FOME DA VIDA · aconchego da minha oasa, tinha lá uns chinelos de aga salho e uma pasta...

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FOME DA NOVELA de MANDO MARTINS Tive a desgraça de nascer muQher independente numa épcca em que .passam vidas inteiras de mulheres a dançar nos bailes abraçadas aos ra- pazes e e m casa a fazer ren- das detrás dos janelas. Por sobre isto, Dive a des- graça de nascer no seio duma faaniUia feliz e aconchegada. Por esta razão, quando saí da paz satènfeiíba da casa de meus pais para o escritório do se- nhor Morais—o de bigode branco e botas de biqueiras In- chadas, à policia, sócro da fir- ma Morais e Companhia— tudo foram cantrairiedades, estrainihezals, pequeninas des- graças inúmeras que molha- vam die lágrimas os meus de- sesperos. Meses passadios, o escritório dos senhcras Memalis e Compa- nhia era o prolongamento do aconchego da minha oasa, tinha lá uns chinelos de aga- salho e u m a pasta dentífrica. Um dia descobri que tinha dezdito alr.os e u m oonpo bem talhado, quie meu pali era ve- lho, o escritório e o dono con- fortáveis, mie a minha vida era demasiadamente cómoda para poder ser feliz. Apareceu então, vindo da Alemanha, o Antóndo Gaspar, filho do senhor Morais: uim rapaz viajado, lciro, bem fa- lante, que sabia gastar o di- nheiro do pai. Apanhou-me nessa época de criise em que eu ia ensaiar o salto para uma vida dúversa, lar.çar-me no turbilhão de sensações deli- rantemente imaginadas, e ati- rei-me ao Antór.èo Gaspar c:mo os garotos quis se pren- dem à cauda do comboio para uim país estranho e desejado, sem pagar bilhete. Meses depois conheci que era estúpido e banal como a maioria do rebanho d a s h o - mens, mas foi êle a porta por onde entrei para a vMla: por- que eu nasci com dezoito anos feitos. Foi ainda, à custa dele. me- to dizendo, à custa do pai dele, que entrei' para o teatro. Nunca gostei de teatro, nun- ca julguei que viesse a apre- ciar tam fútil maneira de en- treter a vida. Foi nuima noite de domin- go: no palco havia uma casa com heras, um comboio imó- vel ao Icnge e u m a actriz, que afinal nem ora tam bonita :omo eu, a berrar desalmada- mente pelo namorado. No In- tervalo atiraram-lhe muitas palmas, ela dei-ceu do palco e veio dar um beijo na calva dum velho, ao meu lado. O v e - lho derreteu-se de gozo; a m u - lher do velho chamou-lhe des- carada, atrevida, limpando a mancha vermelha de báton cem um lenço de seda e c u s - po. Encantou-me a liberdade da- quela rapariga alegre que po- dia beijar um homem diante de tanta gente. Acaso havia ali outra mulher com direito de o fazer? Claro q u e n ã o . niem mesmo a sua esposa. Que b o m n ã o e r a ! Ter assim uma vida livre, aplaudida, es- crita nos jornais, e sobretudo poder beijar um homem que nunca se viu. em público, sem ser chamado à policia. Fui actriz, uma actriz me- díocre. Como não tenho feitio para viver dependente de ninguém, e multo menos de homEms— qiu'e e l e s j u l g a m ,que tèm sobre mós mate direitos que sobre quaisquer outros animais—de- pois de me encher de- amor, depois de bebedeiras seniti- mentate a rimar dedicações etarnas, depois das semanas intimas convividas em ternu- ras carinhosas e passeios de contentamentos unidos numa ou noutra aldeia branca e pe- quena com ramadas ao sair da ^citação e pensões aimávete * pitorescas, depois de saitàsfa- zeT o m e u instinto amoroso, fiz-me uma miuMier que se governa, independente, que tanõe a sua afirmação social. Fiz-me chefe duma troupe. Fomos representar pela pro- víncia. A peça intitulava-re «Flor Abandonada > — a costumada vaoíação tola da mulher que teve /um filho e é deixada pelo homem que a deshonrou. Eu tinha quj chorar em cena durante uns bens vinte minutes seguidos. A minha interpretação era Cria, desin- terespada. Ser artista era para mrtn uma profissão teomo qual- ouer outra, com a obrigação órfica de reter o público lòr- pa. a olhar cara nós durante umas horas. De resto, chorava ermo uma dactilógrafa es- creve à máquina, fria. pro- ^"••'irinnilmente. Nem comore- findia aue pude? 1 * ser doutra maneira. Uma noite sal do teatro a pé, para casa. A u m canto num largo brincava um homem gordo, alto, vermelho da cara, com uma rapariguita esquelé- t'ca e miúda, que lhe girava em volta corutentísima, cheia de riso. de meiguices, de fra- ses de ternura amiga, de pe- queninas carícias infantis. De- viam ser antigos e bons na- morados. O homem vermelho da cara. quando farto de to- das aquelas solicitudes cari- nhosas disse—basta!, c o m a r aborrecido aprwolmau-fe mais da rapariga, apalpou-lhe os braços magros, deu-lhe uma pancada no hombro como se faz aos cavalos nas feiras e pronunciou uma frase dúbia de negociante. Virou-lhe