Fotografia e Resistência na Ocupação Novo Amanhecer ...O Novo Amanhecer da Ocupação O início...

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1 Fotografia e Resistência na Ocupação Novo Amanhecer: Existe o indivíduo na sociedade? 1 Diego Bragança de Santana - UFS/SE Resumo: O presente artigo tem por objetivo dissecar os aspectos de resistência social numa comunidade periférica, em detrimento das ações de confinamento do Estado e dos civis sob perspectiva dos antigos ocupantes e suas narrativas. Além de compreender os processos históricos e políticos que se deram na formação desses grupos, subtende-se que a Antropologia Visual e os registros fotográficos, além de promoverem um debate elucidativo acerca do pensamento analítico antropológico, também promovem a inserção desses grupos na forma de voz ativa no meio social, ao passo em que os sujeitos da pesquisa passam a construir sua própria história e consequentemente, suas análises antropológicas do contexto em que vivem ou viveram. A ocupação Novo Amanhecer, localizada no bairro 17 de Março, em Aracaju, Sergipe, Brasil, perdurou por 9 meses e resistiu a duas reintegrações de posse; sendo composta por 311 famílias sem tetos que viviam em estado social de miséria. A partir das narrativas dos antigos ocupantes e participantes do processo de resistência da ocupação, foi possível evocar um questionamento: como se deu a relação dos processos históricos e políticos que trouxeram como consequência a formação dessa ocupação? Para desenvolvermos essas análises e levantarmos essas questões, foram utilizadas revisões teóricas, fontes orais e documentais, bem como uma diversidade de registros fotográficos. Palavras-chave: Fotografia, resistência, antropologia visual. 1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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Fotografia e Resistência na Ocupação Novo Amanhecer:

Existe o indivíduo na sociedade?1

Diego Bragança de Santana - UFS/SE

Resumo: O presente artigo tem por objetivo dissecar os aspectos de resistência social numa

comunidade periférica, em detrimento das ações de confinamento do Estado e dos civis sob

perspectiva dos antigos ocupantes e suas narrativas. Além de compreender os processos

históricos e políticos que se deram na formação desses grupos, subtende-se que a

Antropologia Visual e os registros fotográficos, além de promoverem um debate

elucidativo acerca do pensamento analítico antropológico, também promovem a inserção

desses grupos na forma de voz ativa no meio social, ao passo em que os sujeitos da

pesquisa passam a construir sua própria história e consequentemente, suas análises

antropológicas do contexto em que vivem ou viveram. A ocupação Novo Amanhecer,

localizada no bairro 17 de Março, em Aracaju, Sergipe, Brasil, perdurou por 9 meses e

resistiu a duas reintegrações de posse; sendo composta por 311 famílias sem tetos que

viviam em estado social de miséria. A partir das narrativas dos antigos ocupantes e

participantes do processo de resistência da ocupação, foi possível evocar um

questionamento: como se deu a relação dos processos históricos e políticos que trouxeram

como consequência a formação dessa ocupação? Para desenvolvermos essas análises e

levantarmos essas questões, foram utilizadas revisões teóricas, fontes orais e documentais,

bem como uma diversidade de registros fotográficos.

Palavras-chave: Fotografia, resistência, antropologia visual.

1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias

04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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O Novo Amanhecer da Ocupação

O início da organização da ocupação Novo Amanhecer se dá como consequência do

processo de reintegração de posse, que foi posto em prática no dia 21 de março de 2013,

por vias de um processo judicial e da coação de força policial complexa, o qual foi

solicitado pela Prefeitura de Aracaju, que passou a ser gerida pelo prefeito João Alves. Essa

reintegração de posse era referente a um conjunto de casas que foram construídas e

finalizadas, em outubro de 2012, na gestão anterior do ex-prefeito Edvaldo Nogueira (PC

do B). O conjunto habitacional está localizado no bairro 17 de Março, Zona de Expansão de

Aracaju, Sergipe e foi construído com verbas do Governo Federal. Diante da demora na

entrega dessas casas, cerca de 800 famílias se uniram e começam a ocupar essas casas.

