Folhas Políticas - José Saramago.pdf

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  • Jos Saramago Folhas Polticas

    Autor: Jos Saramago

    Ttulo: Folhas Polticas 1976-1998 Ano da Publicao Original: 1999

    Ano da Digitalizao: 2005

    Esta obra foi digitalizada, formatada, revisada e liberta das excludentes convenes do mercado pelo Coletivo Sabotagem. Ela no possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte,

    alm de ser liberada a sua distribuio, preservando seu contedo e o nome do autor.

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    FOLHAS POLTICAS 1976-1998

    Jos Saramago

  • Jos Saramago Folhas Polticas

    INDICE

    Introduo

    Breve Biografia.................................................................................................................................03 Bibliografia.......................................................................................................................................08

    Folhas Polticas

    A Questo a do Socialismo.......................09 Reforma Agrria e Outros Assuntos.......... 13 Preldio e Marcha...................................... 16 Portugal, ou Porto Rico? ........................... 19 O Gosto de Bater ....................................... 22 A Verdade e a Mentira............................... 25 A Mo do Finado ...................................... 28 Furtiva lgrima .......................................... 31 Constituio e Palavra de Honra ............... 34 Recado para Joo Basuga, alentejano........ 37 Pas Real, Real Pais.................................... 40 Vou Amotinar-me...................................... 43 Os Independentes ...................................... 46 O Independente Extra ................................ 48 As Rosas .................................................... 50 O Rs-do-cho............................................ 53 Adeus, Adeus ............................................ 54 O Sinal Contrrio ...................................... 57 O que Somos ............................................. 60 A Cozinha .................................................. 62 O Tempo do Rato....................................... 64 Como bvio?.......................................... 66 A Mesa Deles............................................. 68 A Banha da Cobra ..................................... 70 As (In)coerncias ...................................... 72 A cabea .................................................... 74 O Terceiro Governo................................... 77 A Transfuso.............................................. 79 A outra Secousse.................................... 81 O Nome Dele.............................................. 84 Como ia Dizendo........................................ 87 Toms, O Recuperado ............................... 89 Papis de Identidade .................................. 91 Sena ........................................................... 94 Unir a Esquerda, Defender a Democracia . 96 Dos Intelectuais Desanimados ................ 100 Cultura: Um Consenso Impossvel .......... 102 Discurso do Prmio Cidade de Lisboa .....106 Fogos-de-Artficio.................................... 109 Questo de Caras ..................................... 111

    Dos Leitores e dos Gatos ........................ 113 Lio de vontade ..................................... 117 Esta Mal Dita Lngua Portuguesa ............120 A Paz uma Militncia ........................... 123 Antigamente ............................................ 126 A Qualidade dos Vivos ........................... 128 Paris, Portugal ......................................... 131 Atrasados, Felizmente............................. 134 A Rainha do Alentejo ..............................137 Da Democracia e Da Cultura .................. 140 Herculano e o 25 de Abril........................ 144 A Difcil Conversa .................................. 147 Uma Pessoa da Famlia ........................... 150 Democracias e Demagogias .................... 153 Os Sujeitos Normais ................................156 Amlcar Cabral Descobriu o Brasil ......... 158 Histria Antiga, Caso Moderno .............. 161 O Planeta dos Macacos ........................... 163 Que Voltem os Gregos! .......................... 165 Sobre o Derrube do Muro de Berlim ...... 167 A Clula de Crise .................................... 168 Querida, Maltratada Lisboa .................... 171 Palavras para uma Cidade ....................... 174 Amrica vista da Europa ......................... 178 A ETA Continuar a Matar ..................... 180 Ai do Lusada, Coitado!....................... 183 O Velho, o Rapaz e o Burro..................... 185 Troca de Galhardetes .............................. 187 De Cabea Perdida .................................. 189 A Rainha Vai Nua ................................... 191 Chiapas ................................................... 193 A Mo que Embala o Bero .................... 195 Um Carro sem Traves ........................... 197 A Guerra do Desprezo ............................ 199 A Ala dos Demorados.............................. 201 Chiapas, Nome de Dor e de Esperana ... 203 A Soberania Deles .................................. 208 Os Referendos ......................................... 210 frica ...................................................... 212 Alegra-te, Esquerda................................... 214

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  • INTRODUO

    Breve Bibliografia

    Jos de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, em Azinhaga (Goleg), no Ribatejo, embora a sua certido de nascimento aponte a data de 18. A razo para a discrepncia a habitual: o registo foi feito fora do prazo legal e para no pagarem a multa, os pais alteraram a data.

    O menino estava destinado a ser "Jos de Sousa", como o pai, j que a me, Maria da Piedade, no possua nenhum apelido que pudesse deixar de herana ao filho.

    Por motivos nunca esclarecidos, o funcionrio do registo civil enganou-se e acrescentou a alcunha familiar ao nome do pequeno Jos "Saramago", designao de uma variedade de ervas daninhas. Com frequncia acontecia isto: a alcunha de um indivduo colava-se famlia e, no poucas vezes, era aceite como apelido. Graas a esse desleixo burocrtico, o pequeno Jos pde enfrentar a vida, no com um annimo "de Sousa", a pedir uma operao de pseudonmia urgente, mas com um sonoro e inconfundvel "Saramago".

    Aos dois anos a famlia transferiu-se para Lisboa, procura de melhores condies. nessa altura que o pai ingressa na Polcia de Segurana Pblica, mas as dificuldades econmicas permanecem. Pouco depois, o seu nico irmo, Francisco, dois anos mais velho, morreu em consequncia de uma broncopneumonia.

    Em 1929 iniciou a escola primria, matriculando-se depois no Liceu Gil Vicente. Vem-lhe dessa altura o gosto pela leitura: sem acesso a livros, passava a pente fino s pginas do "Dirio de Notcias". Em 1934 as dificuldades econmicas fazem-se sentir e Jos transita para a Escola Industrial Afonso Domingues, concluindo o curso de Serralharia Mecnica em 1939.

    Logo de seguida, obtm o primeiro emprego nos Hospitais Civis de Lisboa. Por meio da leitura, procura melhorar a sua formao intelectual, frequentando a biblioteca do palcio das Galveias. a que inicia o seu contacto com a literatura.

    Em 1942 transferido para os servios administrativos do Hospital Civil de Lisboa e no ano seguinte passa a trabalhar na Caixa de Abono de Famlia da Indstria da Cermica.

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    Casou em 1944 com a pintora Ilda Reis, de quem se divorciaria em 1970. Anos depois, em 1947, nasce filha Violante e publica a primeira novela, Terra do Pecado. Saramago havia-lhe atribudo outro ttulo A Viva mas o editor props "Terra do Pecado" e assim ficou. Naturalmente o livro passou despercebido e foi esquecido; o prprio

    autor retirou-o da sua bibliografia e s em 1997 ele voltar a ser lembrado. Outra novela, Clarabia, escrita posteriormente, permanece indita; o manuscrito,

    entregue a uma editora para apreciao, por l ficou perdido e s em 1990 reapareceu. Depois dessa primeira experincia, Saramago interrompe a escrita, que s retomar em 1966, ao publicar Os Poemas Possveis.

    Em 1949, o apoio campanha de Norton de Matos Presidncia da Repblica leva-o a perder o emprego na caixa de Abono de Famlia da Indstria da Cermica. No ano seguinte conseguiu ingressar na Caixa de Previdncia da Companhia Indstrias Metlicas Previdente, onde permanecer at 1959. Em 1955 comeou a colaborar com a Editorial Estdios Cor, qual se dedicou em exclusivo desde 1959 at 1971, como editor literrio.

    Em 1966 retomou a atividade literria, publicando o seu primeiro livro de poesia, Os poemas possveis. Da em diante a escrita tornou-se uma atividade permanente. Em 1968 iniciou a atividade jornalstica, publicando textos de crtica literria na revista "Seara Nova" e, em 1972, comeou a trabalhar no "Dirio de Lisboa", passando, no ano seguinte, a dirigir o suplemento literrio do jornal. Colaborou tambm com a revista Arquitetura (1974). Entretanto, em 1969, aderiu ao Partido Comunista Portugus, ao qual permaneceu fiel at hoje. No entanto, em 1988 foi um dos subscritores do "documento da terceira via".

    Aps o 25 de Abril chegou a trabalhar no Ministrio da Comunicao Social, como assessor. Tambm nessa altura chegou a coordenar uma equipa de dinamizao cultural no Fundo de Apoio aos organismos Juvenis (FAOJ). Em 1975 nomeado director-adjunto do "Dirio de Notcias", mas dispensado aps o 25 de Novembro. A partir desta altura dedica-se exclusivamente escrita e procura subsistir fazendo tradues. Durante alguns meses de 1976 convive com os trabalhadores da Unio Cooperativa de Produo Boa Esperana, em Lavre, Montemor-o-Novo, saindo dessa experincia o livro Levantados do Cho, publicado em 1980.

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    Fez parte da primeira direo da Associao Portuguesa de Escritores (APE) e, entre 1985 e 1994, foi presidente da Assemblia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).

    Nos anos seguintes vai construindo a sua obra literria e ganhando projeo, nacional e internacional, acumulando prmios e homenagens:

    1979 - Prmio da Associao de Crticos Portugueses 1980 - Prmio Cidade de Lisboa 1982 - Prmio do Pen Clube Portugus e Prmio Literrio do Municpio de Lisboa 1984 - Prmio do Pen Clube Portugus; Prmio D. Dinis; Prmio da Associao Portuguesa de Crticos

    1985 - Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; Prmio da Crtica pelo conjunto da obra 1987 - Prmio Grinzane-Cavour (Itlia), pela obra O Ano da Morte de Ricardo Reis; Doutor honoris causa pela Universidade de Turim

    1991 - Grande Prmio de Novela da Associao Portuguesa de Escritores; Prmio Bracati (Itlia); Doutor honoris causa pela Universidade de Sevilha; Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras Francesas

    1992 - Prmio Internacional Ennio Faiano (Itlia), por Levantados do Cho e Prmio Internacional Literrio Mondello (Itlia); Prmio Literrio Brancatti (Itlia) 1993 - Grande Prmio de Teatro da Associao Portuguesa de Escritores; Membro do Parlamento Internacional de Escritores, em Estrasburgo; Prmio The Independent (Reino Unido) e Prmio Vida Literria da APE 1994 - Membro da Academia Universal das Culturas (Paris); Scio da Academia Argentina de Letras

    1995- Doutor honoris causa pela Universidade de Manchester (Reino Unido); Prmio Consagrao da Sociedade Portuguesa de Autores

    1996 - Prmio Cames 1998 - Prmio Nobel de Literatura

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    ainda membro honoris causa do Conselho do Instituto de Filosofia do Direito e de Estudos Histrico-Polticos da Universidade de Pisa.

