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A ExpERinciA bRAsilEiRA

FOME ZERO

OrganizadOres: JOs grazianO da silva MaurO eduardO del grOssi CaiO galvO de Frana

Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO)

A ExpERinciA bRAsilEiRA

FOME ZERO

Organizadores: Jos Graziano da Silva Mauro Eduardo Del Grossi Caio Galvo de Frana

A ExpERinciA bRAsilEiRA

FOME ZERO

Ministrio do Desenvolvimento Agrrio Braslia, 2010

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio DANIEL MAIA Secretrio-Executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ADONIRAM SANCHES PERACI Secretrio de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Diretor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACRIO Assessor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

Srie NEAD Especial 12 Copyright 2010 MDA PRODUO EDITORIAL Ana Carolina Fleury REVISO E PREPARAO DE ORIGINAIS Cecilia Fujita PROJETO GRFICO, CAPA E DIAGRAMAO Caco Bisol MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis Bloco D loja 10 sala S2 CEP: 70040-910 Braslia-DF Telefone: (61) 2020 0189 www.nead.gov.br

586f Silva, Jos Graziano da Fome Zero: A experincia brasileira/ Jos Graziano da Silva; Mauro Eduardo Del Grossi; Caio Galvo de Frana (orgs.) ; Braslia : MDA, 2010. 360p. ; 16 x 23 cm Srie NEAD Especial 12 ISBN 978-85-60548-79-8 1. Fome. 2. Programa Fome Zero - Brasil. 3. Segurana Alimentar. 4. Poltica Pblica. 5. Programa de Transferncia de Renda. I. Silva, Jos Graziano da. II. Del Grossi, Mauro Eduardo. III. Frana, Caio Galvo de. IV. Ttulo. CDD 353.53

Sumrio

ApresentAo 1. projeto Fome Zero: UmA propostA de polticA de segUrAnA AlimentAr pArA o BrAsil 2. pArA os crticos do Fome ZeroJos Graziano da Silva, Walter Belik e Maya Takagi

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3. A implAntAo do progrAmA Fome Zero em 2003Maya Takagi

4. Fome Zero: Um projeto trAnsFormAdo em estrAtgiA de governoAdriana Veiga Aranha Walter Belik

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5. A moBiliZAo empresAriAl pelo comBAte Fome 6. Fome Zero: lies principAis

Escritrio Regional da FAO para Amrica Latina e o Caribe Santiago, Chile

7. segUrAnA AlimentAr e nUtricionAl eprogrAmAs de trAnsFernciA de rendA

Maya Takagi

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8. AgricUltUrA FAmiliAr e os progrAmAs de gArAntiA de preos no BrAsil: o progrAmA de AqUisio de Alimentos (pAA) 9. territrios dA cidAdAniA: inovAo nA trilhA do Fome Zero

Adoniram Sanches Peraci e Gilson Alceu Bittencourt

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Caio Galvo de Frana e Joaquim Soriano

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10. pArticipAo sociAl no Fome Zero: A experinciA do conseAFrancisco Menezes

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11. o conseA nA constrUo do sistemA e dA polticA nAcionAl de segUrAnA AlimentAr e nUtricionAl 265Renato S. Maluf

12. novos e velhos desAFios pArA AlcAnAr A segUrAnA AlimentAr no scUlo xxiMaya Takagi e Jos Graziano da Silva

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13. A redUo dA poBreZA: de 44 milhes pArA 29,6 milhes de pessoAsMauro Eduardo Del Grossi

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14. sUgestes pArA A FormUlAo de UmA polticA de segUrAnA AlimentAr nA AmricA lAtinAJos Graziano da Silva, Walter Belik e Maya Takagi

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perFil dos AUtores

ApreSentAoVamos criar as condies para que todas as pessoas no nosso pas possam comer decentemente trs vezes ao dia, todos os dias, sem precisar de doaes de ningum. O Brasil no pode mais continuar convivendo com tanta desigualdade. Precisamos vencer a fome, a misria e a excluso social. Nossa guerra no para matar ningum para salvar vidas. Luiz Incio Lula da Silva Presidente da Repblica Discurso de Posse, 1o de janeiro de 2003

O Brasil hoje referncia internacional quando se trata de polticas de segurana alimentar, desenvolvimento rural e de combate pobreza. Trs so as razes para isso. A primeira foi a incorporao dos objetivos da erradicao da fome e do combate pobreza ao centro da agenda nacional. A incluso destes objetivos como elementos organizadores da prpria poltica macroeconmica brasileira a segunda razo. E, por fim, a criao e consolidao de uma poltica e de um sistema nacional de segurana alimentar e nutricional, assentados em um novo marco legal e institucional e em um renovado conjunto de polticas pblicas. Os resultados mostram o acerto destas decises. O pas conseguiu cumprir a primeira Meta dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio da Organizao das Naes Unidas reduzir a extrema pobreza metade entre 1990 e 2015 dez anos antes do previsto. As redues da pobreza e da desigualdade seguem em ritmo intenso. Nas reas rurais, as redues da pobreza e da desigualdade ocorreram de forma ainda mais acentuada que nas reas urbanas e metropolitanas. A renda da agricultura familiar aumentou em 33% no perodo de 2003 a 2009, superior mdia nacional de 13%. E o mais importante que esta evoluo decorreu especialmente do aumento das

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rendas do trabalho, fruto das novas polticas de garantia do direito terra, de promoo da igualdade de gnero e de apoio produo da agricultura familiar. A sinergia dessas polticas, com as aes de estabilidade e crescimento econmico, aumento do salrio mnimo, ampliao do acesso seguridade social em particular a previdncia social e as polticas sociais universais, em particular o Bolsa Famlia, explicam os bons resultados alcanados no meio rural. Este conjunto de polticas levou criao de novas oportunidades de trabalho e de renda, gerando uma nova dinmica de desenvolvimento com distribuio de renda mais equitativa. Os efeitos positivos refletem o acmulo poltico e social brasileiro, integrantes da trajetria da redemocratizao do pas. A inscrio de novos direitos sociais na Constituio Federal de 1988; a criao do Conselho de Segurana Alimentar em 1993; a realizao da 1 Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional em 1994; e a Ao da Cidadania contra a Fome, a Misria e pela Vida, nos anos seguintes, foram conferindo visibilidade ao tema da segurana alimentar e fortalecendo a mobilizao social em torno dele. Estabeleceu-se, assim, uma conexo com toda a trajetria intelectual comprometida e militante de Josu de Castro, que j em 1946 denunciava que a fome e guerra no obedecem a qualquer lei natural, so criaes humanas, com a publicao do livro Geografia da Fome. O lanamento do Projeto Fome Zero uma proposta de poltica de segurana alimentar para o Brasil, em outubro de 2001, via Instituto da Cidadania, feito pelo ento candidato a presidente Luiz Incio Lula da Silva, expressava o amadurecimento do tema e sua incorporao pauta do Partido dos Trabalhadores. No se tratava de inaugurar a abordagem do tema, mas de transform-lo em prioridade nacional a ser abordada pela ao planejada e decisiva do Estado, impulsionada pela participao social. Com a vitria eleitoral do Presidente Lula em 2003, o projeto Fome Zero transforma-se na principal estratgia governamental para orientar as polticas econmicas e sociais. Inicia-se uma inflexo com a superao da dicotomia entre poltica econmica e polticas socais, integrando polticas estruturais e emergenciais no combate fome e pobreza. Novas polticas diferenciadas para a agricultura familiar so implementadas, e construda uma legislao-base para a poltica nacional de segurana alimentar e nutricional.

introdUo

O compromisso com a integrao regional, com a cooperao sulsul e com a renovao da agenda internacional implicaram na participao ativa do Brasil em diferentes iniciativas internacionais: Amrica Latina sem Fome 2025, Dilogo Brasil - frica sobre Segurana Alimentar e Desenvolvimento Rural, reforma do Comit de Segurana Alimentar da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO), entre outros. Este livro traz alguns textos fundamentais para entender a experincia brasileira do Fome Zero em diferentes momentos desta trajetria de oito anos, reunindo a reflexo sob diversos aspectos. O primeiro captulo apresenta a proposta original do Fome Zero, lanada em 2001, para esclarecer os principais eixos propostos em sua concepo. Aps o lanamento do projeto, este foi objeto de avaliao crtica de vrias correntes, o que levou seus coordenadores a elaborarem uma Resposta aos Crticos, em 2002. Com a instaurao do governo Lula em 2003, iniciou-se a implementao da proposta Fome Zero, sob a coordenao do Ministrio Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate Fome, quando foi realizado um grande esforo jurdico de elaborao dos instrumentos da poltica de segurana alimentar. Destacam-se a criao do Programa Carto Alimentao, para compra de alimentos pelas famlias, e o Programa de Aquisio de Alimentos (PAA), com compras pblicas dirigidas para a agricultura familiar. Estas e outras iniciativas so apresentadas em detalhes no terceiro captulo. A partir de 2004 feita uma reorganizao na estrutura do Governo Federal responsvel pela rea, visando dar maior poder de alcance ao Fome Zero. Destaca-se a incorporao do Programa Carto Alimentao ao Bolsa Famlia, unificando as transferncias governamentais s famlias em situao de insegurana alimentar e nutricional. No quarto captulo so apresentados os avanos do conjunto das vrias polticas que compunham o Fome Zero at 2010. A implantao do programa em 2003 tambm mobilizou vrios segmentos da sociedade. O quinto captulo descreve a experincia da mobilizao empresarial de apoio ao Fome Zero. A FAO realizou, em 2006, ltimo ano do primeiro mandato do Presidente Lula, uma avaliao do Fome Zero. Esta anlise, que apontou os avanos e desafios do projeto, apresentada no captulo seis. Tambm neste momento surgem produes acadmicas sobre o tema, e incorporamos, no stimo captulo, o debate sobre as relaes entre as polticas de segurana alimentar e nutricional com os programas de transferncia de renda.