Depois de seis meses de ocupação, essas famílias foram forçadas a desocuparem essas

casas. Como resultado e sem terem para aonde ir, as lideranças desse grupo optaram por

ocupar um espaço de uma praça (figura 1), localizada nas proximidades deste conjunto

habitacional.

Figura 1 – Barracos dos ocupantes.

(Fonte: Página da Ocupação Novo Amanhecer no Facebook)

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As moradias eram bastante insalubres, sendo os barracos construídos com sobras de

madeira e lona preta (figura 2), sem banheiros e algumas das cozinhas eram

compartilhadas (figura 3). Neste espaço, os ocupantes viveram e sobreviveram por nove

meses, sem as mínimas condições de vida, sem direito à segurança, atendimento médico e

de urgência, educação e, sequer, saneamento básico.

Figura 2 – Como eram construídos os barracos.

(Fonte: ANTÔNIO; JESUS, 2013)

Figura 3 – Cozinha Comunitária da Ocupação.

(Fonte: ANTÔNIO; JESUS, 2013)

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No que consiste às suas necessidades fisiológicas, para urinar e defecar, só era

possível se fosse feito em pé. Como as famílias eram praticamente obrigadas a conviverem

com seus cavalos (por conta do pouco espaço entre as moradias), já que eles eram

utilizados como ajuda e força no trabalho, boa parte da população confinada no terreno

sofria de dezenas de problemas de saúde, principalmente de ordem dermatológica, devido à

contaminação com as fezes de animais, ao pisarem na terra para locomoção diária. As

noites não eram tranquilas para essas pessoas, já que as mesmas sofriam constantes

ameaças da Polícia Militar, que invadia o espaço da ocupação agredindo os ocupantes

verbalmente e fisicamente. O Estado tinha por obrigação atender os interesses das elites

econômicas, promovendo ações sorrateiras e não oficiais de pressão psicológica até a

expulsão dos sem tetos.

Na utilização da força militar (figuras 4 e 5) como instrumento de coerção social, o

Estado promoveu três tentativas de reintegração de posse, sendo que só uma delas surtiu o

efeito desejado pelo Estado. Nas outras duas, as famílias resistiram bravamente contra o

intento do Estado opressor, que fabrica essas realidades e que gera tanta exclusão social.

Diante dessa realidade o que restaria as essas famílias? Na falta de moradia, na falta de

renda e de suporte do Estado, elas se uniram e formaram um grupo, com lideranças e um

objetivo em comum: a luta por moradia.

Figura 4 – Helicóptero da polícia sobrevoando a Ocupação.

(Foto: Amanda Reis, 2013)

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Figura 5 – Cavalaria da polícia cercando o Novo Amanhecer.

(Foto: Amanda Reis, 2013)

De acordo com Cefaï (2007), dentro da sociologia da ação coletiva, dificilmente os

pesquisadores optam por focar as suas análises para o universo de motivações que levam os

atores a se engajarem e defenderem as suas respectivas causas. Nessa análise, Cefaï se

utiliza das premissas de pesquisadores como James, Mead e Dewey, demonstrando que os

mesmos buscaram aplicações de conceitos que fugissem um pouco da normatividade

quando se deparavam com seus objetos de estudo e seus sujeitos. Segundo o autor,

diferentemente da teoria de processo político, a contribuição pragmatista numa análise

sociológica ajuda a compreender as relações sociais de dentro para fora, de forma a

valorizar as peculiaridades e as perspectivas de seus sujeitos. Para Cefaï, o grande “desafio”

do sociólogo ao estudar esses grupos é identificar as mudanças da coletividade e do poder

institucionalizado quando ambos estão correlacionados. Quando os indivíduos que estão

sendo estudados são engessados num todo, o sociólogo acabar por cair em uma armadilha

perigosa, passando a ignorar as atividades exercidas por esses indivíduos em comunidade,

bem como suas aflições e pensamentos que, por ora, são determinantes nesse processo de

coletivização: ‘Mais do que ser coagido por estruturas de oportunidade política, o público

redefine o horizonte de possíveis. É o que chamamos uma “arena pública”’ (CEFAÏ, 2002).