    O romance Memorial do Convento inspirou uma pera (Blimunda), escrita pelo compositor italiano Azio Corghi e estreada em 1990, em Milo. Mais tarde, em 1993, Corghi escreveria uma outra pera (Divara), com libreto extrado da pea de Saramago In Nomine Dei, levada cena em Munster (Alemanha). E em 1995 encenada no palco da Igreja de S. Marco, com msica de Azio Corghi, a pea La Morte de Lzaro, inspirada em obras de Saramago (In Nomine Dei, Evangelho segundo Jesus Cristo e Memorial do Convento).

    Em 1991 publicou o Evangelho segundo Jesus Cristo, obra incmoda para os sectores mais tradicionais da sociedade portuguesa, tendo o Subsecretrio de Estado da Cultura, Sousa Lara, vetado em 1992 a sua candidatura ao Prmio Literrio Europeu.

    Em 1988 casou com a jornalista espanhola Pilar del Rio e desde 1992 reside em Lanzarote, nas Ilhas Canrias.

    A 8 de Outubro de 1998, a Academia Sueca atribuiu-lhe o Prmio Nobel de Literatura. A 3 de Dezembro desse ano, o Presidente da Repblica, Jorge Sampaio, concedeu-lhe, a ttulo excepcional, o Grande Colar da Ordem de Santiago da Espada, distino reservada tradicionalmente a chefes de estado.

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    Bibliografia

    Terra do Pecado (romance), Lisboa, 1947 Os Poemas Possveis (poesia), Lisboa, 1966 Provavelmente Alegria (poesia), Lisboa, 1970 O Embargo, Lisboa, 1973 A bagagem do viajante (crnicas), Lisboa, 1973 As Opinies que o DL teve, Lisboa, 1974 O Ano de 1993 (poesia), Lisboa, 1975 Manual de Pintura e Caligrafia (romance), Lisboa, 1976 Os Apontamentos (crnicas), Lisboa, 1976 Objeto Quase (contos), Lisboa, 1978 A Noite (teatro), Lisboa, 1979 O Ouvido (conto), in "Potica dos Cinco Sentidos", 1979 Que Farei com este Livro? (teatro), Lisboa, 1980 Levantado do Cho (romance), Lisboa, 1980 Viagem a Portugal (viagens), Lisboa, 1981 Memorial do Convento (romance), Lisboa, 1982 O Ano da Morte de Ricardo Reis (romance), Lisboa, 1984 Deste Mundo e do Outro (crnicas), Lisboa, 1985 A Jangada de Pedra (romance), Lisboa, 1986 A Segunda Vida de Francisco de Assis (teatro), Lisboa, 1987 Histria do Cerco de Lisboa (romance), Lisboa, 1989 Canto ao romance, romance ao canto, in Vrtice. II Srie, Lisboa, n21 (Dez.1989) O Evangelho Segundo Jesus Cristo, (romance), Lisboa, 1991 In Nomine Dei, (teatro), Lisboa, 1993 Cadernos de Lanzarote (dirio I), Lisboa, 1994 Ensaio sobre a Cegueira, (romance), Lisboa, 1995 Cadernos de Lanzarote (dirio II), Lisboa, 1995 Moby Dick em Lisboa, (crnicas), Lisboa, 1996 Cadernos de Lanzarote (dirio III), Lisboa, 1996 O Conto da Ilha Desconhecida (conto), Lisboa, 1997 Todos os Nomes, (romance), Lisboa, 1997 Cadernos de Lanzarote (dirio IV), Lisboa, 1997 Cadernos de Lanzarote (dirio V), Lisboa, 1998(?) Uma voz contra o silncio, Lisboa, 1998 Discursos de Estocolmo, Lisboa, 1999 Folhas polticas 1976-1998, Lisboa, 1999 A caverna, (romance), Lisboa, 2000.

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    FOLHAS POLTICAS

    A Questo a do Socialismo (1976)

    Do alto da sua tribuna, o presidente da Assemblia da Repblica no v a Nao: v (quando esto todos) 263 deputados que, pela graa da aritmtica, a representam. Est a Direita, est o Centro, est a Esquerda. Ningum precisa de (se) interrogar sobre o que seja a Direita, ningum acha oportuno averiguar se o Centro o de fato, mas todos nos inquietamos com a Esquerda, com o passado, o presente e o futuro da Esquerda. Falta saber (o tempo o vir a dizer, por fora) se essa inquietao sinal de sade ou de doena, da Esquerda e de quem para ela se volta interrogativo, com uma preocupao porventura autntica, mas no destituda de algum comprazimento. Outra vez em Portugal se tornou mais fcil falar das coisas do que faz-las, outra vez (passe a banalidade da aluso) cuidamos mais de discutir o sexo anglico do que de investigar os modos de levar os anjos a fazer filhos, sejam os ditos anjos machos ou fmeas.

    A questo que importaria pr (segundo entendo) no a da Esquerda, mas a do Socialismo. E isto sabendo que mesmo a troca no esclareceria radicalmente o objeto em anlise: afinal, se sobre a Esquerda muito se borda, sobre o Socialismo muito se remenda. Mas, neste nosso caso portugus, obrigados que fomos, durante duas geraes, a falar de Esquerda por no poder dizer Socialismo, mal me parece que voltemos a hbitos antigos: h aqui um (decerto) involuntrio escamoteamento do problema central, talvez um gosto (escolstico?) de sabatina, um jogo floral que no ser para passar o tempo, mas durante o qual o tempo passar irremediavelmente. Ora, se somos pobres de muita coisa, tambm o somos de tempo. E se no temos sido brilhantes administradores de divisas, pior o teremos sido dos nossos minutos.

    A questo, insisto, a do Socialismo. E o Socialismo, dizem-no os manuais, e no poderia ser seno isso, a propriedade coletiva dos meios de produo, e o mais que politicamente, ideologicamente e economicamente da decorre, ou entretanto para a concorreu. Posto o que (linear ser, mas exato) comea a tornar-se claro que a linha que separa a Esquerda da Direita, isto , a fronteira que divide o campo poltico que quer o

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    Socialismo do campo que o no quer, passa pelo interior do Partido Socialista. No isto novidade para ningum, mas o inqurito obriga a repeti-lo.

    Desta maneira creio que se torna evidente um dos motivos da dificuldade de encontro e dilogo das foras polticas que se reclamam de Esquerda, e portanto de Socialismo: interclassista, como declaradamente o e com algum oportunismo se gaba, o

    Partido Socialista nunca poderia ser, todo ele, socialista. A questo do socialismo democrtico, to agitada para lucros de propaganda eleitoral e proveitos de batalha ideolgica, uma falsa questo: juntar a socialismo o adjetivo democrtico no representa nem esclarecimento nem rigor nem adicionao de qualidade: puro compromisso, plataforma intima, tentativa de conciliao entre classes dentro de um partido que, por isso mesmo, exibe ou esconde o seu programa consoante a parte do eleitorado a que se dirige.

    Por aqui se concluir que, segundo entendo, a questo da Esquerda, logo a questo do Socialismo, tem de passar por uma definio do Partido Socialista no que toca ao lugar que ocupar (ou no) na futura luta, ou, se a linguagem parecer demasiado blica, no futuro empenhamento das foras de Esquerda. A grande responsabilidade do Partido Socialista tem sido a de paralisar, pela sua mesma contradio intima, a irrecusvel definio: possvel, por isso, afirmar que, no sentido mais rigoroso do termo, o Partido Socialista adiou o Socialismo, Porque o adiou dentro de si prprio.

    Imaginemos, porm, que a definio se faz, que coeso ou aps diviso um Partido Socialista emerge, e o desenho poltico da Esquerda ganha nitidez suficiente e contorno organizvel. Imaginemos, tambm, que, pelo contrrio, todo o Partido Socialista se desloca para a direita, deixando, como pontualmente j deixou, nesse movimento, algumas franjas competentes mas sem relevncia bastante para constiturem, elas, o Partido Socialista. No primeiro caso, teremos diante dos olhos, pela primeira vez desde Abril de 74, a expresso poltica real da vontade socialista global, conservando-se o esquema organizacional partidrio nascido com a revoluo; no segundo caso, veremos melhor e avaliaremos o tempo perdido, e tambm a dimenso do equvoco que foi a vida poltica portuguesa: saberemos que andamos a viver de palavras quando nos deveramos ter alimentado muito mais de atos. Num caso e noutro, o relgio marcar a hora das decises: definida a

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    Esquerda (no fixada para o resto dos sculos, mas coerente e coincidente nas linhas bsicas de um projeto comum), definir-se- como fora(s) poltica(s) para o Socialismo. Comearemos ento a saber (ou saberei eu, se outros j o sabiam antes) do que andamos a falar.

    Mas uma coisa possvel adiantar desde j, e essa no nova nem sequer especfica do nosso Pas: a questo da hegemonia poltica partidria. O argumento j clssico entre ns (extensivo, at, ao sector sindical) o duma pretensa hegemonizao que o Partido Comunista procuraria estabelecer em todas as formas de aproximao com outras foras polticas. A afirmao faz-se uma e muitas vezes, e fica no ar, condiciona os juzos e, portanto as decises: um sintoma da insegurana de quem assim se queixa ou acusa, de falta de confiana nos recursos prprios ou na sua consistncia ideolgica. Enquanto o fantasma da hegemonizao no for afastado, a Esquerda (tomada, repito, como vontade socialista conjunta) no se aproximar, no ser frente, no se empenhar conjuntamente como tal. Viver dispersa como convm Direita e, como Direita convm, lutar entre si. Profundamente, essa a crise da Esquerda, e o advrbio significa, neste lugar, que muito do que se passa na poltica portuguesa do foro psicolgico: andam por a abundantes complexos de dipo, frias assassinas contra o Pai, e frustraes de toda a ordem (no por acaso que o processo poltico tem atrado tanto a ateno de psicanalistas, mas talvez no seja tambm por acaso que os prprios psicanalistas tm passado ao lado da questo essencial, que , para o caso, e neste meu ver de leigo, a do Partido Comunista como agente de produo psicolgica, quer individualmente quer coletivamente).

