FRAGMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NO RAP NACIONAL CONTEMPORÂNEO

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS FRAGMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NO RAP NACIONAL CONTEMPORÂNEO Jorge Wagner Mello de Andrade

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Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Estácio de Sá como parte dos requisitos para obtenção do grau de pós-graduado em Leitura & Produção de Textos

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

PÓS-GRADUAÇÃO EM LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS

FRAGMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NO RAP NACIONAL

CONTEMPORÂNEO

Jorge Wagner Mello de Andrade

RIO DE JANEIRO

2012

Page 2: FRAGMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NO RAP NACIONAL CONTEMPORÂNEO

JORGE WAGNER MELLO DE ANDRADE

FRAGMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NO RAP NACIONAL

CONTEMPORÂNEO

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Universidade Estácio de Sá como parte dos

requisitos para obtenção do grau de pós-

graduado em Leitura & Produção de Textos

RIO DE JANEIRO

2012

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“Porque eu já me senti livre / e hoje eu quero é sentir que eu livro.”

MC Marechal

“Por isso que se diz, ao meu ver com absoluto acerto, que todo artista, queira ele ou não, é

religioso em sua obra, porque a obra que ele faz remete ao Absoluto, a algo maior.”

Adélia Prado

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RESUMO

O presente trabalho nasceu a partir da impressão de que os rappers nacionais da

atualidade imprimiriam, em suas letras, fragmentos do discurso religioso – seja por meio de

metáforas, analogias e outras figuras de linguagem ou, ainda, por meio de relatos mais

objetivos da realidade social onde estão inseridos. Com isso em mente, decidimos, após uma

série de dados de contextualização, analisar algumas dessas letras, reconhecendo nas mesmas

os tais fragmentos.

Palavras-chave: discurso, religião, música popular.

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SUMÁRIO:

Resumo

Introdução......................................................................................................................... 1

1. A PRESENÇA DA RELIGIÃO E DO HIBRIDISMO NO BRASIL.......................... 3

1.1. A presença de fragmentos da simbologia religiosa na música popular

brasileira...................................................................................................... 5

2. O RAP E O PAPEL DO DISCURSO PARA O GÊNERO....................................... 8

2.1. O rap no Brasil...................................................................................... 10

3. ANÁLISE..................................................................................................................... 12

3.1. A presença da religião no cotidiano................................................................14

3.2. Atividade religiosa em momentos de dificuldade...........................................16

3.3. O rap como caminho para a salvação..............................................................19

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................20

Obras consultadas...............................................................................................................22

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INTRODUÇÃO

Ainda que os dados do Censo do IBGE realizado em 2010 apontem para uma redução

do número de católicos no país, a mesma pesquisa mostra, por outro lado, o crescimento da

população evangélica e o aumento na diversidade dos grupos religiosos. Em resumo, os

números mais recentes continuam confirmando a teoria popular segundo a qual o Brasil é um

país religioso.

A soma dos números de praticantes declarados do catolicismo, protestantismo,

espiritismo e das religiões afro-brasileiras representa um total de 89,1% da população

brasileira. Além dessas, aparecem na lista ainda os testemunhas de Jeová, os mórmons,

praticantes do judaísmo, islamismo, budismo e outras religiões. Ao todo, apenas 8% da

população – cerca de 15, 3 milhões dos quase 191 milhões de brasileiros existentes em 2010 –

se declara oficialmente irreligiosa (IBGE, 2010).

Com isso, é de se esperar que a forte presença da religião no cotidiano popular acabe,

constantemente, se refletindo também nas manifestações artísticas – de forma direta ou

indireta. Podemos nos deparar com esse reflexo com razoável facilidade, seja na literatura,

nas artes plásticas ou na música popular, chegando, com isso ao cerne deste trabalho.

Esta monografia tem como objetivo principal demonstrar, por meio da análise de

algumas composições, como os artistas do rap nacional contemporâneo fazem referências a

fragmentos do discurso religioso em suas letras. Para efeito demonstrativo, escolhemos

algumas letras presentes em quatro discos recentes: “Nó na Orelha”, “Doozicabraba e a

Revolução Silenciosa” e “Não Há Lugar Melhor no Mundo Que o Nosso Lugar” – ambos de

2011, dos rappers Criolo, Emicida e Projota, respectivamente – e “Que Assim Seja”, de 2012,

do rapper Rashid.

Consideraremos o estudo do texto musical como unidade literária, seguimos a forma

de estudo proposta Calvani (1998), segundo a qual, “mesmo não desconhecendo o fato de que

a canção só pode ser plenamente avaliada se levada em consideração a intimidade essencial

de letra e música”, optando por privilegiar as letras como o foco da atenção – proposta similar

a do poeta Augusto de Campos quando, ao publicar o livro “Balanço da Bossa e outras

bossas”, avaliou o cantor e compositor Caetano Veloso como um grande poeta, propondo aos

historiadores da literatura que reconhecessem a “criatividade da nova poesia da canção

popular” (CALVANI, 1998, pg. 14).

Começamos a pesquisa dissertando sobre a presença da religião no cotidiano do

brasileiro, e sobre o papel do hibridismo nessa questão. Para isso, nos valemos de informações

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recolhidas do censo religioso realizado pelo IBGE no ano de 2010, além de dados da pesquisa

de Walnice Nogueira Galvão (2006) sobre o tema do sincretismo religioso no Brasil.

