Francisco Campos e o CPC de 1939. Uma perspectiva ... · A Constituição de 1937, que marca o...

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1 Francisco Campos e o CPC de 1939. Uma perspectiva histórica do Direito Processual. Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida 1 Introdução O presente trabalho tem como objetivo analisar a elaboração do Código de Processo Civil de 1939 a partir da obra de Francisco Campos, ministro da Justiça à época, e principal figura por trás da reforma processual. Em um primeiro momento, será feita uma breve abordagem histórica da legislação de processo civil no Brasil, até 1939, para entender a situação em que o Código é elaborado, e com qual passado a reforma processual dialogava; e em um segundo momento, será analisada a elaboração do Código de Processo Civil de 1939 dentro do pensamento de Francisco Campos e da ideologia que este autor tem sobre o Estado, através da análise da exposição de motivos do CPC de 1939 e dos textos políticos de Francisco Campos reunidos na obra O Estado Nacional. Para a primeira parte, me baseio principalmente no livro Breve notícia histórica do Direito Processual Civil Brasileiro e de sua Literatura, de Moacir Lobo da Costa, que faz um levantamento das leis processuais civis brasileiras, desde a independência, até o momento em que o livro era escrito. Na segunda parte, será feita uma análise 2 das falas de Francisco Campos sobre o Código de Processo Civil, tendo principalmente como base 1 Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFF. Bacharelando em Direito pela UFF. Aluno integrante do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais LAFEP/FD-UFF. Pesquisador em formação (graduando) do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). E-mail: [email protected] 2 Tal análise é baseada em referenciais teóricos da Análise Semiolinguística do Discurso de Patrick Charaudeau, para elucidar como que a construção de discursos sobre a reforma processual de 1939 se dá através da intertextualidade entre textos de doutrina de processo civil e discursos políticos e ideológicos da época.

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Francisco Campos e o CPC de 1939. Uma perspectiva histórica do

Direito Processual.

Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida1

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar a elaboração do Código de

Processo Civil de 1939 a partir da obra de Francisco Campos, ministro da Justiça à época,

e principal figura por trás da reforma processual. Em um primeiro momento, será feita

uma breve abordagem histórica da legislação de processo civil no Brasil, até 1939, para

entender a situação em que o Código é elaborado, e com qual passado a reforma

processual dialogava; e em um segundo momento, será analisada a elaboração do Código

de Processo Civil de 1939 dentro do pensamento de Francisco Campos e da ideologia que

este autor tem sobre o Estado, através da análise da exposição de motivos do CPC de

1939 e dos textos políticos de Francisco Campos reunidos na obra O Estado Nacional.

Para a primeira parte, me baseio principalmente no livro Breve notícia histórica

do Direito Processual Civil Brasileiro e de sua Literatura, de Moacir Lobo da Costa, que

faz um levantamento das leis processuais civis brasileiras, desde a independência, até o

momento em que o livro era escrito. Na segunda parte, será feita uma análise2 das falas

de Francisco Campos sobre o Código de Processo Civil, tendo principalmente como base

1 Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFF. Bacharelando em

Direito pela UFF. Aluno integrante do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais

LAFEP/FD-UFF. Pesquisador em formação (graduando) do Instituto Nacional de Ciência e

Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos

(INCT-InEAC). E-mail: [email protected] 2 Tal análise é baseada em referenciais teóricos da Análise Semiolinguística do Discurso de

Patrick Charaudeau, para elucidar como que a construção de discursos sobre a reforma processual

de 1939 se dá através da intertextualidade entre textos de doutrina de processo civil e discursos

políticos e ideológicos da época.

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a exposição de motivos do código, e outros discursos e textos do autor, em que são tratadas

questões relativas à democracia, à autoridade e ao papel do Estado. Desta maneira, apesar

de o processo civil ser visto muitas vezes como uma matéria eminentemente técnica, esta

pesquisa pretende contribuir para o entendimento de como a legislação de processo civil

se relaciona com os fatores culturais e políticos de uma determinada época, e de como a

elaboração da legislação processual civil pode estar intimamente ligada com questões

políticas do momento em que são elaboradas.

Breve história do Processo Civil brasileiro até 1939

Com a independência do Brasil, aberta a Assembleia Constituinte em 3 de maio

de 1823, é elaborada a lei de 20 de outubro de 1823, que em seu art. 1º definia que “As

Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis

de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821 [...] ficam

em inteiro vigor na pare, em que não tiverem sido revogadas” (BRASIL, 1823).

