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1 Formação em Gestão Social: Um Olhar Crítico sobre uma Experiência de Pós- graduação Autoria: Sônia Maria Guedes Gondim, Tânia Fischer, Vanessa Paternostro Melo Resumo Este artigo tem como principal objetivo analisar criticamente a formação do gestor social, tomando como referência a experiência adquirida no PDGS – Programa de Desenvolvimento e Gestão Social, da Universidade Alpha, em particular a especialização lato sensu realizada entre 2003 e 2006 voltada para cerca de 80 alunos, oriundos de organizações do primeiro, segundo e terceiro setores. Buscou-se dirigir o olhar para a qualidade deste processo de formação à luz dos objetivos iniciais que nortearam a elaboração da proposta e das competências profissionais a serem desenvolvidas. Iniciamos com uma discussão geral sobre o que seja a gestão para, então, nos indagarmos acerca da gestão social e, em particular, do gestor social. A seguir, procedemos a uma breve descrição do conceito de competências, para daí apresentarmos as 13 competências de um gestor social. Detalha-se o processo de organização da especialização e, subseqüentemente, descreve-se a avaliação realizada ex-ante e após por meio de grupos focais. Conclui-se que houve um avanço no conceito de gestão social como campo de conhecimento e práticas que seja referencial para propostas de formação e qualificação profissional, a despeito dos desafios da experiência de construção compartilhada entre a Universidade e a sociedade. 1. Introdução Este artigo tem como principal objetivo proceder a uma análise crítica da formação do gestor social, tomando como referência a experiência adquirida no PDGS – Programa de Desenvolvimento e Gestão Social, da Escola de Administração da Universidade Alpha 1 , em particular a especialização lato sensu realizada entre 2003 e 2006 voltada para cerca de 80 alunos de nível superior de áreas distintas, inseridos profissionalmente em organizações públicas (primeiro setor), privadas (segundo setor) e, também, em organizações não- governamentais e demais organizações da sociedade civil (consideradas de terceiro setor). Nosso propósito também é o de dirigir o olhar para a qualidade deste processo de formação à luz dos objetivos iniciais que nortearam a elaboração da proposta e das competências profissionais que se pretendiam ver desenvolvidas. O PDGS abrange atividades de pesquisa, ensino (graduação e pós-graduação) e extensão (realização de oficinas, eventos etc) para dar suporte à formação e qualificação de gestores sociais e do desenvolvimento, atentando-se para a produção e a difusão do conhecimento na área. O referido programa se sustenta em três princípios basilares: a orientação para a gestão do desenvolvimento sócio-territorial; a articulação interinstitucional e interorganizacional em nível local, nacional e internacional; e a aproximação entre a universidade e a sociedade. Além do compromisso de avaliar e divulgar as dificuldades e os desafios de um projeto multidisciplinar de pós-graduação, que reúne corpo docente e discente de formações variadas, com o intuito de potencializar o aprendizado daqueles que porventura estejam engajados em projetos de formação e qualificação profissional nesta área, esta análise crítica se torna ainda mais oportuna, haja vista o salto qualitativo a partir deste ano, com a elaboração e início do mestrado em gestão social e do desenvolvimento, concebido e coordenado pelo mesmo grupo de professores e pesquisadores. Para atendermos a contento os nossos objetivos, este texto está dividido em partes. Iniciaremos com uma discussão geral sobre o que seja a gestão, para então nos indagarmos

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Formação em Gestão Social: Um Olhar Crítico sobre uma Experiência de Pós-graduação

Autoria: Sônia Maria Guedes Gondim, Tânia Fischer, Vanessa Paternostro Melo

Resumo Este artigo tem como principal objetivo analisar criticamente a formação do gestor social, tomando como referência a experiência adquirida no PDGS – Programa de Desenvolvimento e Gestão Social, da Universidade Alpha, em particular a especialização lato sensu realizada entre 2003 e 2006 voltada para cerca de 80 alunos, oriundos de organizações do primeiro, segundo e terceiro setores. Buscou-se dirigir o olhar para a qualidade deste processo de formação à luz dos objetivos iniciais que nortearam a elaboração da proposta e das competências profissionais a serem desenvolvidas. Iniciamos com uma discussão geral sobre o que seja a gestão para, então, nos indagarmos acerca da gestão social e, em particular, do gestor social. A seguir, procedemos a uma breve descrição do conceito de competências, para daí apresentarmos as 13 competências de um gestor social. Detalha-se o processo de organização da especialização e, subseqüentemente, descreve-se a avaliação realizada ex-ante e após por meio de grupos focais. Conclui-se que houve um avanço no conceito de gestão social como campo de conhecimento e práticas que seja referencial para propostas de formação e qualificação profissional, a despeito dos desafios da experiência de construção compartilhada entre a Universidade e a sociedade.

1. Introdução Este artigo tem como principal objetivo proceder a uma análise crítica da formação do

gestor social, tomando como referência a experiência adquirida no PDGS – Programa de Desenvolvimento e Gestão Social, da Escola de Administração da Universidade Alpha1, em particular a especialização lato sensu realizada entre 2003 e 2006 voltada para cerca de 80 alunos de nível superior de áreas distintas, inseridos profissionalmente em organizações públicas (primeiro setor), privadas (segundo setor) e, também, em organizações não-governamentais e demais organizações da sociedade civil (consideradas de terceiro setor). Nosso propósito também é o de dirigir o olhar para a qualidade deste processo de formação à luz dos objetivos iniciais que nortearam a elaboração da proposta e das competências profissionais que se pretendiam ver desenvolvidas.

O PDGS abrange atividades de pesquisa, ensino (graduação e pós-graduação) e extensão (realização de oficinas, eventos etc) para dar suporte à formação e qualificação de gestores sociais e do desenvolvimento, atentando-se para a produção e a difusão do conhecimento na área. O referido programa se sustenta em três princípios basilares: a orientação para a gestão do desenvolvimento sócio-territorial; a articulação interinstitucional e interorganizacional em nível local, nacional e internacional; e a aproximação entre a universidade e a sociedade.