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O segmento da agricultura familiar teve papel de destaque no Fome Zero desde a sua concepo, considerando a sua capacidade de resposta s polticas pblicas. A experincia do PAA, uma das principais polticas agrcolas diferenciadas, contada em detalhes no oitavo captulo. Com o objetivo de promover maior integrao e efetividade s polticas pblicas destinadas s zonas mais pobres do Pas, em 2008 lanado o Programa Territrios da Cidadania. A elaborao do programa e sua implementao so relatadas no nono captulo. A participao da sociedade civil sempre foi um elemento essencial do Fome Zero, e por esta razo so apresentadas, nos dois captulos seguintes, a importncia e a atuao do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional CONSEA. Ao final dos oito anos de mandato do Presidente Lula possvel fazer uma avaliao dos alcances do programa, mas tambm dos desafios para alcanarmos a segurana alimentar e nutricional e, ainda, os resultados atingidos desde a proposta inicial, que so abordados nos captulos 12 e 13. Com base na experincia brasileira, o ltimo captulo da publicao apresenta uma srie de sugestes para formulao e implementao de polticas de segurana alimentar e nutricional. Este um livro dedicado queles que acreditam que igualdade e solidariedade so valores universais e contemporneos; queles que, teimosamente, acreditam que um outro mundo possvel. Boa leitura! Guilherme Cassel Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio

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1. Projeto Fome Zero: umA propoStA de polticA de SegurAnA AlimentAr pArA o BrASil

com satisfao que entrego ao debate pblico, em nome do Instituto Cidadania, o Projeto Fome Zero Uma Proposta de Poltica de Segurana Alimentar para o Brasil*. Este projeto a sntese de um ano de trabalho de muitos companheiros e companheiras, com a participao de representantes de ONGs, institutos de pesquisas, sindicatos, organizaes populares, movimentos sociais e especialistas ligados questo da segurana alimentar de todo o Brasil. A alimentao de qualidade um direito inalienvel de todo cidado, sendo dever do Estado criar as condies para que a populao brasileira possa efetivamente usufruir dele. O pblico a ser contemplado nesta proposta grande: 9,3 milhes de famlias (ou 44 milhes de pessoas) muito pobres, que ganham menos de um dlar por dia. Esse quadro assustador vem piorando nos ltimos anos com o crescimento do desemprego e o aumento das outras despesas no alimentares das famlias mais pobres (moradia, transporte, sade, educao). Como mostram as pesquisas da Embrapa, nossos agricultores tm potencial para produzir toda a comida de que a populao necessita. Existe fome no porque faltam alimentos, mas porque falta dinheiro no bolso do trabalhador para poder compr-los. A tarefa de erradicar a fome e assegurar o direito alimentao de qualidade no pode ser apenas uma proposta de governo, mesmo que sejam articulados com eficincia todos os rgos setoriais nos nveis federal, estadual e municipal. vital engajar nessa luta a sociedade civil organizada: sindicatos, associaes populares, ONGs, universidades, escolas, igrejas dos mais distintos credos, entidades empresariais todos esto convocados a participar. Garantir a segurana alimentar promover uma verdadeira revoluo, que envolve, alm dos aspectos econmicos e sociais,* Verso original disponvel em , lanada pelo Instituto Cidadania em outubro de 2001.

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tambm mudanas profundas na estrutura de dominao poltica. Em muitas regies do Brasil, as condies de pobreza so mantidas porque inclusive facilitam a perpetuao no poder de elites conservadoras que h sculos mandam neste pas. Queremos deixar claro nesta apresentao que o eixo central do Projeto Fome Zero est na conjugao adequada entre as chamadas polticas estruturais voltadas redistribuio da renda, crescimento da produo, gerao de empregos, reforma agrria, entre outros e as intervenes de ordem emergencial, muitas vezes chamadas de polticas compensatrias. Limitar-se a estas ltimas quando as polticas estruturais seguem gerando desemprego, concentrando a renda e ampliando a pobreza como ocorre hoje no Brasil significa desperdiar recursos, iludir a sociedade e perpetuar o problema. Tambm no admissvel o contrrio. Subordinar a luta contra a fome conquista prvia de mudanas profundas nas polticas estruturais representaria a quebra da solidariedade, que dever imperativo de todos perante os milhes de brasileiros hoje condenados excluso social e insuficincia alimentar. As polticas estruturais requerem anos e s vezes dcadas para gerar frutos consistentes. A fome segue matando a cada dia, ou produzindo desagregao social e familiar, doenas, desespero e violncia crescente. por isso que o Projeto Fome Zero de domnio pblico e aberto, portanto, aplicao por mandatrios de qualquer partido busca combinar as duas ordens de medidas. Mas no resta dvida de que nossa prioridade mxima consistiu em sistematizar as medidas que podem ser implementadas j, imediatamente, sem perder de vista e sem deixar para segundo plano as mudanas profundas, apontando a construo de um novo Brasil. Um Brasil plenamente vivel e promissor, onde a democracia se estenda ao territrio econmico-social, a justia seja meta de todos e a solidariedade, a regra geral de convivncia. Esta proposta pretende deslanchar um processo permanente de discusso, aprimoramento e aes concretas para que nosso pas garanta a seus cidados o direito bsico de cidadania que a alimentao de qualidade. Estamos conscientes de que este Projeto Fome Zero ainda pode ser aperfeioado e receber modificaes. Precisamos, por exemplo, detalhar os aspectos operacionais das vrias propostas nos diferentes nveis de interveno. E o que fundamental: pre-

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cisamos encontrar mecanismos permanentes para envolver toda a sociedade civil numa ampla mobilizao pela garantia de alimentao saudvel para todos. Trata-se de declarar um esforo nacional sem trguas para banir o espectro da fome do nosso pas, sonho e compromisso de nossas vidas. Luiz Incio Lula da Silva Instituto Cidadania, outubro de 2001.

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proJeto Fome Zero documento-SnteSe

introduoO Projeto Fome Zero o resultado de um ano de trabalho de especialistas, representantes de ONGs, institutos de pesquisas, organizaes populares e movimentos sociais ligados questo da segurana alimentar de todo o Brasil, reunidos pelo Instituto Cidadania com o objetivo de apresentar uma proposta de Poltica de Segurana Alimentar e Nutricional. Os resultados obtidos foram surpreendentes: h, no nosso pas, pelo menos 9,3 milhes de famlias 44 milhes de pessoas que ganham menos de um dlar por dia. Esse o valor da linha de pobreza adotado pelo Banco Mundial e que tem por base a renda per capita dos pobres que vivem nos pases mais pobres da frica. A maioria das famlias muito pobres brasileiras vive nas pequenas e mdias cidades do interior (4,3 milhes de famlias ou 20 milhes de pessoas) e nas regies metropolitanas (2 milhes de famlias ou 9 milhes de pessoas). A pobreza atinge ainda quase 3 milhes de famlias rurais (15 milhes de pessoas). Mesmo a Regio Sudeste, a mais desenvolvida do pas, abriga uma grande massa de pobres (2,6 milhes de famlias ou 11,5 milhes de pessoas). E o pior que a pobreza vem crescendo exatamente nas regies metropolitanas, especialmente na de So Paulo, onde se concentra a riqueza do pas. A concluso de que a pobreza no algo furtivo, ocasional, mas sim o resultado de um modelo de crescimento perverso, assentado em salrios muito baixos, que tem levado crescente concentrao de renda e ao desemprego. Infelizmente esse quadro vem piorando nos ltimos anos, com o crescimento do desemprego e o aumento do gasto com alimentao fora de casa e outras despesas no alimentares (moradia, transporte, sade, educao) das famlias mais pobres.

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O Projeto Fome Zero partiu do pressuposto de que todas as pessoas devem ter acesso dirio, e de forma digna, a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para atender s necessidades nutricionais bsicas e manuteno da sade. A garantia desse direito condio para se alcanar a cidadania e para que uma nao possa ser considerada civilizada. O direito alimentao est inserido no plano dos demais direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais. O seu reconhecimento implica que o Estado deve garantir o acesso quantidade e qualidade dos alimentos consumidos pela populao, atravs de uma poltica permanente de segurana alimentar e nutricional. Para implantar uma poltica dessa natureza, fundamental a mobilizao popular, de modo a garantir, alm da deciso poltica dos governantes, a efetiva participao de toda a sociedade. O embrio de uma Poltica Nacional de Segurana Alimentar comeou a ser implantado no Brasil durante o governo Itamar Franco (1993-1994) a partir de uma proposta formulada pelo Partido dos Trabalhadores dois anos antes, em 1991. A Ao da Cidadania contra a Fome e a Misria e pela Vida, em 1993, colaborou para o surgimento de um movimento social muito amplo, liderado pelo socilogo Herbert de Souza, que se expressou na formao de milhares de comits de solidariedade e combate fome. Essa mobilizao representou um enorme ganho de legitimidade para o governo, dando vitalidade ao Conselho Nacional de Segurana Alimentar (Consea) recm-criado. Em decorrncia do desmonte da maior parte das polticas discutidas naquele momento (o Consea, o Prodea, o Inan, estoques reguladores, entre outros), inexiste hoje, no pas, uma Poltica Nacional de Segurana Alimentar. H, sim, o crescimento de iniciativas municipais, estaduais e da sociedade civil para atender a populao carente. As propostas atuais do governo federal tm carter meramente localizado e visam, geralmente, suplementao de renda para famlias pobres, com valores que no so suficientes para eliminar a fome. Os dados disponveis demonstram uma estabilizao dos nveis agregados de carncia alimentar e de indigncia nos ltimos anos. No entanto, a pobreza e a indigncia vm aumentando nas regies metropolitanas desde 1995. As causas esto associadas s elevadas taxas de desemprego e subemprego e aos baixos salrios recebidos pela populao. Entre os pobres, a taxa de desemprego

projeto Fome Zero: docUmento-sntese

nas reas metropolitanas trs vezes maior que a taxa de desemprego entre os no pobres. O Projeto Fome Zero identificou, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad) do IBGE, de 1999, a existncia de 9,3 milhes de famlias e 44 milhes de pessoas muito pobres (com renda abaixo de US$ 1,00 por dia, que representa cerca de R$ 80,00 mensais em agosto de 2001), que foram consideradas o pblico potencial beneficirio deste projeto, por estarem vulnerveis fome. Essa populao pobre representa 22% das famlias e 28% da populao total do pas, sendo 19% da populao (ou 9 milhes) das regies metropolitanas, 25% da populao (20 milhes) das reas urbanas no metropolitanas e 46% da populao rural (15 milhes). H uma forte concentrao dessa populao na Regio Nordeste (50% dos pobres) e na Regio Sudeste (26%). Nas demais regies, a proporo de 9% na Regio Norte, 10% na Regio Sul e 5% na Regio Centro-Oeste. A renda mdia dessas famlias de R$ 48,61 (valores de agosto de 2001), ou seja, menos de 10% da renda dos no pobres. O diagnstico do problema da fome no Brasil neste incio do sculo XXI indica que h uma insuficincia de demanda que inibe uma maior produo de alimentos por parte da agricultura comercial e da agroindstria no pas. As razes que determinam essa insuficincia de demanda concentrao excessiva da renda, baixos salrios, elevados nveis de desemprego e baixos ndices de crescimento, especialmente daqueles setores que poderiam expandir o emprego no so conjunturais. Ao contrrio, so endgenas ao atual padro de crescimento e, portanto, inseparveis do modelo econmico vigente. Forma-se, assim, um verdadeiro crculo vicioso, causador, em ltima instncia, da fome no pas qual seja, desemprego, queda do poder aquisitivo, reduo da oferta de alimentos, mais desemprego, maior queda do poder aquisitivo, maior reduo na oferta de alimentos (ver figura na pgina seguinte). O equacionamento definitivo da questo da fome no Brasil exige um novo modelo de desenvolvimento econmico que privilegie o crescimento com distribuio de renda, de modo a ampliar o mercado interno do pas, com gerao de mais empregos, melhoria dos salrios pagos e, mais especificamente, recuperao do poder aquisitivo do salrio mnimo, que funciona como uma espcie de farol para as rendas desses segmentos mais pobres da populao.