Desta maneira, a legislação de processo civil, mesmo a partir da independência,

continuou a ser legislada pelo mesmo diploma legal que a legislava na época colonial, ou

seja, o Livro III das Ordenações Filipinas, além das leis extravagantes que haviam sido

editadas posteriormente.

No livro Breve Notícia História do Direito Processual Civil Brasileiro e sua

Literatura, Moacir Lobo da Costa (1970) divide o Processo Civil Brasileiro em cinco

períodos. O primeiro período é definido entre 1832 e 1950, e tem como marco inicial o

Código de Processo Criminal de 1832. Este Código, editado dois anos após o Código

Penal de 1830, tinha como anexo a Disposição Provisória acêrca da Justiça Civil, que

pode ser considerada a primeira legislação processual civil brasileira.

Enquanto Moacir Lobo da Costa vê a referida lei como a frente do seu tempo,

podemos encontrar em Oliveira Viana, conservador e crítico do liberalismo e da

descentralização política, severas críticas ao Código de 1832. No primeiro volume do

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livro Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna critica a descentralização

excessiva que o Código de Processo de 1832 teria trazido, atribuindo grande poder aos

juízes de paz (que eram eleitos no município), em detrimento dos juízes de direito, que

eram enviados pela coroa. Oliveira Vianna vê na organização judiciária e nas leis

processuais um forte instrumento de organização do poder, ao analisar que, aumentando

os poderes dos juízes de paz, eleitos pela oligarquia local, e por isso submetidos aos jogos

políticos destas, o Código de Processo de 1832 teve impactos profundos na organização

do poder no Brasil, reforçando nosso entendimento de que as leis processuais, antes de

serem puramente técnicas, devem ser analisadas sob a ótica da ideologia e da política do

contexto em que são editadas.

Desta maneira, podemos ver que, para Oliveira Vianna, um dos principais pensadores da

Era Vargas, e cujas ideias tinham grande penetração no governo, as leis processuais e de

organização judiciária tinham um impacto profundo nas relações de poder, e foram

determinantes na formação política do nosso povo.

Depois disso, o grande marco do processo civil, anteriormente ao Código de 1939,

aconteceria em 1850. Nesse ano foi promulgado o Código Comercial, e para regulá-lo, o

Ministro da Justiça Euzébio de Queiroz Coutinho Mattoso Câmara convocou uma

comissão, formada por influentes figuras da época, de onde saiu o Regulamento n. 737

(BRASIL, 1850), que disciplinou o processo das causas comerciais.

A recepção ao Regulamento foi tão satisfatória, que, em comissão de 1882,

nomeada pelo Governo da Monarquia para organizar trabalho sobre a administração da

justiça foi recomendado que o Regulamento passasse a ser aplicado não só nas causas

comerciais, mas também em todas as causas cíveis, o que de fato passou a ocorrer após a

proclamação da república, com o decreto n. 763 de 1890, que estendeu as regras do

Regulamento para as causas cíveis.

A proclamação da República, em 1889, trouxe inovações no que tange ao processo

civil, estendendo as normas do Regulamento 737 às causas cíveis, tornando-o o principal

diploma legal de processo civil no Brasil. Porém, a principal alteração que a República

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traz é a competência dos estados para legislar sobre direito processual, enquanto a União

mantinha a competência dela para legislar sobre direito civil, e também sobre o processo

na justiça federal.

A discussão sobre a competência federal ou estadual para legislar sobre o processo

civil esteve presente no contexto da Constituição de 1891, mobilizando grandes

autoridades da época. Em artigo sobre este período, Fernanda Duarte e Andrei Koerner

observam que a discussão se fez forte entre Republicanos defensores da competência da

União para legislar sobre processo de um lado; e de outro, lideranças regionais ligadas ao

Federalismo, como Campos Salles e Júlio de Castlilhos, defendendo a competência

estadual (DUARTE; KOERNER, 2014, p. 21)

Pelo texto dos autores é possível notar como que as discussões acerca da

competência para legislar o processo estavam diretamente relacionadas com as discussões

acerca do caráter federativo da República que se iniciava, e com a maior ou menor

autonomia dos estados frente à União. Os autores observam ainda que o maior ou menor

desejo de autonomia frente à União se relacionava com questões econômicas dos estados.