as costas, batendo uma gargalhada dura seguida do martelar das botas nas pe- dras nocturnas. A rapariguita ficou imóvel a olhá -lo como se a tivessem pregado ao chão. Passado multo temipo, aiTancou os pés vagarosamtnte e foi sentar-se- ã porta velha duma parede próxima. Um candeeiro agres- sivo babava-a duma luz ama- refia idiota. Desaitou a chorar. Sentei-me junto dela. Os soluços que lhe levantavam o peito magro faziam ouvir o respirar fundo dos puCimões: tinha a Impressão de que aqueles soluços saiam d o m e u corpo, e qiue uma angústia enorme me abalava. Queria dlzer-Uie alguma coisa, con- íolá-la. dar-lhe uma esmola; mas s ó m e ocorriam palavras banais, vaidosamente, cnía- tuadauiemte estúpidas. E fugi. O meu papei na «Flor Aban- donada» constava dum trecho aeslm. Mas que diferença en- tre o m e u de-empenho e o daquela rapariga magra! ela me fez compreender a dis- tância que vai da Vida. apa- rente à vida sentida, da su- perfície d"as expressões à pro- fundidade rica. ansiosa, fer- vente, vibrante, do lodo da vi- da do homem, onde têm raízes as raivas sanguinolentas, as riinftbdades abãVcadoras e cal- mas, os desesperos doidos, Im- ncJtenites como mã^ts paralí- fiicas a desejarem uma gar- ganta para o estrangulamen- to. A sua sincera alegria for- çada, a sua fabricada sinceri-> dade davam-me a medida da dór que as produzia. Foi a primeira vez que senti sofrer um semelhante: aquele contentamento expansivo, tempestuoso, que de repente caiu numa tristeza morta, cenfrangeu-me a alma. Abalou-me a simplicidade brutal da vida: que uma min- to se compra, fácil, rapida- mente, como um quilo de arroz na mercearia. Comecei a sofrer com Inten- sidade e propósito. Gozei pelo sofrimento: que hoje para sorver a vida toda, vivê-la até ao fundo, é preciso sofrer mul- to. A dôr é o maior gozo de viver, um delicioso excitante do prazer aumentado. Sofrer uma dôr enorme para saborear merdo a mordo o prazer sem íim que vem depois, e n ã o cabe no corpo: é preciso para a vida. Tempo virá, e m q u e n a vida o prazeT dará gozo e feli- cidade. Procurei a rapariguita es- quelética, cuja teatral alegria me fez sofrer e m e revelou a Potência comovedora d u m e s - tado de alma bem definido nas atitudes. Trabalhamos as duas. Fo- mos duas artistas geniais. A vida que fabricávamos para o palco era por vezes mais in- tensa do que a realidade em que estávamos metidas. Depois de certas interpretações fazia esforços pesados para me ada- ptar aos meus hábitos, para representar a existência a que cs outros chamavam real. Se interpretava a Nora de Ibreu, ddas e dias a reguir agia eu pela psicologia daquela .personagem e pensava pelo sen cérebro. Apertadas numa amizade irmã e compreensiva, bebemos do mesmo copo o vipbo forte da glória, deliramos juntas, pelos pafeos de todo o mun- do, bebedeiras de génio. Na amizade sólida, sem- pre um a dominar, e o outro a adaptar-se, a ser trabalhado pela individualidade do domi- nador. Entre m i m e a minha ami- ga, nada nos separava, e r a e u que comandava sem dar or- dens, a sua maneira de ser; a VIDA sua psicologia desenhara-se .inconscientemente a tal pon- to pela manha, que cumpria os meus desejos sem lhos dizer nas palavras. •Revoltada com o sincero servilismo da amizade, pro- pus-Khe que nos separássemos. Choramos. Tinha que ser. Eu resolvera-o. Deixei também o teatro. Que malte podia eu fazer? Ne- nhuma artista de ,todos os tempos do mundo alcançara a minha raiva genial, o arrebato doido das minhas criações. Começava a repetir o m e u s u - blime, j á n ã o podia excedê-lo. Aquela qualidade de vida a tinha sorvido a t é a o fundo. •Repetir sensações é a cobar- dia dos ociosos e dos impoten- tes para criar. Saborear sem- pre os mesmos prazeres faz perder a intensidade do prazer primeiro e estraga o paladar. De mais o teatro estava a deteriorar toda a minha ma- neira de ser. Nos clubes, em casa, representava inconscien- temente para m i m e para os outros. O m e u primeiro Ímpe- to de ser sincera com alguém estacava ao surgir-me a ideia —e se eu mentisse? E mentia teatralmente, e r a - m e um enorme prazer quando alguém me contrariava falando ver- dade e, por fim, se convencia dos meus dizeres perante a compostura recta fios meus gestos. Sobrepor a mentira à irealildadie fabricada, à reali- dade sensível e concreta, es- carnecer da natureza steutía e da sinceridade dolorosa dos outros, tornou-se-me um pas- satempo. E o pior é que representava para m i m . n a s minhas acções e atitudes mais humanas, exa- minava-me constante, miuda- mente, reprimia os meus ges- tos mais espontâneos, outras vezes lançava gestos e frases propositadas para observar o efeito que deixavam e m m i m e nos outros. A cada