    Mas existe de fato uma crise da Esquerda? bvio que sim. Porm, no se trata de uma crise mrbida, efeito de bactria ou vrus introduzido num corpo saudvel, e agora febril, tambm no uma crise de crescimento, ou melhor, para o crescimento - a perturbao, o desconcerto, a desarmonia do corpo que invade cada vez mais o espao e tem de adaptar-se a ele e a si prprio; ser antes uma crise no de identidade, mas para a identidade. A Esquerda portuguesa, como um todo, no se conhece entre si, nem se reconhece no conjunto. Este o obstculo imediato, barreira que necessrio ultrapassar, sob pena grave: a de atirar para muito longe, por nossas prprias e inbeis mos, a esperana do Socialismo.

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    Encontremo-nos, pois, e confrontemos. Sabendo cada um o lugar que ocupa, agora, no sector da Esquerda que for o seu, sem sobrevalorizao nem subvalorizao do que, efetivamente, esse sector representar como expresso coletiva. E tenhamos em vista que o

    objetivo o Socialismo. A Esquerda no um fim em si, um modo vitimizante ou triunfalizante de estar no mundo: uma estrutura, um instrumento, uma organizao. Que, como todas as coisas, sero julgados pelos resultados. E ns de caminho.

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    Presidente, Reforma Agrria e Outros Assuntos (Dirio de Lisboa, 29 de Dezembro de 1976).

    No que o caso tenha muita importncia. Se a televiso e a rdio, nosso visvel e audvel de todos os dias, usaram o Natal no bom estilo passado para cultivar em prosa, verso e imagem o sentimentalismo mais dessorado que imaginar se pode; se o primeiro- ministro considerou generosa benesse ir de viagem a Linh e Tires para levar o conforto da sua governamental presena a homens e mulheres que de tcticas polticas nada entendem, no h de espantar ningum que o presidente da Repblica tenha decidido chamar a convvio de almoo e conversa trs casais de emigrantes. Estas coisas fazem-se por toda a parte, calam fundo no corao popular, sempre sensvel e agradecido a quem o trata bem.

    Porm, mesmo no tendo o caso assim tanta importncia, merece que lhe demos uma volta a ver que isto que foi, para que serve e por que se faz. No falo da rdio e da televiso, incapazes de novidar ( palavra inventada, minha) seja o que for, to curtas de imaginao, to cnticos natalcios, to noite silenciosa, to fraternidade postia. No falo do primeiro- ministro, que homem viajado, viu muito disto l fora, e sabe como se ganham votos, sem se interrogar muito sobre as razes por que os vai perdendo. Falo, sim, do presidente da Repblica, cujos ditos e feitos ainda so do pouco capaz de interessar esta nossa fatigada terra.

    Vossa Excelncia, provavelmente, lembra-se de mim. No passou assim tanto tempo desde aqueles dias em que nos sentvamos ao redor duma mesa, no ltimo andar da televiso, Vossa Excelncia, dois funcionrios da casa e mais uns tantos tarefeiros, entre os quais eu estava. Vossa Excelncia no era, como no hoje, um rosto aberto, mas aquelas reunies foram desde o comeo levadas com algum humor que no prejudicou, creio bem, a eficcia. Honra nos seja feita a todos e sobretudo a mim, que no me conformava com a severidade de feio e trato que est no carter de Vossa Excelncia.

    E honra a Vossa Excelncia, que foi capaz de sorrir algumas vezes. Mas o tempo passa. Vossa Excelncia hoje presidente da Repblica, o Artur Ramos foi saneado, o Prado Coelho foi diretor-geral da Ao Cultural e saiu desgostoso, o Carlos Porto l vai continuando as suas crticas de teatro, o Fonseca e Costa decerto gostaria de filmar mais, e eu, senhor presidente, depois de algumas andanas, escrevo este artigo. Assim passam as

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    glrias do mundo. Cada um, se h justia, ter o que profundamente merea: isto me ensinaram em criana. Vossa Excelncia, pela justia dos votos, presidente: resta saber se toda a outra gente ter merecido o que tem. Destrinar isso, porm, levar-me-ia para longe do meu objetivo, cujo precisamente o almoo que Vossa Excelncia deu e j referi.

    E por que falo eu dele? Por inveja? Quem sabe, senhor presidente, quem sabe? Permita que imagine, d-me essa licena, o que seria um almoo que tornasse a reunir aqueles homens do ltimo andar da televiso. Teria a mesma eficcia? Teria o mesmo humor? Talvez no, mas Vossa Excelncia ficaria a saber alguma coisa das nossas vidas e ns teramos o gosto de v-lo como presidente e a aventura de procurar descobrir o homem que no presidente h.

    Esqueamos, porm, esta to humana inveja. E diga eu j que nada me move contra os casais de emigrantes que Vossa Excelncia chamou sua mesa. Gente emigrada gente sacrificada, merece tudo, at um almoo na Presidncia da Repblica. Vossa Excelncia ter-se- figurado (e acho que fez bem em figurar-se tal) almoando com todo o Povo Portugus, nada preocupado ali em querer saber o que partidariamente esse povo fosse. Vossa Excelncia, que na televiso se sentava mesa com comunistas e no mostrava mais

    reserva do que julgo ser-lhe prpria, tambm no h de ter querido saber em que partido votaram os seus convidados, nem ter curado de averiguar se foram todos eleitores seus. Penso eu, porm, que Vossa Excelncia escolheu a soluo mais fcil, ou algum lha

    aconselhou.

    Almoar com emigrantes , logo se v, um ato neutral. Quem v o emigrante, no v seno o emigrante. Por aqui se observa como logo fica descomprometido o gesto. Voltem esses emigrantes terra donde saram por razes de penria, e no tero mais lugar mesa de Vossa Excelncia. Entram no estatuto corrente do cidado a quem se pede o imposto e o voto. No verdade, senhor presidente?

    Agora imagine Vossa Excelncia que tinha resolvido chamar sua mesa no o povo de fora, mas o povo de dentro, no trs casais de emigrantes, mas trs casais ali do Alentejo, da Reforma Agrria. A seria um ato poltico que os seus conselheiros e assessores (para j no falar do governo) firmemente lhe desaconselhariam. Mas, ah, senhor presidente, que salto para a frente teria dado este pas se Vossa Excelncia tem cometido o

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    rasgo de chamar um casal da Lobata, um casal da Benavila, um casal da Comenda! Estou que seria uma revoluo.

    No foi assim, pacincia. Uma esperana, no entanto, me anima: a de que trs casais do Alentejo convidem Vossa Excelncia a ir almoar l a casa. Se tal acontecer, aceite. No queira saber nem consinta que os seus conselheiros tentem averiguar se todos esses casais

    votaram em si. Nesta altura, se Vossa Excelncia vota neles, isso tem pouca importncia.

    Mas, vota?

    Desculpe Vossa Excelncia estas ousadias. Faz de conta que ainda estamos no ltimo andar da televiso. E o que tm estes hbitos democrticos: Vossa Excelncia presidente da Repblica - e eu escrevo este artigo.

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    Preldio e Marcha (23 de Julho de 1977)

    Diante desta primeira folha, pergunto-me: valer a pena? Valer a pena retomar uma interveno que em seu tempo teve sem dvida desacertos, mas a que no faltou limpeza de inteno e alguma prescincia? Valer a pena lanar outras palavras nesta fogueira nacional

    em que muito mais se v de fumo do que de lume verdadeiro? Valer a pena aumentar as nutridas fileiras dos comentadores polticos nacionais com algum que no faz vida de bastidores ministeriais nem de passos perdidos? E, sobretudo, valer a pena anunciar isto assim to solenemente, como quem esperasse duma ao individual, sem recados de fora, a salvao ou a ressurgncia disso que teve nome de revoluo?

    Provavelmente, vale a pena. Por vrias razes: porque oito meses de trabalhos dirios e nenhuma traio me ho de ter conferido autoridade e responsabilidade suficientes; porque dentro do fumo que outros espalham que nos vamos cegando e perdendo; porque at ainda h pouco tempo no havia portugus que no fosse, por gosto e vontade, comentador poltico, ao menos na sua rua, e isso era bom; porque j h demasiado silncio em Portugal, e isso bom no , pois no silncio se aproveitam uns e acabaro por padecer quase todos; porque no pode fazer mal um pouco de solenidade numa democracia que no tem a coragem de se tomar a srio. E tambm porque se me tornou insuportvel a parte de silncio que me tem cabido.

    Assim preludiados estes novos apontamentos, por onde comear? Por um Partido Socialista que faz to pouco caso da Constituio que votou como do programa poltico que apresentou aos eleitores? Pelo avano duma direita insolente e eufrica que de tudo vem beneficiando, desde a indeciso do governo at cumplicidades de alto coturno? Pelos novos senhores do saber velho que pretendem abrir nas escolas o caminho da recuperao ideolgica burguesa? Por uma poltica de trabalho que serve os interesses do patronato nacional e internacional e inventa ou favorece conceitos de representatividade sindical que tm tanto de ofensivo como de hipcrita? Pela Lei Barreto, com a qual se quer segurar debaixo da regressada bota do latifundirio, ajudado por outras botas, o espezinhado trabalhador rural? Por essa nova e vida classe poltica onde no faltam os traidores e os

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    oportunistas, empenhados em asfixiar a gente honesta que foi para a poltica para servir o povo e no para servir-se dele?

    A procisso ainda agora vai na praa, o caminho longo e o tempo tem muita pacincia. Destas e mais coisas correlativas viremos a falar nas prximas semanas.

    Hoje, j que, escritor sendo, por tabela apanho, a guerra outra. Uma guerra que alguns de ns, nesta inocncia de que no nos curamos, julgvamos acabada e enterrada para sempre. Uma pobre, triste e lamentvel guerra que vem de um equvoco nacional, um dos muitos que ho de comprometer, se no lhes for dado remdio, o lugar da inteligncia neste pas, sobretudo daquela que se esfora e desde sempre se esforou por chegar ao que chamarei a inteligncia do lugar, o entendimento da terra e do povo que somos. Entendimento s alcanvel, seria bom que se percebesse, se no nos abrigarmos sombra da bananeira dos mitos, em nome dos quais h o risco de serem postos de conserva e em conservao valores de ideologia por natureza provisrios, como todos so e a histria dos povos, incluindo a nossa, abundantemente prova. Por muito que a tentao imobilista deseje o contrrio, nenhum valor intocvel. No h infalibilidades, no h nenhum modo pacfico de impedir as pessoas de refletir sobre o que foram ou esto sendo, trajadas elas ou no civil, autorizadas elas ou no por qualquer forma de poder.