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O crculo vicioso da fomeFalta de polticas de gerao de emprego e renda Desemprego crescente Concentrao de renda Salrios baixos

ConSumo De alImentoS CaI FOME DImInuI oFerta De alImentoS

Crise agrcola Queda nos preos agrcolas Falta de polticas agrcolas Juros altos

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Em outras palavras, para garantir a segurana alimentar de toda a populao brasileira preciso mudar o atual modelo de desenvolvimento econmico que leva excluso social, da qual a fome apenas mais um dos seus resultados visveis, como o so tambm o desemprego, a misria, a concentrao da terra e da renda. No processo de implementao de um novo modelo econmico fundamental, de um lado, que se implementem aes emergenciais para baratear a alimentao para a populao de baixa renda; de outro, aes tambm emergenciais visando assistir diretamente aquela parcela da populao que j sofre com a fome e que pode vir a ser comprometida se isso no for feito. Em sntese, a questo da fome no Brasil tem, nesse incio do sculo, trs dimenses fundamentais: primeiro, a insuficincia de demanda, decorrente da concentrao de renda existente no pas, dos elevados nveis de desemprego e subemprego e do baixo poder aquisitivo dos salrios pagos maioria da classe trabalhadora. Segundo, a incompatibilidade dos preos atuais dos alimentos com o baixo poder aquisitivo da maioria da sua populao. E a terceira, e no menos importante, a excluso do mercado daquela parcela mais pobre da populao.

projeto Fome Zero: docUmento-sntese

Para romper esse ciclo perverso da fome necessria a interveno do Estado, de modo a incorporar ao mercado de consumo de alimentos aqueles que esto excludos do mercado de trabalho e/ ou que tm renda insuficiente para garantir uma alimentao digna a suas famlias. Trata-se, em suma, de criar mecanismos alguns emergenciais, outros permanentes , por um lado, no sentido de baratear o acesso alimentao para essa populao de mais baixa renda, em situao de vulnerabilidade fome. De outro, incentivar o crescimento da oferta de alimentos baratos, mesmo que seja atravs do autoconsumo e/ou da produo de subsistncia. E, finalmente, de incluir os excludos, dado que o acesso alimentao bsica um direito inalienvel de qualquer ser humano. O diagrama a seguir detalha as principais polticas a serem implementadas. Vale lembrar que, primeiro, nenhuma delas isoladamente pode fazer frente questo da fome, muito menos garantir a segurana alimentar da populao. Segundo, tais polticas devem articular necessariamente aes de natureza emergencial com aes estruturais, e romper com falsas dicotomias baseadas na separao entre o econmico e o social, to consagradas dentro dos esquemas neoliberais que produzem a concentrao da riqueza e a pobreza e depois administram polticas sociais para atenuar esta ltima.Melhoria na renda polticas de emprego e renda reforma agrria previdncia social universal bolsa escola e renda mnima microcrdito Barateamento da alimentao restaurante popular convnio supermercado/sacolo canais alternativos de comercializao equipamentos pblicos Pat legislao anticoncentrao cooperativas de consumo

sEgurAnA AliMEntAr

Aumento de oferta de alimentos bsicos apoio agricultura familiar incentivo e produo para autoconsumo poltica agrcola

Aes especficas cupom de alimentos cesta bsica emergencial merenda escolar estoques de segurana combate desnutrio materno-infantil

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Conforme verificado na definio da populao a ser beneficiada, um contingente significativo de pessoas muito pobres, vulnerveis fome, encontra-se nas grandes metrpoles ou periferia das pequenas e mdias cidades das regies no metropolitanas. O perfil da fome nas cidades diferente daquele que encontramos no campo. Dada a maior disponibilidade de alimentos nas cidades, parte da populao de mais baixa renda encontra assistncia de organizaes no governamentais, rgos pblicos ou mesmo vizinhos e parentes. A grande quantidade de resduos alimentares encontrados nas cidades, por exemplo, permite o acesso de parte dessa populao vulnervel fome a algum tipo de alimento, ainda que de m qualidade. Portanto, podemos afirmar que a fome encontrada nas cidades e em particular nas regies metropolitanas exige algumas polticas diferentes daquela que presenciamos no campo, onde as possibilidades de obteno de alimento so menores, por mais paradoxal que possa parecer essa situao. Talvez seja mais correto afirmar que nas reas urbanas mais comum a situao de vulnerabilidade alimentar decorrente da pobreza do que da fome propriamente dita, que resulta na reduo da massa corprea.Esquema das propostas do Projeto Fome ZeroPOltiCAs EstruturAis Gerao de emprego e renda Previdncia Social universal Incentivo agricultura Familiar Intensificao de reforma agrria Bolsa escola e renda mnima POltiCAs EsPECFiCAs Programa Cupom de alimentao Doaes de Cestas Bsicas emergenciais manuteno de estoques de Segurana Segurana e Qualidade dos alimentos ampliao do Pat Combate Desnutrio Infantil e materna ampliao da merenda escolar educao para o Consumo e educao alimentar POltiCAs lOCAis Pequenas e Mdias Cidades Banco de alimentos Parcerias com varejistas modernizao dos equipamentos de abastecimento novo relacionamento com supermercados agricultura urbana

reas rurais apoio agricultura familiar apoio produo para autoconsumo

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Metrpoles restaurantes populares Banco de alimentos Parcerias com varejistas modernizao dos equipamentos de abastecimento novo relacionamento com as redes de supermercados

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eStruturA do proJeto Fome ZeroOs diferentes grupos da populao demandam polticas especficas para enfrentar a questo da fome, especialmente no horizonte temporal de curto e mdio prazo. Apresenta-se a seguir um resumo desse conjunto de propostas para cada um desses grupos algumas de cunho estrutural e outras emergenciais , que visam o aumento da disponibilidade de alimentos de baixos preos e tambm o maior acesso da populao vulnervel a uma alimentao saudvel. Polticas estruturais So polticas que tm efeitos importantes para a diminuio da vulnerabilidade alimentar das famlias, por meio do aumento da renda familiar, da universalizao dos direitos sociais e do acesso alimentao de qualidade e para a diminuio da desigualdade de renda. Polticas de gerao de emprego e aumento de renda Priorizar a diminuio das desigualdades sociais atravs de melhor distribuio de renda para isso fundamental retomar a poltica de aumento do salrio mnimo para o piso de cem dlares e reduzir as distncias entre ele e os salrios mais altos. Alm disso, julgamos fundamental retomar a experincia da formao de frentes de trabalho temporrio em regies com elevado ndice de desemprego sazonal; programas de formao e incentivo ao primeiro emprego para jovens; e programas de requalificao permanente, especialmente para pessoas acima de 40 anos. Crdito para investimentos, atravs do BNDES, Banco do Brasil, CEF, e de consumo, atravs de agncias de microcrdito solidrio, devem ser fortalecidos para alavancar a produo e o consumo locais. Recuperar o ensino pblico fundamental de qualidade, as redes de educao infantil e a melhoria da infraestrutura educacional nas reas rurais primordial. A recuperao de uma poltica habitacional tambm tem um papel fundamental, tanto na gerao de empregos quanto para avanar na soluo do dficit habitacional brasileiro. Intensificao da Reforma Agrria O Projeto Fome Zero defende um processo massivo de distribuio de terras como poltica estrutural de desenvolvimento,

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atuando como um instrumento estratgico de combate histrica concentrao fundiria e de renda no Brasil. A defesa da Reforma Agrria justifica-se por quatro motivos principais: redistribuio de renda, ampliao das fontes de renda para as famlias, fonte de autoconsumo alimentar, e dinamizao das economias regionais. Segundo dados levantados junto aos novos assentamentos, h uma expressiva melhora na qualidade de vida da populao residente, reduzindo sua vulnerabilidade fome. Estimativas preliminares realizadas com base nos dados da Pnad de 1999 indicam um pblico potencial beneficirio de 1 milho de famlias (que no possuem terra ou tm rea insuficiente e possuem um ou mais membros da famlia desempregados) nas reas rurais para serem assentadas com prioridade. Os custos de implantao de assentamentos indicam valores de R$ 10 a R$ 20 mil para cada famlia assentada, dependendo do valor pago terra e da infraestrutura preexistente. Previdncia social universal A Constituio de 1988 ampliou direitos sociais no mbito da Previdncia, reconhecendo o regime de economia familiar nas atividades agropecurias na condio de credor de um seguro social mnimo para idosos, invlidos e vivos(as), com discriminao positiva em favor das mulheres (reduo do limite de idade para aposentadoria). Esse regime previdencirio especial foi integralmente mantido no texto constitucional atual depois da Emenda de 20 de dezembro de 1998 (art. 195, 8o, e art. 201, 2o e 7o, II). Por outro lado, esse reconhecimento de direitos sociais mnimos com relao ao trabalho familiar nas atividades agropecurias no foi seguido de tratamento equnime para o trabalho no agrcola. Este continua, em geral, submetido s regras do trabalho formal, requerendo-se do segurado condies de comprovao de tempo de contribuio individualizada previdncia como condio para obteno do seguro social. Isto precisa ser corrigido, estendendo os mesmos direitos do regime de economia familiar rural ao trabalho familiar urbano. A ideia simples: reconhecer, para todos os conta prpria urbanos e rurais nas inmeras formas de auto-ocupao, a condio de trabalho social necessrio e elegvel para obteno dos direitos previdencirios de um salrio mnimo, independentemente de situar-se ou no abaixo da linha de pobreza.

