. 32

Da Pintura Antiga (1548) ....................................... 32Do Tirar pelo Natural (1549) .................................. 52De Quanto Serve a Ciência do Desenho (1571) 61Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa (1571) 69Álbum dos Desenhos das Antigualhas (1540) ..... 74De aetatibus mundi imagines (1547) .................... 77

Conclusão ............................................................................... 85

Bibliografia essencial ............................................................ 89

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Colecção Essencial

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73. WENCESLAU DE MORAESAna Paula Laborinho

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74. AMADEO DE SOUZA-CARDOSOJosé-Augusto França

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81. FRANCISCO DE HOLANDAMaria de Lourdes Sirgado Ganho

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Composto e impressona

Imprensa Nacional-Casa da Moedacom uma tiragem de 800 exemplares.

Orientação gráfica do Departamento Editorial da INCM.

Acabou de imprimir-seem Janeiro de dois mil e seis.

ED. 1012461ISBN 972-27-1450-3

DEP. LEGAL N.o 237 227/06

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819 789722 714501

ISBN 972-27-1450-3

81

FRANCISCODEHOLANDA

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

Maria de LourdesSirgado Ganho

O essencial sobre

FRANCISCO DE HOLANDA

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