Foucault_ Ditos_e_Escritos_IV - Mesa Redonta 1978

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1980 Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978 MMesa-redonda em 20 de maio de 1978", in Perrot (M.). ed., L'impossible pri- son. Recherches sur le systeme pénüentiaire au XIX siecle, Éd. du Seuil, col. ML'Univers Histortque", 1980. ps. 40-56. O ponto de partida deste encontro era a discussão de dois textos: o de Jacques Léonard, "L'historien et le philosophe", e o de Michel Foucault, que constituía uma primeira resposta, "A poeira e a nuvem". 1 Estavam presentes: Maurice Agulhon, Nicole Castan, Ca- therine Duprat. François Ewald, Arlette Farge, Alexandre Fontana, Michel Foucault, Carla Ginzburg, Remi Gossez, Jac- ques Léonard, Pascal Pasquino, Michelle Perrot, Jacques Revel. O texto da mesa-redonda foi revisado por Michel Foucault e, para clareza das coisas, juntamos as intervenções dos historia- dores a uma série de questões de um historiador coletivo. Por que a prisão? - Por que o nascimento da prisão e sobretudo esse processo de "substituição apressada" de que o senhorfala, que a coloca, no início do século XIX, no centro da penalidade, parecem-lhe fenômenos tão importantes? O senhor não tem a tendéncia de exagerar a importância da prisão na penalidade,já que, do mesmo modo, no decorrer do sé- culo XIX, subsistem muitos outros modos de punir (pena de mor- te, trabalhos forçados e deportação ... )? No plano do método histórico, parece que o senhor se desafia a dar explícaçôes em 1. Ver A Poeira e a Nuvem, neste volume.

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Mesa redonda do Foucault.

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    Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978

    MMesa-redonda em 20 de maio de 1978", in Perrot (M.). ed., L'impossible pri-son. Recherches sur le systeme pnentiaire au XIX siecle, d. du Seuil, col. ML'Univers Histortque", 1980. ps. 40-56.

    O ponto de partida deste encontro era a discusso de dois textos: o de Jacques Lonard, "L'historien et le philosophe", e o de Michel Foucault, que constitua uma primeira resposta, "A poeira e a nuvem". 1

    Estavam presentes: Maurice Agulhon, Nicole Castan, Ca-therine Duprat. Franois Ewald, Arlette Farge, Alexandre Fontana, Michel Foucault, Carla Ginzburg, Remi Gossez, Jac-ques Lonard, Pascal Pasquino, Michelle Perrot, Jacques Revel.

    O texto da mesa-redonda foi revisado por Michel Foucault e, para clareza das coisas, juntamos as intervenes dos historia-dores a uma srie de questes de um historiador coletivo.

    Por que a priso?

    - Por que o nascimento da priso e sobretudo esse processo de "substituio apressada" de que o senhor fala, que a coloca, no incio do sculo XIX, no centro da penalidade, parecem-lhe fenmenos to importantes?

    O senhor no tem a tendncia de exagerar a importncia da priso na penalidade,j que, do mesmo modo, no decorrer do s-culo XIX, subsistem muitos outros modos de punir (pena de mor-te, trabalhos forados e deportao ... )? No plano do mtodo histrico, parece que o senhor se desafia a dar explcaes em

    1. Ver A Poeira e a Nuvem, neste volume.

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    termos de "causalidades" ou em termos estruturais, para privile-

    giar, s vezes, um processo puramente relativo aos aconteci-

    mentos. Quanto ao "social", verdade que ele, sem dvida,

    invadiu abusivamente o campo dos historiadores. Mas, mesmo se no nos referimos ao social como nico nvel de explicao, preciso elimin-lo completamente do "diagrama interpretativo"?

    -No gostaria de que aquilo que pude escrever ou dizer apa-rea como trazendo em si uma pretenso totalidade. No quero universalizar o que digo: e, inversamente, o que no digo, no o recuso, no o tenho forosamente como no essencial. Meu tra-balho est entre pedras de espera e pontos de suspenso. Gos-taria de abrir um canteiro, tentar, e se eu falhar, recomear de outro modo. Sobre muitos pontos - e penso em particular nas relaes entre dialtica, genealogia e estratgia-, estou traba-lhando, no sei se me livrarei deles. O que digo deve ser conside-rado como proposies, "ofertas de jogo", s quais aqueles a quem isso possa interessar esto convidados a participar; no so afinnaes dogmticas a tomar em bloco. Meus livros no so tratados de filosofia nem estudos histricos; no mximo fragmentos filosficos em canteiros histricos.