Nesse sentido, a proposta desta pesquisa é observar e absorver, numa análise crítica, as

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6peculiaridades do referido grupo social, através dos registros fotográficos, no prisma da

Antropologia Visual (figura 5).

Figura 5 – Assembleia dos moradores.

(Fonte: Página do Movimento Terra Livre no Facebook)

Seguindo o exemplo da Ocupação Novo Amanhecer, foi possível constatar a

presença de lideranças escolhidas por prestígio social entre as famílias ou indivíduos que

exerciam algum tipo de influência nas assembleias do grupo (possuíam boa oratória e eram

bem articulados). Normalmente, essas assembleias eram promovidas para que os advogados

militantes que defendiam a causa do Novo Amanhecer pudesse fazer o repasse de

informações - que diziam respeito às decisões do poder executivo municipal - ou, como

forma de organizar as famílias na fomentação de atos de protestos, como o que aconteceu

na Prefeitura Municipal de Aracaju, em novembro de 2013, onde 150 moradores ocuparam

os corredores da prefeitura e cobraram uma reunião com o prefeito para que pudessem ser

beneficiados com o auxílio moradia.

Além desses apontamentos, nos fica uma pergunta: o que é político e o que não é?

O senso de coletividade pautado pela cooperação (figura 6) se torna uma consequência das

ações de crítica ao sistema imposto, de resistência de grupos que são constantemente

negligenciados em detrimento das relações de poder (principalmente entre a esfera militar e

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civil), de denúncia quando as informações são devidamente apuradas, de reinvindicação

dos seus direitos (aspecto que demanda de acesso democrático à informação), entre outros.

Figura 6 – Vitória da coletividade.

(Foto: Victor Balde, 2013)

Nas palavras de McAdam, Tarrow e Tilly, este tipo de prática é denominada de

“política conflituosa” ou “contenciosa” (contentious politics); temos como principal

característica dessa prática, a mobilização, seja ela pública ou coletiva, onde,

obrigatoriamente, a outra parte desse embate é o Estado, detentor da maior parte dos meios

de coerção social. Não obstante, diante dos exemplos, é possível observar que a outra parte

desse conflito, onde figura o povo, é também caracterizada como uma prática política de

empoderamento, sendo que a mesma, do ponto de vista organizacional, se assemelha à

imagem de Estado, no que concerne à hierarquia, seja ela vertical ou horizontal. Em outros

aspectos, é possível observar a presença de mobilização com atores experts que utilizam a

sua profissão em prol da causa, como é o caso de advogados que formam o corpo jurídico

de coletivos e movimentos que lutam contra a imposição de sistemas opressores.

Essas ações objetivam o alcance da autonomia desses grupos, de modo que a massa

insatisfeita possa se utilizar de intermediadores que legitimem tecnicamente as suas causas,

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de forma a manter o diálogo entre o Estado e a insurgência, ou seja: “As experimentações

dos fóruns híbridos, ainda que nem sempre digam respeito ao campo decisório, se articulam

com frequência com empreendimentos associativos e restituem aos cidadãos uma parte de

deliberação até então reservada aos eleitos e aos experts” (CEFAÏ, 2007). Devemos

destacar, ainda, que nem sempre essas mobilizações surtem o efeito desejado e ainda

podem provocar um retrocesso no processo de intermediação democrática em conjuntura

com as instituições. Ao levarmos em conta essa variabilidade, percebemos a necessidade de

modificação “das teses dominantes sobre o processo político” (CEFAÏ, 2007).

A longo prazo, essas mobilizações coletivas foram compreendidas pelos

pesquisadores como armas eficientes devido à sua infraestrutura, capaz da obtenção de

êxito no que diz respeito ao recrutamento de pessoas e, por conseguinte, com grande

possibilidade de capitalização; esse investimento pode ser, tanto financeiro como para fins

políticos. Contudo, além dessa potencialidade, o que se observa é uma configuração de uma

rede que promove um forte esquema de interação social entre seus participantes e que, no

decorrer do seu desenvolvimento, promove a coexistência calcada em regras que

influenciam diretamente na vida dos membros, a ponto de direcionar aonde e o quanto um

determinado agente pode ir. Saliento a importância na detecção da incorporação de

identidade por esses grupos. As mobilizações coletivas vão abarcar uma gama enorme de

aspectos cognitivos, formando ações e princípios, sejam eles culturais ou de ordem social,

em escalas universais e aí é que mora o grande desafio do grupo social: como manter a

identidade coletiva?