Além do compromisso de avaliar e divulgar as dificuldades e os desafios de um projeto multidisciplinar de pós-graduação, que reúne corpo docente e discente de formações variadas, com o intuito de potencializar o aprendizado daqueles que porventura estejam engajados em projetos de formação e qualificação profissional nesta área, esta análise crítica se torna ainda mais oportuna, haja vista o salto qualitativo a partir deste ano, com a elaboração e início do mestrado em gestão social e do desenvolvimento, concebido e coordenado pelo mesmo grupo de professores e pesquisadores.

Para atendermos a contento os nossos objetivos, este texto está dividido em partes. Iniciaremos com uma discussão geral sobre o que seja a gestão, para então nos indagarmos

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acerca da gestão social e, em particular, do gestor social. A seguir, procederemos a uma breve descrição do conceito de competências para, daí, apresentarmos as que destacamos como mais significativas para um gestor social. Nesta trajetória, alguns detalhes do processo de organização da especialização serão descritos, para subseqüentemente nos determos na avaliação realizada com as duas turmas que concluíram a referida formação.

Esperamos que este texto suscite reflexões críticas sobre a complexidade da formação de gestores sociais e contribua para o aperfeiçoamento desse processo que, apesar dos avanços, apresenta-se como um grande desafio para um país em desenvolvimento.

2. O princípio é o verbo: a ação2

Embora admitamos ser justificável a incredulidade de alguns sobre as contribuições da etimologia na compreensão dos sentidos que uma palavra venha a assumir nos diversos domínios da linguagem científica e coloquial contemporâneas, estamos convencidos de que o conhecimento da origem de uma palavra e suas mudanças de sentido ao longo da história nos dá acesso às diversificadas representações mentais compartilhadas sobre o mundo, a maneira como o descrevemos e agimos nele, e para com ele.

A palavra gerir é de origem latina (gerire) e possui dois sentidos mais diretos, o de dirigir e o de regular (CUNHA, 1997). A raiz da palavra sugere, então, que a ação de quem deve gerir é a de dirigir e regular processos inerentes à gestão. Por dirigir, entendemos o ato de guiar e, por regular, o ato de se guiar por regras, que podem ser arbitradas (um terceiro ator social não implicado no processo) ou coletivamente elaboradas. Estas seriam as únicas expectativas em relação à atuação de um gestor, caso a gestão não fosse, essencialmente, um processo social embebido culturalmente, em contextos sócio-territoriais que vão demandar uma diferenciação nas formas de atuação.

Ora, para que ele seja capaz de dirigir e regular, é necessário que tenha desenvolvido outras competências. Como é possível dirigir se não se sabe qual é o território e domínio de ação para planejar onde e quando chegar? Como é possível regular processos se não se é capaz de identificar variáveis e fatores que estejam presentes no cenário em que se atua e que, no jogo mútuo de influências, antepõem-se ao gestor sob a forma de inúmeros desafios que o fortalecem ou enfraquecem, demandando a elaboração de ações planejadas e o colocando em posição de igualdade neste imbricado e traiçoeiro tabuleiro de forças? Sem contar que algumas destas forças encontram-se sob seu controle parcial, enquanto outras são de posse alheia, o que torna imperativo a mobilização de esforços para a construção de modalidades de governança — uma vez que a presença do outro impõe limites — à custa da solução de continuidade da gestão sob sua responsabilidade, bem como a presença do outro multiplica possibilidades de cooperação.

A maneira de gerir, discutindo o que e como realizar esta gestão demanda um outro nível de discussão, visto que na arena (do espetáculo e do jogo político), diversos atores sociais formal ou informalmente constituídos, compartilham e disputam espaço. É o que presenciamos no nível do governo local, regional e nacional; nos arranjos interorganizacionais, em suas dimensões micro, meso e macro; nas empresas privadas; nos diversos grupos da sociedade civil etc. Espaços estes dinâmicos (embora incertos – o terreno sob a arena pública pode ser sólido ou movediço), onde têm lugar a tensão entre a cooperação, com impactos para a inclusão, e a competição, com possíveis impactos na exclusão. O que entendemos, de fato, por gestor social? Quem seria este gestor social que se almeja formar? De imediato, diríamos que a gestão social está sustentada em uma preocupação para com o bem de todos. Isto nos permite inferir que gestão social é um avanço em relação à gestão tradicional e tecnocrática, em especial porque a racionalidade que lhe dá suporte, idealmente, não está a serviço apenas de interesses econômicos, que atendem a poucos, mas a interesses sociais e do bem comum, que atendem a muitos. E o gestor social só

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pode saber qual é o bem comum se mantiver uma relação direta com seus beneficiários (condição importante para estabelecer a relação dialógica) (MILANI, 2006).

Tenório (2006), fundamentado no pensamento de Habermas (1989, 2003) afirma que: a gestão social é um processo gerencial dialógico onde a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação (ação que possa ocorrer em qualquer sistema social – público, privado ou de organizações não-governamentais). O adjetivo social qualificando o substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de relações sociais onde todos têm direito à fala, sem nenhum tipo de coação. (TENÓRIO, 2006, p.2)

A oposição da gestão social à gestão tradicional aparece na distinção entre a racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva (GUERREIRO RAMOS, 1981; BOEIRA, 2002). Destarte, a racionalidade sai do âmbito da filosofia que a apresenta como um atributo do intelecto (faculdade da razão) e se desloca para o âmbito das ciências sociais, tal como encontramos em Weber (1995), e assume o sentido de justificativas da ação social, que estariam suportadas por quatro tipos de racionalidade: i) com relação a fins — a instrumental (determinada por objetivos a serem atingidos); ii) com relação a valores — a substantiva (decorrente da elaboração consciente sustentada em valores); iii) a afetiva — a reativa (justificada por sentimentos e emoções momentâneos do agente) e iv) a tradicional — a automática (determinada por hábitos e costumes). É bom lembrar, no entanto, que apesar de Weber tecer uma análise crítica das referidas racionalidades, reafirma que todas se fazem presentes na ação social, e a racionalidade com relação a fins e a racionalidade com relação a valores não seriam necessariamente excludentes, embora alguns teóricos que lhe sucederam tenham interpretado desta maneira.