    Vou tentar responder s questes que foram feitas. Inicial-mente, sobre a priso. Os senhores se perguntam se ela foi uma coisa to importante quanto pretendi e se ela focaliza bem o sistema penal. No quis dizer que a priso era o ncleo essencial de todo o sistema penal; no digo tampouco que se-ria impossvel abordar os problemas da penalidade - e por mais razo ainda da delinqncia em geral- atravs de outros caminhos diferentes do da priso. Pareceu-me legtimo tomar a priso como objeto por duas razes. Em primeiro lugar, por-que ela foi bastante negligenciada at ento nas anlises; quando se queria estudar os problemas da "penalidade" - ter-mo, alis, confuso -, escolhiam-se de preferncia duas vias: seja o problema sociolgico da populao delinqente, seja o problema jurdico do sistema penal e de seu fundamento. A prpria prtica da punio s foi estudada por Kirschheimer e

    2 -Rusche na linha da escola de Frankfurt. E verdade que houve

    2. Kirschheimer (0.) e Rusche (G.). Punishment and social structure, Nova Ior-que, Columbia University Press. 1939.

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    estudos sobre as prises como instituies; mas muito pouco sobre o aprisionamento como prtica punitiva geral em nos-sas sociedades.

    Eu tinha uma segunda razo para estudar a priso: reto-mar o tema da genealogia da moral, mas seguindo o fio das transformaes do que se poderia chamar de Ktecnologias mo-rais". Para melhor compreender o que punido e por que se pune, introduzi a questo: como se pune? Nisto, no fao ou-tra coisa seno seguir o caminho tomado a propsito da loucura: mais do que se perguntar o que, em uma dada poca, considerado como loucura e o que considerado como no-loucura, como doena mental e como comportamento normal, perguntar-se como se opera a diviso. O que me pare-ce trazer, no digo toda luz possvel, mas uma forma de inteli-gibilidade bastante fecunda.

    Havia tambm, na poca em que escrevi isso, um fato da atualidade; a priso e mais geralmente numerosos aspectos da prtica penal estavam sendo postos novamente em ques-to. Esse movimento no era somente observvel na Frana, mas tambm nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Itlia. Entre parnteses, seria interessante saber por que todos es-ses problemas do internamento, do fechamento, do adestra-mento dos indivduos, de sua repartio, de sua classificao de sua objetivizao nos saberes foram colocados com essa in-tensidade, e bem antes de 1968: foi em 1958-1960 que os te-mas da antipsiquiatria foram levantados. A relao com a prtica concernente aos campos de concentrao evidente -vejam Bettelheim. 3 Mas seria preciso analisar mais de perto o que se passou por volta de 1960.

    Neste trabalho sobre as prises, assim como em outros, o alvo, o ponto de ataque da anlise, eram no as Kinstituies", no as "teorias" ou uma "ideologia", mas as "prticas"- e isto para captar as condies que, em um dado momento, as tor-

    3. Bettelheim (B.), Individual and mass behavior in extreme situation, Indian-polis, Bobbs-Merill, 1943. 1he informed heart: autonomy in a mass age, Nova Iorque, The Free Press, 1960 (Le coeur conscient. Comment garder son autono-mie et parvenir l'accomplissement de sai dans une civUisation de masse,

    trad. L. Casseau, Paris, Robert Laffont, col. "Rponses", 1972).

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    nam aceitveis: a hiptese sendo a de que os tipos de prticas no so apenas comandados pela instituio, prescritos pela ideologia ou guiados pelas circunstncias- seja qual for opa-pel de uns e de outros-, mas que eles tm, at certo ponto, sua prpria regularidade, sua lgica, sua estratgia, sua evidncia, sua "razo". Trata-se de fazer a anlise de um "regime de prti-cas" - as prticas sendo consideradas como o lugar de enca-deamento do que se diz e do que se faz, das regras que se impem e das razes que se do, dos projetos e das evidncias.

    Analisar "regimes de prticas" analisar programaes de conduta que tm, ao mesmo tempo, efeitos de prescrio em relao ao que se deve fazer (efeitos de '1urisdio") e efeitos de codificao em relao ao que se deve saber (efeitos de "veridi-cidade").

    Quis, portanto, fazer a histria no da instituio priso, mas da "prtica de aprisionamento". Mostrar sua origem ou, mais exatamente, mostrar como essa maneira de fazer, muito antiga, claro, pde ser aceita em um momento como pea principal no sistema penal. A ponto de aparecer como uma pea inteiramente natural, evidente, indispensvel.

    Trata-se de abalar a falsa evidncia, de mostrar sua preca-riedade, de fazer aparecer no o seu arbitrrio, mas a comple-xa ligao com processos histricos mltiplos e, para muitos dentre eles, recentes. Deste ponto de vista, posso dizer que a histria do aprisionamento penal me superou- foi alm de mi-nha expectativa. Todos os textos, todas as discusses do in-cio do sculo XIX o testemunham; surpreendemo-nos com o fato de que a priso seja utilizada como meio geral de punir, enquanto no era nada disso que se tinha em mente no sculo XVIII. Essa mudana brusca, percebida pelos prprios con-temporneos, para mim, no de modo algum um resultado no qual se deveria parar. Parti dessa descontinuidade que era, de algum modo, a mutao "fenomenal", e procurei, sem apa-g-la, dar conta dela. No se trata, portanto, de reencontrar uma continuidade escondida, mas de saber qual a transfor-mao que tomou possvel essa passagem to apressada.