No tópico seguinte, buscamos observar a ocorrência de fragmentos religiosos na

música popular nacional de maneira mais ampla, embasando antes a canção popular como um

território tão legítimo quanto a áreas mais tradicionais como antropologia, filosofia,

sociologia ou psicologia para o estudo da religião.

Desta forma, entramos no segundo capítulo falando, finalmente, sobre o rap: sua

história, o papel do discurso verbal em sua constituição e a sua chegada ao país. É tal

contextualização que nos permitirá, no capítulo 3, realizar a análise de algumas letras. Para

efeito demonstrativo, selecionamos três aspectos ligados ao discurso religioso – relatos da

presença do sagrado no cotidiano, a prática religiosa em momentos de dificuldade e a ideia de

salvação – para serem reconhecidos nas obras selecionadas.

1 – A PRESENÇA DA RELIGIÃO E O HIBRIDISMO NO BRASIL

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Segundo os dados apurados pelo IBGE para o censo do ano de 2010, o país possuía,

até então, uma população total de 190.732.694 indivíduos, sendo que, desses, apenas 8%

declara-se oficialmente irreligiosa. Embora o número de católicos tenha seguido a tendência

de decrescência já percebida nas duas décadas anteriores (IBGE, 2010), a pesquisa apontou

para um aumento no número de evangélicos e na diversidade de grupos religiosos. Com isso,

mantém-se respaldada a popular teoria de que somos uma nação religiosa.

Ainda que os números apontem para uma grande maioria católica, seguida das

religiões evangélicas, é notável que a convivência entre os praticantes das mais diversificadas

religiões transcorra sem grandes incidentes (ANTONIAZZI, 2004), chamando a atenção para

o fenômeno do hibridismo religioso.

O hibridismo (ou sincretismo) no Brasil surge em decorrência da própria colonização e

da maneira como ela se dá, com os colonizadores europeus impondo suas crenças

inicialmente aos índios nativos e, também em seguida, aos africanos trazidos como escravos

para o país. Segundo Renato Henrique Guimarães Dias (2010):

Essa tentativa forçada de aculturação sempre encontrou resistência, o que acabou resultando em várias tentativas feitas por indígenas e africanos de conciliar os princípios de suas culturas e, por conseqüência, de suas tradições religiosas, à doutrina cultural e religiosa que lhes eram impostas. Na tentativa de preservação dos princípios e práticas religiosas indígenas e africanas, por meio da conciliação com os princípios e práticas católicas, acabaram levando ao nascimento de várias manifestações sincréticas em solo brasileiro, únicas no mundo, algumas delas existentes até os dias de hoje.

Essa imposição vertical do catolicismo europeu e o surgimento de novas e híbridas

religiões oriundas em decorrência disso disseminariam a religiosidade ao povo que se

constituiu pelos séculos seguintes à colonização.

Segundo Walnice Nogueira Galvão (2006), esse hibridismo é observado na literatura

no século IXX, pela primeira vez, no romance Memórias de um Sargento de Milícias, de

Manuel Antônio de Almeida, por meio de referências a cerimônias religiosas – como a festa

do Divino Espírito Santo e a Procissão dos Ourives, incluindo um grupo de Baianas em trajes

africanos, unindo danças do candomblé ao culto de tradição católica (GALVÃO, 2006).

A começar por Memórias de um Sargento de Milícias, a presença de rituais religiosos

diversos, bem como referências e símbolos ligados, em diferentes graus, ao universo

tipicamente religioso passaram a aparecer não apenas na literatura – como nos romances de

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Jorge Amado –, mas também em outras formas de arte, como na pintura – caso dos painéis de

azulejo feitos por Portinari – e na música – área sobre a qual se debruça este trabalho.

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1.1 – A PRESENÇA DE FRAGMENTOS DA SIMBOLOGIA RELIGIOSA NA

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

É possível que possamos encontrar outros caminhos para o estudo da religião que não

passem apenas pelas tradicionais antropologia, filosofia, sociologia ou psicologia. A música

popular, por exemplo. Como argumenta Caldas (2006):

(...) não é conveniente esquecer que há diversas outras possibilidades de utilização de outras ferramentas auxiliares e, sem dúvida, outras possibilidades teórico-metodológicas para se estudar a religião. Uma de tantas possibilidades é a exploração de poesias da Música Popular Brasileira (MPB) pela ótica dos elementos religiosos que tais composições veiculam. A MPB é construída em forma de poesia. Como tal, pode ser considerada elemento que expressa sentimentos, aspirações, sonhos e desejos mais profundos do povo, sem embargo inclusive do elemento religioso, da busca do transcendente.

Sobre a questão do gênero literário poético, no qual poderíamos inserir também às

letras musicais, como um meio para a transmissão de conteúdos imbuídos de religiosidade,

Caldas alega ainda:

O gênero literário poético há séculos é usado para veicular a busca humana pelo transcedente. Neste sentido, religião e literatura têm uma história de milênios. Não poucas tradições religiosas lançam mão da literatura para veiculação de suas crenças e conceitos. E até mesmo alguns textos que não são religiosos em um sentido strictu senso – “profanos” portanto – também servem como veículos transmissores de conteúdos imbuídos de religiosidade. Desde tempos imemoriais existe essa relação.