A partir da década de 1970, foi possível observar que os movimentos sociais não

estavam mais numa configuração de poder fortemente central e em escalas hierárquicas.

Essa visão talvez seja fruto de uma nova abordagem sociológica e não propriamente de uma

modificação de ideias estruturais dos movimentos. É possível que, muito antes, as ações

coletivas passaram a se organizar de uma maneira mais diversa e plural, no entanto, não

havia o desenvolvimento teórico de pesquisadores que pudessem ou quisessem detectar

essas peculiaridades.

Cefaï acabou por nos trazer uma abordagem inédita, proposta pela pesquisadora

Ann Mische. Para Mische (2009), que utiliza de uma concepção deweyana desses atores, as

ações coletivas passam a ser moldadas “por meio de rupturas em equilíbrios situacionais”,

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ou seja, os atores dessas ações coletivas possuem um objetivo que é a busca pelo

enfraquecimento e derrubada do inimigo político (figura 7).

Figura 7 – Resistência.

(Foto: Amanda Reis, 2013)

Essa postura, se intensifica a partir do momento em que os meios de coerção são

utilizados para formarem uma verdadeira conjuntura combativa: novas alianças partidárias

podem ser formadas, os meios de comunicação podem ser utilizados a favor ou contra,

práticas especulativas que promovem o questionamento do povo em meio ao cenário de

decisões, etc (BOURDIEU, 2002).

Desta maneira, compreende-se que, além da territorialidade da Ocupação Novo

Amanhecer e dos objetivos políticos comuns, havia a solidariedade, a sociabilidade e uma

sociedade extremamente organizada (devemos ressaltar o apoio que os movimentos sociais

deram à causa do Novo Amanhecer, inclusive com suporte jurídico). Contudo, devemos

analisar essa Ocupação de forma particular, pois, certamente, no seio dessa organização, é

possível detectar peculiaridades que dificilmente encontraríamos em outras realidades

sociais.

Seria, então, desastroso se não considerássemos essas peculiaridades. É necessário

que se faça uma pesquisa minuciosa e alguns apontamentos. Afinal, quais são as

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motivações desses indivíduos e, em particular, qual a motivação de cada indivíduo que

ocupa esse espaço? O que torna a Ocupação Novo Amanhecer tão importante para

analisarmos esses processos de relações sociais em seu interior? Ao analisarmos este grupo,

percebermos as suas características de resistência diante do poder opressor do Estado e de

suas relações de poder, interpretamos que há possibilidade de êxito da luta coletiva e, por

conseguinte, do estabelecimento do conceito abstrato de sociedade que se forma a partir do

objetivo em comum, que é a conquista do povo por moradia digna, excluindo qualquer tipo

de análise que venha a colocar, por exemplo, o indivíduo como força autônoma dentro do

grupo social Novo Amanhecer.

Resistência Fotográfica

Um dos desafios desta pesquisa consiste em aliar o registro fotográfico ao texto

etnográfico, de forma a não sujeitar nenhuma das interpretações, pois entendendo que

ambas estão relacionadas na estrutura da pesquisa e que, por sua vez, acabam por trazer

aspectos que dificilmente seriam percebidos apenas com a escrita (figura 8). Nesse sentido,

compreende-se que ambas as técnicas de registro antropológico se complementam.

Figura 8 – A espera, a luta.

(Foto: Victor Balde, 2013)

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Na estruturação e anexação da fotografia ao texto etnográfico, fica evidente a

necessidade que se cria com essa relação, principalmente quando estamos próximos de

discussões antropológicas que lançam olhares sobre a corporalidade e a materialidade (DE

FRANCE, 1982), estando em movimento ou não (cinema etnográfico), embora nos

deparemos com uma problemática levantada onde a imagem está limitada apenas a registrar

expressões externas, enquanto que o espaço íntimo, ou seja, as emoções e as percepções do

sujeito, se tornam inacessíveis (KOZLOFF, 1986). Contudo, considero essa tese bastante

questionável, abrindo possivelmente parâmetros de reflexão acerca deste posicionamento.

