Folha Online - Sinapse - Rubem Alves_ Sobre Os Perigos Da Leitura - 16-12-2003

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16/09/13 Folha Online - Sinapse - Rubem Alves: Sobre os perigos da leitura - 16/12/2003 tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Ffolha%2Fsinapse%2Fult1063u687.shtml 1/3 16/12/2003 - 03h12 Rubem Alves: Sobre os perigos da leitura RUBEM ALVES colunista da Folha de S.Paulo Nos tempos em que eu era professor da Unicamp, fui designado presidente da comissão encarregada da seleção dos candidatos ao doutoramento, o que é um sofrimento. Marcelo Zocchio Dizer "esse entra, esse não entra" é uma responsabilidade dolorida da qual não se sai sem sentimentos de culpa. Como, em 20 minutos de conversa, decidir sobre a vida de uma pessoa amedrontada? Mas não havia alternativas. Essa era a regra. Os candidatos amontoavam-se no corredor recordando o que haviam lido da imensa lista de livros cuja leitura era exigida. Aí tive uma idéia que julguei brilhante. Combinei com os meus colegas que faríamos a todos os candidatos uma única pergunta, a mesma pergunta. Assim, quando o candidato entrava trêmulo e se esforçando por parecer confiante, eu lhe fazia a pergunta, a mais deliciosa de todas: "Fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar!". Pois é claro! Não nos interessávamos por aquilo que ele havia memorizado dos livros. Muitos idiotas têm boa memória. Interessávamo-nos por aquilo que ele pensava. O candidato poderia falar sobre o que quisesse, desde que fosse aquilo sobre o que gostaria de falar. Procurávamos as idéias que corriam no seu sangue! A reação dos candidatos, no entanto, não foi a esperada. Aconteceu o oposto: pânico. Foi como se esse campo, aquilo sobre que eles gostariam de falar, lhes fosse totalmente desconhecido, um vazio imenso. Papaguear os pensamentos dos outros, tudo bem. Para isso, eles haviam sido treinados durante toda a sua carreira escolar, a partir da infância. Mas falar sobre os próprios pensamentos —ah, isso não lhes tinha sido ensinado! Na verdade, nunca lhes havia passado pela cabeça que alguém pudesse se interessar por aquilo que estavam pensando. Nunca lhes havia passado pela cabeça que os seus pensamentos pudessem ser importantes.

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Texto avulso de grande importâcia para o pensamento crítrico quanto a importÂncia da leitura na contemporaneidade.

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    16/12/2003 - 03h12

    Rubem Alves: Sobre os perigos daleitura

    RUBEM ALVEScolunista da Folha de S.Paulo

    Nos tempos em que eu era professor da Unicamp, fui designado presidente dacomisso encarregada da seleo dos candidatos ao doutoramento, o que umsofrimento.

    Marcelo Zocchio

    Dizer "esse entra, esse no entra" uma responsabilidade dolorida da qual no se saisem sentimentos de culpa. Como, em 20 minutos de conversa, decidir sobre a vida deuma pessoa amedrontada? Mas no havia alternativas. Essa era a regra.

    Os candidatos amontoavam-se no corredor recordando o que haviam lido da imensalista de livros cuja leitura era exigida. A tive uma idia que julguei brilhante. Combineicom os meus colegas que faramos a todos os candidatos uma nica pergunta, amesma pergunta. Assim, quando o candidato entrava trmulo e se esforando porparecer confiante, eu lhe fazia a pergunta, a mais deliciosa de todas: "Fale-nos sobreaquilo que voc gostaria de falar!".

    Pois claro! No nos interessvamos por aquilo que ele havia memorizado dos livros.Muitos idiotas tm boa memria. Interessvamo-nos por aquilo que ele pensava. Ocandidato poderia falar sobre o que quisesse, desde que fosse aquilo sobre o quegostaria de falar. Procurvamos as idias que corriam no seu sangue!