Enquanto estados como São Paulo, enriquecido pela produção cafeeira, e o Rio Grande

do Sul, tinham uma tendência a defenderem a federação ampla, reforçando o poder das

oligarquias locais, outros estados, mais fracos e com menos recursos, defendiam a

unificação do poder judiciário, de modo que os encargos pela administração desse poder

ficassem à cargo da União.

Desta maneira, o período entre 1891 e a Constituição de 1934 seria marcado pela

elaboração dos códigos estaduais de processo civil3. Os códigos, no entanto, foram sendo

3 Como bem observam Fernanda DUARTE e Andrei KOERNER (2014), os códigos receberam diferentes nomenclaturas. A maior parte seguiu o padrão de utilizar a nomenclatura de “Código o Processo Civil e Comercial”, mas também existiram os que optaram por utilizar apenas “Código do Processo” (Bahia), “Código do Processo Civil” (Minas Gerais) ou “Código Judiciário” (Rio de Janeiro e Santa Catarina).

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editados aos poucos, e enquanto não eram editados, o processo civil nos estados

continuava a ser regido pelo Regulamento n. 737.

Mesmo com as diversas críticas a este modelo, esta situação só vai ser alterada a partir de

1930, com a Revolução de 30 que leva Getúlio Vargas ao poder, através de um discurso

fortemente nacionalista, calcado na pauta de unificação nacional e aumentos dos poderes

da União. Após o fim do governo Provisório e da eleição de Getúlio Vargas, Constituição

de 1934 traz de volta para a União a competência para legislar sobre processo civil,

através de seu art. 5º, inciso XIX.

O artigo 11 das Disposições Transitórias determinava que o governo nomearia “uma

comissão de três juristas para elaborar um Código de Processo Civil e Comercial”. A

comissão então foi formada, liderada pelo Ministro da Justiça, professor Vicente Ráo,

sendo então os projetos parciais do Código de Processo Civil publicados pela Imprensa

Nacional em 1936 e encaminhados ao Congresso. Ficaram, porém, emperrado na

Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados até 1937, quando houve o golpe que

instaurou o Estado Novo, revogando a Constituição de 1934 e dissolvendo o Congresso

Nacional, acabando de vez com os anteprojetos então existentes.

A Constituição de 1937, que marca o início da ditadura do Estado Novo e cujo autor é

Francisco Campos, à época Ministro da Justiça, manteve ainda a disposição

constitucional de dar à União a competência privativa de legislar sobre direito processual.

É a partir deste momento que realizamos nossas reflexões acerca do Código de Processo

Civil de 1939, a partir da obra de Francisco Campos.

O CPC de 1939: Autoridade como ideologia jurídica para o Estado.

A ampla reforma legislativa que acontece durante a ditadura Vargas, em especial

durante o Estado Novo, quando Francisco Campos era ministro, fez profundas reformas

em diversos institutos de nosso direito, de maneira sistêmica. Aqui, pretendemos

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relacionar a ideologia autoritária e anti-liberal defendida por Francisco Campos, com o

Código de Processo Civil de 1939, que, apesar de não ter sido escrito por ele, teve

Francisco Campos como um dos seus principais defensores e idealizadores.

Como colocado, a Constituição outorgada em 1937 (escrita por Francisco

Campos) manteve, assim como a anterior, a competência privativa da União para legislar

sobre direito processual. A comissão de juristas que elaboraria o Código, convocada pelo

Ministro da Justiça Francisco Campos, foi formada pelos Desembargadores Álvaro

Berford, Goulart de Oliveira e Edgard Costa, e pelos advogados Álvaro Mendes Pimentel,

Múcio Continentino e Pedro Batista Martins. Frente às discussões e divergências

presentes na comissão, Pedro Batista Martins apresentou a Francisco Campos um projeto

preliminar de sua exclusiva autoria, sendo este aceito pelo Ministro e publicado no Diário

Oficial em fevereiro de 1939, para que sofresse críticas e sugestões. O anteprojeto foi

revisado pessoalmente pelo Ministro Francisco Campos, com a ajuda do Magistrado

Guilherme Estellita, e do Professor Abgar Renault na sua redação final, sendo

promulgado como Código de Processo Civil pelo Decreto-lei n. 1608, de 18 de setembro

de 1939. Este Código entra em vigor em março de 1940, tendo vigência por quase 34

anos, até entrar em vigor o Código de 1973.