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Estimativas preliminares com base nos dados da Pnad de 1999 indicaram um pblico potencial de 2,9 milhes de pessoas com idade acima do necessrio para obter o benefcio, mas que no recebem aposentadoria ou penso pblicas. Caso todas essas pessoas sejam atendidas de uma vez, representaria um custo total de R$ 6,3 bilhes. Bolsa Escola e Renda Mnima A exemplo das diversas experincias municipais, estaduais e federais, prope-se o fornecimento de uma renda mnima s famlias carentes com crianas em idade escolar, de modo que esta renda esteja vinculada melhoria nos padres educacionais da populao brasileira, atravs, por exemplo, da composio de um fundo educacional para a criana. Estimativas do pblico potencial beneficirio indicam que existem 3,3 milhes de crianas de 7 a 15 anos que no frequentam escola. Caso o benefcio seja o triplo do atual Bolsa Escola federal, ou seja, de R$ 45,00, os custos deste programa seriam de R$ 853,7 milhes. Incentivo agricultura familiar O Projeto Fome Zero considera essencial uma poltica agrcola que favorea, de fato, a agricultura familiar no pas, visando o aumento da produo de alimentos e a proteo ao agricultor de menor renda. Isto pode ser conseguido atravs de um conjunto de polticas que combinem: seguro agrcola; prioridade produo interna, recorrendo a importao somente no caso de quebras de safra; incentivo pesquisa pblica que esteja associada a uma poltica efetiva de assistncia tcnica; uma poltica de crdito; incentivo a formao de cooperativas de produo e de comercializao; incentivo para proteo da natureza e da paisagem, atravs do pagamento de uma renda ambiental nas reas de preservao obrigatria, entre vrias outras. Polticas esPecficas So aquelas polticas destinadas a promover a segurana alimentar e combater diretamente a fome e a desnutrio dos grupos populacionais mais carentes. O Programa Cupom de Alimentao (PCA) O Programa Cupom de Alimentao (PCA) tem por objetivo

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substituir a poltica tradicional de combate fome, baseada no fornecimento de cestas bsicas, que possuem carter temporrio, esto sujeitas a oscilaes e geram dependncia e corrupo. As principais vantagens do Programa esto na possibilidade de poder atingir a populao mais pobre (como o Programa do Leite, de 1986, e o americano, que existe h quase 40 anos) e de conseguir ligar os consumidores sem poder aquisitivo com os pequenos produtores de alimentos. por isso que o PCA pode ser massivo sem correr o risco de provocar os impactos inflacionrios tpicos de programas que geram distribuio de renda no curto prazo. Ele direciona a capacidade de gasto adicional dos consumidores mais pobres para a aquisio de alimentos, estimulando a produo dos pequenos agricultores locais, um setor de reconhecida capacidade ociosa no pas. So quatro as caractersticas bsicas do PCA aqui proposto: a) complementar a renda das famlias muito pobres at a linha de pobreza, independentemente de j se beneficiarem de outros programas, como o Renda Mnima, Bolsa Escola, Previdncia Social, Seguro-Desemprego etc.; b) exigir sempre uma contrapartida especfica das famlias que se beneficiam do programa em termos de ocupao de seus membros adultos, como, por exemplo, frequentar cursos de alfabetizao, requalificao profissional ou at mesmo prestao de servios comunitrios compatveis com suas habilidades profissionais, e ter acompanhamento por parte de equipes de sade etc.; c) as famlias recebero benefcios dos cupons por um perodo previamente definido de seis meses ou um ano, prorrogveis mediante reavaliao enquanto persistirem as causas da insegurana alimentar que as afeta; d) os cupons s podero ser utilizados na compra de alimentos em supermercados, lojas, feirantes ou produtores agropecurios previamente cadastrados. No ser permitido o uso dos cupons em restaurantes ou outros estabelecimentos que no estejam cadastrados. A restrio vale tambm para quaisquer outras mercadorias no alimentares, como cigarro, produtos de limpeza, remdios, assim como bebidas alcolicas, doces e salgados tipo fast food. Nos primeiros anos de implantao do PCA, prope-se que se d prioridade quelas famlias j cadastradas nos seguintes programas: assentados de reforma agrria ou famlias comprovadamente pobres que se cadastraram pelo correio para integrar o

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programa e que ainda aguardam ser assentados; Programas Bolsa Escola ou Bolsa Alimentao; desempregados beneficirios ou no do seguro-desemprego; famlias com crianas e/ou adultos desnutridos ou em situao de risco, encaminhados pelo sistema pblico de sade e que ainda no estejam sendo atendidos pelos programas anteriores. A prioridade a essas famlias se justifica, primeiro, pelo fato de j estarem cadastradas, o que evita que a implantao do PCA tenha que esperar por um cadastro prprio para entrar em vigncia. Segundo, dado o carter complementar do PCA renda das famlias, este benefcio permitiria melhorar significativamente os resultados obtidos pelos outros programas j em andamento. Prope-se uma implantao gradativa do PCA, iniciando-se com um programa piloto no primeiro ano, com prioridade para as regies afetadas pela seca do Nordeste, aumentando-se a abrangncia medida que se expanda a oferta de alimentos disponveis e os recursos necessrios, de modo a atingir a meta de incorporar todas as famlias muito pobres com renda inferior a um dlar per capita dirias. Os cupons podero ser obtidos sob a forma de papel, impresso pela Casa da Moeda, com perodo de validade especificado, ou sob a forma de crditos em carto magntico. Recomenda-se que a populao de reas urbanas assistidas receba cupons eletrnicos, minimizando-se, assim, o surgimento de um mercado paralelo de cupons de alimentao. Nas reas rurais e nas pequenas e mdias cidades onde for difcil a utilizao dos cartes, os cupons tero um prazo de validade definido (de um a trs meses) para serem trocados por alimentos. As estimativas indicaram um pblico potencial beneficirio de 9,3 milhes de famlias muito pobres. O custo total do programa foi estimado em cerca de R$ 20 bilhes se todas as famlias fossem atendidas em um ano. Ampliao e redirecionamento do Programa de Alimentao do Trabalhador (PAT) A forma como o PAT est hoje estruturado exclui os trabalhadores que no tm registro em carteira e os empregados de pequenas empresas que se utilizam do Simples. So justamente esses os trabalhadores que ganham menos e que deveriam ser priorizados nos programas de combate fome.

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Para os trabalhadores sem qualquer registro e que permanecem na informalidade, no h como destinar recursos do PAT para sua alimentao. Esse pblico, assim como os desempregados, dever ser amparado pelo PCA Programa de Cupons de Alimentao. J para os trabalhadores que atuam em empresas de pequeno porte, o objetivo da reforma que propomos para o PAT conseguir que elas sejam atradas para o programa. O Projeto Fome Zero prope que se estabeleam mecanismos de compensao para as firmas que se utilizam do Simples para o clculo do Imposto de Renda devido, tendo como base o lucro presumido, para beneficiar isenes na concesso de benefcios de alimentao aos trabalhadores. Essas compensaes poderiam vir na forma de descontos sobre a tabela do Simples. O lucro presumido seria abatido, levando-se em conta o valor dos benefcios concedidos ao trabalhador. As estimativas indicaram a existncia de 15,7 milhes de trabalhadores com carteira assinada que no esto includos no PAT. A incluso de todos esses trabalhadores no PAT resultaria em um custo de renncia fiscal da ordem de R$ 203,7 milhes. Doaes de cestas bsicas emergenciais O Projeto Fome Zero prope que as pessoas famintas (com baixa capacidade energtica), as populaes atingidas por calamidades naturais (secas e enchentes, por exemplo) e os novos assentados da reforma agrria tenham direito a receber cestas de alimentos por um perodo determinado. A experincia mostra que, em situaes de calamidade, sempre h um conjunto de agentes que se aproveita da situao para sonegar alimentos, aumentar suas margens de vendas ou substituir produtos por outros de menor qualidade. Alm deste pblico mais especfico, devem ser includas, tambm, as famlias que estejam inseridas nos critrios do Cupom de Alimentao, mas que residam em locais distantes de mercados para compra dos produtos alimentares. A proposta que estes grupos sejam paulatinamente inseridos no Programa Cupons de Alimentao assim que se desenvolva o comrcio local. Combate desnutrio materno-infantil necessrio implantar medidas mais ativas no apenas para corrigir, mas para prevenir a desnutrio infantil, atendendo a crianas menores de um ano, bem como gestantes e mes em

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fase de amamentao. Uma delas ampliar o fornecimento de produtos alimentares, como o leite, e de nutrientes bsicos, como ferro e vitaminas, para as crianas inscritas nas redes pblicas de servios de sade e de assistncia social, visando universalizar os programas j existentes. As estimativas realizadas pelo projeto indicaram a existncia potencial de 1,3 milho de crianas com desnutrio crnica no Brasil, somadas a mais 1,2 milho de mes dessas crianas, que devem ser atendidas prioritariamente por este programa. Manter estoques de segurana O Projeto Fome Zero prope a formao de estoques de alimentos que garantam a segurana alimentar, ou seja, um volume mnimo de produtos da cesta bsica que respondam pelo consumo durante o perodo necessrio para se importar ou expandir a oferta. Dois elementos devem ser levados em conta na estruturao da poltica de estoques de segurana: a) estimular as compras nas regies produtoras para consumo na prpria regio; b) evitar a importao de alimentos sempre que houver disponibilidade interna suficiente. Ampliao da merenda escolar As anlises dos dados disponveis sobre o consumo da merenda revelam que baixa a contribuio das refeies distribudas nas escolas para o suprimento das recomendaes de energia e de nutrientes (especialmente quanto aos minerais) para o grupo-alvo do programa. Nossa proposta de elevao do aporte calrico e nutricional dirio da merenda que hoje , por lei, de apenas 15%. Em alguns estudos verificou-se que essa proporo pode ser bem maior, chegando a at 100% das recomendaes dirias de energia e nutrientes em alguns municpios. Alm disso, prope-se uma ampliao do atendimento tambm para os irmos dos escolares e para a rede de educao infantil (creches e Emeis), especialmente nos municpios mais pobres. Outra questo importante est na utilizao de produtos regionais na composio da merenda. Pesquisas mostram que a participao dos produtores agrcolas locais nas compras da merenda ainda muito pequena. Acredita-se que um maior apoio tcnico dado aos Conselhos Municipais de Alimentao Escolar e aos produtores locais permitiria que se conseguisse, ao mesmo tempo, garantir ali-

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mentos mais frescos (frutas e verduras obrigatrias) e compatveis com as caractersticas culturais locais e uma melhoria na renda dos agricultores e da agroindstria da regio. Estimou-se a existncia de cerca de 35 milhes de crianas em idade escolar. Caso se duplique o atual repasse federal por criana/dia, que hoje de R$ 0,13, o custo suplementar estimado seria de cerca de R$909 milhes. Isto, sem contar o atendimento aos irmos dos alunos e da rede infantil de ensino nos municpios mais pobres. Garantia de segurana e qualidade dos alimentos Enfocar as atividades com o princpio da preveno em vez do princpio da correo outro desafio para um programa de garantia da segurana dos alimentos no Brasil. Atividades como o controle preventivo, a implementao de um sistema de informaes e vigilncia da segurana dos alimentos, a educao dos indivduos envolvidos na cadeia produtiva, a promoo de estudos cientficos e transferncia de tecnologia e mtodos para prevenir riscos e melhorar a segurana devem ser priorizadas. fundamental, tambm, que o consumidor tenha a informao no rtulo sobre a origem do alimento que consome, alm de material informativo sobre os riscos dos produtos geneticamente modificados. Coerente com o diagnstico realizado, de que o problema da fome hoje no Brasil no a falta de disponibilidade de alimentos, mas sim o acesso a eles, no concordamos que a produo de alimentos transgnicos possa ajudar a combater a fome no pas. preciso, tambm, controlar a entrada de alimentos transgnicos no pas, at que haja resultados de pesquisas suficientes que comprovem que estes produtos no promovem riscos sade e ao meio ambiente. Programas de educao alimentar e educao para o consumo Existem dois problemas associados falta de uma dieta balanceada: a inadequao quantitativa (tanto para excesso como para carncia) e a inadequao qualitativa. Assim, aes na rea de educao alimentar tm efeitos preventivos importantes, tanto para o combate desnutrio, quanto para o combate obesidade. O Projeto Fome Zero prope uma atuao em duas frentes. A primeira seria uma posio ativa por parte do poder pblico no sentido de estabelecer campanhas publicitrias e palestras sobre educao alimentar e educao para o consumo.