É válido, também, que citemos Calvani (1998) em relação ao fato de consideramos

letras de músicas como unidades literárias passíveis de estudo, “mesmo não desconhecendo o

fato de que a canção só pode ser plenamente avaliada se levada em consideração a intimidade

essencial de letra e música”, numa proposta similar à do poeta Augusto de Campos ao avaliar

Caetano Veloso como um dos grandes poetas da década de 1960 (CAMPOS, 1986), propondo

aos historiadores da literatura que reconhecessem a “criatividade da nova poesia da canção

popular”.

Isto posto, para contextualizarmos a questão da utilização de fragmentos do discurso

religioso no rap contemporâneo, iniciaremos com algumas referências à música popular

nacional gravadas após o lançamento do disco “Chega de Saudade”, de João Gilberto, em

1959 – incluindo, porém, composições feitas e gravadas originalmente em décadas anteriores.

O disco “Chega de Saudade” inclui em seu repertório uma regravação de “Aos Pés da

Cruz”, composição de Marino Pinto e Zé da Zilda gravada originalmente em 1942 por

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Orlando Silva. Na letra, o personagem cobra a sua amada pelo pecado do abandono, pela

quebra de uma promessa feita em nome de Jesus, como diz o título, “aos pés da santa cruz”. A

inclusão da obra em um disco que revolucionaria a música popular brasileira e estenderia sua

influência pelos anos seguintes (CASTRO, 1990) pode ser apontada como representativa para

a presença dos fragmentos do simbolismo religioso na mesma, aos quais temos nos referido

desde o início.

Na década de 1960, novos movimentos musicais viriam para substituir a popularidade

da Bossa Nova – caso da Jovem Guarda, mais ligado ao rock, e da Tropicália, que

reverenciava tanto ao samba, a bossa ou a Jovem Guarda (CALADO, 1997). Ao longo dos

anos, artistas ligados a ambos os movimentos voltariam a imprimir em suas letras novas

referências ao âmbito religioso. É esse o caso de Gilberto Gil com a faixa título de seu

primeiro disco “Louvação”, de 1967 – um ano antes da explosão da Tropicália, portanto

(CALADO, 1997) –, na qual Gil expõe a sua necessidade de louvar “o que bem merece”,

deixando “o que é ruim de lado”. É esse ainda o caso de “Meu Mar”, composição assinada em

1971, já após o fim da Jovem Guarda, por Roberto Carlos (que, anos antes, havia gravado as

músicas “Quero que vá tudo para o inferno” e “Eu te darei o Céu”) e Erasmo Carlos, que

versa sobre a mudança para uma terra lúdica e conta com os versos “quero ver meu Deus

voltar um dia / então eu vou ver o meu Deus voltar”, encontrando paralelos com a ideia do

paraíso e do retorno do Messias cristão.

Dentre uma infinidade de nomes e obras passíveis de análise e nos quais poderíamos

encontrar os mesmos tipos de exemplo, destaquemos os de Jorge Ben (que passaria a atender

como Jorge Ben Jor na década de 1980), Tim Maia e Gerson King Combo – ligados à black

music nacional e, consequentemente, inspiradores para aqueles que viriam a fazer rap no

Brasil nos anos seguintes.

Já em seu primeiro disco, “Samba Esquema Novo” (de 1963 – contemporâneo à

Jovem Guarda e anterior à Tropicália, portanto), além da diluição do samba ao rock e à Bossa

Nova, Jorge Ben já registrava em suas composições elementos líricos que marcariam presença

em toda a sua discografia. Seja pelo canto introdutório de “Mas Que Nada” (um “samba de

preto velho”, segundo a letra) ou pela descrição de uma cerimônia nagô em “A Tamba” no

primeiro disco, por toda a temática de “A Tábua da Esmeralda” (disco de 1974) ou em “A

Banda do Zé Pretinho” (de 1978), toda a obra do músico é permeada por referências à cultura

e as religiões afro-brasileiras, alquimia, ocultismo etc. No entanto, todas essas referência

aparecem sempre diluídas ou contrapostas a conteúdos líricos mais leves, evitando com que

os fragmentos se tornem a razão de ser da obra de Jorge Ben.

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Criado no bairro da Tijuca (onde teve contato na infância e na juventude com os já

citados Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Jorge Ben), Tim Maia é considerado como um dos

responsáveis pela introdução da soul music no Brasil (MOTTA, 2007). Em seu primeiro disco

(homônimo, 1970), Tim já faz referências ao meio religioso em “Padre Cícero”, exemplo

seguido no disco do ano seguinte com a faixa “A Festa do Santo Reis”. Mas, de fato, o

momento mais notável da incorporação das imagens religiosas na obra do cantor e compositor

se dá entre 1975 e 1977, quando Tim adere à filosofia religiosa Cultura Racional (MOTTA,

2007). Além da qualidade estética, com arranjos elaborados e qualidade vocal superior aos

trabalhos anteriores (frutos do afastamento do cantor dos vícios), os discos “Tim Maia

Racional”, volumes 1 e 2, são verdadeiros panfletos religiosos, como mostra a letra de “Bom

Senso”, dos versos “Já fiz muita coisa errada/ (...) / mas lendo, atingi o bom senso / a

imunização racional”. Tirados de circulação após a desilusão do cantor com a seita (MOTTA,

2007), os álbuns se tornariam raridade, e muitos trechos de suas músicas seriam sampleados

mais tarde pelos futuros rappers brasileiros (SOUZA, 2005).