Compreendo, portanto, que a partir da fotografia é possível criarmos laços de empatia nos

colocando no lugar do outro ou, até mesmo, sentindo suas emoções que são expressadas no

momento do registro (figura 9).

Figura 9 – Choro de alegria.

(Foto: Victor Balde)

No caso da Ocupação Novo Amanhecer, podemos observar momentos em que os

moradores, nesse processo de resistência diante da reintegração de posse e de todo o

aparato policial (confinamento), demonstravam em suas faces sentimentos como a

apreensão, o medo, a raiva, o nervosismo, o desespero; detectava-se, também, o choro, os

gritos de ordem, os gestos obscenos e os punhos cerrados contra os policiais (figura 10).

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Nas palavras de Nuno Godolphim (1995) “é isso que podemos representar fotograficamente

sem medo de ficarmos presos nas tendências atemporais e espacial-materialista da imagem

fotográfica”.

Figura 10 – A negação.

(Foto: Victor Balde)

Vale salientar que, neste trabalho, o foco da fotografia não é apenas o de registrar a

materialidade, os corpos e os espaços, mas, sim, os eventos que transformam a sua estrutura

social, as motivações dos atores e como eles atuam nessa realidade quando estão inseridos

nesses eventos. Poderíamos ainda fazer uso de dispositivo áudio visual, o que permitiria

potencializar esse processo de legitimação a partir da polifonia e nos aprofundarmos mais

nos discursos dos sujeitos, compreendemos como eles representam e como as suas emoções

são externadas; a utilização, por exemplo, de um documentário que seria exibido para a

comunidade ou a produção e divulgação de um inventário fotográfico, ajudariam a ampliar

o debate entre o pesquisador e os atores sociais, de modo a perceber como que eles lidam

com aquele registro e se eles fariam ou não uso desse material. Qual seria o olhar lançado

por eles sobre eles mesmos? Muitos pesquisadores provavelmente considerariam esse

feedback como algo do tipo “aqui está o meu trabalho. Até logo!”, enquanto que, no

presente texto, esse processo a posteriori daria continuidade a uma série de reflexões sobre

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essas relações sociais e representaria uma abertura a mais para o diálogo (estreitando os

laços entre o pesquisador e o pesquisado) com os verdadeiros protagonistas da pesquisa,

criando-se possibilidades para colocarmos em prática uma antropologia mais dialógica.

Um questionamento que permeia os meus pensamentos consiste no fato de lembrar

que, tradicionalmente, o academicismo não é voltado para a sociedade, de maneira que a

maior parte das pesquisas que são construídas nesse meio ou não são amplamente

divulgadas ou, quando são, a linguagem utilizada pelo pesquisador na escrita do texto é de

difícil compreensão (considero que muitos escrevem para si mesmos). Deste modo,

avaliando essa realidade e detectando o baixo impacto causado na sociedade através das

pesquisas acadêmicas, sem que as mesmas possam trazer algum tipo de transformação

social, compreendo que a utilização da fotografia no registro e divulgação da pesquisa

antropológica é de extrema relevância por permitir que a sociedade, de forma geral, tenha

facilitação não só no acesso, isto é, num formato mais compacto, mas, também, utilizando-

se de livre interpretação, a partir dos filtros de suas próprias visões de mundo quando estes

sujeitos se depararem e não resistirem às análises fotográficas (figura 11).

Figura 11 – Cantando vitória. Mas em que tempo?

(Foto: Victor Balde)

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No mais, acredito que a Antropologia Visual só tem a somar nas pesquisas e

desenvolvimento de trabalhos com um viés mais antropológico ou de outras áreas do

conhecimento humano. Fixando-se enquanto uma área ou método que promova uma

relação de conhecimento não só interdisciplinar, mas, principalmente, se a mesma se

construir, também, como uma área de atuação trans e pluri disciplinar.

