Fórum Diálogos na Alepe
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Aniversário do Fórum Diálogos.
Gilbraz Aragão.
Senhoras e senhores! É aniversário do fórum da diversidade religiosa de
Pernambuco e por isso estamos aqui, na casa de todos os pernambucanos.
Neste novembro da proclamação da República, quero lhes dizer com Joaquim
Nabuco que “O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a
humanidade”. Neste novembro da consciência negra, quero abrir esta
saudação com as palavras desse deputado que se bateu pela liberdade
religiosa nesta terra e pela abolição da escravatura na história humana. Para
que não se repita, precisamos lembrar que esta foi uma sociedade de
escravidão: “... seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem
do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião
natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;
insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem
amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua
felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as
nossas noites do Norte”.
Caros cidadãos! Estamos aqui para comemorar o aniversário do Diálogos,
fórum da diversidade religiosa em Pernambuco. Ele vem ajudando a
ultrapassar os suspiros do passado e a inventar um novo espírito entre a gente,
a criar uma nova manhã, dançada em cirandas, com os pernambucanos. Em
novembro de 2012 o Fórum Diálogos foi lançado aqui na Assembleia
Legislativa, por iniciativa do Ministério Público do Estado, sobretudo em defesa
do Povo de Santo que sobreviveu à escravidão e aqui enfrenta uma
intolerância religiosa que é racista e classista. A associação, que começou com
uma quinzena de tradições religiosas, visa colaborar para a construção de uma
cultura de tolerância entre as diversas religiões, para o conhecimento e
respeito ao culto dos outros, para a promoção de um serviço combinado das
tradições espirituais à causa da justiça socioambiental em nossa sociedade.
São lideranças que se reúnem e refletem sobre questões importantes para a
liberdade religiosa, promovendo ações para sedimentar a coexistência entre as
crenças. Com isso, Pernambuco vai avançando para ter um povo mais
humano.
E precisamos muito disso, porque nossa história clama por um novo tempo.
Olinda já foi a bela Marim dos Caetés: setenta e cinco mil indígenas desse
povo tupi viviam na região, uma gente valente que comeu até o primeiro bispo
do Brasil, mas acabou escravizada e dizimada pela cruz e pela espada da
empresa colonial, porque atrapalhava a exploração das riquezas daqui. O que
a escola deve dizer aos nossos filhos sobre essa memória?! Afinal, há sangue
de índio em nossas mãos e sangue das escravas indígenas e africanas em
nossas próprias veias! E esse extermínio que se fez no litoral continua sendo
feito hoje pelo agronegócio no interior. O que as religiões têm a ver com essa
história? Como podem ajudar a tornar possível um outro mundo, mais
humanizado?
Muitas vezes as religiões ajudaram e ajudam a justificar explorações e
dominações. Mas quando bem interpretada a religião é paixão, é amor pelo
ideal da vida em confronto com o real, em seus limites e violências. A
experiência religiosa deve ser razoável, mas está sempre para além da razão:
é exercício do desejo humano frente à consciência de pouco poder para a
gente ser na vida, é a imaginativa antecipação de uma realidade de paz ainda
inexistente. Religião deve ser antídoto à loucura de existir em meio a tanta
injustiça: “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor,
eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para
se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura. (...) Muita religião, seu
moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas, bebo água de
todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”, já dizia o
Guimarães Rosa.
E no último 15 de setembro, na III Conferência Mundial sobre as Religiões, em
Montreal, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa pelas
Religiões do Mundo, que em seu artigo I diz que “Toda pessoa tem direito a ser
tratada com respeito como ser humano e tem o dever de tratar as demais
pessoas com respeito e como seres humanos que são, sob o espírito da
irmandade”. Então, quando bem entendidas, as religiões podem nos unir em
torno de um mandamento humanizante: cuidar do outro como você deseja ser
cuidado.
Hoje, cresce essa compreensão de que devemos nos reconhecer como
comunidade humana, geneticamente ligada com todos os seres vivos,
evoluindo junto com a totalidade do cosmos. Nossa existência deve ser
concebida como interdependência em todos os níveis. Todos somos luz e
treva, em comunitária evolução. Nenhum triunfalismo, religioso ou de qualquer
espécie, pode ter lugar neste “novo” paradigma de universo e de
conhecimento, onde se procura permitir mais vida para todos. Diante dessa
aventura ecológica e ecumênica deflagrada pelo espírito de nosso tempo, as
pessoas de boa vontade ou juízo razoável, bem como as suas religiões e
convicções, ficam desafiadas seriamente para o combate à intolerância e a
promoção do diálogo.