    Vocs bem sabem que no h ningum mais continuista que eu: o balizamento de uma descontinuidade nunca seno a constatao de um problema a resolver.

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    "Acontecimentalizar"

    - O que o senhor acaba de dizer esclarece muitas coisas. Contudo, no se pode negar que os historiadores esto incomo-

    dados com uma espcie de equvoco, de que haveria em suas anlises um tipo de oscUao entre, por um lado, um hiper-racionalismo e, por outro, uma sub-racionalidade.

    -Procuro trabalhar no sentido de uma "acontecimentaliza-o". Se o acontecimento foi, durante um tempo, uma ca-tegoria pouco avaliada dos historiadores, pergunto-me se. compreendida de uma certa maneira, a "acontecimentaliza-o" no um procedimento de anlise til. O que se deve entender por "acontecimentalizao"? Uma ruptura absoluta-mente evidente. em primeiro lugar. Ali onde se estaria bastan-te tentado a se referir a uma constante histrica, ou a um trao antropolgico imediato, ou ainda a uma evidncia se im-pondo da mesma maneira para todos, trata-se de fazer surgir uma "singularidade". Mostrar que no era "to necessrio as-sim"; no era to evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais; no era to evidente que a nica coisa a fazer com um delin.qente fosse intern-lo; no era to evi-dente que as causas da doena devessem ser buscadas no exame individual do corpo etc. Ruptura das evidncias, essas evidncias sobre as quais se apiam nosso saber. nossos con-sentimentos, nossas prticas. Tal a primeira funo teri-co-poltica do que chamaria de "acontecimentalizao".

    Alm disso. a "acontecimentalizao" consiste em reencon-trar as conexes, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jo-gos de fora, as estratgias etc .. que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionar como evidncia, uni-versalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa maneira, procedemos, na verdade, a uma espcie de desmultiplicao causal.

    O que isso quer dizer? Que se vai apresentar a singularida-de que se analisa como um fato a ser constatado sem mais nada a acrescentar, como uma ruptura sem razo em uma continuidade inerte? Evidentemente, no, pois isso seria ad-mitir, ao mesmo tempo. que a continuidade legtima e que contm nela prpria sua razo de ser.

    1) A desmultiplicao causal consiste em analisar o aconte-Cimento segundo os processos mltiplos que o constituem.

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    Assim, analisar a prtica do encarceramento penal como "acon-tecimento" (e no como um fato de instituio ou um efeito de ideologia) definir os processos de "penalizao" (quer dizer, de insero progressiva nas formas da punio legal) das prticas precedentes de internamento; os processos de "carceralizao" de prticas da justia penal (quer dizer, o movimento pelo qual o aprisionamento se tornou, como forma de castigo e como tc-nica de correo, uma pea central na penalidade); esses processos macios devem ser eles prprios decompostos: o pro-cesso de penalizao do internamento ele prprio constitudo de processos mltiplos, como a constituio de espaos peda-ggicos fechados, funcionando por recompensa e punio etc.

    2) A diminuio do peso causal consistir em construir, em torno do acontecimento singular analisado como processo, um "polgono", ou melhor, "poliedro de inteligibilidade", cujo nmero de faces no previamente definido e nunca pode ser considerado como legitimamente concludo. H que proceder por saturao progressiva e forosamente inacabada. E preciso considerar que, quanto mais se decompe, desde o interior, o processo a analisar, mais se poder e se dever construir relaes de inteligibilidade externa (concretamente: quanto mais se analisa o processo de "carceralizao" da pr-tica penal, at em seus menores detalhes, mais se conduzido a se referir a prticas como as da escolarizao ou da discipli-na militar etc.). Decomposio interna de processos e multi-plicao das "sacadas" analticas caminham juntas.

    3) Essa maneira de fazer implica, portanto, um polimorfis-mo crescente, medida que a anlise avana:

    - polimorfismo dos elementos que so postos em relao: a partir da "priso", sero postos em jogo as prticas peda-ggicas, a formao dos exrcitos como carreira, a filosofia emprica inglesa, a tcnica das armas de fogo, os novos proce-dimentos da diviso do trabalho;

    - polimorfismo das relaes descritas: pode se tratar das transferncias de modelos tcnicos (as arquiteturas de vigi-lncia), pode se tratar de um clculo ttico respondendo a uma situao particular (crescimento do banditismo ou de-sordens provocadas pelos suplcios pblicos, ou o inconveni-ente do banimento), pode se tratar da aplicao de esquemas tericos (concernindo gnese das idias, formao dos sig-nos, concepo utilitarista do comportamento etc.);

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    - polimorfismo nos domnios de referncia (sua natureza, sua generalidade etc.): tratar-se-, ao mesmo tempo, de muta-es tcnicas sobre pontos de detalhes, mas tambm das tcnicas novas de poder que se buscam ajustar em uma eco-nomia capitalista, e em funo dessas exigncias.