A crítica é a de que a primeira privilegia os meios para fins de acumulação (lógica de mercado - mercadocêntrica) e a segunda supõe uma satisfação pessoal pautada em valores morais do bem comum, com impactos na auto-realização e na satisfação coletiva. Para se contrapor à racionalidade instrumental de Weber, Tenório (2006) busca apoio na racionalidade comunicativa de Habermas, e destaca que a evolução social é conquistada à luz da ampliação da capacidade dos homens em dialogar, ampliando a intersubjetividade. O agir intersubjetivo superaria o agir estratégico, na medida em que o primeiro estabeleceria o diálogo e visaria ao consenso, ao dar voz a todos os atores sociais implicados, garantindo a cidadania deliberativa, enquanto o segundo teria como objetivo atender tão somente aos interesses privados (HABERMAS, 1989, 2003).

A ação comunicativa, então, estaria na base da gestão social, ação esta que se efetivaria na articulação de valores, na elaboração de normas e no seu questionamento por todos os atores em interação social. Reafirmando o que dissemos há pouco, a diferença entre o agir comunicativo e o agir estratégico residiria no fato de o primeiro buscar o consenso intersubjetivo fruto da atuação dos diversos atores, enquanto o segundo almeja tão somente a adesão, pois uma vez que os objetivos estariam previamente definidos, os demais atores seriam meros coadjuvantes na cena social3.

Adquirir competência comunicativa seria, então, uma conquista a ser obtida pelo gestor social, pois somente assim conseguirá dialogar com vozes múltiplas com as quais lidará no cenário contemporâneo e, por conseguinte, realizar um projeto de desenvolvimento social.

Ao incluir esta condição, admitimos que, por gestão social do desenvolvimento, entendemos o processo de mediação que articula múltiplos níveis de poder, em espaços e tempos determinados — que se constituem esferas públicas onde a pluralidade de discursos tem seu lugar (HABERMAS, 2003) —, objetivando realizações e expressando interesses coletivos de qualificação sócio-territorial. Esta abordagem de desenvolvimento sustenta-se na visão integrada dos aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais, para a satisfação das necessidades do mundo contemporâneo, e na suposição de que esta satisfação

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não coloque em risco o direito das gerações futuras satisfazerem as suas necessidades (BUARQUE, 2000). Dito de outro modo, o desenvolvimento atual não pode ser alcançado às custas do ônus de gerações futuras e da supressão das vozes dissonantes. Este é o sentido da sustentabilidade. Nesta mesma direção, os organismos internacionais definem desenvolvimento como: i) satisfação das necessidades humanas e inclusão de marginalizados, ii) planejamento compartilhado de longo prazo, e iii) conciliação de objetivos econômicos, sociais e ambientais, com especificações das formas de arbitragem e regulação, mediadas por negociação (OCDE, 2001).

A preocupação com o desenvolvimento sustentável pautado em uma responsabilidade social já se encontra disseminada no âmbito das organizações da sociedade civil, estatais ou do mercado, colocando em relevo a importância de valores éticos e solidários, traduzidos, na prática, pelas ações sociais. No mundo empresarial, também, a responsabilidade social corporativa é um tema recorrente, trazendo a noção de que a atividade empresarial envolve compromissos com toda a cadeia produtiva da empresa: clientes, funcionários e fornecedores, além das comunidades, ambiente e sociedade (SCHOMMER, 2000).

Urge ressaltar ainda que, para garantir sustentabilidade da gestão do desenvolvimento de todos os setores da sociedade, é preciso encontrar alternativas para manter a identidade na diversidade (co-operação), a autonomia na dependência (financiamento público ou organismos internacionais), a estabilidade na instabilidade do mercado e de contingências locais, regionais, nacionais e internacionais, e, por último, a legitimidade na marginalidade (conquista de espaço social pelos grupos destituídos de poder) (FISCHER, 2002). É em virtude desses desafios da gestão social que colocamos em debate as competências do gestor social.

A questão é a seguinte: embora haja consenso da ênfase no desenvolvimento social, as divergências de entendimento aparecem quando se discute como realizar este desenvolvimento. O desafio que demanda competência do gestor é conciliar os interesses diversos em que também está em jogo a posse de um território. Gestão requer ação sobre territórios (naturais e artificiais) e espaços sociais (VIEIRA e VIEIRA, 2002). E os territórios e espaços sociais se apresentam inter-relacionados, pois uma ação em um espaço social emerge em um espaço territorial, quer seja natural ou artificial, com impactos positivos e negativos para os que ali se encontram. A preocupação com a preservação ambiental está aí circunscrita.