Anexa à publicação do anteprojeto, veio a exposição de motivos do CPC de 1939,

redigida por Francisco Campos. Em trabalho anterior (ALMEIDA; ALMEIDA, 2014),

demonstramos como Francisco Campos utiliza a exposição de motivos para justificar a

reforma processual, aliando-a a um projeto de Estado autoritário e a uma visão publicista

de processo.

Para entender esta reforma, é necessário entender esta visão de processo civil e

Estado autoritário defendida por Francisco Campos, o que podemos fazer através da

análise da obra O Estado Nacional, que reúne os principais textos teóricos e políticos do

autor (incluindo a exposição de motivos do CPC de 1939.

Desta obra, podemos extrair a noção de Estado Autoritário defendida por

Francisco Campos. A argumentação de Francisco Campos parte de um entendimento de

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que ele vive numa época de mudanças. Não só de mudanças, mas de incertezas. O

primeiro discurso contido no livro, intitulado A política e nosso tempo (CAMPOS, 2001),

parte dessa caracterização de incerteza de nosso tempo para construir o papel da educação

e da política frente a essas mudanças.

Para ele, a sociedade evolui de maneira cada vez mais rápida, passando a haver

um anacronismo em relação aos “valores do passado”, que ainda são utilizados para

interpretar o presente, quando não deveriam. Viveriam então o que Campos chama de

“aspecto trágico das épocas de transição”: Uma época onde a sociedade vive com os

valores do passado, onde o “passado continua a interpretar o presente” (CAMPOS, 2001,

p. 13). Através da criação desta imagem de anacronismo entre o presente e os valores do

passado, Campos passa a caracterizar a incompatibilidade entre a democracia liberal e o

regime de massas. O regime de massas, na leitura de Campos, revela o conteúdo irracional

do mundo político. As massas revelariam não só a impossibilidade da esfera pública como

zona de discussão, como também criariam maiores tensões políticas a partir de problemas

decorrentes da pluralidade cada vez maiores de opiniões.

Enquanto o regime anterior (a “república velha”), seria baseado num suposto

liberalismo, e tendo o liberalismo como base uma racionalidade política, baseada no

debate público, o novo regime de massas seria marcado pelo primado do irracional, por

uma irracionalidade incompatível com a democracia liberal. Desta maneira, o projeto

político de Francisco Campos, incorporado no Estado Novo, seria anti-liberal, por

enxergar no liberalismo um sistema incompatível com os tempos modernos.

Enquanto o liberalismo pregaria uma redução dos poderes do Estado (e uma

conseqüente expansão dos poderes dos civis, baseados no debate lógico e público), a

sociedade de massas exigiria um estado forte, garantidor dos interesses da população, e

que seria o grande condutor do povo:

Em primeiro lugar, o poder do Estado há de ser imensamente maior do que o

poder atrofiado pelo conceito negativo da democracia do século XIX. Para

assegurar aos homens o gozo dos novos direitos, o Estado precisa de exercer

de modo efetivo o controle de todas as atividades sociais

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[...]

O princípio de liberdade deu em resultado o fortalecimento cada vez maior dos

fortes e o enfraquecimento cada vez maior dos fracos. O princípio de liberdade

não garantiu a ninguém o direito ao trabalho, à educação, à segurança. Só o

Estado forte pode exercer a arbitragem justa, assegurando a todos o gozo da

herança comum da civilização e da cultura. (CAMPOS, 2001, p. 58)

Neste contexto, o Estado é encarado por Campos como sendo o grande condutor

da nação. Pra campos, esta visão autoria de estado não contradiz a democracia, mas

apenas se opõe a noção liberal de democracia. O estado seria democrático não por ser

baseado numa democracia liberal e representativa, mas sim por atender as necessidades

e anseios do povo.

É a partir daí que devemos analisar a elaboração do código de processo civil de

1939. Apresentarei aqui três aspectos, pelo pequeno espaço que temos, para explorar sua

constituição: a concepção autoritária de processo defendida por Campos, os poderes do

juiz e a unificação processual.

Começando pela última. O projeto de unificação da legislação processual

colocado por Campos se insere dentro do plano político de unificação nacional defendida

por ele para o Estado Novo. Assim, ao unificar o direito processual em um único código

para todo País, o que Francisco Campos propõe é a retirada de poder dos estados

federados, para concentrá-los na União, e, mais do que isso, tirar poder sobre como se

opera na prática o poder dos juízes no âmbito do processo civil.