    Perdoem esse longo desvio. Mas no posso responder me-lhor sua questo sobre o hiper e o hiporracionalismo que, com freqncia, me objetado.

    H muito tempo que os historiadores no gostam muito dos acontecimentos, e fazem da "desacontecimentalizao" o princpio da inteligibilidade histrica. Eles o fazem ao referir o objeto de sua anlise a um mecanismo, ou a uma estrutura, que deve ser o mais unitrio possvel, o mais necessrio, o mais inevitvel possvel, enfim, o mais exterior histria pos-svel. Um mecanismo econmico, uma estrutura antropolgi-ca, um processo demogrfico, como ponto culminante da anlise - eis a, enfim, a histria "desacontecimentalizada". (Certamente no indico aqui, e grosseiramente, seno uma tendncia.)

    evidente que no que proponho, em relao a um tal eixo de anlise, h muito e muito pouco. Muitas relaes diversas, muitas linhas de anlise. E, ao mesmo tempo, insuficiente ne-cessidade unitria. Pletora do lado das inteligibilidades. Falta do lado da necessidade.

    Mas, para mim, bem isso o que a anlise histrica e a cr-tica poltica tm em comum. Ns no estamos e no temos de nos colocar sob o signo da necessidade nica.

    O problema das racionalidades

    - Gostaria de me deter, justo por um momento, nesse proble-ma da "acontecimentalizao" porque acho que ele est no cen-

    tro de um certo nmero de mal-entendidos em tomo do senhor-no retomo esta idia que fez do senhor, abusivamente, um

    pensador da descontinuidade. Por trs do balizamento dessas

    rupturas e do inventrio detalhado, precavido, do qjustamento

    dessas redes que produziro o real. o histrico, h alguma coi-sa de um livro a outro que uma dessas constantes histricas,

    ou um desses traos antropolgico-culturais que o senhor recu-sou h pouco, e que : por trs sculos, por quatro sculos, a

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    histria de uma racionalizao, ou de uma das racionalizaes

    possveis de nossa sociedade. No por acaso que seu primeiro livro tenha sido uma histria da razo, ao mesmo tempo que uma histria da loucura, e acho que o referente de todos os outros, a anlise das diferentes tcnicas do isolamento, as taxi-

    nomias sociais etc., remetem a esse processo geral metaantro-

    polgico ou metaistrico, que esse processo racionalizador.

    Neste sentido, sua definio da "acontecimentalizao" como no centro de seu trabalho me parece sustentar s uma das pon-tas de sua prxima corrente.

    - Se so chamados de "weberianos" aqueles que quiseram substituir a anlise marxista das contradies do capital pela da racionalidade irracional da sociedade capitalista, no acho que eu seja weberiano, pois meu problema no , fmalmente, o da racionalidade, como invariante antropolgica. No creio que se possa falar de "racionalizao" em si, sem, de uma parte, su-por um valor razo absoluto e sem se expor, de outra, a pr um pouco de qualquer coisa sob a rubrica das racionalizaes. Penso que preciso limitar essa palavra a um sentido instru-mental e relativo. A cerimnia dos suplcios pblicos no mais irracional em si que o encarceramento em uma cela; mas ela irracional em relao a um tipo de prtica penal que fez aparecer uma nova maneira de visar, atravs da pena, a certos efeitos, de calcular sua utilidade, de lhe encontrar justifica-es, de gradu-la etc. Digamos que no se trata de aferir prti-cas com a medida de uma racionalidade que as faria apreciar como formas mais ou menos perfeitas de racionalidade; mas, antes, de ver como formas de racionalizaes se inscrevem em prticas, ou sistemas de prticas, e que papel elas desempe-nham ali. Pois verdade que no h "prticas" sem um certo regime de racionalidade. Porm este, mais do que medi-lo por um valor razo, gostaria de analis-lo segundo dois eixos: a co-dificao prescrio, de uma parte (no que ele forma um con-junto de regras, de receitas, de meios em vista de um fim etc.), e a formulao verdadeiro ou falso, de outra (no que ele determi-na um domnio de objetos em relao aos quais possvel arti-cular proposies verdadeiras ou falsas).

    Se eu estudei "prticas" como as do seqestro de loucos, ou da medicina clnica, ou da organizao das cincias empri-cas, ou da punio legal, foi para estudar este jogo entre um "cdigo" que regula maneiras de fazer (que prescreve como se-

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    lecionar as pessoas, corno educar os indivduos etc.) e urna produo de discursos verdadeiros que servem de fundamen-to, de justificao, de razes de ser e de princpio de transfor-maes a essas mesmas maneiras de fazer. Para dizer as coisas claramente: meu problema saber corno os homens se governam (eles prprios e os outros) atravs da produo de verdade (eu o repito, ainda, por produo de verdade: no en-tendo a produo de enunciados verdadeiros, mas a disposi-o de domnios em que a prtica do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo, regulamentada e pertinente).