Ao visualizar o contexto da competição (a construção de tramas produtivas), o gestor social deve estar qualificado para planejar relações econômicas entre produtores e clientes, e promover as trocas de informações entre agentes, instituições e indivíduos. Ao dirigir o olhar para o desenvolvimento solidário ou alternativo, sua preocupação deve ser a de o desenvolvimento econômico estar a serviço de imperativos não-econômicos (sociais, ambientais, culturais etc). As disputas por recursos e as estratégias de sustentabilidade levam, inevitavelmente, à competição. De outra parte, as associações orientam-se por lógicas de cooperação, valendo-se de alianças, parcerias, pactos e consórcios (redes de redes)4 (FISCHER e MELO, 2004). Em síntese, entendemos como sendo gestão social um ato relacional capaz de dirigir e regular processos por meio da mobilização ampla de atores na tomada de decisão (agir comunicativo), que resulte em parcerias intra e interorganizacionais, valorizando as estruturas descentralizadas e participativas, tendo como norte o equilíbrio entre a racionalidade instrumental (com relação a fins) e a racionalidade substantiva (com relação a valores), para alcançar enfim um bem coletivamente planejado, viável e sustentável a médio e longo prazo. O que se exige do gestor, então, é que ele tenha visão de conjunto, ajude na transformação

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sócio-cultural, mas também simbólico-valorativa, e que se mantenha vigilante ante os mecanismos de auto-regulação (FISCHER, 2002).

3. Competências do gestor social Não resta dúvida de que um dos requisitos fundamentais para atender aos desafios

atuais no campo da gestão social é o da qualificação5 dos profissionais que atuam nas organizações envolvidas com esses processos, especialmente seus gestores que, além das capacidades básicas de gestão, devem possuir competências específicas. Não é fácil definir conhecimentos, habilidades e atitudes de um gestor para levar avante um projeto social de desenvolvimento.

No planejamento do curso em análise — o Curso de Especialização em Gestão Social para o Desenvolvimento —, os seguintes objetivos foram definidos (ALPHA, 2003):

Capacitar gestores para exercerem liderança em processos de transformação das relações entre Estado, mercado e sociedade civil, contribuindo para a reconfiguração do espaço público local;

Contribuir para a formação de um quadro multiqualificado de gestores sociais; Capacitar gestores em habilidades específicas para a gestão de organizações do

terceiro setor, empresariais e do setor público voltadas para o desenvolvimento social; Capacitar gestores para atuação em interorganizações e organizações complexas com

foco nas questões sociais. Para atingir estes objetivos, tornou-se imperativo mapear quais seriam as

competências necessárias a um gestor social. Mas, para dar prosseguimento a este texto, faz-se necessário uma pequena digressão para esclarecer o que entendemos por competência. É fato que nosso objetivo não é o de discutir conceitos e teorias de competências, porém não podemos nos esquivar de situar o leitor na compreensão que temos deste fenômeno.

Apesar de o conceito de competência não ser novo, ao serem encontradas referências de uso na Idade Média, em especial, na linguagem jurídica, o seu significado ainda se mantém com o sentido de externalização da capacidade, habilidade, aptidão e idoneidade de alguém no exercício de sua ação profissional (BRANDÃO E GUIMARÃES, 2001). Há relativo consenso entre os autores que discutem o tema no Brasil, da existência de duas grandes correntes de abordagem geográfica do fenômeno — a norte-americana e a francesa -, além de dois grandes âmbitos de debate sobre a competência — o nível individual e o organizacional (BITTENCOURT E BARBOSA, 2004; DUTRA, 2004; FLEURY E FLEURY, 2000; RAMOS, 2001; RUAS, 2005). O conceito é mais bem apreendido em um continuum, localizando em um extremo a competência como uma condição prévia de domínio de conhecimentos, habilidades e atitudes que capacitaria alguém para uma ação específica (corrente norte-americana — BOYATZIS, 1982; McCLELLAND, 1973) e, no outro, a competência como resultado da ação da pessoa em um dado contexto (corrente francesa — LE BOTERF, 1999; PERRENOUD, 1998; ZARIFIAN; 2001) (BRANDÃO e GUIMARÃES, 2001; DUTRA, 2004; FLEURY e FLEURY, 2000; MANFREDI, 1998).

Se o entendimento é de uma linha contínua, as condições prévias (conhecimentos — o saber; habilidades — o fazer; e atitudes — o ser e o relacionar) por si só não garantiriam a competência, sendo necessária a mobilização de tal repertório para, enfim, demonstrar de fato a competência (o saber, o fazer e o ser em interação).

Embora também reconheçamos que há dois níveis de competências, o individual e o organizacional, sendo que o primeiro se subdivide em humanas ou profissionais (técnicas e gerenciais), o nosso foco será no domínio de competências individuais (do gestor), visto que a discussão das competências organizacionais nos obrigaria a proceder a análises de objetivos organizacionais, extrapolando os limites de nossa pretensão ao redigir este artigo.

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Quando fazemos referência a um mapeamento de competências a intenção é a de identificar as lacunas entre o desempenho esperado e o desempenho atual. Os conhecimentos, habilidades e atitudes são, então, expressos em uma ação enunciada por uma proposição, que se refere a um comportamento esperado, e se inicia com um verbo. No caso do mapeamento de competências do gestor social, em congruência com a concepção de gestão que dá suporte ao PDGS (ação comunicativa, participação plena e relação dialógica com vozes múltiplas), foram criados diversos espaços de interlocução — oficinas, discussões prévias, estudos teóricos e grupo focal — que permitiram mapear as demandas de um gestor social na atualidade. Colocaremos em destaque o grupo focal, técnica usada no processo de finalização do mapeamento, que contou com a participação de 11 candidatos a ingressar no curso de especialização, a maioria com experiência prática nesse tipo de gestão. A discussão no grupo focal, que durou cerca de duas horas, girou em torno de quatro perguntas formuladas pela moderadora do grupo, assim especificadas: 1) O que caracteriza um gestor social? 2) O que caracteriza uma boa gestão social? 3) Quais os desafios enfrentados pelo gestor social e que competências precisariam ser desenvolvidas para enfrentar tais desafios? e 4) Que sugestões vocês poderiam apresentar em termos de conteúdo e formas de aprendizagem para a elaboração de um programa de formação do gestor social em nível de pós-graduação? Entre os potenciais candidatos ao curso, havia um receio de que a especialização enfatizasse demasiadamente aspectos instrumentais e técnicos em detrimento da formação humana e geral do gestor. Esta formação deveria privilegiar fundamentos antropológicos, éticos, psicológicos, sociológicos e políticos do ser humano, bem como a auto-reflexão crítica do gestor. Havia o reconhecimento e a demanda pela instrumentalização, em especial a de identificar e diagnosticar problemas para agir de acordo com o contexto de inserção do gestor, baseando-se em concepções e teorias consistentes com uma proposta de gestão social. Ressaltaram ainda que algumas competências seriam essenciais, como a atitude de inovação e empreendedorismo alicerçada em uma visão estratégica do contexto sócio-econômico e político, local, regional e nacional. Apoiando-se na análise dos insumos produzidos nas atividades realizadas pelo programa foram enumeradas 13 competências básicas do gestor social.