Qual a relação da Ocupação Novo Amanhecer com os processos históricos

e políticos?

Entendemos que a realidade social da ocupação seja um reflexo de relações de

poder a longo prazo, calcadas na submissão de diversos povos, como os africanos e

indígenas. Durante muito tempo, as principais práticas e fontes econômicas de Portugal

foram a extração de matéria-prima e a utilização de mão de obra escrava (no Brasil

Colônia) e o desenvolvimento de práticas agropecuárias nas regiões interioranas do Brasil e

da prática de “plantation”, que tinha como monoculturas, a princípio: cana de açúcar,

algodão, tabaco e café. Posteriormente, no embrião da fase industrial do Brasil, a elite

cafeeira rechaçou, por obrigatoriedade, a mão de obra escrava e contratou mão de obra de

origem europeia, a qual já estava acostumada e inserida nos maquinários das grandes

fábricas das capitais do continente Europeu. Esse processo se deu, de fato, até o Brasil se

tornar, a partir das décadas de 20 e 30, um país significativamente industrializado.

A extração de matéria-prima no Brasil nas primeiras décadas de colônia, assim

como foi no período imperial e industrial, servia, apenas, para a manutenção de uma elite

política e econômica de Portugal - estando ela presente no Brasil ou não – e, de forma

paralela, era necessária mão de obra para se extrair as riquezas dessas terras

(primeiramente, indígena e, posteriormente, africana). Com a manutenção desse sistema

econômico não havia possibilidade desses povos submetidos ao trabalho se desenvolverem

a ponto de se equipararem perante o grupo opressor. Com o passar dos séculos, na história

do Brasil, o sistema econômico modificou-se em alguns pontos, mas as relações de poder se

mantiveram. Em Sergipe, não foi diferente.

Nas épocas provinciais, Sergipe era um dos estados produtores de açúcar e possuía

centenas de engenhos por todo o seu território. A política era dominada pelas oligarquias,

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sendo essa prática ainda muito presente nos dias de hoje. Sob nova perspectiva, ainda

observamos uma política extremamente clientelista e paternalista, onde milhares de pessoas

são condicionadas e se tornam dependentes e alienadas do sistema em que fazem parte, ou

melhor, no sistema em que sobrevivem e, diga-se de passagem, com muito pouco.

O solo sergipano é dividido com um punhado de famílias da elite econômica que

dominam os setores industriais, da pecuária e da agricultura, de maneira a impossibilitar

que outras famílias menos abastadas - obviamente sem posses de terra -, possam constituir

moradia fixa e digna e que possam, também, se tornarem auto sustentáveis no

desenvolvimento da agricultura familiar, criando a possibilidade de produção do seu

próprio alimento. Quando esses desalojados buscam ocupar, finalmente, espaços urbanos

ou rurais desocupados e sem uso por parte dessas elites, com o objetivo de adquirir os

direitos básicos a qualquer ser humano, a elite age com força bruta, utilizando-se das forças

militares para expulsarem esses ocupantes, os quais são desprovidos de táticas de ataque e

defesa em combate e também de poderio bélico.

O cientista social, ao se deparar com estes cenários, precisa considerar as realidades

políticas de regimes que “tentaram varrer” o senso de coletividade do homem, enquanto ser

(quiçá para enfraquecer as insurgências contra a dominação das elites), de modo que essa

dominação possa ser propagada, por exemplo, com a privatização dos meios de produção,

onde toda a economia dessas sociedades passam a girar em torno de um grupo pequeno de

indivíduos, enquanto a maior parte está presa às relações de poder entre Estado e cidadão.

Nesse sentido, podemos conectar, historicamente, a realidade do Novo Amanhecer,

enquanto um grupo que sofreu - e ainda sofre - com a exclusão social, sem direitos às

condições de cidadania, ao passo em que, o seu veredicto foi dado num processo histórico

secular, onde organizações institucionais, subtraíram a liberdade de desenvolvimento e

crescimento social de milhões de indivíduos. Subtração que, também, aflige e que resultou

nesse ato de ocupação de espaço no Novo Amanhecer.