    Esta guerra (to pouco santa) recrudesceu agora, teve um fogacho, lanou uma salva. , afinal, a guerra da incompreenso e (por que no dizer as palavras todas?) de um certo desprezo pela inteligncia e pela cultura. No melhor dos casos no se tem sabido muito bem o que fazer com uma e outra. Baste o exemplo de lembrar como, sem maus desgnios, s por inabilidade, foi pouco estimada a inteligncia durante o perodo em que a revoluo avanou. E agora que a revoluo est como se v, ressurgem os ressentimentos,

    os antigos rancores, as contas em aberto, as feridas que o amor-prprio no deixa fechar. Tudo, j se deixa ver, em nome de valores decretados intocveis e que tm muito mais que ver com um esprito de casta sobrevivo do que com um inteligente e, portanto, crtico sentido das realidades.

    Os intelectuais no tm, claro est, o privilgio da inteligncia,mas compete-lhes us-la de uma maneira que lhes prpria, tambm necessariamente ligada a uns tantos

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    valores de ideologia que seu primeiro dever analisar e pr em causa. Esta a diferena, ou uma delas. E a guerra, infelizmente, est muito longe do fim.

    No se veja aqui gratuito desrespeito pelas instituies militares. Dizer estas palavras at sinal de considerao. Saber de armas e de balstica, de tcticas e de estratgia, de certeza uma excelente coisa. Mas saber ler, saber ler-nos, coisa tambm

    excelente e de que o poder militar tiraria algum proveito.

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    Portugal, ou Porto Rico? (29 de Julho de 1977)

    Aos que por tudo e por nada deitam as mos cabea e se lastimam do mal que as coisas correm, aconselharia eu a leitura da Constituio: quer-se tnico melhor do que aquele primeiro artigo que, solenemente, entre palmas e abraos, proclama que Portugal uma nao soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformao numa sociedade sem classes? Mas queles que, por verdura dos anos ou exuberante florescncia da sade, tendem a ver tudo cor-de-rosa, o mesmo conselho daria. Ento veramos a que alturas subiriam as esperanas dos primeiros, veramos como trambulhariam ao rs da terra os exageros dos segundos. A panacia, a cura universal , afinal, barata, custa na minha edio umas pouqussimas dezenas de escudos, e bem tolo afinal este povo portugus que no percebe a que extremos chega a sua felicidade, abenoada por uma Constituio assim.

    Simplesmente, tambm em abundncia no falta quem custa do mesmo povo se v divertindo, ou se diverso no , ento pior, porque propsito, plano e sua fria realizao. Olhe-se para este governo que socialista se diz e tem no rtulo, obrigado a respeitar escrupulosamente a Constituio e tratando-a como mero farrapo de papel. Olhe-se para a idia e a prtica que o dito governo tem do que seja sociedade sem classes e transio para o socialismo: repare-se nas leis que os ministros produzem e que adequadas maiorias parlamentares tm vindo a aprovar, esquerda e direita, segundo a antiqussima tctica de jogar com os temores mtuos e obedecendo habilidade elementar de fazer poltica vista. Olhe-se, enfim, para no continuar uma enumerao que seria longa, e abandonando por hoje essas ninharias que para os senhores governantes so socialismo e classes, transio para ele e abolio delas, olhe-se no j citado primeiro artigo as palavrinhas que afirmam ser a Repblica Portuguesa soberana e baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular: sorria pois quem tiver vontade de chorar, carregue o sobrolho quem tenha o sestro de andar de caninha na gua.

    Sem dvida que foi a vontade popular, tomada em termos aritmticos, voto por voto, que fez do Partido Socialista (continuemos, para sua vergonha, a escrever a palavra por extenso) partido de governo e governo: mas contra o povo e, portanto, contra a

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    vontade dele (a no ser que os portugueses sejam irremediavelmente masoquistas) que o governo do Sr. Mrio Soares tem vindo a governar, praticamente desde que este celebrado socialista se sentou na principal cadeira do conselho de ministros. J foi mil vezes escrito, j foi mil vezes denunciado que o Partido Socialista est a governar contra especificaes essenciais da Constituio, e portanto contra o povo que elegeu os que a redigiram: evitemos, portanto, as repeties. Quando na semana passada falei de oportunismo e traio, no estava com certeza a pensar no PPD e no CDS, coerentssimos partidos que sabem to bem o que querem, que at sabem levar o Partido Socialista a fazer o que a eles convm, cada um na sua altura e segundo o seu interesse. Nisso, o Partido Socialista tem tima boca.

    Mas onde as coisas atingem o delrio, onde as palavras, coitadas delas, so magnificamente conspurcadas, quando se fala de dignidade da pessoa humana e de soberania. As palavras, meu carssimo e nico leitor, so infelizes, no podem defender-se de quem lhes troca o sentido, de quem no se sente obrigado a respeit-las, precisamente porque mnimo ou nulo o seu respeito pela pessoa humana. Falar em dignidade em Portugal, quando todos os dias se aprovam leis contra o povo, quando a polcia espanca e vem depois esconder a mo, negar que tivesse espancado, quando a subservincia se instalou nos corredores do poder, comea por ser indignidade e acaba por ser perda de sentido moral. O nosso pas atravessa uma crise econmica gravssima, toda a gente o sabe. E tambm vive uma profunda crise moral, mas essa crise, ao contrrio do que se quer fazer acreditar, no tem os seus mais elevados expoentes nem na droga, nem na criminalidade, nem na prostituio: paira mais alto e tem piores consequncias.

    E agora a soberania. Sim, realmente no somos Porto Rico. Tirando alguns lugares prprios onde naturalmente flutua, drapeja, paira e faz sombra a bandeira norte-americana - esta a nossa bandeira portuguesa, verde, encarnada, armilada, acastelada e, se a tradio verdadeira, chagada, que nos cobre a todos, mesmo quando em rigor nos no protege. Porm, a poltica nem sempre tem a cor das bandeiras. E toda a gente que no quer fechar os olhos ao que evidente ou no aceita que lhos fechem, sabe que h em Portugal uma eminncia parda que segura no poucos fios da vida portuguesa, aqueles fios com que se tem vindo a tecer, com mos de Washington e Duque de Loul, a rede principal que nos atou os movimentos libertados no 25 de Abril e no Primeiro de Maio. Essa eminncia

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    parda o embaixador Carlucci, o homem mais livre que existe em Portugal, se poder sinnimo de liberdade, se liberdade isto de dar ordens em Portugal como quem as desse em Porto Rico. Mas a Constituio continua a dizer que somos uma Repblica soberana.

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    O Gosto de Bater (5 de Agosto de 1977)

    Irmos, tive um, e morreu cedo. No sobrou tempo, nem a mim nem a ele, para praticar aquele gosto da agresso fraternal que transforma o mais novo em caixa de rufo do mais velho, quando no este, precisamente porque mais forte, que se guarda de usar os msculos e atura com pacincia. Se excetuarmos as saudosas prrias de bairro suburbano que em alguma coisa contriburam para a minha educao, nada aprendi das artes blicas, tanto mais que a tropa me veio a rejeitar na hora importantssima da inspeo militar, com fundamento numa clamorosa falta de proporo entre peso e altura. O caso, se bem entendi, tinha que ver com um tal ndice de Pignet, ou coisa parecida. Porm, paguei pontualmente e em paz a taxa, embora com alguns remordimentos de conscincia e o despeito de quem se viu repelido.

    Quer isto dizer que, no tendo eu feito recruta e havendo antes solenemente embirrado com a instruo de espingarda e metralhadora que pressurosos oficiais me pretendiam inculcar durante os ftuos recreios da Mocidade Portuguesa, no cheguei a acordar e muito menos alimentei aquelas tendncias agressivas que nos lugares de parada e quartel se espevitam e fomentam. O que, dito fica, no incompatvel com o meu grande respeito pela instituio: como qualquer burgus sentimental, sinto os arrepios da ordem ao ver passar tropa, bandeira, terno de cornetins e, nos tempos mais modernos, chaimites. Posso mesmo acrescentar que lhes devo, tomados em conjunto ou isolados, alguns momentos de compensadora comoo depois do 25 de Abril. Como tantos outros portugueses, tambm eu acreditei que em Portugal acontecera o grande milagre da histria dos povos: a abolio das barreiras entre o povo fardado e o povo paisano. Claro est que nos enganamos todos. Tudo ento parecia igual, belssima a nossa lio ao mundo, e eis que hoje por muito felizes nos devemos dar quando os militares consentem em ficar-se por um paternalismo condescendente, pelo arde quem deixa brincar as crianas, ao mesmo tempo que vo reivindicando papis de rbitro que no seguro sejam realmente merecidos, ou justificveis por razes de mera autoridade.

    Porm, considerando o que se vai vendo, ouvindo e lendo, at o paternalismo passou histria. Agora, na conversa de um s que a relao entre militares e civis, a

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    ameaa tornou-se to fcil como uma ordem de sentido, a promessa repressiva to desenvolta como uma continncia. Curioso que, perseverantes na imemorial tradio que sempre viu o poder das armas ao lado de quem detinha as armas do poder, represso e ameaa sejam dirigidas apenas e sempre contra um sector da populao: as classes trabalhadoras. Quanto a capitalistas, latifundirios, exploradores diversos, gente pelo contrrio benquista e conviva de banquetes, benesses, comendas e geral concrdia, esses esto e sempre estiveram a salvo de coronhadas e mais agresses. Fez parte do que pareceu milagre ver durante alguns meses o poder militar ao lado do povo, tentando compreend-lo, tentando compreender-se a si prprio, duas ignorncias postas frente a frente procura de remdio. Vivemos o milagre, sonhamos, acordamos, e no era dia. Noite ainda no ser, pois no, mas estas sombras parecem-se muito com o crepsculo da tarde.

    Acerca do gosto de bater que ornamenta Polcia e Guarda Republicana, no h quem duvide. Foram treinadas para isso, condicionadas, manipuladas ideologicamente, Depois do breve eclipse do 25 de Abril, a esto elas outra vez, fresqussimas e sabedoras, com mais dio no corao e uma grande vontade de desforra. Julgadas pelos seus atos, polcia e guarda no servem para muito mais do que isto, ou pelo menos nada h que paream fazer com tanto gosto. o nosso fado.

    Mas, pelos vistos, uma represso assim no bastava. Terceira fora promete agora entrar na competio da violncia, armadssima, eficaz, operacional. essa fora, se tomarmos como boas e ss as recentes declaraes do comandante da Regio Militar Centro, essa fora, repito, o Exrcito.