“O certo é seguir os mandamentos black”, doutrinava Gerson King Combo

(pseudônimo do carioca Gerson Côrtes) em “Mandamentos Black” (faixa que abre seu disco

homônimo de 1977), explicando quais seriam esses mandamentos a seguir: ações como, entre

outras, dançar, amar e andar "como anda um black". Como um Moisés do subúrbio, Gerson

adotava o termo religioso e a postura doutrinária para, efetivamente, ditar um conjunto de

normas de comportamento aos membros dos movimentos black do Rio de Janeiro na década

de 1970. Tal qual Tim Maia, Gerson também seria uma figura fonte de inspiração e influência

para os rappers que em breve surgiriam no país. Uma prova disso está na citação dos

“mandamentos black” na letra de “Qual é”, lançada no disco “A Procura da Batida Perfeita”,

de Marcelo D2, no ano de 2003.

Até aqui, esta pesquisa tem demonstrado que fragmentos do discurso, da simbologia e

das imagens religiosas convivem em harmonia com as artes no Brasil, incluindo aí a música

popular – analisada a partir do disco “Chega de Saudade”, de 1959. Desta forma, chegamos a

alguns nomes importantes para a história da música negra popular no país, antecessora ao rap

nacional. Para chegarmos a análise, de fato, da presença do discurso religioso diluído no rap

nacional contemporâneo é preciso, porém, explicarmos o que é o rap, qual o papel

desempenhado pelo conteúdo lírico no estilo e como o estilo chega ao país, abraçando as

imagens religiosas presentes no cotidiano do brasileiro. Serão essas, portanto, as questões

sobre as quais iremos refletir no próximo capítulo.

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2 – O RAP E O PAPEL DO DISCURSO PARA O GÊNERO

Embora há quem defenda a similaridade do rap (nome formado pelas iniciais de rythm

and poetry – ritmo e poesia) com outras experiências musicais ao redor do mundo (incluindo

as dos repentistas nordestinos, por exemplo), a origem oficial do gênero data-se da metade da

década de 1970 em Nova Iorque, inspirado no que jovens da Jamaica já vinham fazendo para

animar festas de rua com a utilização de um microfone, dois toca-discos e dois

amplificadores. Como explica Dutra (2006):

Nestas festas os MCs (mestres de cerimônias) usavam o microfone para dar recados e diziam frases para animar a festa de forma ritmada sobre versões dub (técnica que possibilita retirar os instrumentos e vozes, mantendo apenas as linhas do baixo e bateria) das músicas mais dançantes. Surgiam assim os primeiros elementos do rap: poesia rimada sobre uma base rítmica. Diferentemente do que acontecia na Jamaica, onde as festas eram realizadas com música caribenha como o reggae, as músicas que tocavam nas festas de rua em Nova Iorque nesta época eram o funk e o soul, que se tornaram a base rítmica do rap.

Além das rimas sobre bases musicais, tornaram-se elementos intrínsecos ao rap a

utilização dos scratchs – ruído produzido ao girar, manualmente, um disco sob a agulha em

sentido contrário; essa técnica foi desenvolvida pelo DJ Grand Master Flash (DAYRELL,

2005) – e dos samplers – colagens de sons ou trechos de outras músicas.

Como a própria origem do nome rap indica, o gênero se propõe, no entanto, a ser mais

que um estilo musical. Desde as experiências anteriores na Jamaica chegando, finalmente, às

experiências nova-iorquinas da década de 1970, a participação dos MCs

improvisando suas rimas sob as bases, os scratchs e os samplers, pressupunha uma grande

importância para a parte verbal do gênero. “A poesia do rap tem a intenção de passar uma

mensagem seja de maneira discursiva ou narrativa.”, explica Dutra (2006). E essa mensagem

estaria, nesse primeiro momento, diretamente ligada aos movimentos de valorização da

comunidade negra. Segundo Souza (2005):

Desde o início, o rap esteve vinculado a um movimento social, pois os MCs - com especial destaque a Afrika Bambaataa - davam voz (literalmente, através da cessão do microfone) aos dançarinos que quisessem falar durante a execução das músicas. Mais tarde, a figura do MC foi incorporada à do rapper, que é quem compõe e canta as letras em cima das bases musicais compostas pelo DJ. Esses pioneiros tinham como influências artísticas e discursivas cantores de soul e funk, como James Brown e Marvin Gaye. É que, além de trazerem a música negra que servia de base para as danças e discursos dos bboys, artistas como Brown e Gaye apoiaram abertamente a luta pelos direitos civis e deram visibilidade ao movimento black power. Como exemplo, James Brown gritava, em seus shows, o slogan: Say it loud: I'm black and

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I'm proud". O movimento também se influenciava por ações como as dos Panteras Negras, frutos de um marxismo maoísta e black power.

Em conjunto com a breakdance (dança de rua) e o grafitti (tipo de arte plástica feita

em ambientes urbanos), o rap compunha as bases do movimento hip-hop. Esses elementos,

segundo Barbosa (2005):

(...) exerciam um caráter legitimador das expressões de revolta contra a opressão socioeconômica e racial, devido ao uso de reflexões sobre histórias reais, angústias particulares e experiências de vida dos próprios compositores a cerca da desigualdade de classe social (econômica), racismo e outros temas até então considerados tabus numa sociedade preponderantemente tradicionalista.

Dando voz às minorias norte-americanas, o rap acabaria sendo exportado para outros

países, se adaptando às realidades locais. É sobre a chegada, adaptação e o atual momento do

gênero no país que falaremos no próximo tópico.