passo me surpreen- dia a fazer teatro na minha vida mais íntima e a mane- jar, a fazer dos meus amigos actores para apreciar como espectadora toda aquela peça. Sofria com teso um prazer doloroso, prinoipatonente quando os outros sofriam e choravam sinceramente, mexi- dos pelo meu capricho. Depois chamava-me hipócrita, má— e recomeçava: para ser hipó- crita devia aparentar... e se- guia. Quási endoideci, perdida por completo a espontaneidade natural e efusiva que faz sal- tar a alegria e a tristeza ime- diatas, virgens da personali- dade humana. Hoje, preguntQ-me onde co- meça o teatro e onde acaba a vida sincera. Farta de agitações, de sen- sações inquietas e potentes, embarquei para a índia. Compus poesias líricas no estilo de Tagore e casei com um príncipe Indiano déspota e bruto. Amei o amor de ser domi- nada por um homem de qua- renta anos, selvagem e áspero como o seu idioma estranho. Amei o amor bizarro num pais exótico e quente, onde o amor é u m a sensualidade se- guida debaixo d u m s o l e m bra- sa, diante de paisagens sere- nas, à tarde, com céus dese- nhados de palmeiras elegan- tes e u m rio ocioso a lamber ipernas de salgueiros, duma largura de água aberta des- caradamente como uma barri- ga. Saboreei a volúpia dos es- cravos sob o chicote, q u e m e abriu vergões de sangue no corpo, do meu senhor déspota e bárbaro. Os nervos cansaram-se da- quela Inactividade, do descan- ço parado como num poço, dos meus dias vagarosos. Depois de correr todo o Oriente e deixar um amor em cada pais novo, um desespero em cada um desses orientais, ardentes e caprichosos que me beijavam os pés com vo- lúpia, fui para Paris. Ai en- contrei de toda a minha vida -^o primeiro HOMEM. Fomos amigos como dote cais. Trabalhávamos juntos noites inteiras. Dele posso dizer: n ã o e r a como nenhum dos que até al havia encon- trado: era outro. Tinha um crâneo forte como os pulsos ginastas. Raciocina- va dura e facilmente como uma fonte a correr água. No amor mais carnal éra- mos simplesmente dote bons camaradas. Choquei c o m ê l e n a vida por acaso—mas foi o meu primei- To Hncontro Humano. Como estava longe de compreender a aproximação próxima, o contacto intimo, profundo, hu- mano, que gera o entendimen- to de d-ols semelhantes! Quando um homem e u m a mulher se encontram desta maneira. intimamente, Irmã- mente, sem qualquer contacto carnal que os junte, podem produzir coisas admiráveis, revolver o mundo inteiro, in- ventar uma vida nova. como dois homens machos que cons- truíssem—oh fantasia! — u m filho do seu esforço incarnai. Eu andava alegre como uma gargalhada saudável. Depois acabou. Estava a e n - fraquecer a tensão do nosso entendimento e perdíamos tempo de trabalho. Separámo- nos. Depois disto, cai num esta- do imbecil: escrevi livros, (que hoje são estudados nas histó- rias da literatura por profes- sores de lunetas), sobre o nosso Encontro. Ressaboreei. revivi as nossas relações des- de o começo, lembrando os pormenores u m a u m . Também Isso j á l á vai—não gosto de ler livros n e m dte v e r teatro. aprecio a vida na- tural, espontânea, que sai dentro de nós como uma fol- gada de sangue bom. Na procura inquieta, cons- tante, do fim da Vida, s ó l h e encontro este—VIVER. Mas isto é a vida fechada a dar a volta a si própria. O F i m d a Nassa Vida deve ser tornar melhor a nossa e a vida dos aue vierem. tanto a fazer! A vida pode aflaTgar-se ainda tonto em extensão e profun- didade! Deus? Os que vierem tmmito depois de nós talvez ftenhaim razão e tempo para pensar nisso. O médico aconselha-me que vá descansar para o campo. Para quê? faço hoje 40 anos e não estou cansada de viver. Chamo-me Maria Laura; mas isto n ã o tem importância. BIOGRAFIA por António Gameiro Cada novo dia que seja o meu primeiro dia. Que nada se afigure estranho e tudo inteiramente novo se alargue e recorte em outra claridade. Os meus olhos serão mais claros e luminosos e tudo em mim guardará uma virtualidade mais profunda. O delíquo do instante despedindo-se a feliz pei turbação da chegada próxima a doce inquietude para além das formas e dos seios vigorosos e descobertos a simplicidade duma biografia sem detalhes. De tudo que foi e porque ou para que a vida me jogou, de tudo me alongo, em cada instante, sem lágrimas nem uma saudade nem um adeus. Caminho. Caminho para reflorir-me em mim mesmo na florescência túmida e suavíssima de cada novo dia, mais forte mais generoso mais verdadeiro, ' acarinhando todos os sonhos de braços bem abertos para cada novo dia. E mais decidido mais confiante mais e mais humano para que tudo em mim guarde a virtualidade mais profunda e cada novo dia seja o meu primeiro dia. (De <íA Minha Condição de Escravo», inédito.)