    Gravssimas palavras foram ditas, talvez ainda involuntariamente paternalistas (se admitirmos que os portugueses so todos uns garotos e o brigadeiro pai de ns todos), ou perigosamente conscientes: Se nos obrigarem a bater, temos mesmo de bater, embora contrariados. Mas estou convencido que, se bater a primeira vez, ou at a segunda vez, no ser preciso chegar terceira. Seremos, quando muito, obrigados a faz-lo uma ou duas vezes e no mais. Este recado brigadeiral, assim displicente, assim sobranceiro, com o seu ar contabilizante, para os trabalhadores do Alentejo e do Ribatejo, para a Reforma Agrria.

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    Leio e no acredito. Espero um desmentido, e ele no vem. Aguardo um toque de bom senso, um sinal de inteligncia, e o silncio que sempre precedeu as cargas da brigada ligeira. Este pas, oua quem tiver ouvidos, est assombrado por uma gigantesca palmatria, uma nacional menina-de-cinco-olhos, suspensa sobre cabeas que querem

    pensar, sobre mos que querem trabalhar. Bater uma vez? Duas vezes? Quem sabe se trs sero suficientes. Ou trinta. Ou trezentas.

    Ao menos, o meu irmo no me bateu. Nem eu a ele.

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    A Verdade e a Mentira (12 de Agosto de 1977)

    Isto de liberdade de expresso tem muito que se lhe diga. No antigamente fascista, quando no venerveis mas graduados ancios nos liam a prosa, e de lpis azul e carimbo esfacelavam as idias, a nossa grande satisfao acontecia se, por distrao do veterano de servio ou sua menor inteligncia, o recado passava, meio nas entrelinhas, meio no intervalo das letras, quantas vezes acordando depois frias na hierarquia. Ento tnhamos a inocncia de acreditar que, chegando o dia em que a mordaa casse, a reencontrada fora da verdade bastaria para tirar aos futuros senhores a tentao do abuso de poder, e, melhor ainda, os acautelaria no simples uso dele. Hoje j sabemos muito. Aprendemos, por exemplo, que a democracia burguesa a mais hbil forma de esvaziar, na prtica, a liberdade de imprensa: conserva-lhe a aparncia e anula-lhe os efeitos. Veja-se como o regime absorve, digere e neutraliza impavidamente quantas acusaes lhe faam, quantas denncias de conciliao, quantas desistncias, quantas servides. Veja-se como, sendo possvel dizer que o rei vai nu, diz-lo no chega para que o rei se tape ou tenha a simples decncia de pedir desculpa. Veja-se, enfim, como no faltando em Portugal os Watergates, o poder os vai ocultando aos nossos olhos, no por obra da censura que no h, mas do impudor que prolifera.

    A poltica portuguesa realmente original. Uma cadeira no poder quanto basta para irresponsabilizar quem l se senta, um servio prestado logo retribudo com padrinhos e protees. A imprensa protesta (aquela que no perdeu a vergonha, aquela que, pelo contrrio, a declara), e de que serve? O poder, se est de boa mar, encolhe os ombros; caso no, dispara a nota oficiosa, o inqurito, o improprio, e pe os seus serventurios da comunicao social em linha de trombones para abafar a pequena guitarra que se atreveu a perturbar o grande silncio do jogo de dados que hoje o exerccio do poder em Portugal. Jogo em que so os portugueses a massa do negcio, o rebanho a esfolar.

    Tem muito que se lhe diga a liberdade de expresso. Por exemplo: vamos imaginar que eu penso escrever aqui que o secretrio -geral do PS mentiroso. Vamos mesmo mais longe: vamos supor que j o escrevi. Que poder acontecer-me? Serei preso? Serei julgado? Terei de enfrentar a polcia de choque? Vo cercar-me como se eu fosse uma unidade

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    coletiva de produo? Cortam-me a gua e a luz? Ameaam-me pelo telefone? E se eu apresentar testemunhas, milhares de testemunhas presenciais, se eu juntar ao processo fotografias de todos os ngulos e distncias? Absolve-me o juiz? Condecora-me o governo? Faz-me continncia a tropa? Ou, ao contrrio de tudo isto, chamar mentiroso ao secretrio-

    geral do PS ousadia to pequena como afirmar que ele penteia o cabelo para trs? Pois verdade: o secretrio-geral do PS isso mesmo que eu pensava escrever e escrevi, no uso da liberdade de expresso de que gozo e sujeitando-me s consequncias que a lei de Imprensa prometa para estes casos. Porque, no podendo haver duas verdades contraditrias entre si, no sendo possvel que uma coisa seja e ao mesmo tempo no, ou as testemunhas me confirmam e o Sr. Mrio Soares dever pedir desculpa por ter mentido em pblico com fins partidrios, ou ter de reconhecer que lhe indiferente: a) dizer a verdade ou mentir; b) a opinio que o povo tenha de um primeiro- ministro que, na melhor das hipteses, se no mente de caso pensado, incapaz de medir as palavras que lhe saem pela boca fora, nisso se mostrando bom continuador do almirante Pinheiro de Azevedo.

    A verdade, senhor secretrio-geral, que o Pavilho se encheu sem dificuldades. Por duas razes principais: primeiro, porque no assim to difcil; segundo, porque os militantes e simpatizantes do Partido Comunista so uma gente endiabrada que vai a todas e que acredita nos seus dirigentes, muito mais quando tomam decises de to meridiana clareza e de to insofismvel oportunidade. Aquela direo, a quem uma sumidade j classificou de aterosclertica, tem um excelente crebro. gente de muito saber e experincia, com quem se pode por vezes no estar de acordo, mas que respeita o programa poltico do Partido e a meta da sua existncia. Quem me dera dizer o mesmo dos actuais dirigentes do PS, esse grupo apoplctico de caciques provisrios, gente de to pouco futuro poltico que j se v o fim do seu tempo, depois de terem adiado ( a sua responsabilidade histrica) as esperanas de socialismo em Portugal.

    Afinal, nem sequer a verdade revolucionria. Acabo de escrever a bvia verdade de que o secretrio-geral do PS mentiu, e onde est a revoluo? Onde est a revoluo, quando verdade que o governo constitucional desrespeita a Constituio? Onde est a revoluo, quando verdade que num juramento de bandeira um oficial foi impedido de ler artigos da Constituio? Onde est a revoluo, quando verdade que a Assemblia vota leis inconstitucionais, que no encontram reservas na apreciao e na promulgao? Onde

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    est a revoluo deste pas quando os governantes obedecem no Constituio que temos, mas quela cujo terreno ajudam a preparar?

    Enfim, h compensaes. Perde valor a moeda? Isso que importncia tem? Est a o impudor, que agora a moeda forte portuguesa.

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    A Mo do Finado (19 de Agosto de 1977)

    Levantar o brao e fechar o punho, pode ser um gesto de ameaa. No falta a quem desta nica maneira o veja e entenda, sobretudo quando so floresta os punhos levantados, quando certas palavras de ordem os movem, quando sobre as cabeas se apertam os ns duma vontade comum. Os tmidos, os assustadios, mas muito mais os que em tudo comandam imperativos de egosmo pessoal e de classe, vem no gesto a promessa de um juzo final, de um cataclismo, de um terremoto de 1977. Enganam-se os assustadios e os tmidos: um punho fechado no pode tanto, apenas sinal de mtuo reconhecimento, expresso de uma unidade, forma de jurar um compromisso. Quanto aos outros, reagem ao estmulo por uma espcie de reflexo condicionado que literalmente os lana na salivao do dio. lstima chegar-se a um tal ponto, no s de manipulao das conscincias dos primeiros, mas tambm de automistificao dos segundos.

    Porm, importa fazer desde j uma ressalva. Gestos como estes, de sinal ou festa coletiva, no esto livres de transformaes do seu sentido, de completas inverses. Basta recordar que a saudao nazifascista, de brao estendido e mo aberta, com a palma para baixo, a ver se chove, foi nos tempos romanos a saudao dos escravos. E os dedos postos em V, herana churchiliana que o PPD aprovou em sinal partidrio exclusivo, s no do vontade de rir porque a vitria, nestes dias, anda realmente comprometida com a direita, e as coisas srias no so para brincar. Sem contar que o prprio PPD j vai desleixando o gesto, e estende a pgina branca em que, com os parceiros da direita e da esquerda, se definir o novo sinal grfico da servido que para os portugueses se prepara.

    Est em curso a grande barrela. Gente paisana e militar, que durante meses basofiou de revolucionarssima, anda hoje a regenerar-se discretamente, apostando na fraca memria dos povos e na geral fragilidade dos telhados de vidro. Rasgam-se promessas de fidelidade e pergaminhos mais ou menos honrosos de servios prestados. Acertam-se faturas, combinam-se cotaes, regulamenta-se a traficncia - em cima das costas do povo, no lombo do povo, joga-se a banca francesa, a roleta, o pquer. A canastra vir mais tarde, quando as novas senhoras comearem a receber a visita das senhoras velhas.

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    Assim sendo, por que no haveria o Partido Socialista, no rasto do seu homlogo francs, de pensar meter uma rpida rosa na mozinha do seu emblema? O que conta o disfarce, e agora tornou-se urgente. Depois de se fazer grotesca distino entre mo esquerda e mo direita, vai a esquerda mascarar-se de rosa, para num terceiro tempo ficar

    apenas a flor, enquanto, envergonhada, a mo se esconder no bolso. Amanh, os dirigentes do PS alinharo, ao lado doutros seus pecados de juventude, este outro a que levaram uma boa parte do pas, contribuindo com a sua quota de logro para que milhes de portugueses andassem por ai de punho levantado, a querer fazer revolues.

    Estas coisas no acontecem por acaso. Rasgado o programa, trados os compromissos assumidos boca das urnas perante o povo portugus, que andava ali a fazer aquela mo crispada, aquele punho de trabalhador? Venha pois a florzinha, a rosa-ch, o amor-perfeito - e por que no o trevo de quatro folhas como smbolo da sorte que o povo teve quando, ensinado a temer o comunismo do PC, lhe puseram diante o socialismo do PS, sob a paternal bno do MFA, enquanto ao fundo, disciplinadamente, as Foras Armadas inteiras batiam a pala? Agora s falta ouvir as razes que o PS dar quando renunciar ao smbolo. Dir talvez que um punho assim fechado assustava as pessoas pacficas, que os tempos so de concrdia, no so de revoluo, que a rosa que sim, muito melhor do que o cravo, cujo apenas tem vinte ptalas, quando a rosa tem vinte e uma, e que portanto flor h s uma, a rosa e mais nenhuma. E os seus poetas cantaro a rosa, e este Portugal, que j era jardim beira-mar plantado, ser roseiral e jardim infantil. O punho cerrado do PS fica na simples memria das recordaes, algumas vezes espinho fundo a picar conscincias adormecidas ou acordadamente ocupadas na contabilizao dos seus ganhos e das nossas perdas.