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2.1 – O RAP NO BRASIL

Como dito anteriormente, há quem defenda a ocorrência do rap no Brasil antes mesmo

de sua oficialização como gênero musical pertencente ao movimento hip-hop norte-americano

dos anos de 1970. Enquanto alguns incluem os repentistas nordestinos como os primeiros a

fazer rap no Brasil (SOUZA, Tárik de. 2003), há ainda quem defenda a gravação de Jair

Rodrigues datada de 1964, “Deixa Isso Pra Lá”, como uma das pioneiras do gênero. No

entanto, continuaremos a considerar a origem estadunidense do estilo e do termo, com sua

posterior chegada ao Brasil na década de 1980.

Assim como James Brown e Marvin Gaye influenciaram na gênese do estilo nos

Estados Unidos, nomes da cena black local como Cassiano, Banda Black Rio e os já citados

Jorge Ben, Tim Maia e Gerson King Combo seriam influentes na produção do rap nacional

(SOUZA, 2005). O nome daquele que viria a ser o grupo de rap mais popular no Brasil,

Racionais MCs, é um exemplo dessa influência, uma vez que se inspira nos volumes I e II da

“fase-Racional” de Tim Maia – embora o grupo não faça qualquer apologia à temática

filosófica-religiosa defendida pelo cantor, com convicção, entre 1975 e 1976 (SOUZA, 2005).

Os Racionais MCs, no entanto, não foram o primeiro grupo de rap a surgir no país. A

origem do gênero, por aqui, remonta aos tempos da chegada do break no país – de forma

paradoxal, por meio de brasileiros pertencentes a classes sociais mais altas que viajavam para

o exterior, aprendiam os passos e, mais tarde, os praticavam nas danceterias locais

(CONTIER, 2005).

Nelson Triunfo começou a freqüentar a discoteca Fantasy , no bairro de Moema, onde se apresentava com o seu conjunto de soul Funk & Cia..Após ter freqüentado o Fantasy, durante aproximadamente um ano, N. Triunfo levou o break e o hip-hop para o seu local da origem: a rua.

Nesse primeiro momento, no entanto, os simpatizantes dessa manifestação não sabiam

explicar o movimento hip-hop. Foi preciso que houvesse uma cisão entre os primeiros

breakers e rappers, com o primeiro grupo continuando a se reunir no largo São Bento e o

segundo passando a se encontrar na Praça Roosevelt para que ambos se fortalecessem em suas

identidades (CONTIER, 2005), ganhando autonomia entre si. E é somente após esse

fortalecimento que o rap nacional, enquanto gênero musical, tem seus primeiros registros em

disco por meio da coletânea “Hip-Hop Cultura de Rua”, organizada pela gravadora Eldorado,

que contava com a participação de Mc Jack, Código 13, O Credo e Thaíde & DJ Hum.

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Tais quais os já citados Racionais MCs, Thaíde & DJ Hum são nomes importantes

para a nossa pesquisa, uma vez que continuaram atuantes desde a década de 1980, gravando

alguns dos grandes títulos do rap nacional e servindo como referência para muitos dos futuros

rappers locais. Da mesma forma, Thaíde & DJ Hum também possuem em algumas de suas

músicas, os fragmentos do simbolismo religioso aos quais temos nos referido desde o início.

Em 1996, na letra de “Sr. Tempo Bom”, Thaíde reflete sobre a história do movimento black

do Brasil, desde a década de 1970 até a época então contemporânea, e, antes de listar nomes

como Gerson King Combo, Tim Maia, Jorge Ben e outros, frisa a importância que as raízes

religiosas tiveram em sua formação nos versos em que se recorda de sua mãe, “voltando pra

dentro do nosso barraco / com uma roupa de santo debaixo do braço”.

Com o advento das primeiras gravações, o rap e todo o movimento hip-hop deixaram

de ser restritos à capital paulista, espalhando-se por todo o país. E ainda que alguns grupos –

como exemplo, os próprios Racionais MCs – se recusem a adentrar no mundo da mídia

tradicional (CONTIER, 2005), o rap acabou caindo nas graças da classe média, o que

comprova o sucesso comercial do disco “A Procura da Batida Perfeita”, do carioca Marcelo

D2, em 2003, seguido do “Acústico MTV”, em 2004, vendendo 100 mil e 50 mil,

respectivamente.

É importante citarmos, inclusive, o trabalho realizado por nomes como Pregador Luo e

Apocalipse 16, DJ Alpiste, Ao Cubo e outros que estão efetivamente inseridos no universo

religioso, produzindo o que recebe a denominação de rap cristão – e destoando, portanto do

interesse de nossa pesquisa, em analisar o discurso na música popular, sem vínculos

panfletários com alguma filosofia religiosa específica. Lidando com a questão da mídia de

diferentes formas, alcançando públicos distintos, abordando temas diferenciados, misturando

elementos de outros ritmos e culturas e galgando posições distintas em relação ao sucesso de

crítica, muitos são os nomes dos que produzem o rap no país atualmente. Para efeito deste

trabalho, porém, voltaremos nossa atenção para letras presentes nos discos “Nó na Orelha”,

“Doozicabraba e a Revolução Silenciosa”, “Não Há Lugar Melhor no Mundo Que o Nosso

Lugar” e “Que Assim Seja”, trabalhos mais recentes dos rappers Criolo, Emicida, Projota e

Rashid. A escolha dos três nomes e não de outros de uma imensa lista de possibilidades tem

menos a ver com a questão da atual popularidade dos mesmos e mais por reconhecermos nos

discursos de ambos, mesmo que em meio a outros assuntos, ainda alguma preocupação com

as questões sociais que ajudaram a definir a linguagem do rap em sua origem. Entre

singularidades e similaridades, buscaremos encontrar a ocorrência de fragmentos do discurso

religioso em suas composições.