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F O M E D A NOVELA de MANDO MARTINS

T i v e a d e s g r a ç a d e n a s c e r muQher i n d e p e n d e n t e n u m a é p c c a e m q u e .passam v i d a s i n t e i r a s de m u l h e r e s a d a n ç a r n o s b a i l e s a b r a ç a d a s a o s r a ­pazes e e m c a s a a f a z e r r e n ­d a s d e t r á s d o s j a n e l a s .

P o r s o b r e i s t o , Dive a d e s ­g r a ç a d e n a s c e r n o s e i o d u m a faaniUia fe l iz e a c o n c h e g a d a . P o r e s t a r a z ã o , q u a n d o s a í da p a z satènfeiíba d a c a s a d e m e u s p a i s p a r a o e s c r i t ó r i o d o s e ­n h o r M o r a i s — o d e b igode b r a n c o e b o t a s de b i q u e i r a s I n ­c h a d a s , à p o l i c i a , sóc ro d a f i r ­m a M o r a i s e C o m p a n h i a — t u d o f o r a m c a n t r a i r i e d a d e s , estrainihezals, p e q u e n i n a s d e s ­g r a ç a s i n ú m e r a s q u e m o l h a ­v a m die l á g r i m a s o s m e u s d e ­s e s p e r o s .

M e s e s passadios , o e s c r i t ó r i o d o s s e n h c r a s Memalis e C o m p a ­n h i a e r a o p r o l o n g a m e n t o d o a c o n c h e g o d a m i n h a o a s a , t i n h a l á u n s c h i n e l o s de a g a ­s a l h o e u m a p a s t a d e n t í f r i c a .

U m d ia d e s c o b r i que t i n h a d e z d i t o alr.os e u m oonpo b e m t a l h a d o , quie m e u pali e r a ve­l h o , o e s c r i t ó r i o e o d o n o c o n ­f o r t á v e i s , m i e a m i n h a v ida e r a d e m a s i a d a m e n t e c ó m o d a p a r a p o d e r s e r fel iz .

A p a r e c e u e n t ã o , v i n d o d a A l e m a n h a , o Antóndo G a s p a r , f i l h o do s e n h o r M o r a i s : uim r a p a z v i a j a d o , l c i r o , b e m f a ­l a n t e , q u e s a b i a g a s t a r o d i ­n h e i r o do pa i . A p a n h o u - m e n e s s a é p o c a d e criise e m q u e e u i a e n s a i a r o s a l t o p a r a u m a v i d a dúversa, l a r . ç a r - m e n o t u r b i l h ã o de s e n s a ç õ e s d e l i ­r a n t e m e n t e i m a g i n a d a s , e a t i ­r e i - m e a o Antór .èo G a s p a r c : m o o s g a r o t o s quis se p r e n ­d e m à c a u d a do c o m b o i o p a r a uim pa í s e s t r a n h o e d e s e j a d o , s e m p a g a r b i l h e t e .

M e s e s d e p o i s c o n h e c i q u e e r a e s t ú p i d o e b a n a l c o m o a m a i o r i a do r e b a n h o d a s h o ­m e n s , m a s f o i ê le a p o r t a p o r o n d e e n t r e i p a r a a vMla: p o r ­q u e eu n a s c i c o m d e z o i t o a n o s f e i t o s .

F o i a inda , à c u s t a de le . m e ­to d i zendo , à c u s t a do p a i d e l e , q u e en t r e i ' p a r a o t e a t r o .

N u n c a g o s t e i d e t e a t r o , n u n ­c a j u l g u e i q u e v i e s s e a a p r e ­c i a r t a m fú t i l m a n e i r a de e n ­t r e t e r a v i d a .

F o i nuima n o i t e de d o m i n ­g o : n o p a l c o h a v i a u m a c a s a c o m h e r a s , u m c o m b o i o i m ó ­vel a o I c n g e e u m a a c t r i z , q u e a f i n a l n e m o r a t a m b o n i t a : o m o eu , a b e r r a r d e s a l m a d a ­m e n t e p e l o n a m o r a d o . No I n ­t e r v a l o a t i r a r a m - l h e m u i t a s

p a l m a s , e l a dei-ceu do p a l c o e v e i o d a r u m b e i j o n a c a l v a d u m v e l h o , a o m e u l a d o . O v e ­l h o d e r r e t e u - s e de gozo ; a m u ­l h e r d o v e l h o c h a m o u - l h e d e s ­c a r a d a , a t r e v i d a , l i m p a n d o a m a n c h a v e r m e l h a d e b á t o n c e m u m l e n ç o de s e d a e c u s -po .

E n c a n t o u - m e a l i b e r d a d e d a ­q u e l a r a p a r i g a a l e g r e que p o ­dia b e i j a r u m h o m e m d i a n t e d e t a n t a g e n t e . A c a s o h a v i a a l i o u t r a m u l h e r c o m d i r e i t o d e o f a z e r ? C l a r o q u e n ã o . niem m e s m o a s u a e s p o s a .

Q u e b o m n ã o e r a ! T e r a s s i m u m a v ida l i v r e , a p l a u d i d a , e s ­c r i t a n o s j o r n a i s , e s o b r e t u d o p o d e r b e i j a r u m h o m e m q u e n u n c a s e v iu . e m p ú b l i c o , s e m s e r c h a m a d o à po l i c i a .

F u i a c t r i z , u m a a c t r i z m e ­d í o c r e .