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A outra frente seria a criao e implementao da Norma Brasileira de Comercializao de Alimentos Industrializados (NBCAI), semelhana daquela implementada com sucesso a partir dos anos 1980 com o objetivo de promover o aleitamento materno. Polticas locais O Projeto Fome Zero prope tambm um conjunto de polticas que podem ser implantadas pelos estados e municpios, a grande maioria em parceria com a sociedade civil. So basicamente programas j em funcionamento nos municpios com relativo sucesso. Algumas propostas esto detalhadas segundo as reas de residncias (reas urbanas metropolitanas, reas urbanas no metropolitanas e reas rurais), ressaltando suas especificidades. Programas municipais de segurana alimentar A experincia tem revelado a importncia de que haja uma secretaria municipal (ou um departamento) dedicada ao abastecimento alimentar. No mbito municipal, existem diversos organismos, geralmente sob a estrutura de secretarias municipais, que podem atuar conjuntamente neste campo: secretarias de abastecimento alimentar (que geralmente atuam na gesto dos equipamentos); secretarias de agricultura (que atuam na rea rural/agrcola); secretarias de educao (rea da merenda escolar); secretarias de sade (reas de preveno e combate desnutrio materno-infantil, por exemplo); secretarias de assistncia social (que atuam com indigentes, pessoas e famlias carentes em geral); alm de reas como a vigilncia sanitria. Uma iniciativa premente a realizao de Censos Municipais da Fome, para que cada municpio cadastre a populao que passa fome ou que est em situao de vulnerabilidade fome. Isto poderia ser realizado com o apoio dos rgos locais de sade e de assistncia social, por exemplo. Programas locais para as regies metropolitanas a) Restaurantes populares Grande parte da populao que trabalha em reas metropolitanas faz pelo menos uma das suas refeies fora de casa, geralmente o almoo, e necessita disponibilidade, qualidade e preos reduzidos.

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Prope-se um programa de restaurantes populares que possa fornecer refeies a preo de custo para atender uma enorme demanda de trabalhadores de baixa renda que hoje se alimenta de forma no satisfatria nas ruas. Levantamentos mostram que uma refeio em restaurantes populares poderia custar R$ 1,80, considerando-se todos os custos variveis e gastos com mo de obra, a exemplo do custo do Restaurante Popular de Belo Horizonte. No estariam includos neste clculo os dispndios com a instalao dos restaurantes, aluguis, reformas ou outras despesas locais que podem ser cedidos pelo poder pblico. Caso os gastos com pessoal e manuteno da infraestrutura sejam cobertos pelas prefeituras, governos estaduais ou entidades beneficentes, como ocorre hoje, o custo da refeio poderia ser prximo de R$ 1,00. b) Banco de Alimentos A doao, para organizaes beneficentes e populao carente, de alimentos que seriam desperdiados, envolve propostas que vo desde a captao de alimentos at sua distribuio. O Projeto Fome Zero endossa a proposta de institucionalizao do Estatuto do Bom Samaritano, que est tramitando no Congresso Nacional. O Estatuto do Bom Samaritano facilita a doao de alimentos, desburocratizando o processo, reduzindo os custos e eliminando responsabilidades indevidas. A aplicao dessa nova legislao dever provocar um significativo aumento no aporte de alimentos colocados disposio das entidades para a alimentao da populao carente. c) Modernizao dos equipamentos de abastecimento O funcionamento de equipamentos como varejes, sacoles, comboios e compras comunitrias deve ser recolocado como uma alternativa vivel de barateamento da alimentao em reas urbanas, metropolitanas ou no. Para que se possa viabilizar essas polticas, preciso tambm incentivar a criao de centrais de compra e distribuio nas periferias das regies metropolitanas, que dariam apoio logstico e comercial operao dos concessionrios e pequenos varejistas. Estes, por sua vez, como contrapartida, teriam de comercializar os alimentos de cesta bsica e tambm outros gneros alimentcios a preos mais baratos. d) Novo relacionamento com as redes de supermercados Uma nova poltica para o setor de abastecimento exige tambm uma nova relao com as redes de supermercados, para se

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evitar uma excessiva concentrao no varejo e torn-los parceiros numa poltica de segurana alimentar. Essa parceria com os supermercados fundamental para a implantao de uma poltica de segurana alimentar hoje nos municpios, uma vez que grande parte das compras de alimentos das populaes de mais baixa renda se faz a. Programas como os de cupons de alimentos tendem a ter resultados positivos para esses agentes, pois podem ampliar a sua clientela. A rede varejista fundamental tambm para a comercializao de produtos agrcolas e agroindustriais produzidos nas localidades que se pretende incentivar por meio de programas de Reforma Agrria e desenvolvimento da produo familiar. Propostas locais para reas urbanas no metropolitanas (pequenas e mdias cidades) a) Banco de Alimentos Os Bancos de Alimentos para a populao vulnervel fome das pequenas e mdias cidades devem ter funcionamento semelhante ao proposto para as regies metropolitanas. No entanto, como se trata de uma escala de atuao menor, possvel que os produtos sejam entregues com algum tipo de processamento, dando maior ateno ao aspecto e qualidade dos alimentos. Vale lembrar ainda que para esse caso os doadores de alimentos tambm seriam beneficiados com as vantagens previstas no Estatuto do Bom Samaritano. b) Parceria com varejistas Nas comunidades urbanas de menor porte importante, tambm, incentivar os varejistas locais, de forma a evitar a concentrao excessiva, desde que possam praticar preos reduzidos e manter a qualidade do produto vendido. Isso perfeitamente possvel se houver investimentos em equipamentos e logstica de distribuio. A proposta do Projeto Fome Zero criar uma parceria entre grupos de varejistas (incluindo feirantes, mercearias e pequenos comrcios) e o poder pblico local para a instituio de um sistema de compras em comum. O poder pblico dever estabelecer um teto para os preos dos produtos da cesta bsica, com um certo controle das margens de comercializao do pequeno varejo. c) Modernizao dos equipamentos de abastecimento Nas reas urbanas no metropolitanas (pequenas e mdias cidades), a presena do poder pblico no abastecimento pode ser dinamizada por meio de aes que incentivem a ligao direta do

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consumidor com os produtores agrcolas locais. Dessa forma, cabe ao poder pblico organizar e incentivar campanhas de consumo e distribuio de alimentos produzidos regionalmente, do tipo feira do produtor, por exemplo. Devido ao das grandes redes intermedirias, muito comum que produtos in natura faam um longo passeio e regies inteiras sejam abastecidas por suprimentos provenientes de reas distantes. No caso de produtos industrializados, como o leite, laticnios e carnes, ocorre o mesmo. Deve-se, portanto, incentivar e aproximar produtores e consumidores de uma mesma regio, criando laos locais e reforando os gostos e sabores estabelecidos em um determinado ambiente. d) Agricultura urbana A conexo entre o abastecimento e a produo agroalimentar local precisa ser mais valorizada nos pequenos e mdios municpios. Vrias iniciativas de alada municipal podem estimular programas como Feira do Produtor e sistemas de entrega no domiclio de produtos frescos; cursos de formao para criao de hortas nas escolas; cadastro de terrenos urbanos sem uso para produo de hortas e a cesso para produo, por tempo determinado previamente, para pessoas interessadas e sem emprego; e alquotas diferenciadas de IPTU para terrenos aproveitados para este uso. Polticas para as reas rurais a) Apoio agricultura familiar O Projeto Fome Zero prope que as prefeituras e os governos estaduais e federal usem, sempre que possvel, seu poder de compra derivado da demanda institucional, para a merenda escolar, creches, hospitais, quartis, restaurantes populares etc., em favor dos agricultores familiares. Paralelamente a essas iniciativas, outras aes so necessrias para que sejam atingidos os objetivos da diminuio dos custos e do aumento da qualidade: Assistncia tcnica, geralmente negligenciada pelas administraes pblicas, um item a ser fortalecido. Acesso ao crdito: necessrio um redirecionamento do Pronaf para que atinja efetivamente os agricultores menos capitalizados. Paralelamente, interessante que os governos estaduais e municipais apoiem as entidades associativas de microcrdito, com a criao de fundos de aval.

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Apoio comercializao por meio, por exemplo, da intermediao de contatos com empresas interessadas em produtos regionais vindos da pequena produo ou de produo limpa, ou do oferecimento de espaos nos equipamentos de abastecimento j tradicionais das cidades (feiras e varejes). Infraestrutura: essa uma das reas de atuao tradicional das administraes municipais, apesar de, muitas vezes, ela carecer de uma clara priorizao dos pequenos agricultores nos investimentos realizados. Pontes, estradas rurais, audes, balces de armazenagem e apoios para aquisio de caminhes so possveis de serem construdos com os equipamentos e recursos municipais, com custo reduzido. Essa uma estratgia importante para aumentar o emprego nas reas rurais, com o aumento da oferta de postos de trabalho. b) Apoio produo para autoconsumo O instrumento utilizado a doao, por parte das prefeituras ou dos governos estaduais, de sementes, insumos e ferramentas especficas para o uso em hortas e jardins, bem como matrizes para iniciar a criao de pequenos animais (abelhas, coelhos, aves, cabras etc.). As prefeituras devem tambm estimular o cultivo em terrenos baldios por meio de programas de hortas comunitrias, bem como a comercializao individual ou coletiva desses alimentos em feiras do produtor, como j citado.

origem doS recurSoSJulga-se necessrio incluir as polticas contidas neste documento, juntamente com outras da rea da educao, sade, regularizao fundiria, dentro de um oramento prprio, no nvel federal. Isto se deve vulnerabilidade no sistema atual, ao contingenciamento total ou parcial de determinadas dotaes segundo diretrizes de cortes nos gastos pblicos, e tambm alocao insuficiente de recursos. Hoje, exceo dos gastos com educao e reforma agrria, os demais gastos sociais (previdncia, sade e assistncia social) encontram-se previstos no oramento da seguridade social, que tem como principais fontes de recursos as contribuies do INSS, a contribuio sobre o lucro lquido de pessoas jurdicas, o PIS/Pasep, a Cofins e a CPMF. Para o ano de 2002, a proposta oramentria, que j se encontra no Congresso Nacional, prev R$ 164,8 bilhes para o oramento da Seguridade Social, incluindo cerca de R$ 4,2