Ainda sob a perspectiva do processo de industrialização, vale salientar que todo o

processo de produção cultural, seja de livro, da música, do teatro, etc., vai passar por um

controle do Estado dentro de relações ocultas de mercado, de modo que as ideias são

direcionadas apenas para a comercialização e enriquecimento dessas elites corporativas.

Esses grupos corporativos são determinantes no meio social, pois são eles que ditam a

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estrutura da normatividade e que passam a institucionalizar regras, objetivando o benefício

próprio. Não só a cultura, como já foi posto, mas as instituições públicas e políticas,

somadas ao poder do judiciário - tudo gira em torno das determinações do corporativismo.

Os objetivos são claros: as corporações só existem se tiverem clientela, portanto, o

indivíduo, no meio social, além de objeto de fetiche do mercado, é um mero produto dessa

relação de poder capitalizada, onde reina a dominação sobre certos aspectos no que

concerne à cognição humana, isto é, à sua assinatura na estrutura social, à sua essência. O

indivíduo está para o mercado como uma ferramenta, como alguém que disponibiliza seus

serviços e que, em troca, cria o poder de consumo. A vida do indivíduo nessa realidade

resume-se apenas à escravidão moderna, ao consumo e ao consequente enriquecimento das

classes dominantes. A partir do momento em que a elite política de uma nação nega a

legitimação da sociedade como uma força autônoma, os olhos se voltam para o que de fato

é tangível, ou seja, os corpos. Nega-se, completamente, os direitos naturais humanos e a

possibilidade de seguir rumo a uma sociedade que possa se desenvolver sem a interferência

do Estado, seja nos aspectos culturais, econômicos ou jurídicos.

O Estado enseja a abertura para o surgimento sintomático do individualismo

institucionalizado, de maneira a tornar, por exemplo, as práticas de comercialização bélica

de grandes corporações estrangeiras como uma fonte de enriquecimento, ao tempo em que

milhares de grupos sociais são exterminados com a guerra. O desapego do indivíduo ao

ambiente de sua origem também é posto em prática, visto que é do interesse das grandes

corporações, extrair ao máximo as riquezas naturais, degradando os sistemas ecológicos e

lucrando com espaços que, anteriormente, eram de posse do indivíduo e não da sociedade

ou do Estado. Desta forma, a tentativa de se fazer o resgate do equilíbrio da estrutura social

se torna complexa (e nem é do interesse das classes dominantes que isso aconteça).

Considerações Finais

O real objetivo deste trabalho é trazer à tona os registros de uma realidade social em que os

seus sujeitos sejam empoderados (existe o indivíduo na sociedade?), possuindo, por sua

vez, voz ativa na construção dos registros, sejam eles imagéticos (constituindo uma parcela

de fotos de autoria dos próprios moradores da ocupação) ou em suas narrativas. Partindo

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dessas premissas, tecemos alguns questionamentos: Qual é o olhar do outro? Será que eu

enxergo um mesmo espaço e tempo semelhante à ótica dos ocupantes do Novo

Amanhecer? Como esses atores se enxergam diante da sociedade e como a sociedade os

enxerga? Deste modo, além de entender que uma das características do texto etnográfico é

a de trazer à sociedade e às esferas acadêmicas uma realidade social que é silenciada por

elites políticas e econômicas, portanto, entendo, também, que não podemos, enquanto

pesquisadores e participantes dessa realidade, repetir o mesmo erro. Não podemos

considerar o texto etnográfico como uma verdade do pesquisador, mas, sim, como o reflexo

de uma relação aproximada entre o pesquisador e os sujeitos, fruto de negociação e de

arranjos que envolvem um olhar dicotômico, ou seja, humano e científico. É justamente

nessa relação que criamos possibilidade de imersão num mundo totalmente desconhecido

do outro onde, talvez, jamais tenhamos acesso enquanto estivermos muito distantes daquilo

que muitos consideram o seu objeto. Se faz necessária, portanto, a quebra desse

pensamento paradigmático da antropologia, em específico do texto etnográfico, onde o

pesquisador demonstra a sua extrema necessidade em legitimar o seu texto, dentro da velha

ideia do “estar lá” descristalizada nas ideias de Geertz (1989).

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