C o m o n ã o t e n h o f e i t i o p a r a v i v e r d e p e n d e n t e de n i n g u é m , e m u l t o m e n o s d e homEms— qiu'e e l e s j u l g a m ,que t è m s o b r e mós m a t e d i r e i t o s q u e s o b r e q u a i s q u e r o u t r o s a n i m a i s — d e ­p o i s de m e e n c h e r de- a m o r , d e p o i s de b e b e d e i r a s senit i -m e n t a t e a r i m a r d e d i c a ç õ e s e t a r n a s , d e p o i s d a s s e m a n a s i n t i m a s c o n v i v i d a s e m t e r n u ­r a s c a r i n h o s a s e p a s s e i o s de c o n t e n t a m e n t o s u n i d o s n u m a ou n o u t r a a l d e i a b r a n c a e p e ­q u e n a c o m r a m a d a s a o s a i r da ^c i tação e p e n s õ e s aimávete * p i t o r e s c a s , d e p o i s de saitàsfa-zeT o m e u i n s t i n t o a m o r o s o , f i z - m e u m a miuMier q u e s e g o v e r n a , i n d e p e n d e n t e , que tanõe a s u a a f i r m a ç ã o s o c i a l .

F i z - m e c h e f e d u m a t r o u p e . F o m o s r e p r e s e n t a r p e l a p r o ­v í n c i a .

A p e ç a i n t i t u l a v a - r e « F l o r A b a n d o n a d a > — a c o s t u m a d a v a o í a ç ã o t o l a d a m u l h e r q u e t e v e /um f i l h o e é d e i x a d a pe lo h o m e m q u e a d e s h o n r o u .

E u t i n h a q u j c h o r a r e m c e n a d u r a n t e uns b e n s v i n t e m i n u t e s segu idos . A m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o e r a Cria, d e s i n -t e r e s p a d a . S e r a r t i s t a e r a p a r a m r t n u m a p r o f i s s ã o teomo q u a l -

o u e r o u t r a , c o m a o b r i g a ç ã o ór f ica d e r e t e r o p ú b l i c o l ò r -p a . a o l h a r c a r a n ó s d u r a n t e u m a s h o r a s . D e re s to , c h o r a v a e r m o u m a d a c t i l ó g r a f a e s ­c r e v e à m á q u i n a , f r i a . p r o -^"••'irinnilmente. N e m c o m o r e -findia a u e p u d e ? 1 * s e r d o u t r a m a n e i r a .

U m a n o i t e s a l do t e a t r o a pé ,

p a r a c a s a . A u m c a n t o n u m l a r g o b r i n c a v a u m h o m e m g o r d o , a l t o , v e r m e l h o da c a r a , c o m u m a r a p a r i g u i t a e s q u e l é -t ' c a e m i ú d a , que l h e g i r a v a e m v o l t a co ru ten t í s ima , c h e i a d e r i so . de m e i g u i c e s , de f r a ­s e s d e t e r n u r a a m i g a , de p e ­q u e n i n a s c a r í c i a s i n f a n t i s . D e ­v i a m s e r a n t i g o s e b o n s n a ­m o r a d o s . O homem v e r m e l h o da c a r a . q u a n d o f a r t o d e t o ­d a s a q u e l a s s o l i c i t u d e s c a r i ­n h o s a s d i s s e — b a s t a ! , c o m a r a b o r r e c i d o a p r w o l m a u - f e m a i s d a r a p a r i g a , a p a l p o u - l h e os b r a ç o s m a g r o s , d e u - l h e u m a p a n c a d a n o h o m b r o c o m o se f az a o s c a v a l o s n a s f e i r a s e p r o n u n c i o u u m a f r a s e d ú b i a d e n e g o c i a n t e .

V i r o u - l h e a s c o s t a s , b a t e n d o

u m a g a r g a l h a d a d u r a s e g u i d a

do m a r t e l a r d a s b o t a s n a s p e ­

d r a s n o c t u r n a s .

A r a p a r i g u i t a f i c o u imóve l a o lhá - lo c o m o s e a t i v e s s e m p r e g a d o a o c h ã o . P a s s a d o m u l t o temipo, aiTancou o s pés v a g a r o s a m t n t e e foi s e n t a r - s e -ã p o r t a v e l h a d u m a p a r e d e p r ó x i m a . U m c a n d e e i r o a g r e s ­s i v o b a b a v a - a d u m a luz a m a -refia i d i o t a .

Desa i tou a c h o r a r .

S e n t e i - m e j u n t o de l a . O s s o l u ç o s que l h e l e v a n t a v a m o pe i to m a g r o f a z i a m o u v i r o r e s p i r a r f u n d o d o s puCimões: t i n h a a I m p r e s s ã o d e q u e aque le s s o l u ç o s s a i a m d o m e u c o r p o , e qiue u m a a n g ú s t i a e n o r m e m e a b a l a v a . Q u e r i a d l z e r - U i e a l g u m a c o i s a , c o n -í o l á - l a . d a r - l h e u m a e s m o l a ; m a s s ó m e o c o r r i a m p a l a v r a s b a n a i s , v a i d o s a m e n t e , c n í a -t u a d a u i e m t e e s t ú p i d a s . E fugi .

O m e u p a p e i n a « F l o r A b a n ­d o n a d a » c o n s t a v a dum t r e c h o a e s l m . M a s q u e d i f e r e n ç a e n ­t r e o m e u d e - e m p e n h o e o d a q u e l a r a p a r i g a m a g r a ! S ó e l a m e fez c o m p r e e n d e r a d i s ­t â n c i a q u e vai d a Vida. a p a ­r e n t e à v ida s e n t i d a , d a s u ­p e r f í c i e d"as e x p r e s s õ e s à p r o ­f u n d i d a d e r i c a . a n s i o s a , f e r ­v e n t e , v i b r a n t e , d o l o d o da v i ­d a do h o m e m , o n d e t ê m raízes a s r a i v a s s a n g u i n o l e n t a s , a s riinftbdades a b ã V c a d o r a s e c a l ­m a s , os d e s e s p e r o s do idos , I m -ncJteni tes c o m o mã^ts p a r a l í -fiicas a d e s e j a r e m u m a g a r ­g a n t a p a r a o e s t r a n g u l a m e n ­t o .