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3 – ANÁLISE

Do início deste trabalho até o atual momento, já passamos por números que

comprovam a teoria da religiosidade como questão presente no cotidiano do brasileiro, bem

como pela relação cordial entre os praticantes de diversas modalidades religiosas possíveis.

Também abordamos as questões das imagens religiosas na música popular nacional, da

origem do rap e da importância intrínseca do discurso verbal para o gênero, bem como sua

chegada ao país, antecedida pelos dançarinos de break. Antes de nos dedicarmos efetivamente

à análise de algumas letras presentes nos registros mais recentes dos rappers Emicida, Criolo,

Projota e Rashid em busca de referências aos fragmentos do discurso religioso, será preciso

que tomemos, novamente, algumas notas sobre a questão da ótica religiosa como forma de

reinterpretação do cotidiano. Segundo Gargani (1996):

Se a transcendência religiosa não fosse uma diferença que emerge das figuras atuais e da nossa experiência, sequer poderia ser mencionada. A transcendência apaga-se, deste modo, como repartição das raias ontológicas entre classes de entes, mas não se anula como ponto crítico da atividade de interpretação dentro do fluxo dos fenômenos da vida e da história. A religião, afinal, não será o discurso que descobre e revela um Outro Objeto, uma Outra Entidade, mas um termo de comparação segundo o qual as situações, as figuras e os processos da nossa vida são reinterpretados. (...) um paradigma que torna extraordinários os objetos e as situações da nossa vida ao elevá-los ao nível da força simbólica extraordinária.

Ao entendermos os rappers como poetas e cronistas cuja matéria prima é a realidade

das ruas, compreendemos que os mesmos precisam reinterpretar as situações cotidianas suas e

de seus pares e que, ao fazê-lo, podem se aproximar do discurso religioso, da postura

sacerdotal – ainda que de forma inconsciente, visto que, muitas vezes, os mesmos não

possuem uma ligação direta ou uma participação efetiva em alguma corrente religiosa

específica. Voltando novamente à questão dos textos não religiosos num sentido strictu senso

como capazes de transmitir conteúdos cheios de religiosidade, podemos citar Suzigan, para

quem:

A ciência, a arte e a religiao fundiam-se em uma forma primitiva de magia. Essas função mágica da arte alterou-se gradativamente, cedendo lugar á compreensão das relações sociais, ajudando o homem a conhecer melnhor e a transformar a realidade social. A magia é residual na arte, advinda de sua gênese. Sem ela a arte perde algumas de suas características originais. Mas não é mais a sua principal função.

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Tomemos, portanto, a ideia de “magia residual” como um sinônimo possível à ideia de

fragmentos religiosos e sigamos, finalmente, para a análise de algumas letras dos já citados

rappers Emicida, Criolo, Projota e Rashid.

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3.1 – A PRESENÇA DA RELIGIÃO NO COTIDIANO

Como já vimos no capítulo que trata sobre a presença de fragmentos da simbologia

religiosa na música popular nacional, ações diversas pertencentes ao universo ritualístico das

religiões são descritos, com frequência, na obra de vários compositores brasileiros – seja a

promessa feita “aos pés da cruz” na letra de Marino Pinto e Zé da Zilda, seja o chamado da

tamba cantado por Jorge Ben, o estudo do livro “Universo em Desencanto” (que dá as

diretrizes da Cultura Racional) por Tim Maia ou ainda a “roupa de santo debaixo do braço” à

qual se refere Thaíde. O que buscaremos demonstrar a seguir, por meio de exemplos

selecionados nas composições dos rappers escolhidos para essa pesquisa, é que o rap nacional

também carrega em si essa característica, ainda que, por vezes – como no exemplo de “Senhor

Tempo Bom”, de Thaíde – essa presença da religião seja apenas observada, sem a

participação direta do interlocutor. Não se trata, portanto, de se portar uma bandeira, mas de

constatar a sua presença no cotidiano.

Voltando à proposta de Gargani (1996) de entender a religião como “um termo de

comparação segundo o qual as situações, as figuras e os processos da nossa vida são

reinterpretados” – opinião compartilhada pela escritora Adélia Prado ao defender o cotidiano

como matéria prima tanto para a experiência religiosa quanto para a experiência poética (In:

MASSIMI e MAHFOUD) –, torna-se justificável a existência de referências, metáforas e

comparações de situações do dia a dia de um rapper com imagens, simbologias e figuras

próprias do universo religioso. Diversas imagens e analogias com a linguagem tipicamente

cristã são usadas, por exemplo, pelo rapper Rashid (pseudônimo de Michel Dias da Costa)

para falar de injustiça social na letra de “Drama”, seja ao afirmar que tentar entender a vida “é

como meter a colher nos planos de Deus”, ao citar o ladrão que “vem quando menos se

espera” ou na seqüência “o veneno não tá na maçã, / tá na má intenção da serpente, /

geralmente um demônio no ombro esquerdo, / um anjo no ombro direito, / os dois comendo

sua mente” (sic).