1. Elaborar diagnósticos, programas, projetos e ações 2. Articular redes interorganizacionais, interinstitucionais e intersetoriais 3. Mediar interações em escalas territoriais e organizacionais 4. Articular ações em diversos arranjos sócio-produtivos 5. Promover aprendizagem individual e coletiva 6. Elaborar estratégias de inovação e empreendedorismo em diversos territórios 7. Facilitar relações entre indivíduos, grupos e coletividades 8. Promover transformações sociais em áreas geográficas delimitadas 9. Captar e alocar recursos com eficácia 10. Integrar diferentes olhares sobre a realidade social 11. Elaborar projetos de pesquisa e acompanhar todas as etapas de seu desenvolvimento 12. Facilitar a participação do cidadão na gestão do desenvolvimento local/regional/global 13. Promover a valorização humana, a valorização da diversidade cultural, regional e global

Quadro 1 – Competências Básicas do Gestor social Fonte: Elaboração dos autores

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As seqüências curriculares do curso de especialização foram planejadas com base nas competências definidas; e, para garantir a adequação e o desenvolvimento das referidas competências, previram-se dois encontros com cada uma das turmas. O primeiro dar-se-ia no início do curso de especialização, após o módulo de integração, e o segundo, na sua finalização, quando então haveria a oportunidade de avaliar o quanto estas competências haviam sido desenvolvidas durante o curso, segundo a percepção dos alunos. Seria uma oportunidade também de avaliar quais os pontos fortes e fracos da formação, oferecendo subsídios para uma análise dos desafios a serem vencidos em um processo desta natureza.

4. Detalhando a dinâmica do processo

Um encontro inicial de quatro horas foi realizado com cada uma das turmas. Sua finalidade era discutir as competências do gestor social e diagnosticar como os alunos se situavam em relação a elas. Procurou-se, também, identificar as suas expectativas sobre o curso, de modo que os docentes que, posteriormente, viessem a ter contato com os alunos, tomassem conhecimento prévio do assunto.

As expectativas dos alunos da turma de 2003/2005 (Turma 01) foram agrupadas em oito categorias já hierarquizadas por blocos e ordem de importância:

1

DOMÍNIO TEÓRICO – expectativas de aquisição de novos conteúdos DESENVOLVIMENTO PESSOAL E TÉCNICO – expectativas de auto-desenvolvimento como pessoa e como profissional

2

TROCAS DE EXPERIÊNCIAS – expectativas de aprendizagem com os colegas e docentes IMPACTO SOCIAL – expectativas de mudança social por meio da ampliação e fortalecimento da Gestão Social

3 PRÁTICA SOCIAL – expectativas de sistematização, valorização e aproveitamento da prática profissional desenvolvida até então pelo aluno

4

MÉTODOS E TÉCNICAS ADOTADAS NO CURSO – expectativas em relação à estrutura, qualidade e desempenho docente DOMÍNIO COGNITIVO – expectativas de desenvolver habilidades cognitivas, tais como, diagnosticar e pensar em soluções de problemas

TITULAÇÃO – expectativas de obter o título de especialista ou ingressar em Mestrado

Quadro 2 - Expectativas dos alunos da turma de 2003/2005 Fonte: Elaboração dos autores.

Congruente com o que já havia sido sinalizado na etapa de mapeamento de competências que antecedeu à realização do curso, a primeira turma ingressou com grandes expectativas de foco na formação integral do gestor, como pessoa e técnico, e no aprendizado de novos conhecimentos que viessem a fundamentar suas práticas, visto que a maioria do grupo já possuía experiência na área. O segundo bloco de expectativas agrupa o aprendizado pela via da troca de experiências entre colegas e a esperança de que sua atuação viesse a ser mais efetiva, gerando maior impacto social. Em terceiro lugar apareceu a expectativa de que o curso propiciasse não só a sistematização do conhecimento prático trazido pelo aluno, como também a criação de espaços instrucionais para incorporação da experiência acumulada. As demais categorias foram mencionadas apenas por três ou quatro pessoas e sinalizavam a preocupação com a estrutura do curso, a obtenção de titulação e o domínio de habilidades cognitivas essenciais para o diagnóstico de problemas que exigem ações do gestor. O primeiro encontro com a turma 2004/2006 (Turma 02) seguiu um caminho um pouco diferente. Deliberou-se por focar a adequação das 13 competências do gestor social, tal

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como formuladas na proposta do curso, bem como ajustá-las às necessidades da turma, ao se procurar identificar se elas estariam dirigidas para o domínio do saber, do fazer ou do ser em relação.