    "Acontecirnentalizar" conjuntos singulares de prticas, para faz-las aparecer corno regimes diferentes de jurisdio e de veredicto, eis a, em termos extremamente brbaros, o que eu gostaria de fazer. Vocs vem que isso no nem urna histria dos acontecimentos, nem urna anlise da racionalidade cres-cente que dominam nossa sociedade, nem urna antropologia das codificaes que regem, sem que o saibamos, nosso com-portamento. Eu gostaria, em suma, de recolocar o regime de produo do verdadeiro e do falso no corao da anlise hist-rica e da crtica poltica.

    -O senhor fala de Max Weber. No por acaso. H, em suas formulaes, em um sentido que o senhor, sem dvida, no aceitaria, alguma coisa como um "tipo ideal", que paralisa e deixa mudo quando se quer dar conta da realidade. No foi isso

    que o coagiu a decidir no jazer comentrios quando da publi-cao de Pierre Riviere?

    -No acho que sua comparao com Max Weber seja exata. Pode-se dizer esquematicamente que o "tipo ideal" urna cate-goria da interpretao historiadora; urna estrutura da com-preenso para o historiador que se esfora, a posteriori, em ligar entre si um certo nmero de dados: ela permite retornar uma "essncia" (do calvinismo, ou do Estado, ou da empreitada capitalista) a partir de princpios gerais que no esto ou que no mais esto presentes no pensamento dos indivduos, cujo comportamento concreto se compreende, entretanto, a partir deles.

    Quando me esforo em analisar a racionalidade prpria ao aprisionamento penal, ou psiquiatrizao da loucura ou Organizao do domnio da sexualidade, e insisto sobre o fato de que, em seu funcionamento real, as instituies no se res-tringem a desenvolver esse esquema racional em estado puro,

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    ser que isso uma anlise em termos de tipo ideal? Acho que no, por muitas razes.

    1) O esquema racional da priso, o do hospital ou do asilo no so princpios gerais que unicamente o historiador po-deria encontrar atravs da interpretao retrospectiva. So programas explcitos; trata-se de conjuntos de prescries calculadas e pensadas, e segundo as quais se deveriam orga-nizar instituies, dispor espaos, regrar comportamentos. Se eles tm uma idealidade, a de uma programao qual ocor-re permanecer em suspenso, no a de uma significao geral que teria permanecido escondida.

    2) Certamente, essa programao est referida a formas de racionalidade muito mais gerais do que aquelas empregadas por elas diretamente. Procurarei mostrar que a racionalidade buscada no aprisionamento penal no era o resultado de um clculo de interesse imediato (o mais simples, o menos cus-toso ainda internar), mas que ela estava referida a toda uma tecnologia do adestramento humano, da vigilncia do comportamento, da individualizao dos elementos do corpo social. A "disciplina" no a expresso de um "tipo ideal" (o do "homem disciplinado"); ela a generalizao e a conexo de tcnicas diferentes que devem responder a objetivos locais (aprendizagem escolar, formao de tropas capazes de mane-jar o fuzil) .

    3) Esses programas nunca passam integralmente nas ins-tituies; so simplificados, escolhem-se uns e no outros; e isso no acontece nunca como era previsto. Mas o que eu gos-taria de mostrar que essa diferena no a que ope o ideal puro impureza desordenada do real, mas que, na realidade, estratgias diferentes vinham se opor, se compor, se superpor e produzir efeitos permanentes e slidos que se poderiam per-feitamente compreender em sua prpria racionalidade, embo-ra no sejam conformes programao primeira: esta a solidez e a maleabilidade do dispositivo.

    Programas, tecnologias, dispositivos: nada de tudo isto o "tipo ideal". Procuro ver o jogo e o desenvolvimento de realida-des diversas que se articulam umas com as outras: um pro-grama, o lao que o explica, a lei que lhe d valor coativo etc., so tanto realidades (embora de um outro modo) quanto as instituies que lhe do corpo, ou os comportamentos que nele se renem mais ou menos fielmente.

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    Vocs me diro: nada acontece como nos "programas". Estes no so nada alm de sonhos, de utopias, uma espcie de produo imaginria que o senhor no tem o direito de substituir pela realidade. O Panptico de Bentham no uma boa descrio da "vida real" das prises do sculo XIX. 4