    A reao dos candidatos, no entanto, no foi a esperada. Aconteceu o oposto: pnico.Foi como se esse campo, aquilo sobre que eles gostariam de falar, lhes fossetotalmente desconhecido, um vazio imenso. Papaguear os pensamentos dos outros,tudo bem. Para isso, eles haviam sido treinados durante toda a sua carreira escolar, apartir da infncia. Mas falar sobre os prprios pensamentos ah, isso no lhes tinhasido ensinado!

    Na verdade, nunca lhes havia passado pela cabea que algum pudesse se interessarpor aquilo que estavam pensando. Nunca lhes havia passado pela cabea que os seuspensamentos pudessem ser importantes.

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    Uma candidata teve um surto e comeou a papaguear compulsivamente a teoria de umautor marxista. Acho que ela pensou que aquela pergunta no era para valer. No erapossvel que estivssemos falando a srio. Deveria ser uma dessas "pegadinhas"sdicas cujo objetivo confundir o candidato. Por vias das dvidas, ela optou pelocaminho tradicional e tratou de demonstrar que havia lido a bibliografia. A eu ainterrompi e lhe disse: "Eu j li esse livro. Eu sei o que est escrito nele. E voc estrepetindo direitinho. Mas ns no queremos ouvir o que j sabemos. Queremos ouvir oque no sabemos. Queremos que voc nos conte o que voc est pensando, ospensamentos que a ocupam...". Ela no conseguiu. O excesso de leitura a havia feitoesquecer e desaprender a arte de pensar.

    Parece que esse processo de destruio do pensamento individual consequncianatural das nossas prticas educativas. Quanto mais se obrigado a ler, menos sepensa. Schopenhauer tomou conscincia disso e o disse de maneira muito simples emalguns textos sobre livros e leitura.

    O que se toma por bvio e evidente que o pensamento est diretamente ligado aonmero de livros lidos. Tanto assim que se criaram tcnicas de leitura dinmica quepermitem ler "Grande Serto: Veredas" em pouco mais de trs horas. Lerdinamicamente, como se sabe, essencial para se preparar para o vestibular e parafazer os clssicos "fichamentos" exigidos pelos professores. Schopenhauer pensa ocontrrio: " por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de no ler sumamente importante".

    Isso contraria tudo o que se tem como verdadeiro, e preciso seguir o seupensamento. Diz ele: "Quando lemos, outra pessoa pensa por ns: s repetimos o seuprocesso mental". Quanto a isso, no h dvidas: se pensamos os nossospensamentos enquanto lemos, na verdade no lemos. Nossa ateno no est notexto. Ele continua: "Durante a leitura, nossa cabea apenas o campo de batalha depensamentos alheios. Quando esses, finalmente, se retiram, o que resta? Da se segueque aquele que l muito e quase o dia inteiro perde, paulatinamente, a capacidade depensar por conta prpria. Esse, no entanto, o caso de muitos eruditos: leram at ficarestpidos. Porque a leitura contnua, retomada a todo instante, paralisa o esprito aindamais que um trabalho manual contnuo".

    Nietzsche pensava o mesmo e chegou a afirmar que, nos seus dias, os eruditos sfaziam uma coisa: passar as pginas dos livros. E com isso haviam perdido acapacidade de pensar por si mesmos. "Se no esto virando as pginas de um livro,eles no conseguem pensar. Sempre que se dizem pensando, eles esto, narealidade, simplesmente respondendo a um estmulo o pensamento que leram... Naverdade eles no pensam; eles reagem. (...) Vi isso com meus prprios olhos: pessoasbem-dotadas que, aos 30 anos, haviam se arruinado de tanto ler. De manh cedo,quando o dia nasce, quando tudo est nascendo, ler um livro simplesmente algodepravado..."

    E, no entanto, eu me daria por feliz se as nossas escolas ensinassem uma nica coisa:o prazer de ler! Sobre isso falaremos...

    Rubem Alves, 70, escritor e educador, autor de "Conversas sobre a Educao" (Verus),"Quando Eu Era Menino" (Papirus) e "Livro sem Fim" (Loyola), entre outros.Site: www.rubemalves.com.br

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