    Tornou-se hoje claro que aquela mo naquela bandeira era um equvoco. Ou talvez um pressentimento. Mo cortada, mo decepada, com o seu jeito catalptico ou de troo embalsamado, mo de finado que acompanha o seu prprio enterro ei-la em vsperas de ser atirada para o caixote do lixo da Histria, ao som da ria Europa connosco em ritmo de Stars and Stripes. Na grosseira encenao que o Partido Socialista montou em Portugal, este no o nmero mais trgico, mas d a chave de muita coisa s vezes difcil de entender.

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    Estamos no tempo das facturas, mas tambm estamos no tempo das clarificaes. O PS avana, de cabea baixa e bandeira de rastos, para o lugar de convergncia onde se far a sua execuo. Vai passar pela grande provao da sua ainda to curta existncia, ele que j se gabou falsamente de centenrio. Morrer? Ter de morrer, ou no viver.

    Morreu o Partido Socialista! Viva o Partido Socialista! Mas onde est esse de que o

    Socialismo precisa?

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    Furtiva Lgrima (26 de Agosto de 1977)

    Um homem um homem, e no consta que um primeiro-ministro seja um bicho. E se verdade que vrias geraes de barba dura criaram e prolongaram o mito de que os homens no choram, parceira verdade que os vares portugueses, quando se lhes aflora a corda sensvel, lagrimejam como qualquer herona de fotonovela ou soluam profundamente como um heri camiliano. Fraquezas assim atacam-nos, no geral, entre quatro paredes, sem testemunhas, ou no outras alm das que meream o privilgio. Posto o que o leno ou as costas da mo apagam os vestgios, e a vida continua.

    O pior quando a objetiva fotogrfica ou a cmara de filmar fixam o instante, registram a sequncia: a fica um primeiro-ministro desarmado, com o papel a tremer-lhe na mo, os culos a escorregar para a ponta de um nariz que subitamente se congestiona, enquanto l em cima os olhos procuram uma fresta na pelcula da lgrima, os msculos se contraem para reter a comoo que ameaa desmanchar a fatigada composio do rosto, e a voz enrouquece e tem de suspender-se e dominar-se para que dois milhes de telespectadores no vejam um primeiro-ministro a chorar. Assim eu vi o Sr. Mrio Soares h oito dias na televiso, quando era mostrada a entrega da casa de Manuel Mendes ao Estado, e uma parte (oh, to pequena!) da intelectualidade portuguesa fazia cortejo e cercadura. Nesse momento, apesar de saber inconciliveis aquilo que penso e aquilo que o primeiro-ministro faz, no pude eu deixar de enternecer-me. Ali estava um homem aflito, a tropear na lgrima, a tentar disfar-la como um menino, e eu a olhar, respeitosamente a olhar, e depois a pensar como que a esquerda deste pas chegou a isto, a procurar descobrir as culpas e a desesperar das solues. Ponto este sobre que no vale a pena falar: o governo socialista vai to longe no seu mercadejar e na sua alienao, que o melhor no lhe mexer muito agora, no venha a a nusea.

    Mas o diabo da imagem perturba-me, confunde esta minha ira semanria, esta indignao. Est ali a imagem do Sr. Mrio Soares, primeiro-ministro por obra de votos que foram muitos e agora so muito menos, est ali um homem a recordar outro homem e a comover-se com isso, s porque o homem recordado foi um antifascista, um lutador, um

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    democrata. E tambm um escritor, um homem da cultura. At parece que Portugal de repente se reencontrou.

    Porm, que lgrimas reprimidas so essas? Mera fadiga nervosa? Sensibilidade fragilizada pelas tenses polticas, pelos acidentes da convergncia, pelas negociaes com o Fundo Monetrio Internacional? Manejo poltico muito a frio para envolver os ossos de Manuel Mendes no regao de um partido um pouco deserdado de intelectuais vivos? Ou, pelo contrrio, emoo real, sentidssima, de amigo? Decida quem puder, A mim s me cumpre refletir sobre o acaso ou a fraqueza que fez comover-se o Sr. Mrio Soares naquele momento, naquele lugar, ele to prtico, ele to estadista internacional, ele, enfim, to certo do seu lugar na Histria. Porque isso me d pretexto para o convidar, se e enquanto tiver tempo para isso, a virar um pouco os seus agora nublados olhos c para os lados onde se extenuam e j se vo extinguindo os artistas e os escritores desta terra, mal empregados e mal empregues, to desdenhados como no tempo do fascismo, to mal queridos como Manuel Mendes foi para os senhores que ento governavam. Deste lado de c ( em meu nome que falo agora) admite-se a sinceridade da comoo, mas h razo para suspeitar do que ela realmente cobre.

    Este governo tem uma secretaria de Estado da Cultura, dependente da presidncia do Conselho de Ministros, unha com carne, plano e prtica, flor e fruto. Que faz, porm, essa secretaria, essa presidncia, esse conselho, esse ministrio todo? Pela cultura, que se aproveite, nada. Inaugura um museu do trajo, vai Venezuela, corta subsdios, quebra a espinha ao teatro independente, ri-se do teatro amador, no d um suspiro sobre os problemas gravssimos do livro portugus, ignora as traficncias do papel e da pasta com que ele se faz ou que vem a render, despreza a imprensa progressista, promete os mundos e subtrai os fundos, repete, enfim, ponto por ponto, a costura cultural do marcelismo.

    Assim sendo (porque assim ) de que serve receber o primeiro-ministro a casa que foi de Manuel Mendes, comover-se ao ler palavras que provavelmente no ter escrito - se a cultura viva, que neste Pas retoma o caminho das antigas e sabidas penas, lhe estranha, alheia, tratada como inimiga? De que serve ter ficado eu prprio impressionado, quase a reconciliar-me com a imagem (s a imagem) do primeiro-ministro se tudo isso , afinal,

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    dramaturgia poltica sem consequncias, modos de levar o caldo da cultura ao moinho da secretaria, fantasias de telejornal em que o mais certo s eu ter reparado?

    E, alm disso, se o Sr. Mrio Soares j perdeu tantos amigos, tem a certeza de que o fala-direito que foi Manuel Mendes lhe estenderia hoje a mo?

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    Constituio e Palavra de Honra (1o de Setembro de 1977)

    Ns, portugueses, de constituies sabiamos pouco. Atiraram-nos com a de 1933 cabea, e por quarenta anos vivemos literalmente debaixo dela, por fim to alheados que era duvidoso ter o cidado corrente uma idia medianamente clara sobre o que Constituio era e para que servia. Sabiamos pouco, e hoje no seguro que saibamos muito mais. certo que a imprensa progressista faz da Constituio de agora o seu cavalo-de-batalha, vai com ela s lutas que pode, convoca e mobiliza leitores, gasta papel e tinta, insistindo, desesperando. Porm, sem efeitos: a mais avanada constituio deste lado da Europa, nosso orgulho e bandeira, vai sofrendo o destino de tantas outras grandes idias: fica a palavra que a diz, e o resto quase nada. Muita da mala-arte poltica consiste na utilizao de palavras que foram esvaziadas do seu sentido original: com papas, bolos e palavras dessas que se vo enganando os tolos na sua inocncia e o geral das pessoas na sua boa-f.

    E, contudo, no nos faltam autoridades e instituies cujo primeirssimo dever justamente defender a Constituio. Tantas so, em to diversos pontos da escala se arrumam, que se diria impossvel o menor atentado, a menor falta de respeito, a mais insignificante beliscadela. Desde as Foras Armadas ao presidente da Repblica, passando pela Administrao Pblica, pelos Tribunais, pelo Governo, pela Comisso Constitucional, pela Assemblia da Repblica e pelo Conselho da Revoluo, no faltam no papel e na letra dele defensores e promotores do acatamento constitucional. De tal maneira que os outros portugueses, assim protegidos, e sabendo proteger-se, poderiam, sem piores cuidados, tratar da vida, porque estariam alerta os basties da defesa dos direitos e liberdades. Sonhar to fcil que s precisa que nos deitemos a dormir.

    C no meu fraco entender, melhor seria acordarmos, porque isto, se alguma vez foi sonho, hoje pesadelo. Melindroso o tema, no haja dvida. Vai-se de degrau em degrau, do fcil para o difcil, e em dada altura no se pode evitar a vertigem: Vou dizer? No vou dizer? Pergunto? No pergunto? E esta perplexidade mostra-me a fora coerciva que o poder tem, mesmo quando no exerce, mesmo quando se limita a estar a, na solenidade da funo, na distncia que nunca se anula, mesmo, ou sobretudo, quando condescende: a realeza no se extinguiu com as monarquias.

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    Acordemos, ento, e ponhamos o dedo na ferida que di. Se pedra fossem chamadas, uma por uma as instituies citadas responderiam que a Constituio a menina dos seus olhos, vivem para ela, no pensam noutra coisa. Ser, porm, assim? Cumprem sempre os Tribunais e a Administrao Pblica a Constituio? Esto a os fatos para dar a

    resposta: julgamentos inquos, abusos de autoridade, agresses. E o governo? Este governo , simultaneamente, constitucional (pela via da eleio que o ps no poder) e anti-Constituio (por obra do que contra o que nela se consigna tem feito).

    Quanto Assemblia da Repblica, o menos que se dir que ali se tm cozinhado maiorias parlamentares que, na filosofia e na prtica, parecem observar, ou j um texto constitucional diferente, ou uma inteno dele para experimentar foras. Aqui haveria de valer-nos a Comisso Constitucional, mas no vale, to benvola e boa senhora se tem mostrado com os atropelos perpetrados pelo governo e pela Assemblia. H, pelo que se v, dois entendimentos do que seja cumprir e respeitar a Constituio: impor o seu estrito respeito, ou contentar-se com a manuteno das frmulas.

    E agora, que vem a seguir? Vem o Conselho da Revoluo, vem o presidente da Repblica. O Conselho da Revoluo aquele rgo militar, ou constitudo por militares, que transporta o seu nome de batismo desde que nasceu, ao sabor dos seus e dos nossos altos e baixos, de no poucas vicissitudes e inverses de marcha, sempre com o nome de revoluo, mas no necessariamente a mesma. Tem o Conselho (funes de garante do cumprimento da Constituio), frmula excelente que no difere da declarao do presidente da Repblica quando jura defender e fazer cumprir a Constituio da Repblica Portuguesa. Se as palavras obrigam, estas obrigam tanto que se diria absurda esta geral inquietao (e em muitos casos inquietao nenhuma, antes reacionria contentamento) de ver todos os dias a Constituio ludibriada, escamoteada, e sempre de igual maneira e com igual objetivo: liquidar a grande libertao do 25 de Abril, empurrar o povo (por jeito e fora) para um regime democrtico e orgnico assaz para reservar o governo aos polticos e o trabalho aos trabalhadores, isto , cada um no seu lugar, no lugar que convier a quem de lugares julga poder decidir para sempre.