Não são poucos os desafios que o mundo enfrenta nesse campo (da falta) do
diálogo e da coexistência. Não bastassem os conflitos econômicos e políticos,
a China e a Coreia do Norte perseguem ideologicamente (e a ideologia aí
assume ares de substitutivo religioso) os grupos espirituais tradicionais. O Irã e
a Arábia Saudita apadrinham a versão de uma religião e perseguem
muçulmanos dissidentes, cristãos e baha’istas. O Paquistão condena à morte
quem os extremistas denunciam por blasfêmia, normalmente xiitas, cristãos,
hindus e ahmadis. Na Síria e Iraque o grupo Estado Islâmico desencadeou
ondas de terror contra yazidis, cristãos e xiitas, bem como contra os gays e as
mulheres. Budistas radicais na Birmânia agridem os muçulmanos rohingya. Na
República Centro-Africana, milícias cristãs destruíram quase todas as
mesquitas do país. Na Nigéria, o Boko Haram continua a atacar cristãos e
inúmeros muçulmanos que se opõem ao grupo. Muçulmanos e judeus
continuam se confrontando na Palestina. O extremismo político-religioso
também aterroriza Europa e EUA – e não são apenas os ditos muçulmanos
antiocidentais que o promovem: grupos que se proclamam cristãos matam
médicos que defendem os direitos reprodutivos.
No Brasil, as denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo
Disque/Clique 100 atingiram no ano passado seu maior número. Foram 556
casos reportados ao serviço da Secretaria de Direitos Humanos do governo
federal. Houve um aumento de 273% em relação a 2014 e a maioria dos fatos
envolve o Povo de Santo das religiões afro-indígenas-brasileiras, com cultos de
imprecações cristãs contra os seus Terreiros e agressões aos seus símbolos e
aos seus membros.
Não se trata de criticar as pessoas que gostam do evangelho e criam
comunidades em torno dele para promover mais vida, mas de questionar um
projeto de dominação político-cultural articulado por algumas lideranças
evangélicas e católicas, que consiste inclusive em um cisma com respeito à
tradição profética do cristianismo. Pois elas opõem um “deus” pai sério e
punitivo a uma divindade amorosa de justiça e compaixão; uma igreja
exclusivista, rígida e hierárquica, a movimentos inter-religiosos em favor da
terra eco-consciente; manifestam um apego teológico ao pecado original,
contra uma espiritualidade da criação e sua compreensão de bênção original;
pregam a intolerância ao estrangeiro e ao “estranho” moral, contra o abraço ao
feminino e aos outros gêneros; o medo da ciência, enfim, ao invés do incentivo
à sapiência.
São discursos que hostilizam em especial as telúricas religiões indígenas e
afro-negro-brasileiras, além de outros “bodes expiatórios” considerados
idólatras. Contra eles devemos invocar a laicidade: o Estado brasileiro é laico e
pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que
uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os
espaços públicos republicanos ser ostensivamente ocupados e controlados por
quaisquer comunitarismos ou igrejas. Uma autoridade pode ter convicções
religiosas, mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que
deve governar, sendo necessário traduzir as motivações religiosas pessoais
em argumentos para o debate público numa sociedade democrática.
Para enfrentar a intolerância temos criado legislação e políticas, mas
precisamos mesmo é de (re)educação. Somente a escola pode terapeutizar a
vivência da religião e as relações entre as religiões. Mas a escola como lugar
de aprendizagens críticas e transdisciplinares dos conhecimentos espirituais,
enquanto patrimônio cultural da humanidade. Cabe à comunidade educativa
refletir sobre as diversas experiências religiosas que a cercam, analisar o papel
dos movimentos e tradições religiosas na estruturação e manutenção das
culturas, rompendo com relações de poder que encobrem e naturalizam
discriminações e preconceitos. Cabe à escola refletir sobre o fenômeno
humano de abertura para a transcendência, em busca de interpretações mais
universais e significados mais profundos para o que é experimentado como
sagrado em cada cultura.
Amigas e amigos. Neste novembro de aniversário do Fórum Diálogos, desejo
que esse grupo continue ajudando a sociedade pernambucana a ser mais
cosmopolita e transreligiosa. As visões de mundo e rituais religiosos são como
um arco-íris, em que cada um pode embelezar a sua cor, mas consciente de
que ela vai aparecer ainda mais bonita dentro do espectro das colorações do
mundo, que se originam da mesma luz, transcendente. Quem sabe, é tempo de
ensaiarmos uma grande ciranda das culturas, com sons diferentes para sonhos
iguais, e um silêncio no centro que nos abra para uma palavra diferente e uma
outra visão das coisas. E neste novembro da consciência negra, repito, quero
concluir esta saudação com as palavras de um sapateiro aqui do bairro de São
José, o grande poeta negro Solano Trindade:
“Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos...
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes...
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais...
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos...”
Que assim seja!