A sua s i n c e r a a l e g r i a f o r ­ç a d a , a sua f a b r i c a d a sinceri->

d a d e d a v a m - m e a m e d i d a d a d ó r q u e a s p roduz ia .

F o i a p r i m e i r a vez q u e s e n t i s o f r e r u m s e m e l h a n t e : a q u e l e c o n t e n t a m e n t o e x p a n s i v o , t e m p e s t u o s o , q u e de r e p e n t e c a i u n u m a t r i s t e za m o r t a , c e n f r a n g e u - m e a a l m a .

A b a l o u - m e a s i m p l i c i d a d e b r u t a l d a v i d a : q u e u m a min­to se c o m p r a , fác i l , r a p i d a ­m e n t e , c o m o u m qu i lo d e a r r o z n a m e r c e a r i a .

C o m e c e i a s o f r e r c o m I n t e n ­s i d a d e e p r o p ó s i t o . G o z e i pe lo s o f r i m e n t o : q u e h o j e p a r a s o r v e r a v i d a toda , v i v ê - l a a t é a o fundo , é p r e c i s o s o f r e r m u l ­t o . A dôr é o m a i o r gozo d e viver, u m d e l i c i o s o e x c i t a n t e d o p r a z e r a u m e n t a d o . S o f r e r u m a d ô r e n o r m e p a r a s a b o r e a r m e r d o a m o r d o o p r a z e r s e m í i m q u e vem depois , e n ã o c a b e n o c o r p o : é p r e c i s o p a r a a v ida .

T e m p o v i rá , e m q u e n a v ida s ó o prazeT d a r á gozo e f e l i ­c i d a d e .

P r o c u r e i a r a p a r i g u i t a e s ­q u e l é t i c a , c u j a t e a t r a l a l e g r i a m e fez s o f r e r e m e r e v e l o u a P o t ê n c i a c o m o v e d o r a d u m e s ­t a d o d e a l m a b e m d e f i n i d o n a s a t i t u d e s .

T r a b a l h a m o s a s d u a s . F o ­m o s d u a s a r t i s t a s g e n i a i s . A v ida q u e f a b r i c á v a m o s p a r a o p a l c o e r a p o r vezes m a i s i n ­t e n s a do q u e a r e a l i d a d e e m que e s t á v a m o s m e t i d a s . D e p o i s de c e r t a s i n t e r p r e t a ç õ e s f a z i a e s f o r ç o s p e s a d o s p a r a m e a d a ­p t a r a o s m e u s h á b i t o s , p a r a r e p r e s e n t a r a e x i s t ê n c i a a q u e c s o u t r o s c h a m a v a m r e a l .

S e i n t e r p r e t a v a a N o r a d e I b r e u , ddas e d i a s a r e g u i r a g i a eu p e l a p s i c o l o g i a d a q u e l a . p e r s o n a g e m e p e n s a v a pe lo s e n c é r e b r o .

A p e r t a d a s n u m a a m i z a d e i r m ã e c o m p r e e n s i v a , b e b e m o s do m e s m o c o p o o v i p b o fo r t e d a g ló r i a , d e l i r a m o s j u n t a s , p e l o s pa feos de t o d o o m u n ­do, b e b e d e i r a s d e g é n i o .

N a a m i z a d e s ó l i d a , h á s e m ­pre u m a d o m i n a r , e o o u t r o a a d a p t a r - s e , a s e r t r a b a l h a d o

p e l a i n d i v i d u a l i d a d e do d o m i ­n a d o r .

E n t r e m i m e a m i n h a a m i ­ga , n a d a n o s s e p a r a v a , e r a e u q u e c o m a n d a v a s e m d a r o r ­d e n s , a s u a m a n e i r a d e s e r ; a

V I D A s u a p s i c o l o g i a d e s e n h a r a - s e . i n c o n s c i e n t e m e n t e a t a l p o n ­t o p e l a m a n h a , q u e c u m p r i a o s m e u s d e s e j o s s e m l h o s d i ze r n a s p a l a v r a s .

•Revo l t ada c o m o s i n c e r o s e r v i l i s m o d a a m i z a d e , p r o ­pus-Khe q u e n o s s e p a r á s s e m o s . C h o r a m o s . T i n h a q u e s e r . E u r e s o l v e r a - o .

D e i x e i t a m b é m o t e a t r o . Q u e malte p o d i a e u f a z e r ? N e ­n h u m a a r t i s t a d e ,todos o s t e m p o s d o m u n d o a l c a n ç a r a a m i n h a r a i v a g e n i a l , o a r r e b a t o d o i d o d a s m i n h a s c r i a ç õ e s . C o m e ç a v a a r e p e t i r o m e u s u ­b l i m e , j á n ã o pod ia e x c e d ê - l o .

A q u e l a q u a l i d a d e d e v ida j á a t i n h a s o r v i d o a t é a o f u n d o .

•Repe t i r s e n s a ç õ e s é a c o b a r ­d i a d o s o c i o s o s e d o s i m p o t e n ­tes p a r a c r i a r . S a b o r e a r s e m ­p r e o s m e s m o s p r a z e r e s faz p e r d e r a i n t e n s i d a d e d o p r a z e r p r i m e i r o e e s t r a g a o p a l a d a r .