Existem ainda alguns exemplos mais simples, que não recorrem ao uso de figuras de

linguagem. Em “1989”, por exemplo, Emicida (nome artístico de Leandro Roque de Oliveira)

faz um relato das lembranças de seu bairro durante sua infância. E com a mesma nostalgia de

quem rememora a “kombi que trocava garrafa por doce”, Leandro versa ainda sobre o

sincretismo em sua comunidade ao citar “catequese, comunhão, Salve Cosme e Damião! /

Oxalá, Jesus, despacho, oração”. Outro exemplo de inserção de fragmentos do sagrado na

música encontra-se ainda o canto “Ògún á jó e màrìwò”, saudação ao orixá Ogum nos cultos

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de candomblé, no início da música “Mariô”, do rapper Criolo – pseudônimo de Kleber

Cavalcante Gomes.

O que entendemos, portanto, é que, quer o rapper tenha ou não uma participação direta

em algum culto ou filosofia religiosa, a reintepretação de suas experiências cotidianas podem

vir a fazer referência a questões pertencentes ao universo religioso no ato da composição. E

essas referências podem vir por meio de analogias, comparações, relatos ou citações diretas,

como demonstramos com os exemplos supracitados.

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3.2 – ATIVIDADE RELIGIOSA EM MOMENTOS DE DIFICULDADE

Conforme vimos no tópico anterior, imagens do âmbito religioso costumam aparecer

nas composições dos rappers nacionais, seja por meio de analogias ou citações diretas

relacionadas ao cotidiano dos compositores. Da mesma forma, algumas composições retratam

ainda como determinadas práticas religiosas aparecem presentes na vida das pessoas de seu

meio social em certas situações.

A realização de uma quermesse e a presença de uma benzedeira na comunidade são

citadas na letra de “Sucrilhos”, do rapper Criolo, no trecho “dez mil pessoas numa favela, na

quermesse do Campão / então Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo / têm o mesmo valor que

a benzedeira do bairro”. Reforçando a importância da figura da benzedeira em seu meio, o

autor ainda desafia o ceticismo nos versos seguintes: “disse que não, ali o recém-formado

entende / vou esperar você ficar doente”. Segundo Criolo, em momentos críticos – como na

doença, por exemplo –, todos, inclusive o recém-formado, acabam acreditando no

sobrenatural, abrindo espaço para o mundo dos rituais e das tradições ligadas às religiões.

A prática de um ato religioso em um momento de dificuldade também é relatada na

letra de “Canção pros meus amigos mortos”, do rapper Emicida:

Dizem que quando seus amigos morrem,Viram estrelas, sobemPeço que olhem, oremNunca ignoremOro caladoOs guardo em olhares mareadosOnde pupilas são barcos desnorteadosFumaça no ar, cápsulas no chão (...)

Ao dedicar uma de suas composições a alguns amigos vitimados pela violência do

subúrbio paulista, Leandro não apenas incentiva como ressalta o papel da oração em sua

busca de conforto durante o luto. O mesmo contexto – o luto por amigos – é o que faz com

que o rapper Projota (pseudônimo de José Tiago Sabino Pereira) reflita sob a ótica filosófica e

religiosa em “Pra não dizer que não falei do ódio”:

Morre um irmão com tiros na rua de trásMe faz pensar mais nisso e esquecer das coisas banaisMundo louco que leva meus manos,Vão sumindo ao longo dos anosDe onde viemos, pra onde vamos,Todos pecamos, por que nos julgamos então?

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Após falar sobre as “lágrimas de São Paulo” e o sofrimento que “aflige o povo em

todo o Brasil”, o mesmo Projota argumenta que “pra proteger é que existe a rezadeira”, antes

de pedir: “que a minha rezadeira reze por mim / que faça impenetrável a pele desse neguin”

(sic).

Recorrer a uma benzedeira ou rezadeira, dedicar-se à oração ou à meditação e à

reflexão apresentam-se como opções para a cura, a proteção e o alívio de angústias. Notemos,

mais uma vez, que as referências às ações citadas aparecem diluídas a outras preocupações

temáticas, o que as impede de tomarem a forma de um conteúdo mais catequista ou

sacerdotal.

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3.3 – O RAP COMO CAMINHO PARA A SALVAÇÃO

“São três Fs: foco, força e fé”, enumera Rashid logo no início de “R.A.P.”, faixa de

sua mixtape “Que Assim Seja”. São esses os pilares que, segundo o autor, podem nos ajudar

contra as dificuldades do cotidiano. Ao longo da letra, Rashid segue atribuindo ao rap

características que o tornam substituto de movimentos sociais, de figuras familiares, da escola

etc. Como vemos a seguir:

O rap não tá longe dos consumidoresEle tá longe dos consumidosÉ o terror, é o terror de quem tenta empurrarNovela e B-B-Besteira nos seus ouvidosPorque quando o Teleton não veio, o rap tava láCriança Esperança não veio, o rap tava láO rap tava láQuando o pivete não queria ouvir o pai Quem é que ele ia escutar?