0

5

10

15

20

25

30

35

C 1 C3 C5 C7 C9 C11 C13

SimNão Em parte

Figura 1: Concordância dos alunos da turma em relação a cada uma das 13 competências (C) do Gestor Social Fonte: Elaboração dos autores com base em registros de aula. Na Figura 1, fica visível a concordância dos alunos quanto às competências a serem desenvolvidas na especialização. A discordância apareceu de modo pouco expressivo na Competência 5 (promover a aprendizagem individual e coletiva), e bem menos ainda nas Competências 11 (elaborar e acompanhar projeto de pesquisa) e 12 (facilitar a participação do cidadâo). Isto aponta para o fato de que poucos alunos não concordam que um gestor social deva promover aprendizagem individual e coletiva, e exercer um papel de facilitador neste processo (competência 5). Foi solicitado também aos alunos que avaliassem de que modo as competências estariam relacionadas aos domínios teórico (saber), prático (o fazer) e do ser (atitude para consigo e os outros — ser em relação). A disposição encontra-se ilustrada na Figura 2, na qual as competências se distribuem em dois grandes domínios — o do fazer e o do ser, mantendo a congruência anterior com a preocupação em se desenvolver como pessoa e aprimorar a capacidade relacional, bem como oferecer parâmetros para uma atuação sustentada em modelos práticos. A competência de diagnóstico ficou alocada em uma dimensão intermediária, exigindo tanto domínio teórico quanto prático. Em outras palavras, mobilizar a participação do cidadão e favorecer a aprendizagem individual e coletiva, bem como elaborar projetos que visem à captação e alocação adequadas de recursos para realizar transformações, são competências que se situam no plano do domínio do fazer e sem sombra de dúvida demandariam a produção de modelos que pudessem servir de referência para o ajustamento às realidades diversificadas nas quais os gestores estivessem inseridos. Mas, com certeza, o fazer estaria destituído de sentido se não fosse apoiado na valorização da pessoa humana e na competência relacional para com os outros atores sociais, pois é por esta via que as articulações e mediações terão chances de sucesso em prol dos interesses coletivos e do bem comum. Por fim, a elaboração de estratégias empreendedoras (condição prévia para a inovação) e a visão integrada da realidade seriam desenvolvidas pelo domínio teórico, em especial, pela transmissão do conhecimento especializado de professores e pela facilidade de acesso a bibliografias da área.

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5. Avaliando as competências desenvolvidas e os desafios da formação do gestor social

Após a finalização do curso, buscou-se realizar uma avaliação geral do mesmo, em especial a aquisição das competências inicialmente propostas. Foi planejado um encontro com cada uma das turmas, tendo como insumo um questionário de avaliação individual a ser preenchido previamente. Enfrentaram-se, no entanto, inúmeras dificuldades, em especial pelo fato de muitos concluintes da turma de 2003/2005 estarem residindo fora de Salvador, e os da turma 2004/2006 se encontrarem em fase de apresentação de monografias. Apesar de inúmeras tentativas não conseguíamos obter devolução, em número suficiente, dos questionários enviados por e-mail, além da dificuldade de agendar uma data comum, o que inviabilizou o encontro presencial. A alternativa, então, foi usar mais uma vez a técnica de grupos focais e compor um grupo de sete a dez participantes com cada uma das turmas. Os comentários e resultados aqui apresentados foram extraídos das análises realizadas por meio de vídeo, visto que o encontro dos dois grupos foi gravado, e também das respostas individuais obtidas por meio de um questionário prévio à discussão grupal.

Figura 2: Distribuição das competências do gestor social por domínio Fonte: Elaboração dos autores com base em registros de aula O Quadro 3 permite a visualização das tendências de avaliação provenientes da análise das respostas individuais de cada um dos grupos.

PONTOS FORTES Turmas

COMPETÊNCIAS AVALIADAS E OUTROS ASPECTOS

2003/2005 2004/2006

FAZER Domínio prático

SER

Domínio relacional

13 Promover a valorização

humana

1.Diagnosticar

2. Articular redes

7. Facilitar relações

11.Elaborar projetos

5. Promover aprendizagem

SABER Domínio teórico

3. Mediar interações

10. Integrar diferentes olhares da realidade

6. Elaborar estratégias de inovação 9. Captar e alocar

recursos 12 Facilitar a participação do

cidadão

4. Fazer novos arranjos

produtivos 8. Promover

transformações

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Elaborar diagnósticos, projetos e programas e fazer o acompanhamento. Forte Médio Articular redes interorganizacionais Médio Fraco Mediar interações em escalas territoriais e organizacionais Forte Médio Articular ações em diversos arranjos sócio-produtivos Médio Fraco Promover aprendizagem individual e coletiva Médio Médio Identificação e solução de problemas/elaborar estratégias de empreendedorismo em diversos territórios

Forte

Médio

Facilitar relações entre indivíduos, grupos e coletividades Forte Médio Promover transformação social Médio Médio Captar e alocar diversos recursos Fraco Médio Integrar diferentes olhares sobre a realidade social Forte Forte Promover a participação do cidadão Forte Forte Promover a valorização humana (direitos humanos) Forte Forte Promover a valorização humana (Ética) Forte Forte Troca de experiências entre colegas Médio Forte Valorização da diversidade local, regional e global Forte Forte Domínio teórico Forte Forte Reflexão crítica do gestor Forte Forte Quadro 3: Avaliação individual do desenvolvimento das competências desenvolvidas no curso na avaliação das duas turmas. Oito participantes da turma 2003/2005 e sete participantes da turma 2004/2007. Fonte: Elaboração dos autores com base em relatório de grupos focais (GONDIM,2006).