D e m a i s o t e a t r o e s t a v a a d e t e r i o r a r t o d a a m i n h a m a ­n e i r a d e s e r . N o s c l u b e s , e m c a s a , r e p r e s e n t a v a i n c o n s c i e n ­temente p a r a m i m e p a r a o s o u t r o s . O m e u p r i m e i r o Í m p e ­t o d e s e r s i n c e r a c o m a l g u é m e s t a c a v a a o s u r g i r - m e a i d e i a — e s e e u m e n t i s s e ? E m e n t i a t e a t r a l m e n t e , e r a - m e u m e n o r m e p r a z e r q u a n d o a l g u é m m e c o n t r a r i a v a f a l a n d o v e r ­d a d e e, p o r f im , se c o n v e n c i a d o s m e u s d i ze re s p e r a n t e a c o m p o s t u r a r e c t a fios m e u s g e s t o s . S o b r e p o r a m e n t i r a à irealildadie f a b r i c a d a , à r e a l i ­d a d e s e n s í v e l e c o n c r e t a , e s ­c a r n e c e r da n a t u r e z a s teut ía e d a s i n c e r i d a d e do lo rosa d o s o u t r o s , t o r n o u - s e - m e u m p a s ­s a t e m p o .

E o pior é q u e r e p r e s e n t a v a p a r a m i m . n a s m i n h a s a c ç õ e s e a t i t u d e s m a i s h u m a n a s , e x a -m i n a v a - m e c o n s t a n t e , m i u d a ­m e n t e , r e p r i m i a o s m e u s g e s ­t o s m a i s e s p o n t â n e o s , o u t r a s v e z e s l a n ç a v a g e s t o s e f r a s e s p r o p o s i t a d a s p a r a o b s e r v a r o e f e i t o q u e d e i x a v a m e m m i m e n o s o u t r o s .

A c a d a p a s s o m e s u r p r e e n ­d i a a f a z e r t e a t r o n a m i n h a v i d a m a i s í n t i m a e a m a n e ­j a r , a f a z e r d o s m e u s a m i g o s a c t o r e s p a r a a p r e c i a r c o m o e s p e c t a d o r a t o d a a q u e l a p e ç a . S o f r i a c o m teso u m p r a z e r d o l o r o s o , p r i n o i p a t o n e n t e q u a n d o o s o u t r o s s o f r i a m e c h o r a v a m s i n c e r a m e n t e , m e x i ­d o s p e l o m e u c a p r i c h o . D e p o i s c h a m a v a - m e h i p ó c r i t a , m á — e r e c o m e ç a v a : p a r a s e r h i p ó ­c r i t a d e v i a a p a r e n t a r . . . e s e ­g u i a .

Q u á s i e n d o i d e c i , p e r d i d a p o r c o m p l e t o a e s p o n t a n e i d a d e

n a t u r a l e e f u s i v a q u e faz s a l ­t a r a a l e g r i a e a t r i s t e z a i m e ­d i a t a s , v i r g e n s da p e r s o n a l i ­d a d e h u m a n a .

H o j e , p r e g u n t Q - m e o n d e c o ­m e ç a o t e a t r o e o n d e a c a b a a v i d a s i n c e r a .

F a r t a d e a g i t a ç õ e s , d e s e n ­s a ç õ e s i n q u i e t a s e p o t e n t e s , e m b a r q u e i p a r a a í n d i a .

C o m p u s p o e s i a s l í r i c a s n o e s t i l o d e T a g o r e e c a s e i c o m u m p r í n c i p e I n d i a n o d é s p o t a e b r u t o .

A m e i o a m o r d e s e r d o m i ­n a d a por u m h o m e m d e q u a ­r e n t a a n o s , s e l v a g e m e á s p e r o c o m o o s e u i d i o m a e s t r a n h o .

A m e i o a m o r b i z a r r o n u m p a i s e x ó t i c o e q u e n t e , o n d e o a m o r é u m a s e n s u a l i d a d e s e ­g u i d a d e b a i x o d u m s o l e m b r a ­s a , d i a n t e d e p a i s a g e n s s e r e ­n a s , à t a r d e , c o m c é u s d e s e ­n h a d o s d e p a l m e i r a s e l e g a n ­tes e u m rio o c i o s o a l a m b e r i p e r n a s d e s a l g u e i r o s , d u m a l a r g u r a de á g u a a b e r t a d e s ­c a r a d a m e n t e c o m o u m a b a r r i ­g a .

S a b o r e e i a v o l ú p i a dos e s ­c r a v o s s o b o c h i c o t e , q u e m e a b r i u v e r g õ e s d e s a n g u e n o c o r p o , do m e u s e n h o r d é s p o t a e b á r b a r o .

O s n e r v o s c a n s a r a m - s e d a ­q u e l a I n a c t i v i d a d e , do d e s c a n -ç o p a r a d o c o m o n u m poço, d o s m e u s d i a s v a g a r o s o s .

D e p o i s d e c o r r e r t o d o o O r i e n t e e d e i x a r u m a m o r e m c a d a p a i s n o v o , u m d e s e s p e r o e m c a d a u m des se s o r i e n t a i s , a r d e n t e s e c a p r i c h o s o s q u e m e b e i j a v a m os p é s c o m v o ­l ú p i a , fui p a r a P a r i s . Ai e n ­c o n t r e i de t o d a a m i n h a v i d a - ^ o p r i m e i r o H O M E M .