    Temos uma Constituio que aponta para o socialismo, no falta quem haja ofcio e benefcio de a cumprir e fazer respeitar. Ento, por que no ela escrupulosamente

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    respeitada e cumprida? Que foras so essas que paralisam a vontade daqueles cujo primeiro dever comparar as leis com a Constituio e rejeit-las quando Constituio no obedeam?

    So perguntas que eu fao. A resposta esperam-na aqueles para quem a Constituio

    to importante como a palavra de honra. Pelo menos.

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    Recado para Joo Basuga (8 de Setembro de 1977)

    Se o tempo no fosse isto que , talvez em lugar de recado te escrevesse uma carta aberta. Era o que dantes se usava, um fingimento de tratar assuntos privados na praa pblica, quando, pelo contrrio, nem eram privados os assuntos nem mais o eram os destinatrios do que a pequena conta j de antemo conhecida. Agora, a carta aberta outra coisa, usa maisculas e vai mesa do rei, quero eu dizer que vai aos gabinetes dos ministros, sempre aberta e, salvo seja, cada vez mais descomposta. V l se eu ia cair em confuses, pr um ttulo, por exemplo, Carta Aberta para Joo Basuga, como se tu tal carta quisesses ou eu me atrevesse a sup-lo. Mais certo era ter eu perdido o juzo do que tu teres mudado em tuas opinies. Por estes motivos que o recado recado mesmo, como em portugus se diz e se usa comunicar entre amigos.

    Amigos somos, Joo Basuga, amigos de uma amizade que certa gente em Portugal tudo fez para que no existisse nunca: a amizade que, com uma simplicidade que a essa mesma

    gente tira o sono, liga o intelectual e o trabalhador, o escritor que em Lisboa vive e o operrio agrcola nascido, criado e amargado no Alentejo, o eu que ns somos aqui, o tu multiplicado em rostos de homens e de mulheres, firmeza vossa e nossa aprendizagem. Durante quase dois meses me sentei tua mesa, comi do que tu comias, o po e a azeitona, o peixe do rio, o porco, a acorda e as migas. Falamos muito, mas no tudo, porque dois meses quase nada e incrivelmente longa a histria dos vossos trabalhos. Contigo, com a Mariana Amlia tua mulher, com os teus filhos, aprendi ou confirmei duas ou trs coisas fundamentais: o parentesco essencial de quem no tem laos comuns de sangue, e tambm que na partilha da inteligncia nem sempre o melhor quinho cabe aos que tm ofcio de utiliz-la o dessa utilizao tiram proveito: debaixo do teu teto vivem alguns dos espritos mais agudos que alguma vez conheci.

    Porm, no posso esquecer que este recado para ser lido por outras pessoas. E se quanto ficou escrito era necessrio para que ficassem a conhecer-te um pouco aqueles que

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    no jornal me lem, importa que falemos agora de outras matrias. Aqui, na cidade, a Lei Barreto desanimou muitos de ns, mas hoje, decorridas essas semanas, podemos dizer que tnhamos razo e ao mesmo tempo no a tnhamos. Razo, porque tal lei uma iniquidade, e a nossa estpida confiana se recusava a acreditar que desvergonhas assim ainda fossem

    possveis num pas que fez uma revoluo, provou a liberdade, avanou uma constituio. Sem razo, porque provavelmente havamos esquecido, ou alguns no o sabiam sequer, a rijeza de pedra que sois, que partir poder, mas amolecer no. E porque no nos lembramos desta verdade que se mete pelos olhos dentro: a terra que o governo quer esquartejar e tornar a dar est a, no pode ser trazida ao Terreiro do Pao ou a S. Bento para ser submetida a trabalhos de alfaiate que rouba na fazenda; e se a terra est a e da no pode sair, so vossos os ps que caminham nela, so vossas as mos que a trabalham, so dos vossos pais e avs os ossos que esto debaixo dessa terra, depois de terem trabalhado e sofrido o que os filhos ainda hoje trabalham, mas, sofrido, basta. Ora, tendo com mais calma assim pensado, logo vimos que diminua o nosso desnimo na proporo da vossa serenidade, e que era outra lio que da recebamos. E agora que a violncia regressou ao Alentejo, no por vossa mo, mas pelas armas de quem to mau uso delas faz, viu-se que no possvel esperar de vs qualquer forma de traio ou de subservincia. A esta hora, h gente que nesta terra deita contas vida, ao ver que os tiros esto a sair pela culatra, que no basta fazer leis para que as leis sejam, e que a histria nestes ltimos anos portugueses andou mais depressa do que os polticos julgavam faz-la.

    Por minha parte, mesmo que a situao mais se agrave, estou sereno. Estarei sereno

    pelo tempo da vossa serenidade, promessa que fao, e quando breve a voltar, falarei contigo, Joo Basuga, e com os amigos, sobre estas coisas que vo acontecendo. E certamente no deixaremos de comentar um episdio que a mim me tem feito espcie: vai tu pensando nele e enquanto arrancas a cortia do sobreiro, entre dois golpes de machado, na pausa do almoo, na hora de pensar.

    De certeza deste f de que o presidente da Repblica no se tem poupado viagem: ele no Norte, ele no Centro, ele nas Ilhas, por toda a parte visto, sisudo, grave como convm ao seu modo de encarar a funo e lhe est no feitio. Todos andvamos preocupados com o abandono a que o Alentejo estava votado nisto de visitas presidenciais, e eis que num repente a visita se fez: no ir, foi. Mas v l tu, Joo Basuga, que, em terra

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    to cheia de homens, o presidente da Repblica apenas foi descer a Alter do Cho para ver os cavalos e o resto sobrevoou.

    No sei se viste passar o helicptero e se adivinhaste quem l ia. Nem sei se deves ter pena de no ter visto o presidente da Repblica: afinal, ele quem mais perde por no te conhecer a ti.

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    Pas Real, Real Pas (22 de Setembro de 1977)

    A paisagem poltica portuguesa deprimente. No vivo em S. Bento nem em Belm, no sou deputado ou ministro, nem casa civil ou militar: estou portanto fisicamente impedido de saber, desses altos pontos e postos, como se vem a si prprios os habitantes. Imagino que andam contentes, que dormem bem, que no perderam o apetite, adivinho que cada um deles, na hora do espelho, sorri complacente para a imagem fardada ou paisana que lhe sorri, e que, na mesma e noutras horas, julga mais do que merecido o seu destino ou a parte dele que por agora o lisonjeia. Os homens polticos (e isto vai dito sem malcia ou presuno) costumam ser duma fatuidade sem limites: tomam por justia imanente o que acidente fortuito ou fruto de intriga de gabinete, crem slido o que est em vsperas de cair, e, sobretudo, aprendem depressa o mau hbito de ter razo sempre, se que no se limitam a herd-lo como atributo corriqueiro do poder. So animais interessantes, de catlogo: dizem, escrevem, proclamam, variando pouqussimo, cheios de medo de que os no tomem a srio, que o sinal mais certo da mediocridade. Com perdo de quem do teatro fez amor e profisso, o poltico corrente como um ator mascarado de ator, com todos os remendos vista, salta-pocinhas de ministrio e rbula cmica. Como no haveria de ser deprimente esta paisagem, esta comdia, este desgosto?

    Nos trs anos e meio decorridos desde o 25 de Abril aprendemos estas e outras elementaridades. Aprendemos, por exemplo, que uns queimaram os dedos, mas que as castanhas as comem os outros. Aprendemos a reconhecer em alguns sorrisos e gravidades da democracia nova os traos recompostos do fascismo velho. Aprendemos que as boas constituies fazem ainda melhores vtimas quando os conceitos da constitucionalidade e inconstitucionalidade so pau para toda a obra, sobretudo clandestina. Aprendemos a srio o que o Ea j tinha avisado a sorrir: que os Raposes no triunfam sem uma descarada coragem de afirmar, e estas raposas tm-na toda. E aprendemos, tambm, uma dolorosa evidncia: que afinal no prestam para nada muitos dos homens que foram esperana do povo no tempo do fascismo. Essa foi a grande derrota portuguesa.

    Significa isto que o ganhar ou o perder nacional haveriam de ser obra de pessoal poltico e ningum mais? No significa tal. Mas significa que muitas vezes os povos

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    perdem nos corredores do poder aquilo que ganharam luz do dia em revolues e trabalho. Significa que isso se v hoje em Portugal: uma ou duas centenas de polticos gozam a vida e afagam a sua pequena glria em cima do cansado lombo portugus, lugar excelente para cavalarias que j de longe vm. Que Carneiros e Amarais cultivem de gosto esse desporto, est-lhes na educao e na massa do sangue. Outros, s por traio.

    Anda agora muito na boca dos polticos o pas real. Os polticos tm destas habilidades: substituem o que no compreendem pelo que apenas repetem. E como aquilo que muito se repete, fora que se decore, no raro que fale fluente quem daquilo que diz pouco sabe. Introduz-se no discurso psitcico a frmula pas real e espera-se que acreditemos na sabena do orador, na compreenso mstica da vida do povo, fenmeno osmtico e simblico aqui nado e criado para o bem geral, com absoluta inveja das naes. Ora, o dito apenas cantiga, ria de pera, toada para adormecer. Na boca desses senhores, o pas real uma gazua, e nada mais. Invariavelmente demaggica. Se o povo votou com generosidade e segundo a convenincia, por isso mesmo pais real, mas, se est contra, se protesta, inventa-se rapidamente um pas real novo, de sinal contrrio, agora sim cofre de virtudes, de vocao sacrificial. Neste estilo poltico, o pas real no vale muito mais do que a maioria silenciosa. O resto so truques de linguagem.

    Est a o povo portugus. Chamem-lhe o que quiserem de bom ou de mau consoante os humores, mandem-no emigrar ( dispora!) e transferir dinheiro, ponham-no a formar alas, a bater palmas e a impelir criancinhas com flores frente e beijo ensinado, faam-no pagar impostos e ver televiso. Digam-lhe que o pas real, lisonjeiem-no quando precisarem de votos para as urnas eleitorais, agora que j as urnas africanas o no requerem. Ele far tudo isso. Foi habituado desde sempre a algumas coisas destas, outras aprendeu depressa durante o tempo da sua confiana.