    Ao que eu responderei: se eu quisesse descrever a "vida real" das prises, no teria, de fato, me dirigido a Bentham. Mas que essa vida real no seja a forma ou o esquema dos te-ricos no quer dizer, por isso, que esses esquemas sejam ut-picos, imaginrios etc. Isso seria fazer-se do real uma idia bem pobre. Por um lado, sua elaborao responde a toda uma srie de prticas ou de estratgias diversas: assim, a pesquisa de mecanismos eficazes, continuos, bem avaliados que , com toda certeza, uma resposta inadequao entre as institui-es do Poder Judicirio e as novas formas da economia, da urbanizao etc.; ou ainda a tentativa, muito sensvel em um pas como a Frana, de reduzir o que havia de autonomia e de insalubridade na prtica judiciria e no pessoal de justia, em relao ao conjunto do funcionamento do Estado; ou ainda a vontade de responder ao aparecimento de novas formas de de-linqncia etc. Por outro lado, essas programaes induzem toda uma srie de efeitos no real (o que no quer dizer, eviden-temente, que elas podem valer em seu lugar e seu espao): elas se cristalizam nas instituies, informam o comporta-mento dos indivduos, servem de grade para a percepo e apreciao das coisas. inteiramente exato que os delinqen-tes foram recalcitrantes a toda a mecnica disciplinar das pri-ses; inteiramente exato que a maneira mesma como as prises funcionavam nos prdios improvisados em que foram construdas, com os diretores e os guardas que as administra-vam, fazia delas caldeires de bruxas ao lado da bela mecni-ca benthamiana. Mas, justamente se elas pareceram assim, se os delinqentes foram percebidos como incorrigveis, se aos olhos da opinio pblica e mesmo da ''justia" dese-nhou-se uma raa de "criminosos", e se a resistncia dos pri-sioneiros e o destino de reincidente tomaram a forma que conhecemos, , na verdade, porque esse tipo de programao

    4. Cf. supra, p. 332.

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    no permaneceu somente uma utopia na cabea de alguns fa-zedores de projeto.

    Essas programaes de conduta, esses regimes de jurisdi-o/veredicto no so projetos de realidade que fracassam. So fragmentos de realidade que induzem esses efeitos de real to especficos, que so aqueles da diviso do verdadeiro e do falso na maneira como os homens se "dirigem", se "governam", se "conduzem" eles prprios e os outros. Captar esses efeitos em sua forma de acontecimentos histricos - com o que isso implica para a questo da verdade (que a prpria questo da filosofia)- , mais ou menos, meu tema. Vocs vem que isso nada tem a ver com o projeto (muito belo, alis) de captar uma "sociedade" no "todo" de sua "realidade vivente".

    A questo qual no chegarei a responder, mas que a que eu me fiz desde o comeo, mais ou menos esta: "O que a histria, do momento em que nela se produz sem cessar a di-viso do verdadeiro e do falso?" E, com isso, quero dizer qua-tro coisas:

    1) Em que a produo e a transformao da diviso do ver-dadeiro/falso so caractersticas e determinantes de nossa historicidade?

    2) De quais maneiras especficas essa relao atuou nas sociedades "ocidentais" produtoras de um saber cientifico de forma perpetuamente cambiante e de valor universal?

    3) O que pode ser o saber histrico de uma histria que produz a diviso verdadeiro/falso da qual decorre esse saber?

    4) O problema poltico mais geral no o da verdade? Como ligar uma outra, a maneira de dividir o verdadeiro e o falso e a maneira de governar-se a si mesmo e os outros? A vontade de fundar uma e outra como algo inteiramente novo, uma atravs da outra (descobrir uma diviso completamente dife-rente atravs de uma outra maneira de se governar, e se go-vernar de modo inteiramente diferente a partir de uma outra diviso), esta a "espiritualidade poltica".

    O efeito anestesiante

    - Poderanws,justamente,jonnular-lhe uma questo prtica sobre a transmisso de suas anlises. Se, por exemplo, se

    com educadores penitencirios, constata-se que a

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    chegada de seu livro teve sobre eles um efeito absolutamente

    esterilizante, ou melhor, anestesiante, no sentido de que, para

    eles, sua lgica tinha uma implacabilidade da qual eles no

    conseguem sair. O senhor dizia, h pouco, ao falar da "aconte-cimentalizao ". que o senhor quisera e quer trabalhar sobre a ruptura das evidncias e sobre o que jaz com que, a um s tem-po. isso se produza e isso no seja estvel: parece-me que a se-gunda parte - o que no estvel - no percebida.

    - O senhor tem toda razo de colocar esse problema da "anestesia". Ele capital.

    inteiramente exato que no me sinto capaz de efetuar essa "subverso de todos os cdigos", essa "deslocao de to-das as ordens de saber", essa "afirmao revolucionria da violncia", essa "reverso de toda a cultura contempornea" cuja esperana em forma de publicidade sustenta, atualmen-te. tantos empreendimentos notveis; esses empreendimen-tos, eu os admiro ainda mais porque o valor e a obra j feita daqueles que a eles se apegam garantem - no verdade? -sua sada. Meu projeto est longe de ter uma tal envergadura. Ajudar, de uma certa maneira, para que se escamem algumas "evidncias", ou "lugares-comuns", no que se refere loucura, normalidade, doena, delinqncia e punio; fazer, juntamente com muitos outros, de modo que certas frases no possam mais ser ditas to facilmente, ou que certos gestos no mais sejam feitos sem, pelo menos, alguma hesitao; contribuir para que algumas coisas mudem nos modos de perceber e nas maneiras de fazer; participar desse difcil des-locamento das formas de sensibilidade e dos umbrais de tole-rncia etc. - no me sinto em condies de fazer muito mais que isso. Se apenas o que procurei dizer pudesse, de uma cer-ta maneira, e para uma parte limitada, no ser inteiramente estranho a alguns desses efeitos no real... E, alm do mais, sei o quanto tudo isso pode ser frgil, precrio, e cair novamente no sono.