F o m o s a m i g o s c o m o dote c a i s . T r a b a l h á v a m o s j u n t o s n o i t e s i n t e i r a s . D e l e s ó posso d i z e r : n ã o e r a c o m o n e n h u m d o s q u e a t é a l h a v i a e n c o n ­t r a d o : e r a o u t r o .

T i n h a u m c r â n e o fo r t e c o m o o s pu l so s g i n a s t a s . R a c i o c i n a ­v a d u r a e f a c i l m e n t e c o m o u m a f o n t e a c o r r e r á g u a .

No a m o r m a i s c a r n a l é r a ­m o s s i m p l e s m e n t e dote b o n s c a m a r a d a s .

C h o q u e i c o m ê l e n a vida p o r a c a s o — m a s foi o m e u p r i m e i -To H n c o n t r o H u m a n o . C o m o e s t a v a l o n g e d e c o m p r e e n d e r a a p r o x i m a ç ã o p r ó x i m a , o c o n t a c t o i n t i m o , p r o f u n d o , h u ­m a n o , q u e g e r a o e n t e n d i m e n ­t o de d-ols s e m e l h a n t e s !

Q u a n d o u m h o m e m e u m a m u l h e r s e e n c o n t r a m d e s t a m a n e i r a . i n t i m a m e n t e , I r m ã ­m e n t e , s e m q u a l q u e r c o n t a c t o c a r n a l q u e o s j u n t e , p o d e m p r o d u z i r c o i s a s a d m i r á v e i s , r e v o l v e r o m u n d o i n t e i r o , i n ­v e n t a r u m a v ida n o v a . c o m o d o i s h o m e n s m a c h o s q u e c o n s ­t r u í s s e m — o h f a n t a s i a ! — u m f i lho d o s e u e s f o r ç o i n c a r n a i .

E u a n d a v a a l e g r e c o m o u m a g a r g a l h a d a s a u d á v e l .

D e p o i s a c a b o u . E s t a v a a e n ­f r a q u e c e r a t e n s ã o do n o s s o e n t e n d i m e n t o e p e r d í a m o s t e m p o de t r a b a l h o . S e p a r á m o -n o s .

D e p o i s d i s to , c a i n u m e s t a ­d o i m b e c i l : e s c r e v i l iv ros , ( q u e h o j e s ã o e s t u d a d o s n a s h i s t ó ­rias d a l i t e r a t u r a p o r p r o f e s ­s o r e s d e l u n e t a s ) , s o b r e o n o s s o E n c o n t r o . R e s s a b o r e e i . r e v i v i a s n o s s a s r e l a ç õ e s d e s ­d e o c o m e ç o , l e m b r a n d o o s p o r m e n o r e s u m a u m .

T a m b é m Isso j á l á v a i — n ã o g o s t o d e l e r l i v r o s n e m dte v e r t e a t r o . S ó a p r e c i o a v ida n a ­t u r a l , e s p o n t â n e a , q u e s a i d e n t r o d e n ó s c o m o u m a f o l ­g a d a d e s a n g u e b o m .

N a p r o c u r a i n q u i e t a , c o n s ­t a n t e , do f im d a V i d a , s ó l h e e n c o n t r o e s t e — V I V E R . M a s i s to é a v i d a f e c h a d a a d a r a v o l t a a si p r ó p r i a . O F i m d a N a s s a V i d a d e v e s e r t o r n a r m e l h o r a n o s s a e a v i d a d o s a u e v i e r e m . H á t a n t o a f a z e r ! A v i d a p o d e aflaTgar-se a i n d a t o n t o e m e x t e n s ã o e p r o f u n ­d i d a d e ! D e u s ? O s q u e v i e r e m tmmito d e p o i s d e n ó s t a l v e z ftenhaim r a z ã o e t e m p o p a r a p e n s a r n i s s o .

O m é d i c o a c o n s e l h a - m e q u e v á d e s c a n s a r p a r a o c a m p o .

P a r a q u ê ? f a ç o h o j e 40 a n o s e n ã o e s t o u c a n s a d a de v iver . C h a m o - m e M a r i a L a u r a ; m a s i s to n ã o tem i m p o r t â n c i a .

B I O G R A F I A por António Gameiro

Cada novo dia que seja o meu primeiro dia. Que nada se afigure estranho e tudo inteiramente novo se alargue e recorte em outra claridade. Os meus olhos serão mais claros e luminosos e tudo em mim guardará uma virtualidade mais profunda. O delíquo do instante despedindo-se a feliz pei turbação da chegada próxima a doce inquietude para além das formas e dos seios vigorosos e descobertos — a simplicidade duma biografia sem detalhes.

De tudo que foi e porque ou para que a vida me jogou, de tudo me alongo, em cada instante, sem lágrimas nem uma saudade nem um adeus. Caminho.

Caminho para reflorir-me em mim mesmo na florescência túmida e suavíssima de cada novo dia, — mais forte mais generoso mais verdadeiro,

' acarinhando todos os sonhos de braços bem abertos para cada novo dia. E mais decidido mais confiante mais e mais humano para que tudo em mim guarde a virtualidade mais profunda e cada novo dia seja o meu primeiro dia.

(De <íA Minha Condição de Escravo», inédito.)