    Mas de nojo o tempo que vivemos hoje, grave sinal este, senhores da governana de S. Bento ou de Belm. Uma coisa a crise, outra coisa o nojo; uma coisa a vida cara, outra coisa a repugnncia do povo por quem fez do ludbrio a grande arma poltica. E eu no sei tudo, longe disso, no tenho helicpteros nem automveis s ordens para percorrer os montes e as plancies. Mas pasmo diante da cegueira j incurvel de quem manda: para um povo em mudana no servem polticas paralisantes nem polticos de passo curto. Este

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    pas real est, por seu p, a transformar-se num real pas que aprende, na experincia, como se fazem, para que servem e a quem servem os polticos da hora. E quando deixam de servir.

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    Vou Amotinar-me (29 de Setembro de 1977)

    Ttulos como este, tm o pior dos defeitos: dizem logo tudo, e avisam as autoridades, precisamente o que nesta altura menos me conviria. Porm, no se me deve censurar o excesso de franqueza: vivemos num pas tolerantssimo, o mais de liberdade que possvel, e, sendo assim, no me ficaria bem estar com arcas encoiradas, a esconder um projeto que nem sequer traz novidade merecedora de patente. Quanto s autoridades, estou que no daro por este escrito: umas andam pelo Alentejo a sovar alegremente os trabalhadores, com apoio areo e canino; outras, remansosas, param solenes diante dos automveis mal estacionados, e em canhenhos adrede registram a matrcula para a multa, embora sejam tambm muito senhoras de seus bastes eltricos, viseiras, elmos e cargas a matar. Vai a vida de tal maneira que comea a ser tempo de abrirem os jornais, ao lado da pr-histrica seco dos acidentes de viao, uma outra, modernssima, para a qual, j que estou com a palavra, posso dar eu o ttulo: acidentes de represso. Pelo andar da carruagem, podemos apostar que em pouco tempo os acidentes na estrada faro triste figura ao lado da nova rubrica. Ser uma originalidade do processo.

    Que tem outras. Uma delas o direito a conferncia de imprensa de que passaram a usufruir os amotinados. uma grande conquista. J se pensou o que ser amanh (admita-se esta singela extrapolao) amotinarem-se os doentes nos hospitais e reclamarem conferncia de imprensa para dizerem, por palavras suas, que vida e que morte tm? E as crianas asiladas, se resolvem amotinar-se? E os reformados, com mais re-fome do que re-forma? Tantas conferncias de imprensa quantos os motins, tudo a amotinar-se e a dar notcias, e os rgos de comunicao social, ali, atentos e de vontade, bebendo as palavras do doente mais perdido, da criana mais torturada, do reformado mais msero.

    Por mim, o que vou exigir. Tenho tudo combinado e garantido: armas recebidas do exterior, contatos via telefone e via rdio assegurados, e, mais importante do que tudo isto, a conivncia do meu vizinho. Garanti-lhe que no havia perigo, s uma bala perdida, e ele ps-se s minhas ordens para refm, com a mulher, a sogra e quatro filhos. J me disse que onde comem sete bocas, comem oito, e, pelo tempo que durar o motim, eu que no me aflija. Portanto, mal me apanhe em casa dele, de arma engatlhada, tudo encostado parede,

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    a primeira coisa que fao pedir a conferncia de imprensa. Quero-os todos ali, sentados nos degraus da escada, com os gravadores e as esferogrficas, quero as cmaras de televiso e os projetores. Ento direi quais so as minhas exigncias.

    No vou reclamar a liquidao do Partido Comunista. Isso no fao. C por coisas: uma gente com quem me tenho dado bem, conheo-os h muito tempo, e, para trabalhos,

    j lhes basta. Mas, fora isso, vou exigir tudo. cabea, exijo um governo socialista. Tenho andado a ler a Constituio e se as palavras no me enganam, se os mestres me ensinaram a soletrar em termos, diz-se ali que o Estado Portugus tem por objetivo assegurar a transio para o socialismo. Logo, preciso um governo socialista. Nada mais claro. Depois, e na passada, exijo a criao de uma comisso constitucional para fiscalizar as leis, porque nisto de governos e assemblias no h que fiar, apanham-se no poleiro e logo esquecem o que prometeram. Eu que no vou esquecer-me de exigir que os embros da dita comisso constitucional sejam a favor do socialismo, porque tolo seria se me contentasse com uma comisso qualquer, s por ter o nome de constitucional.

    Outra coisa que eu exijo um conselho da revoluo. J falei deste assunto com os meus vizinhos, e eles concordam. Esto at prontos a dar-me uma mozinha quando for da conferncia de imprensa. Dizem eles que isso da Constituio est muito bem, mas que, para fazer o socialismo em terra que foi de capitalistas e de latifundirios, s mesmo com uma revoluo, e portanto com um conselho. Este meu vizinho tambm tem umas idias acerca do presidente da Repblica, mas a fui muito firme: afinal, quem se amotina sou eu, e, por quanto entendo, com uma constituio destas, um governo socialista, um conselho que seja de revoluo e uma comisso constitucional a favor, o presidente nunca poder estar contra. Para que amos ns arranjar mais complicaes?

    Porque no fundo, eu sou um homem sossegado. Se amanh vou descer a escada de G3 em punho, assaltar a casa do vizinho e ocup-la, se vou fazer sete refns e exigir conferncia de imprensa e o mais que disse, porque j me sinto cansado de palavras, de notas oficiosas, de leis sem vergonha e de artigos de jornal, a comear por estes. Pensei que um de ns, o leitor ou eu, devamos fazer um gesto que desse brado, que obrigasse a gente mandante a perceber que no mais capaz nem mais patriota do que qualquer portugus de trs-um-vintm, desses a quem j no se d ouvidos. Por isso, tomei a deciso: vou

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    amotinar-me. Se Custias pde, eu posso. E no por costela criminosa, no senhor, por indignao.

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    Os Independentes (13 de Outubro de 1977)

    Comeo por declarar que nada tenho contra os independentes. De duas uma: ou no so homens de partido, ou no existe o partido a que aceitariam sacrificar a independncia que, por enquanto, prezam. Se no so homens de partido, justo que defendam a posio; do mesmo modo defendo eu a dependncia que assumi. Se o partido no existe, no direi que o criem: por definio, os independentes so, cada um deles, o seu prprio partido, a parte prpria: daro votos, sem maior compromisso, ou apenas tcito, na confidncia do boletim, da esferogrfica e da urna. Tm, porm, os independentes a enorme vantagem da disponibilidade, a aura de uma candura original que os teria preservado da contaminao partidria. Todos podemos ser chamados, mas s eles tm garantida a probabilidade de ser escolhidos. E disto falarei um pouco. (Obviamente me no refiro queles para quem a independncia s o disfarce verbal do oportunismo, embora nem sempre seja fcil distinguir uns dos outros.)

    Trs anos de outra vida em liberdade (hoje sob alguma vigilncia) no curaram maleitas histricas. E uma delas, apontada, radiografada, posta na mesa da anatomia, isso a que se deu nome de sebastianismo. Lugar-comum, banalidade, j parece sinal de pouca imaginao e nenhuma sabedoria falar de tal coisa. Que estes rtulos no nos calem. Porque sebastianismo no s esperar por D. Sebastio, adorar D. Pedro V, andar com Sidnio s costas ou empurrar para a frente Ramalho Eanes. O sebastianismo muito mais subtil do que esta elementaridade, muito mais dialtico do que essa simpleza. D. Sebastio tambm pode ser coletivo. Hoje, nesta exata hora, o Rei Virgem encarnou nos independentes. Da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, no faltam em Portugal foras polticas e sociais. Do nazifascismo dos Kalzas e outros mirnes, passando pelas peas sobressalentes e alternativas (CDS, PPD, PPM, CIP, CAP, e seus aclitos de mscara esquerdista), at ao socialismo e ao comunismo consequentes, o leque no est completo ou em vias de completar-se. Nele, como j se viu, no querem, partidariamente, alinhar os independentes. (Curioso no entanto notar que no h independentes de direita. Em regra, os independentes so de esquerda, e orgulham-se disso, o que uma singular maneira de fazer poltica contra a dita direita.)

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    Ora, por motivos que todos sabem, mas que muitos fingem esquecer, ocultando-os sob outros que so ludbrio e conto-do-vigrio, a esquerda no se uniu: um esquerdismo de adolescncia e um anticomunismo serdio, ambos eficazes, somados aos manejos da conspirao contra-revolucionria internacional, impediram e impedem que a Constituio

    (socializante) seja cumprida: desgraadamente, no vivemos com a Constituio que temos. Desunida, a esquerda poltica resiste graas ao prestgio histrico que lhe resta e, sobretudo, graas ao apoio de sectores vitais para a sua sobrevivncia: a classe operria, o campesinato organizado, a pequena burguesia esclarecida, a intelectualidade progressista. Resiste a esquerda, mas a direita avana. Avana pelas brechas, pelas fendas, pelas debilidades, manipula e joga com as fomes de poder. E avana sob a proteo de liberdades que sempre detestou e que s a esquerda, enquanto e quando no poder, lhe poderia ter dado. Se amanh a esquerda vier a pr o pescoo no cepo, poder dizer, consoladamente, para a Histria: Em liberdade, aquele machado vai cortar-me a cabea.

    Entre uma direita que se restabelece economicamente e uma esquerda politicamente paralisada, ressuscitou o velho sebastianismo nacional. S que, desta vez, no o ressuscitaram as massas. Gerou-se e est em gestao para os lados da barra do Tejo (a tradio tem seu peso, daquelas bandas que o Desejado viria no meio da bruma) e prope-se ser o remediador dos males portugueses, sob o patrocnio, conchego e estimulao do presidente da Repblica, e bno de um governo desacreditado. Assim esto dizendo as gazetas.

    No meu entender, navega-se em plena fico poltica, revelia da realidade da luta de classes. Navega-se tambm na babugem tecnocrtica, pretensamente alheada de servides Polticas e de compromissos esquerda e direita. Quero acreditar na boa inteno. E, depois de o dizer, a mais no sou obrigado. Juntar seis, ou oito, ou um governo presidencialista todo feito de independentes, que poltica , afinal? Que economia? Que projeto? E a quem vo servir o projeto, a economia e a poltica? explorao, ou libertao? Ao capitalismo que regressa, ou ao socialismo que retrocede?

    Pel