Além das 13 competências, o questionário permitiu avaliar pontos fortes, medianos ou

fracos, de alguns outros aspectos significativos mencionados em encontros prévios com cada um dos grupos, em especial, a troca de experiências entre colegas e docentes, o domínio teórico e a reflexão crítica do gestor. A análise do Quadro 3 permite inferir que, de modo geral, o curso conseguiu propiciar o desenvolvimento da maior parte das competências. A turma 2003/2005 avaliou mais positivamente o curso do que a turma 2004/2006. No primeiro caso, das 13 competências, oito foram consideradas como pontos fortes do curso, enquanto que, no segundo caso, somente quatro delas foram destacadas. Três competências precisam ser mais bem equacionadas na formação, estando duas delas bastante inter-relacionadas: a captação e alocação de recursos e a articulação, tanto para a formação de redes interorganizacionais, quanto para composição de arranjos produtivos. Conforme a Figura 2, as tais competências se situam nos domínios do fazer e do ser relacional. Nossa hipótese é que são competências que demandam amadurecimento profissional. Dificilmente alguém se torna um captador de recursos sem que tenha um tempo de experiência suficiente que lhe permita formar redes sociais que o qualifique a atuar nas esferas decisórias onde se concorre por tais recursos financeiros, materiais etc. Os arranjos produtivos e as redes interorganizacionais também dependem de uma maior maturidade do gestor (experiência prática bem sucedida) para visualizar a viabilidade prática de um dado arranjo ou a tessitura de uma rede. Só a experiência é capaz de desenvolver a contento estas competências. Experiência esta atrelada a uma sólida formação. É importante esclarecer que esta análise foi feita com base nas respostas individuais antes do processo de discussão ter seu início. Dito de outro modo, a apresentação para o grupo das respostas individuais fez com que alguns pontos de vistas fossem revistos à luz dos argumentos ali apresentados (relação dialógica, onde múltiplas vozes concorrem para exercer influenciação mútua), embora outros tenham se ratificado, e é sobre isto que iremos fazer outros comentários críticos.

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Por falta de espaço não poderemos incluir neste texto os mapas de argumentos construídos a partir das discussões grupais, mas apresentaremos apenas alguns recortes destes mapas para fins de exemplificação. A turma 2003/2005 ressaltou como um dos principais pontos fracos a captação e alocação de recursos (Figura 3).

Figura 3: Recorte do mapa de argumentos da discussão da turma 2003/2005 Fonte: GONDIM, 2006. Nota-se que o problema parece residir no fato de os alunos perceberem que a competência

poderia ser mais desenvolvida se houvessem mais oportunidades de troca de experiências entre alunos, sendo que as que ocorreram foram muito mais por iniciativas informais, do que previstas na estrutura curricular. Isto mantém congruência com outro encadeamento de argumentos que apareceu neste grupo, quando se criticou a residência social pelo fato de que em alguns casos o residente apenas observava a ação do outro, sem que tivesse a chance de executar algumas atividades importantes. Um outro ponto emergiu nos dois grupos (2003/2005 e 2004/2006), e se refere à relação empresa e universidade, em que ambos sinalizaram a necessidade de acompanhamento do egresso, em especial aqueles que estão inseridos em organizações privadas ou estatais, haja vista a assimetria criada pelo discurso dominante no curso e o contexto organizacional, aonde potencialmente ele viria a ser colocado em prática. No que tange à turma 2004/2006, também selecionamos apenas um recorte relativo à articulação de redes (Figura 4). Reaparece o argumento de que se houvesse mais troca de experiência entre os alunos, principalmente entre as duas turmas, a competência para articular redes seria potencializada. Esta preocupação parece ter tido impacto na avaliação negativa que o grupo fez da sua capacidade de promover o aprendizado alheio. Acrescenta-se a isto a necessidade de mais instrumentos técnicos que dêem suporte às intervenções do gestor para viabilizar este aprendizado junto à comunidade.

Figura 4: Recorte do mapa de argumentos da discussão da turma 2004/2006 Fonte: GONDIM, 2006.

Em decorrência da impossibilidade de mais detalhamentos de nossas análises, neste espaço, apresentamos no Quadro 4 uma síntese da avaliação dos dois grupos.

Pontos fortes e fracos Turmas

FORÇAS E FRAGILIDADES DO CURSO

2003/2005 2004/2006

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Proposta Geral do Curso Forte Médio Colegas de Curso Forte Forte Domínio Teórico Forte Forte Corpo Docente Forte Forte Organização do curso Fraco Fraco Articulação de Redes/relações Forte Fraco Relação empresa/universidade Fraco Fraco Reflexão Crítica do Gestor X Médio Residência social/Experiência dentro de fora do país Forte Forte Ética e Direitos Humanos Forte Forte Dedicação dos Alunos Forte Fraco Troca de Experiências entre colegas e docentes Forte Médio Elaboração de diagnósticos, programas e projetos Forte Médio Identificação de problemas Forte Médio Valorização da diversidade local, regional e global X Fraco Reflexão crítica do gestor X Fraco Captação e alocação de recursos Fraco X Sensação de isolamento Médio X OBS. As células com um X indicam que o grupo não abordou na discussão o referido tema. Quadro 4: Síntese dos pontos fortes e fracos discutidos pelos grupos. Fonte: GONDIM, 2006

A análise do Quadro 4 permite concluir que em situação de grupo há uma tendência a

emergir argumentos a favor e contra, o que potencializa as críticas dirigidas ao objeto alvo de avaliação, permitindo identificar os pontos polêmicos, de dissenso e de consenso. Cabe alertar que “fraco” significa tão somente que não houve consenso no grupo quanto ao referido aspecto, tendo surgido ponderações negativas e críticas em maior número sobre alguns pontos. Por exemplo, as críticas à organização do curso eram direcionadas para a carga horária (os alunos demandavam seu aumento), para o sistema de avaliação (a monografia de conclusão de curso não deveria ser orientada apenas por um professor e deveria ser substituída por um projeto de aplicação prática); e para o horário de funcionamento do curso (visto que um encontro por mês com aulas intensivas deixava o aluno em isolamento durante todo o resto do tempo).