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bilhes no Fundo de Assistncia Social, que garante recursos para programas de atendimento aos idosos, s crianas carentes e aos deficientes fsicos. Se discutirmos as fontes de financiamento s polticas propostas no Projeto Fome Zero dentro do atual modelo de engessamento dos gastos pblicos, acabar-se- tendo que buscar novas fontes ou remanejamento de receitas j existentes. No entanto, verifica-se que os gastos sociais (exceto a previdncia) dos diversos programas sociais realizados atualmente so da ordem de R$ 45 bilhes ao ano, o que mais do que o dobro dos recursos necessrios implantao do Programa de Cupons de Alimentao proposto. Desse modo, possvel, tanto redirecionar parte do oramento j existente, como tambm prover novos aportes de recursos adicionais resultantes de um ritmo maior de crescimento da economia, assim como da reduo dos juros e do pagamento do servio da dvida pblica e tambm do melhor gerenciamento dos recursos disponveis, via reduo do desperdcio e da corrupo hoje existentes. O recm-criado Fundo de Combate Pobreza, estimado em cerca de R$ 4 bilhes anuais, uma dessas novas fontes de recursos, que podero ser redirecionados para financiar os programas aqui propostos. Outra fonte so as iniciativas dispersas j existentes de doaes por parte de empresas e de pessoas fsicas, que podero ser redirecionadas de forma coordenada, por meio de parcerias entre governo e sociedade civil, de modo a se obter um impacto maior sobre a reduo da fome e da pobreza. Uma forma de estimular essas doaes a criao de incentivos, como o desconto no Imposto de Renda, a exemplo do Fundo Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente de So Paulo. Outro caminho o do marketing social, casos do , de iniciativa da Ao da Cidadania Comit Rio, um site onde empresas cadastradas doam uma cesta de alimentos a cada clique efetuado pelo visitante, do Instituto Ethos, da Fundao Abrinq e do Gife (Grupo de Estudos e Fundaes Empresariais) da Cmara Americana de Comrcio, que incentivam a ao social.

A inStitucionAlidAde34A verso preliminar do Projeto Fome Zero trouxe a proposta de criao de um Ministrio Extraordinrio para articular as diversas polticas de combate fome nas diferentes instncias governamen-

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tais (federal, estadual e municipal), bem como as aes de entidades da sociedade civil. As sugestes recebidas durante as discusses pblicas dessa verso preliminar do projeto apontaram para duas mudanas fundamentais na institucionalidade inicialmente proposta: a) como o combate fome deve ser parte de uma poltica permanente de segurana alimentar, necessita-se de uma configurao institucional que no tenha um carter temporrio, como o caso de um ministrio extraordinrio; b) dada a complexidade envolvida nas articulaes com a sociedade civil e com a prpria mquina governamental, o papel de coordenao de uma poltica de segurana alimentar tem que estar diretamente vinculado Presidncia da Repblica, sob pena de se transformar em mais uma das polticas governamentais de alcance limitado do ministrio a que estiver subordinada. A recuperao da experincia anterior do Consea foi apontada como sendo o melhor caminho a seguir, proposta endossada pelo Projeto Fome Zero. O Consea representou uma novidade em termos de mecanismos de governabilidade no pas: representantes do primeiro escalo do governo federal e da sociedade civil discutiam propostas que poderiam acelerar o processo de erradicao da pobreza e da misria. Foram gestadas e/ou viabilizadas propostas de polticas pblicas inovadoras, tais como: a descentralizao do Programa Nacional de Alimentao Escolar, o Programa Nacional de Gerao de Emprego e Renda, a busca de transparncia na gesto de recursos pblicos e a criao do Prodea como mecanismo de aproveitamento de estoques pblicos de alimentos a ponto de serem perdidos. Mais inovadoras ainda foram as formas de gesto implementadas no processo, com a criao de mltiplos grupos de trabalho mistos (sociedade civil/governo), que acabaram por consolidar uma nova prtica e cultura de gesto compartilhada de polticas pblicas. Uma das grandes limitaes do Consea, no entanto, foi que, por definio governamental, as decises referentes poltica econmica continuaram a passar margem das discusses acerca do seu impacto sobre a segurana alimentar, a fome e a misria da populao, ou seja, a articulao limitava-se aos ministrios da rea social e, muitas vezes, o Consea reduziu-se a apenas mais um mecanismo de presso para garantir recursos para polticas

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e programas sociais. Assim, a deciso de transformar o combate fome e misria em prioridade no foi adotada pela rea econmica, que continuou a aceitar as prescries dos organismos financeiros internacionais, independentemente do impacto que pudessem ter sobre o agravamento da excluso social, da fome e da desnutrio. Recomenda-se que as decises tomadas no Consea e assumidas pelo presidente da Repblica devam ser implementadas sob a coordenao de uma autoridade com mandato governamental. Nesse caso, sugere-se que esse trabalho seja desenvolvido pelo Ministrio do Planejamento, articulando-se com os demais ministrios e agncias governamentais. Considerando-se que existem diferentes funes a serem exercidas no Conselho por integrantes do governo e representantes de organizaes no governamentais, seria importante promosntese das estimativas de custos e origem dos recursos dos programas especficos do Projeto Fome ZeroProgramasestmulo Produo para autoconsumo Cupom de alimentao Cesta bsica emergencial Combate desnutrio infantil e materna Segurana e qualidade dos alimentos educao alimentar

implantaoFederal, municipal Federal, estadual, municipal e Sociedade Civil Federal, estadual, municipal e Sociedade Civil Federal, municipal Federal, estadual, municipal e Sociedade Civil Federal, estadual, municipal e Sociedade Civil

Pblico Custo total beneficiado anual em Fonte de recursos (mil pessoas) r$ mil (ano)6.370 - (a) Programas de Poltica agrcola e recursos municipais tesouro, Fundo de Combate Pobreza e Fundo de assistncia Social tesouro, Fundo de Combate Pobreza e Fundo de assistncia Social oramento da Sade e Prefeituras oramento da Sade e do ministrio da agricultura e apoio privado oramento da educao e da Sade nos trs nveis de governo e apoio privado

44.043

19.961.242

no estimado

- (b)

2.507 toda a populao toda a populao

- (a)

- (a)

- (a)

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Fonte: tabulaes especiais da PnaD 1999 e Contagem da Populao de 1996 IBGe. (a) Dados no disponveis, pois os custos esto contemplados nos oramentos das esferas de governo respectivas. (b) os custos esto includos no Programa Cupom de alimentao. nota: as pessoas e famlias podem ser atendidas por mais de um programa. Portanto, os nmeros desta tabela no devem ser totalizados.

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ver a constituio de duas secretarias executivas. Em uma primeira seriam feitas as articulaes nos diferentes rgos de governo, enquanto a outra cuidaria da interlocuo com entidades no governamentais. Essa proposta de parceria entre governo e sociedade civil permite a gesto com participao popular e abre um canal para a implementao de demandas emanadas das diversas organizaes populares.

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2. pArA oS crticoS do Fome ZeroJos Graziano da Silva2 Walter Belik Maya Takagi

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O Projeto Fome Zero, apresentado no ltimo Dia Mundial da Alimentao (16/10/2001), tem como objetivo propor uma poltica nacional participativa de segurana alimentar e combate fome. Sua elaborao envolveu alguns dos principais especialistas no tema, alm de movimentos sociais e ONGs, nos diversos seminrios e debates realizados ao longo de um ano de elaborao. Esse projeto tem sido reconhecido por entidades nacionais e internacionais como uma importante iniciativa da sociedade civil, ao levantar alternativas concretas para combater o flagelo da fome no pas. Ao contrrio dos dados divulgados por tcnicos ligados ao governo federal, demonstrou-se que houve um aumento dos nveis de pobreza e vulnerabilidade fome no perodo de 1995 a 1999, especialmente nas reas metropolitanas, fruto especialmente do desemprego e dos baixos nveis salariais. Assim, embora a pobreza esteja fortemente concentrada no Nordeste (50% dos pobres esto nos estados que compem a regio), ela tem crescido em quase todas as regies metropolitanas (a uma taxa de 5% ao ano no perodo 1995/1999) e ainda mais na Grande So Paulo (9,2% ao ano) e Regio Metropolitana de Porto Alegre (7,8% a.a.)3. Calculamos que existiam no Brasil, segundo dados bsicos da Pnad-IBGE de 1999, 44 milhes de pessoas muito pobres, que ganham menos que um dlar por dia, correspondendo a 9,3 milhes de famlias com uma renda de cerca de R$ 180,00 por famlia/ms, que foram consideradas o pblico potencial beneficirio das propostas do projeto.1. texto apresentado pelo Instituto Cidadania em novembro de 2001. 2. Coordenadores tcnicos do Projeto Fome Zero. 3. Conforme Del GroSSI, GraZIano Da SIlVa e taKaGI (2001).

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Constatou-se, ainda, que: a) O problema da fome, hoje, no de falta de produo de alimentos, mas da falta de renda para adquiri-los em quantidade permanente e qualidade adequada. As estimativas da FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimentao mostram que o Brasil tem uma disponibilidade per capita de alimentos equivalente a 2.960 kcal/dia, bastante acima do mnimo recomendado de 1.900 kcal. O problema que o consumo de alimentos uma funo da renda das famlias; e como a renda est muito mal distribuda, uma parte importante da populao no tem acesso aos alimentos nem mesmo na quantidade mnima necessria para garantir a sobrevivncia. H no Brasil, hoje, uma grande parcela de subnutridos com um consumo mdio de 1.650 kcal/pessoa/dia, de tal forma que estamos classificados pela FAO na categoria 3 (de 1 a 5 para propores crescentes de subnutridos), juntamente com pases como a Nigria, Paraguai e Colmbia. b) Existe um crculo vicioso da fome, difcil de ser superado apenas com polticas compensatrias de doao de alimentos, como tradicionalmente tem se feito (cestas bsicas, por exemplo). Este crculo retroalimentado, por um lado, pelos problemas estruturais do pas, de falta de emprego, salrios baixos e concentrao de renda; por outro, pela falta de polticas agrcolas e pelos aumentos dos preos dos alimentos. Neste quadro, verificou-se que as polticas alimentares foram sendo desmontadas ao longo da dcada de 1990 e no h um programa no pas que englobe aes diretas de combate fome. As polticas hoje existentes encontram-se fragmentadas em vrias aes, predominantemente com carter localizado, e pautam-se, fundamentalmente, pela transferncia de pequenos valores monetrios (bolsa esmola) que so insuficientes para alterar o quadro de misria e desnutrio. Exemplos disso so os diversos programas lanados pelo governo federal: programa da seca, bolsa escola, erradicao do trabalho infantil, bolsa renda, bolsa alimentao. O Projeto Fome Zero entende que a questo da fome no pas tem trs dimenses fundamentais: de um lado, a insuficincia de demanda, decorrente da concentrao de renda, dos elevados nveis de desemprego e subemprego e do baixo poder aquisitivo dos sal-