    Mas o senhor tem razo, deve-se ser mais desconfiado que isso. Talvez o que eu disse tenha um efeito anestesiante. Mas preciso ainda distinguir em quem.

    Se julgo pelo que disseram as autoridades psiquitricas francesas, se julgo pela coorte de direita que me acusava de me opor a qualquer poder, e a de esquerda que me designava como "ltima muralha da burguesia" (isto no uma frase de

  • 348 Michel Foucault - Ditos e Escritos

    Kanapa, muito ao contrrio). se julgo pelo bravo psicanalista que me aproximava do Hitler de Mein Kampj. se julgo pelo n-mero de vezes em que, h 15 anos, fui "autopsiado", "enterra-do" etc .. pois bem, tenho a impresso de ter tido sobre muita gente um efeito mais irritador que anestesiante. As sensibili-dades crepitam com uma constncia que me encoraja. Uma revista, em um estilo deliciosamente petainista, advertia seus leitores contra o perigo de transformar em credo o que eu dizia sobre a sexualidade ("a importncia do assunto", "a personali-dade do autor" tomavam minha empreitada "perigosa ... ").

    Deste lado, nenhum risco de anestesia. Mas estou de acor-do com o senhor: so ninharias, divertidas de assinalar, can-sativas de juntar. O nico problema importante o que acontece no campo de batalha.

    A partir do sculo XIX, pelo menos. sabe-se bem distinguir entre anestesia e paralisia.

    1) Paralisia. Quem foi paralisado? O senhor acredita que o que eu escrevi sobre a histria da psiquiatria tenha paralisado aqueles que. j h algum tempo. sentiam um mal-estar para com a instituio? E ao ver o que se passou nas prises e em tomo delas. no acho que o efeito de paralisia seja muito ma-nifestado. Do lado das pessoas na priso, isto anda.

    Em contrapartida, verdade que um certo nmero de pes-soas - tal como os que trabalham no quadro institucional da priso, o que no exatamente estar na priso - no devem encontrar em meus livros conselhos ou prescries que lhes permitiriam saber "o que fazer". Mas meu projeto justamen-te fazer de tal modo que eles "no saibam mais o que fazer": que os atos, os gestos, os discursos que at ento lhes pa-reciam andar sozinhos tomem-se problemticos, perigosos, difceis. Esse efeito desejado. E, depois, vou anunciar-lhes uma grande novidade: o problema das prises no , aos meus olhos, o dos "assistentes sociais". o dos prisioneiros. E, deste lado, no tenho certeza de que o que foi dito. h uma dezena de anos, tenha sido - como dizer? - imobilizante.

    2) Mas paralisia no sinnimo de anestesia, ao contrrio. Foi na medida em que houve despertar para todo um conjunto de problemas que a dificuldade de agir pde aparecer. No que seja uma finalidade em si. Mas parece-me que "o que h a fa-zer" no deve ser determinado do alto, por um reformador com funes profticas ou legislativas. Mas por um longo trabalho

  • I . 1980- Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978 349

    de vaivm, de trocas, de reflexes, de tentativas, de anlises diversas. Se os educadores dos quais o senhor me fala no sa-bem como sair disso, bem a prova de que procuram sair, e de que. portanto, no esto nada anestesiados, nem esteriliza-dos, ao contrrio. E para no lig-los e imobiliz-los que no poderia tratar-se de lhes ditar "o que fazer".

    Para que as questes apresentadas pelos educadores dos quais o senhor me falava tomem toda sua amplido, no se devem sobretudo esmag-las sob uma fala prescritiva e prof-tica. Sobretudo, no preciso que a necessidade da reforma sirva de chantagem para limitar, reduzir e parar o exerccio da crtica. Em nenhum caso se devem ouvir aqueles que dizem: "No critiquem, vocs que no so capazes de fazer uma refor-ma." Estes so ditos de gabinetes ministeriais. A crtica no deve ser a premissa de um raciocnio que se concluiria por: eis aqui, portanto, o que lhes resta fazer. Ela deve ser um instru-mento para aqueles que lutam, resistem e no querem mais as coisas como esto. Ela deve ser utilizada nos processos de conflitos, de enfrentamentos, de tentativas de recusa. Ela no tem de impor a lei lei. Ela no uma etapa em uma progra-mao. Ela um desafio em relao ao que .