6. Considerações Finais A construção de modelos de formação do gestor do desenvolvimento sócio-territorial é

o principal desafio que orienta a experiência do PDGS. Alguns avanços e limitações devem ser reconhecidos. Em primeiro lugar, temos de admitir que teoricamente avançou-se bastante no que tange a uma definição mais consensual sobre a gestão social que sirva de marco para a proposta de formação e qualificação profissional, Para fazer jus a uma gestão social que privilegie o social e a participação cidadã, que seja hábil em conciliar as diversas dimensões econômicas e não-econômicas, que balize a instrumentalidade e a substantividade, assim como o consenso e a diversidade, e ainda que torne prevalente o diálogo e a interlocução de todos os atores sociais, há um longo caminho a percorrer, dada a complexidade desta missão. Existe ainda uma distância a ser vencida entre o que se idealiza e o que é viável de ser concretizado. Não resta dúvida que é uma conquista, e ao expor as fragilidades da formação dá-se um passo adiante para enfrentar as barreiras que se antepõem a um projeto desta envergadura, em que está em jogo uma grande mudança cultural.

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Os maiores desafios parecem recair sobre a realização de um projeto social que ainda não está sob total controle dos atores sociais, e que ainda não se dispõe de repertório e bagagem suficientes para avaliar o que redundará em êxito e o que reunirá maiores chances de fracasso.

É inquestionável que alguns pontos de fragilidade deverão ser objeto de atenção na formação do gestor social, dentre os quais se destacam: a) a relativa dissonância entre discurso e prática de alguns alunos que defendem a participação, mas que tiveram dificuldades de se integrar na proposta do curso; e b) a necessidade que tem o gestor de um assessoramento em ação, ainda no processo de formação. Dito de outro modo, em um dos extremos do continuum referido antes, a competência, só pode ser efetivamente avaliada ou constatada à luz da ação executada, e talvez o gestor social não se sinta realmente preparado antes de testar a aplicabilidade dos conhecimentos e métodos adquiridos. Não se trata de oferecer modelos previamente testados, mesmo porque isto seria um despropósito, mas dar suporte e assistir o gestor na sua ação. Na formação do gestor social não cabe desarticulação entre o domínio teórico e o domínio prático, entre o domínio do saber e o do fazer e do ser. A sensação de isolamento em que alguns egressos se vêem, decorre, em parte, do reconhecimento de que a gestão social ainda não é algo intrínseco a nossa cultura, e talvez demore um bom tempo para vir a ser. Sustentar redes de suporte social provavelmente seja a via que esteja ao nosso alcance, como instituições formadoras, para enfim manter acesa a chama da esperança de tornar mais próximo o sonho de uma sociedade justa, plural e responsável. Referências ALPHA. Projeto do Curso de Especialização em Gestão Social. Universidade Alpha. 2003. BITTENCOURT, Cláudia e BARBOSA, Allan Claudius Queiroz A gestão de competências. _______. Gestão Contemporânea de pessoas: Novas práticas, conceitos tradicionais. Porto Alegre: Bookman, p. 238-269, 2004. BOEIRA, Sérgio Luiz. Ecologia política: Guerreiro Ramos e Fritjof Capra. Ambiente & Sociedade n.10, p.85-105, 2002. BOYATZIS, Richard E. The competent management: A model for effective performance. New York: John Wiley, 1982. BRANDÃO, Hugo Pena e GUIMARAES, Tomás de Aquino. Gestão de competências e gestão do desempenho: tecnologias distintas ou instrumentos de um mesmo constructo? Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 41, n.1, p.8-15, 2001. BUARQUE, Sérgio C. Material didático. Disciplina “Tecnologias de Gestão do Desenvolvimento Local”. Salvador, Mestrado Profissional em Administração – MPA/NPGA, 2000. CUNHA, Antônio Geraldo.Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. DUTRA, Joel. Competências: Conceitos e instrumentos para a gestão de pessoas na empresa moderna. São Paulo: Atlas, 2004. FISCHER, Tânia. Poderes locais, desenvolvimento e gestão – introdução a uma agenda. Fischer, Tânia (Org.) Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliação. Salvador (BA): Casa da Qualidade, p12-32, 2002. ________ e MELO, Vanessa Paternostro.Organizações e interorganizações na gestão do desenvolvimento sócio-territorial. O&S – Organizações & Sociedade. Edição Especial Poder Local, v11, pp.13-41, 2004. FLEURY, Afonso e FLEURY, Maria Tereza Leme. Estratégias empresariais e formação de competências.Um quebra cabeça caleidoscópio da indústria brasileira. São Paulo: Atlas, 2000.

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outras formas de comunicação. Não constitui propriamente uma novidade a apropriação da primeira parte dessa citação e sua resignificação. O princípio é o verbo, o princípio é a ação. É este o sentido que quisemos dar. 3 Não iremos entrar em detalhes neste texto, mas é bom ter em mente que esta oposição do agir comunicativo ao agir estratégico é pertinente apenas para algumas teorias de estratégia. 4 O termo rede deriva do latim rete, que significa entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames, com aberturas regulares fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido. Dois elementos essenciais compõem as redes — as linhas (relações) e os nós (componentes estruturais) — não havendo diferenças hierárquicas entre eles, mas apenas de função (ligação e sustentação, respectivamente) (MOURA, 1997) 5 Não vamos nos ater aqui à diferenciação entre qualificação, capacidade e competência. Há um entendimento de que os contextos de uso de cada uma delas são distintos (RAMOS, 2001). Um conjunto de capacidades estaria na base das competências e da qualificação embora no primeiro caso a orientação seria no sentido de dar condições à pessoa de agir em situações pouco previsíveis, ao passo que na qualificação a pessoa estaria sendo preparada para lidar com situações mais previsíveis (ver RUAS, 2005). Outro entendimento é o de que ao contrário da qualificação que prepara o trabalhador para se ajustar às prescrições técnicas do exercício funcional, a competência se refere à capacidade de o trabalhador reunir seus conhecimentos (saber), habilidades técnicas (saber fazer) e as atitudes/habilidades interpessoais (saber ser) para solucionar problemas advindos de situações de trabalho distintas e imprevisíveis. (MANFREDI, 1998).