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rios pagos maioria da classe trabalhadora; de outro, a incompatibilidade dos preos atuais dos alimentos com o baixo poder aquisitivo da maioria da sua populao; e a terceira, e no menos importante: a fome daquela parcela da populao pobre, excluda do mercado de alimentos, muitos dos quais trabalhadores desempregados ou subempregados, idosos, crianas e outros grupos carentes que necessitam de um atendimento emergencial. Por isso que a proposta do Fome Zero envolve trs grandes eixos simultneos: ampliao da demanda efetiva de alimentos, barateamento do preo dos alimentos e programas emergenciais para atender parcela da populao excluda do mercado. Mas o equacionamento definitivo da questo da fome no Brasil exige um novo modelo de desenvolvimento econmico que privilegie o crescimento com distribuio de renda, de modo a recuperar o mercado interno com gerao de empregos, melhoria dos salrios e recuperao do poder aquisitivo do salrio mnimo, que funciona como uma espcie de farol para as rendas dos segmentos mais pobres da populao. fundamental entender que a segurana alimentar de um pas vai alm da superao da pobreza e da fome. O crculo vicioso que liga a pobreza e a fome difcil de ser superado apenas com polticas compensatrias de doaes de alimentos atravs de cestas bsicas ou de transferncias de renda, como os programas de renda mnima e bolsa escola, como vem sendo feito h alguns anos. necessrio associar o objetivo da poltica de segurana alimentar com estratgias de desenvolvimento econmico e social que garantam a equidade e incluso social. Algumas polticas podem ajudar a caminhar nesse sentido, como os programas ampliados e reforados de renda mnima e bolsa escola, o incentivo agricultura familiar, a Previdncia Social universal, a intensificao da reforma agrria e uma poltica de crescimento que permita gerar mais e melhores empregos. Mas temos que ter tambm polticas especficas para o combate fome, como um programa de cupons de alimentao em substituio s cestas bsicas, um programa de combate desnutrio materno-infantil, a ampliao da merenda escolar e do PAT Programa de Alimentao do Trabalhador, entre outros. Finalmente, torna-se necessrio desencadear polticas locais diferenciadas segundo a localizao das populaes necessitadas. Nas reas rurais, por exemplo, preciso apoiar a produo de alimentos, mesmo que seja apenas para autoconsumo. J nas metrpoles tem-se que ampliar o atendimento dos

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restaurantes populares, os bancos de alimentos e realizar parcerias com os varejistas para a comercializao de produtos de poca e estimular o consumo da produo regional. Apesar deste carter de construo permanente e participativa, o projeto sofreu inmeras tentativas de desqualificao, motivadas por duas causas principais: desconhecimento do seu contedo no estilo no leu e no gostou, j que muitas crticas pautaram-se pelas manchetes de jornal, claramente enviesadas; e motivos polticos, visando atingir seu principal inspirador, que Lula. Apesar dessas tentativas de desqualificao, julgamos que o projeto atingiu seus objetivos. Primeiro, conseguimos recolocar o problema da fome (e da falta de polticas para combat-la) na pauta nacional. O impacto do projeto no noticirio foi grande e permitiu reiniciar uma mobilizao da sociedade sobre o tema. Segundo, o governo federal foi obrigado, tambm pela opinio pblica, a apresentar respostas sociedade e populao faminta. Como resultado tivemos a ampliao dos programas do tipo renda mnima para a populao entre 15 e 60 anos, que estariam excludas dos programas federais de transferncia de renda, e a aprovao, no dia seguinte ao lanamento do Projeto Fome Zero, do Fundo de Combate Pobreza, defendido pelos colaboradores como principal fonte de financiamento para o combate fome. Por fim, e no menos importante, verificou-se uma enorme aceitao do projeto, com dezenas de convites para realizar lanamentos e debat-lo publicamente. Algumas prefeituras, como as de Santo Andr, Campinas e Embu, em So Paulo, e de Ponta Grossa, no Paran, j concretizaram iniciativas para implantar parte das propostas contidas no Fome Zero. O objetivo deste artigo sistematizar os principais pontos questionados aps o lanamento do Projeto Fome Zero, visando levantar as bases para a continuidade do debate. Os temas abordados so quatro: 1) polticas de combate fome e pobreza; 2) a metodologia adotada; 3) os custos do projeto; 4) a falsa dicotomia cupons x renda mnima.

polticAS de comBAte Fome e poBreZA42Quais as propostas existentes hoje para combater a fome e a pobreza no pas? Um divisor de guas ficou bastante claro. Por um lado, h uma viso que defende que hoje h recursos e polticas suficientes e o pro-

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blema focalizar melhor os pobres. Para seus defensores, os recursos dos programas sociais no chegam aos realmente necessitados de forma eficiente. Da decorre a substituio de diversas polticas (como aquelas ligadas distribuio de alimentos, por exemplo, o fornecimento de leite e cestas bsicas) por uma complementao de renda. Esta a proposta subjacente s polticas do atual governo, defendida por pesquisadores ligados ao Ipea e ao Banco Mundial. A diferena com a proposta apresentada pelo Fome Zero completa, como j tivemos oportunidade de destacar. Deste lado esto as propostas de polticas especficas de ajuda alimentar associadas a polticas estruturais como de gerao de renda e emprego, reforma agrria, polticas de apoio agricultura familiar, aumento do salrio mnimo e ampliao da previdncia social, por exemplo. Para seus defensores, polticas diretas de segurana alimentar e combate fome devem ser adotadas de forma que estas forneam os meios bsicos para a sobrevivncia das famlias sem condies econmicas, mas, ao mesmo tempo, criem mecanismos dinmicos em outras reas da economia, como a produo e a distribuio de alimentos, servindo, tambm, como mecanismos educativos para libertao da dependncia destas polticas especficas. Na nossa opinio, limitar-se a polticas emergenciais ou assistenciais sem considerar as causas estruturais da fome e da misria, como o desemprego, o baixo nvel de renda e a sua altssima concentrao, far apenas com que se perpetue o problema e a necessidade dessas polticas assistenciais. Uma poltica de tal magnitude, necessria para que se supere a condio de pas subcidado, necessita sim de recursos, pois esta proposta atinge todas as pessoas e dinamiza a economia e a produo de alimentos, ao mesmo tempo que faz a comida chegar mesa das pessoas sem impactos inflacionrios. Embora necessite de uma poltica especfica, o combate fome no pode ser baseado em aes salvadoras. Em todos os pases cujos casos foram apresentados no Seminrio Internacional realizado na Unicamp em abril passado Canad, Estados Unidos e Mxico , as polticas de combate fome fazem parte de um conjunto mais amplo de instrumentos que formam uma rede de seguridade social e do sustentao s diversas situaes de vulnerabilidade, ou seja, a fome apenas uma das vrias inseguranas a que esto submetidas as famlias pobres. Isto nos remete a uma imagem de cebola: vrias camadas de seguridade que se superpem para

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combater a pobreza: o seguro-desemprego, a Previdncia por idade, a bolsa escola para garantir a educao, as polticas de atendimento gratuito sade etc.

A metodologiAOutra crtica ao Projeto Fome Zero foi seu suposto erro no clculo do nmero de pobres. No incio dos trabalhos constatamos que no h, no Brasil, estatsticas consensuais sobre o nmero de pessoas que passam fome. Diante da ausncia de pesquisas diretas4 mais recentes, de abrangncia nacional, diversos pesquisadores tm procurado inferir a populao carente por meio de mtodos indiretos, principalmente atravs da renda. A partir de um amplo levantamento das ltimas pesquisas5 constatamos que no h uma estimativa comum mesmo quando fundada na mesma fonte de dados e em mtodos similares. Os resultados discrepantes devem-se a diferenas nos critrios adotados at chegar definio da populao indigente e pobre. Isto explica a profuso de nmeros existentes: so 30 milhes, como dizia o Mapa da Fome, em 1993; 50 milhes, como dizem os nmeros da FGV6; 54 milhes, como diz o ltimo estudo do Ipea; ou 44 milhes, como diz o Fome Zero? Qual nmero est correto? Todos e nenhum deles, porque dependem dos critrios adotados em cada pesquisa. No Projeto Fome Zero buscou-se aperfeioar as metodologias existentes. Para isso, elaboramos dois textos metodolgicos que esto disponveis na pgina eletrnica do Instituto de Economia da Unicamp7, onde explicamos passo a passo a construo da linha de pobreza adotada, deixando claro que no adotamos a mesma metodologia do Banco Mundial; apenas tomamos emprestado o corte de um dlar por dia para definir a linha de pobreza nas reas rurais do Nordeste, a regio mais pobre do pas. Mas para definir a linha4. Dentre as pesquisas diretas consagradas mais recentes, podem-se citar os dados de monteiro (1995 e 1997), que medem a proporo de crianas desnutridas e a proporo de adultos com baixa reserva energtica. 5. PelIano, 1993; HoFFmann, 1995 e 2001; BanCo munDIal, 2000; roCHa, 1996, 1997, 2000a e 2000b; CePal, 1989; FerreIra, lanJouW e nrI, 2000; CamarGo e FerreIra, 2001; rIaS, 1999a e 1999b; GarCIa, 2001. Ver, a respeito, taKaGI, GraZIano Da SIlVa e Del GroSSI, 2001. 6. Ver Mapa do fim da fome. Disponvel em: . acesso em: 4 out. 2010. 7. taKaGI, GraZIano Da SIlVa e Del GroSSI, 2001; e Del GroSSI, GraZIano Da SIlVa e taKaGI, 2001 (download pela pgina ).