    O problema. vejam, o do sujeito da ao- da ao atravs da qual o real transformado. Se as prises, se os mecanis-mos punitivos so transformados, no ser porque se ter posto um projeto de reforma na cabea dos assistentes so-ciais; ser quando aqueles que tm de se haver com esta realidade, todos eles tiverem se chocado entre si e consigo mesmos, quando tiverem encontrado impasses. embaraos, impossibilidade, quando tiverem atravessado conflitos e en-frentamentos, quando a crtica tiver sido atuada no real. e no quando os reformadores tiverem realizado suas idias.

    - Essa anestesia atuou sobre os prprios historiadores. Se eles no lhe responderam porque, para eles, o famoso "esque-mafoucaultiano" se tomava to estorvador quanto um esque-

    ma mar xis ta. No sei se esse "efeito" que o senhor produz sobre ns lhe interessa. Mas as explicaes que o senhor deu aqui no resultavam, certamente, de Vigiar e punir.

    -Decididamente. no estou certo de que entendamos a pa-lavra "anestesiar" do mesmo modo. Estes historiadores me Pareceram mais "estesiados", "irritados" - no sentido de Broussais, claro.

  • 350 Michel Foucault - Ditos e Escritos

    Irritados com qu? Com um esquema? No acho, pois, jus-tamente, no h "esquema". Se h "irritao" (e algo me diz que, em tal ou tal revista, alguns sinais disso foram discreta-mente dados, no ?), , antes, por causa da ausncia de es-quema. Nada que se parea com um esquema como infra e superestrutura do ciclo malthusiano, ou oposio entre socie-dade civil e Estado: nenhum desses esquemas que garantem, explcita ou implicitamente, as operaes comuns dos histo-riadores h 50, 100 ou 150 anos.

    Da, sem dvida, o mal-estar e as questes que me colo-cam, ao imporem que eu me situe em um esquema: "O que o senhor faz com o Estado? Qual a sua teoria sobre ele? O se-nhor negligencia seu papel", objetam uns; "o senhor o v em toda parte", dizem outros, "e o senhor imagina que ele capaz de enquadrar a existncia cotidiana dos indivduos". Ou ain-da: "O senhor faz descries das quais esto ausentes todas as infra-estruturas", mas outros dizem que fao da sexualida-de uma infra-estrutura! Que estas objees sejam totalmente contraditrias umas com as outras prova que aquilo que fao no entra nesses esquemas.

    Talvez porque meu problema no construir algo novo ou validar o j feito. Talvez porque meu problema no propor um princpio de anlise global da sociedade. E nisto que meu projeto era, de partida, diferente daquele dos historiado-res. Estes (se eles se enganam ou tm razo, uma outra questo) fazem da "sociedade" o horizonte geral de sua anlise e a instncia em relao qual devem situar tal ou tal objeto particular ("sociedade, economia, civilizao"). Meu tema ge-ral no a sociedade, o discurso verdadeiro/falso: quero di-zer, a formao correlativa de domnios, de objetos e de discursos verificveis e falsificveis que lhe so aferentes; no simplesmente essa formao que me interessa, mas os efei-tos de realidade que lhe esto ligados.

    Eu me dou conta de que no sou claro. Vou dar um exem-plo. inteiramente legtimo para o historiador se perguntar se os comportamentos sexuais, em uma dada poca, foram con-trolados, e quais, dentre eles, foram severamente sanciona-dos. (Seria, claro, inteiramente superficial acreditar que se explicou tal intensidade particular da "represso" pelo re-tardar da idade para o casamento; apenas delineou-se um problema: como ocorreu que o retardar da idade para o casa-

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    menta tenha se traduzido assim e no de um modo in-teiramente diferente?) Porm o problema que me formulei completamente diferente: trata-se de saber como se transfor-mou a colocao em discurso do comportamento sexual, a quais tipos de jurisdio e de "veredicto" ele foi submetido, como se formaram os elementos constitutivos deste domnio que se chamou -muito tarde, alis- de sexualidade? Domnio cuja organizao teve, certamente, efeitos muito numerosos -entre os quais o de oferecer aos historiadores uma categoria bastante "evidente" para que eles acreditem que se pode fazer a histria da sexualidade e de sua represso.

    Fazer a histria da "objetivao" desses elementos conside-rados pelos historiadores como dados objetivamente (a objeti-vao das objetividades, se ouso dizer). este tipo de crculo que gostaria de percorrer. Uma "embrulhada", em suma. da qual no cmodo sair: eis ai, sem dvida, o que incomoda e ir-rita, muito mais do que um esquema que seria fcil reproduzir.

    Problema de filosofia. sem dvida, ao qual todo historiador tem o direito de permanecer indiferente. Mas se formulo esse problema nas anlises histricas, no porque eu pea his-tria para me fornecer uma resposta: gostaria apenas de bali-zar quais efeitos essa questo produz no saber histrico. Paul Veyne o viu bem: trata-se dos efeitos, sobre o saber histrico, de uma crtica nominalista que se formula, ela prpria, atravs de uma anlise histrica. 5

    5. Veyne (P.), Comment on crit l'histoire. Essai d'pistmologie, Paris, d. du SeUil, col. "L'Univers Historique", 1971.