A partir disso, interessante fica a elaboração da concepção de processo defendida

por Francisco Campos. Relacionando a construção política de Francisco Campos, ele

entende que o processo civil até então estava atrasado, desatualizado, e compatível com

um pensamento liberal que já não mais se adequava a nova sociedade de massas:

A transformação social elevou, porém, a justiça à categoria de um bem geral,

e isso não apenas no sentido de que ela se acha à disposição de todos, mas no

de que a comunidade inteira está interessada na sua boa distribuição, a ponto

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de tomar sobre si mesma, através dos seus órgãos de governo, o encargo de

torná-la segura, pronta a acessível a cada um. (CAMPOS, 2001b, p.163)

Para melhor representar o povo, o Estado teria que tomar para si o controle do

Processo, em consonância com os textos políticos de Francisco Campos, que defendem

um estado forte e autoritário. Duas concepções são assim expressas por Campos, de modo

a criar duas fórmulas antagônicas, uma reprovável, e outra louvável: A concepção

duelística de processo, antes de 1939, liberal, marcada por uma grande autonomia das

partes; e a concepção autoritária de processo, trazida pelo novo código. “À concepção

do processo como instrumento de luta entre particulares, haveria de substituir-se a

concepção do processo como instrumento de investigação da verdade e de distribuição da

Justiça.” (CAMPOS, 2001b, p. 163). Assim, o modelo tradicional, duelístico, é sempre

descrito como um instrumento dos particulares, enquanto o novo modelo é sempre

descrito como um instrumento em nome da verdade e da Justiça, que seria administrado

pelo Estado, através da figura do juiz.

Francisco Campos, desta maneira, coloca o juiz como figura central do novo

processo, a autoridade, que, tal qual o presidente no executivo, representa o Estado, e por

isso, o interesse de todos. “O juiz é o Estado administrando a justiça” (CAMPOS, 2001b,

p. 167), ele diz. O processo duelístico, seria caracterizado pela “luta judiciária entre

particulares” (CAMPOS, 2001b, p. 163, 164), marcado por “princípios privatísticos”

(CAMPOS, 2001b, p. 167), onde “o estado faz apenas ato de presença, desinteressando-

se do resultado e dos processos pelos quais foi obtido.” (CAMPOS, 2001b, p. 163). São

repetidas tentativas de deslegitimar a instância adversária, a relacionando a tais

características negativas.

Já o processo autoritário defendido é o processo de concepção publicista, que

Campos atribui a Chiovenda. (CAMPOS, 2001b, p. 167). Neste modelo, devemos

ressaltar o papel central da autoridade do Juiz: “Essa reforma do processo, destinada a

pôr sob a guarda do estado a administração da Justiça, subtraindo-a à discrição dos

interessados, tem um sentido altamente popular” (CAMPOS, 2001b, p. 163). Aqui, o

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ponto central da reforma é o que Campos chama de processo oral, através do qual são

aumentados os poderes do juiz, quanto ao seu poder decisão e seu controle das

testemunhas e das provas, justificando-se assim algumas das principais mudanças trazidas

pelo Código.

Desta maneira, a reforma processual de 1939 é elaborada por Francisco Campos

com um diálogo constante com todo o passado processual do Brasil, em crítica a ele.

Critica-se o modelo federativo, e o processo liberal (privatístico) com grande autonomia

das partes, para defender uma centralização e uma expansão dos poderes do juiz, que

representaria a autoridade do Estado.

Conclusão

Nossa pesquisa, aqui brevemente reduzida, tem buscado olhar para a reforma

processual civil de 1939 através do pensamento político dos agentes que atuaram nela,

dentro de uma perspectiva histórica. Podemos observar uma ruptura em 1939, que deve

ser relacionada com o pensamento político e o momento do Estado Novo. No nosso

trabalho, relacionamos os conceitos de processo, que supostamente são neutros, com o

momento histórico, para demonstrar como que estes possuem natureza política e se

relacionam com uma ideologia própria do momento onde foram elaborados. Aqui,

demonstramos que a reforma processual de 1939, que resultou numa expansão dos

poderes do juiz e na unificação processual, se ligava a uma crítica aos momentos

anteriores do processo nacional, e a uma teoria política autoritária que justificava esta

concentração de poderes no juiz.

Referências Bibliográficas:

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