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de pobreza no adotamos a fictcia moeda do dlar PPP (paridade do poder de compra) do Banco Mundial e sim a mdia do dlar comercial em setembro da data de referncia da Pnad de 1999. Vale ressaltar que a PPP um indicador de equivalncia terico feito para comparar o PIB dos diversos pases e no para fazer comparaes internacionais de pobreza8. Na verdade, os pesquisadores envolvidos no Projeto Fome Zero buscaram uma metodologia que permitisse corrigir as duas principais limitaes apontadas pelo prprio Banco Mundial. A primeira refere-se ao fato de que uma s linha de pobreza no considera diferenas regionais de custo de vida entre reas urbanas e rurais e entre regies de um mesmo pas. A segunda a no considerao de consumo de bens produzidos pela prpria famlia, como a produo para autoconsumo. Estas duas correes foram feitas no Projeto Fome Zero, utilizando-se dados da PPV (Pesquisa sobre Padres de Vida) e da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios), ambas do IBGE. Um terceiro aperfeioamento metodolgico dos nmeros do Projeto Fome Zero diz respeito ao desconto do item de maior peso no oramento familiar, que o pagamento de aluguel ou de prestao da casa prpria, evitando as distores de considerar que toda a renda da famlia estaria disponvel para compra de bens de consumo. Esta correo particularmente importante tendo em vista que os gastos com aluguel e prestao da casa prpria so proporcionalmente maiores nas reas metropolitanas que nas pequenas e mdias cidades e nas reas rurais. Com todas essas correes chegamos a um nmero surpreendente: a linha de pobreza mdia ponderada para o Brasil (R$ 68,48 por pessoa) indica a existncia de 44 milhes de pessoas que tinham uma renda disponvel mdia de R$ 38,34 por pessoa ou 9,3 milhes de famlias (que possuem uma mdia de 4,7 pessoas) com renda familiar de R$ 181,10, ou seja, as famlias que tinham uma renda disponvel prxima ao valor do salrio mnimo em setembro de 1999, data de referncia da Pnad, foram consideradas pobres. No temos dvidas de dizer que as pessoas dessas famlias no tm uma renda suficiente para garantir a sua segurana alimentar!8. a prpria nota tcnica do Banco mundial (World Development Indicators, 2000, p. 65) ressalta que PPP rates were designed not for making international poverty comparisons but for comparing aggregates from national accounts. as a result there is no certainty that an international poverty line measures the same degree of need or deprivation across countries (BanCo munDIal, 2000).

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oS cuStoS do proJetoOutra crtica levantada foi que o projeto no informava claramente as fontes de seus recursos. Associada a esta, inflacionou-se o projeto, que foi apontado como tendo um custo total de R$ 70 bilhes (6% do PIB), o que levaria o Brasil falncia em 15 dias, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, de 21 out. 2001. O equvoco desse nmero evidente: os crticos do Fome Zero somaram todos os valores que seriam despendidos ao longo de vrios anos no combate fome como se fossem todos gastos de uma s vez, alm de superestimarem os nmeros. Nossas estimativas mostram que somente o programa dos cupons de alimentao custaria cerca de R$ 20 bilhes se atendesse todo o estoque atual de 9,3 milhes de famlias muito pobres em um s ano cerca de 44 milhes de pessoas. Como a proposta implantar o programa em quatro anos, o custo mdio anual seria da ordem de R$ 11 bilhes, se considerarmos uma reduo concomitante nos nveis de pobreza de 50% em um perodo de dez anos. Alm disso, no procedem as estimativas dos supostos efeitos devastadores do aumento do salrio mnimo para US$ 100, nem da ampliao da cobertura para a Previdncia Social, fazendo valer, tambm para as famlias no agrcolas, os benefcios para pessoas em regime de economia familiar hoje vigentes na Previdncia Rural. Nossos clculos, com base nos microdados da Pnad 1999, indicaram a existncia de um estoque de 2,9 milhes de pessoas com idade para aposentadoria (mulheres acima de 60 anos e homens acima de 65 anos) que no recebem nenhum benefcio de rgos pblicos. Mesmo se todo esse estoque fosse contemplado no primeiro ano (que no o que o projeto prope), o seu custo de incorporao seria de R$ 6,8 bilhes. Isso representa, aproximadamente, apenas 0,7% do PIB ou 3,3% do total de recursos arrecadados em 2000, pertencentes seguridade social. A partir da incorporao desse estoque, o saldo do fluxo anual (pessoas que se aposentam menos as que perdem o benefcio por morte) no seria muito superior ao acrscimo que j temos hoje. Com relao crtica de que a correo do salrio mnimo para 100 dlares quebraria as contas do pas, temos a registrar que essa correo j foi feita em 1995, vigorando at janeiro de 1999.

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Foi ela que melhorou sensivelmente os indicadores de pobreza na era do real, apresentados como fruto da estabilizao monetria, mas que na realidade tem tudo a ver com os ganhos do salrio mnimo. Aqui tambm as contas apresentadas no referido artigo dO Estado de S. Paulo esto exageradas, pois os benefcios de prestao continuada que esto baseados no salrio mnimo no alcanam todos os 20 milhes de pessoas hoje na seguridade social, mas sim 13 milhes de pessoas. Assim, o impacto do aumento do salrio mnimo para cem dlares em 16 milhes de pessoas (13 milhes atuais mais o ingresso de 3 milhes do setor informal proposto no Fome Zero) seria de R$ 11 bilhes se fossem todos atendidos em um ano s. Estes nmeros esto bem distantes dos R$ 70 bilhes ou 6% do PIB referidos no artigo de capa dO Estado, o que, supunha-se, quebraria o pas em 15 dias9. Mas o ponto fundamental de discordncia que no se podem considerar s as despesas do Projeto Fome Zero sem considerar seus benefcios, ou seja, os efeitos positivos que o combate fome e misria traria ao pas. Por exemplo, o alvio no oramento da sade ou, ainda, os benefcios da expanso da rea cultivada com alimentos na gerao de empregos e na arrecadao de impostos. Nossas simulaes mostram, por exemplo, que o programa dos cupons de alimentos poderia gerar uma contrapartida de cerca de R$ 2,5 bilhes por ano na arrecadao de impostos adicionais (ICMS e PIS/Cofins) se incorporssemos ao consumo essas 44 milhes de pessoas pobres existentes no pas10. Se considerarmos uma ingesto adicional mdia de 50% das calorias e protenas em funo da distribuio dos cupons s famlias pobres, a produo atual de arroz e feijo teria que aumentar em mais de 30%. Isto significaria expandir a rea cultivada em quase 3 milhes de hectares, gerando mais de 350 mil postos de trabalho na agricultura familiar e aumentando o valor atual da produo agrcola em cerca de R$ 5 bilhes, que mais ou menos a metade do custo anual dos cupons previstos no Projeto Fome Zero. Tudo isso foi esquecido pelos crticos que contabilizam apenas os9. Vale mencionar que, do total de recursos arrecadados pertencentes seguridade social (cerca de r$ 200 bilhes em 2000), 20% so desvinculados e desviados para fins de estabilidade fiscal. 10. este clculo foi efetuado tendo como base a carga tributria sobre a cesta bsica estimada de, em mdia, 14,1% nas regies metropolitanas do pas, de acordo com os dados da PoF (Pesquisa de oramentos Familiares) de 1996. essa carga tributria est subestimada, pois leva em considerao apenas os produtos da cesta bsica, que tm, em alguns estados, uma alquota mais baixa de impostos, sendo as regies metropolitanas, tambm, aquelas que adotam mais benefcios fiscais. Ver maGalHaeS, 2001.

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custos do Fome Zero e que ainda no entenderam que combater a fome e a misria tambm uma forma de investimento. Mas vamos supor por hiptese que nenhum desses mecanismos de expanso da demanda propostos no Projeto Fome Zero funcionasse, ou seja, que no houvesse nenhum feedback em termos de crescimento, nem de queda da pobreza. De onde seriam tirados os recursos para implantar os programas propostos? Dizemos claramente no Projeto Fome Zero que possvel remanejar parte dos R$ 45 bilhes hoje disponveis no oramento para os gastos sociais (exceto previdncia), o que d mais de mil reais por ano para cada um dos pobres que contabilizamos. E citamos um exemplo concreto: o Fundo de Combate Pobreza, estimado em cerca de R$ 4 bilhes disponveis anuais. Pois bem, foi divulgado pelo prprio Estado, em 16 de outubro de 2001, que um tero dos R$ 3,1 bilhes previstos este ano para o Fundo de Combate e Erradicao da Pobreza sero destinados pelo governo federal para reforar o ajuste fiscal. Alm disso, segundo dados divulgados recentemente pela Unafisco, o Brasil perde cerca de R$ 4 bilhes ao ano com diversas isenes tributrias, por exemplo, a empresas bancrias e indstrias como bebidas e cigarros. Isso demonstra que a disponibilidade de recursos para combater a fome e a misria antes de tudo uma questo de prioridade poltica. essa mesma prioridade que esperamos ter por meio de um compromisso dos governadores em redirecionar para o combate fome parte dos recursos obtidos com os impostos indiretos incidentes sobre os produtos da cesta bsica. Nossas estimativas mostram que esses impostos representam hoje R$ 9,7 bilhes por ano, ou 0,8% do PIB. Do ponto de vista dos estados, essas receitas variam algo entre 0,8% (So Paulo) e 3,1% (Cear) do total da arrecadao. O Projeto Fome Zero prope que os governadores retornem parte desses recursos para a populao mais pobre. Na verdade, os crticos s se preocupam em perguntar qual o custo do Projeto Fome Zero e qual a fonte dos recursos; mas a pergunta deveria ser outra: quanto custa no combater a fome? A falta de polticas de gerao de emprego, sade e educao tm um custo elevado para o pas que v crescer a violncia. Tem tambm o custo da falta de consumo e da produo de bens, custo para o empregador e diversas outras. Por isso, combater a fome no deve ser considerado apenas um custo, mas tambm um investimento no Brasil.

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cuponS de AlimentoS e rendA mnimAEsse outro falso debate. Os cupons de alimentos propemse a substituir o mecanismo tradicional de combate fome, que a distribuio de cestas bsicas. falsa a dicotomia: ou renda mnima ou cupons. Considera-se apenas que a transferncia de renda isolada no basta para acabar com a fome, dada a magnitude que j assumiu o problema no Brasil. Alm disso, programas como renda mnima visam a atender famlias com renda muito baixa, que no tm recursos para satisfazer suas necessidades bsicas, que vo alm da alimentao. Por isso apresenta-se um leque de propostas que engloba polticas visando desde melhorar a distribuio da renda at aumentar a oferta e baratear o custo da alimentao. Vale a pena insistir nesse ponto: o cupom um programa complementar, como ocorre em todos os pases em que foi implantado, uma vez que se baseia na ideia de subsidiar a renda das famlias mais pobres at um valor que assegure uma alimentao adequada a essas pessoas. Considera-se que suas vantagens so: a) maior gasto em alimentos pelas famlias em relao a programas de fornecimento de renda em dinheiro; b) o seu carter contracclico e no inflacionrio, pois liga o aumento de consumo de alimentos com a produo; c) permite recuperar as polticas de compra institucional por parte das prefeituras; d) o seu carter complementar, permitindo ser temporrio e associado a outros programas, como o bolsa escola, o bolsa alimentao, o seguro-desemprego, a previdncia, os programas de formao profissional, a preveno sade e desnutrio, entre outros. Todos esses pontos apontam para o fato de que o debate e a mobilizao levantados com a elaborao do Projeto Fome Zero devem ser permanentes e amplos, como tem sido feito at o momento. Sua implantao no s vivel, como necessria e urgente no pas.

reFernciASRIAS, A. R. Estimativas de indigncia