Exemplo semelhante pode ser encontrado na letra “Mais do Que Pegadas”, onde

Projota conta sobre seu começo no rap em busca do “caminho onde o homem evolui”. Projota

revela, na sequência, o processo pelo qual precisou passar antes de se considerar, finalmente,

um rapper maduro:

Se Deus me deu caneta, eu devolvi poesiaPassei decorar todos os rap que eu ouviaE um dia, comprei uma corrente que tinha cor de prataMas não era de prata, reciclagem de lataComprei duas camiseta GGE a calça mais larga que a loja podia venderMe senti mais vivo, funcionava como incentivoMais um motivo pra eu acalmar meu lado agressivoDepois joguei tudo isso fora, enfimTava maduro pra enxergar que o rap já tava dentro de mim

Notemos que “devolver poesia” é apenas um dos pontos do amadurecimento do eu

lírico, estando inclusos no processo também o aprendizado dos raps de outros e a vestimenta –

funcionando como incentivo. O aprofundamento no gênero musical, abarcando suas primeiras

composições, os raps decorados e suas roupas, ajudaram, portando, no chamado

amadurecimento, que guarda, nesse caso, semelhanças com o conceito de conversão religiosa

– experiência de utilidade subjetiva que torna possível, segundo W. James, a renovação das

“potências vitais” de um indivíduo, tratando-se de “um estado emocional que transmite

resistência, ou prazer, ou sentido” à vida de alguém (JAMES apud VALE, 2002).

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Reafirmando a ideia do caráter redentor do rap, Projota argumenta, com todas as letras, em

“Nós somos um só”: “Fui salvo, por isso escuto tanto Racionais”.

O rap, que, segundo Rashid, estava presente "quando o pivete não queria escutar o

pai", ou que, de acordo com Projota, o ajudava a acalmar o seu lado agressivo, aparece como

algo maior que um simples gênero musical, mas como algo capaz de oferecer alento,

sabedoria. Assemelha-se, conforme demonstrado, a uma entidade, um caminho para a

salvação individual.

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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discorrer desta pesquisa se deu a partir da percepção, empírica, de que o rap

nacional contemporâneo estaria apresentando, em suas letras, fragmentos do discurso

religioso. Por se tratarem especificamente de fragmentos, notamos que essas ocorrências

apareciam diluídas em meio a outras preocupações temáticas – como o discurso de inclusão

social, por exemplo. Isso nos levou à questão da presença da religião no cotidiano do

brasileiro e à análise de dados concretos – em um censo do IBGE – que respaldaram a ideia

tão difundida de que o Brasil é um país religioso. E foi isso que nos levou a dissertar sobre a

questão do hibridismo religioso e sua representação na arte nacional, de uma maneira ampla.

Isto posto, passamos para o tópico seguinte, tratando da presença do imagético

religioso na música popular nacional desde o advento da bossa nova, com o lançamento do

disco “Chega de Saudade”. A inclusão da composição “Aos Pés da Cruz” nesse disco –

considerado como revolucionário para a música nacional – se mostrou como representativa

para a nossa ideia de que imagens, expressões e outras questões inerentes à simbologia

religiosa encontram lugar na música popular com razoável facilidade – algo comprovado pela

análise de outras composições, como “Louvação”, “Meu Mar” ou “Bom Senso”, de Gilberto

Gil, Erasmo Carlos e Tim Maia, respectivamente. Após tal observação, tornou-se necessário

que nos dedicássemos a explicar o rap, o contextualizando histórica e artisticamente.

Enquanto explicávamos a gênese do ritmo, dissertamos também sobre a importância

da parte verbal para o mesmo, originalmente preocupado em passar mensagens, fosse por

meio de discursos ou de narrativas. Citamos também a entrada do estilo no país e como esses

novos rappers, como Racionais e Thaíde e DJ Hum, acabavam por reverenciar nomes mais

antigos na música popular brasileira – principalmente aqueles ligados à música negra, como

Jorge Ben, Tim Maia e Gerson King Combo.

Após selecionarmos nosso objeto de estudo – letras presentes nos discos mais recentes

dos rappers Projota, Rashid, Criolo e Emicida –, chegamos finalmente à análise. Entretanto,

uma vez que já havíamos notado a ocorrência de fragmentos do discurso religioso na música

popular nacional, de uma maneira ampla, optamos por definir três aspectos a serem

reconhecidos nas letras dos artistas supracitados: a presença da religião no cotidiano, a prática

de atividades religiosas em momentos de dificuldade e o que chamamos de “o rap como

caminho para a salvação” – mostrando que, ao atribuir à associação ao movimento hip-hop e à

prática do fazer rap a responsabilidade por um suposto amadurecimento, os rappers se

aproximam da ideia de conversão, tão presente no discurso religioso.

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Após tais análises, podemos retornar à discussão da religião fortemente presente no

cotidiano do brasileiro, e, assim, considerarmos que essa presença irá, de maneiras passíveis

de serem observadas sem grandes dificuldades, ocorrer também nas manifestações artísticas –

dentre as quais, as músicas, incluindo o rap.

Enquanto Emicida e Criolo, mais que Projota e Rashid, participam de programas de

televisão, dão entrevistas e participam de jam sessions com outros artistas, há outros rappers,

muitos deles sem discos gravados, que ampliam a questão da presença dos fragmentos do

discurso religioso em suas letras. Encerramos o presente trabalho, portanto, com a certeza de

que, aos três aspectos com os quais trabalhamos no capítulo de análise, poderemos, em uma

próxima ocasião, somar novos pontos para serem considerados e estender o debate à obra de

outros artistas em busca de um resultado mais amplo e profundo.

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