FOLHA INFORMATIVA Nº 30-2010 · anuência da Junta de Freguesia da Costa da Caparica e da Câmara...

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FOLHA INFORMATIVA Nº 30-2010 OS PALHEIROS HISTÓRICOS (“Barracas”) DA COSTA DA CAPARICA 1ª Parte O alerta para a existência de um valiosíssimo património arquitectónico O projecto dos Avieiros foi alertado para a existência de casas de madeira assentes nos areais da Praia da Saúde, na Costa da Caparica, decerto construídas por pescadores no passado. Fomos alertados para a possibilidade de essas casas poderem vir a ser demolidas muito em breve por força da aplicação de um Plano de Pormenor do Programa Polis para o Litoral, com a anuência da Junta de Freguesia da Costa da Caparica e da Câmara Municipal de Almada. O alerta proveio de muitos moradores dessas habitações, que não aceitam ver o seu património destruído. Por isso nos deslocámos até à Costa da Caparica e fomos de seguida à Praia da Saúde. Chegados à Costa da Caparica verificámos por vários sinais que a povoação teve na sua génese a labuta dos pescadores, o que se torna evidente no magnífico barco de mar em forma de meia-lua, presente numa das principais artérias da povoação. O barco meia-lua, por alguns designado como “o mais belo barco do mundo”. Sintomaticamente encontra-se junto a uma das praças mais movimentadas da Costa da Caparica O passo seguinte do nosso trabalho foi deslocarmo-nos à Praia da Saúde para nos reunirmos com os moradores, em casa de um deles, para recolhermos os seus testemunhos, e imagens

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FOLHA INFORMATIVA Nº 30-2010

OS PALHEIROS HISTÓRICOS (“Barracas”) DA COSTA DA CAPARICA

1ª Parte – O alerta para a existência de um valiosíssimo património arquitectónico

O projecto dos Avieiros foi alertado para a existência de casas de madeira assentes nos areais

da Praia da Saúde, na Costa da Caparica, decerto construídas por pescadores no passado.

Fomos alertados para a possibilidade de essas casas poderem vir a ser demolidas muito em

breve por força da aplicação de um Plano de Pormenor do Programa Polis para o Litoral, com a

anuência da Junta de Freguesia da Costa da Caparica e da Câmara Municipal de Almada.

O alerta proveio de muitos moradores dessas habitações, que não aceitam ver o seu

património destruído. Por isso nos deslocámos até à Costa da Caparica e fomos de seguida à

Praia da Saúde. Chegados à Costa da Caparica verificámos por vários sinais que a povoação

teve na sua génese a labuta dos pescadores, o que se torna evidente no magnífico barco de

mar em forma de meia-lua, presente numa das principais artérias da povoação.

O barco meia-lua, por alguns designado como “o mais belo barco do mundo”. Sintomaticamente

encontra-se junto a uma das praças mais movimentadas da Costa da Caparica

O passo seguinte do nosso trabalho foi deslocarmo-nos à Praia da Saúde para nos reunirmos

com os moradores, em casa de um deles, para recolhermos os seus testemunhos, e imagens

das casas que nos tinham identificado

(ver o Anexo 1 desta Folha

Informativa). Assim fizemos, tendo

ouvido as pessoas e as suas razões,

numa das casas de madeira cedidas

para o efeito por um dos proprietários.

Estes são possuidores de

documentação oficial que prova,

legaliza e legitima a posse de cada um

dos palheiros identificados. No

entanto, a partir de 1991 começaram a ver-lhes negadas pelas autoridades a renovação das

licenças legítimas, sob pretextos vários (ver texto em ficheiro anexo a esta Folha).

Passados estes anos sem lhes

autorizarem a renovação das licenças,

foram agora notificados pelas

entidades oficiais que gerem o

Programa Polis da Costa da Caparica,

para removerem as “barracas de

praia” (ver o anexo respectivo), como

aquelas entidades as consideram, de

uma forma que revela a ignorância

daquele valor patrimonial e histórico.

Por total desconhecimento, acreditamos nós, os responsáveis do Programa Polis da Costa da

Caparica consideram afinal como barracas de praia os palheiros dos pescadores da Costa da

Caparica.

Sendo por nós considerados como palheiros, são definidos como casas de madeira,

construídas em tempos atrás por pescadores, de acordo com uma matriz originária da região

da Gândara, particularmente de Ílhavo, de onde este tipo de construção foi trazido pelas

comunidades piscatórias do passado, que se fixaram ao longo da costa e também na Costa da

Caparica (contribuindo para construir a identidade que hoje a povoação possui).

A este propósito, consultámos o site oficial da Junta de Freguesia da Costa de Caparica e,

sintomaticamente, vimos aí que quando se considera a história local, poucas referências são

feitas aos pescadores que contribuíram para cimentar a identidade local, o que ajuda a

entender o distanciamento a que a instituição se encontra relativamente ao reconhecimento

da indiscutível riqueza deste património histórico e cultural.

O elevado número de palheiros actualmente

existentes na Praia da Saúde, na Costa da

Caparica – quarenta e seis – é sem dúvida um

“achado” no contexto da caracterização,

actualmente em curso, do legado histórico -

para a cultura Portuguesa - dos pescadores da

nossa costa ocidental. Em nenhum outro ponto

da nossa costa se pode testemunhar esta ocorrência, porque, como se sabe, em todo o lado

onde existiam, os palheiros foram destruídos para dar lugar a construções de cimento e

urbanizações para o veraneio.

As peripécias que envolvem este

“aparecimento” podem acrescentar-nos muito

em relação ao conhecimento que poderemos

vir a ter da épica dos pescadores da costa

ocidental Portuguesa. Na verdade, sabemos

que estes palheiros se localizavam há mais de

cinquenta anos atrás na Cova do Vapor, e

eventualmente também em Algés e no Dafundo. Sabemos, pela experiência de outros locais,

que os palheiros históricos da costa ocidental Portuguesa foram destruídos depois de as

autarquias terem sucessiva e premeditadamente negado aos proprietários a possibilidade de

lhes renovar as suas licenças, tal como ocorreu por exemplo na Praia de Mira. Essa política

deliberada (não só em Mira mas em toda a costa ocidental) teve como resultado o abandono

das casas de madeira, por falta de condições, e a sua substituição posterior por enormes

massas de urbanizações que nas últimas décadas tudo descaracterizaram e desvalorizaram.

Não é difícil perceber que se está aqui a tentar repetir a mesma dramática experiência.

A Profª Doutora Raquel Soeiro de Brito, que em

1958 publicou a sua tese de licenciatura em

Geografia dedicada à temática dos Palheiros de

Mira, considera hoje – na sua qualidade de

vice-presidente da Academia de Marinha – que

se os decisores tivessem tido o bom senso e a

visão estratégica e cultural necessárias,

poderíamos hoje estar a falar desses mesmos palheiros de Mira como um património da

Unesco. O que se verifica, pelo contrário, é que na Praia de Mira, só para dar este exemplo

paradigmático, dos mais de trezentos palheiros históricos ali existentes há somente 50 anos

atrás, existem hoje pouco mais de três!

Nas VIII Jornadas Culturais da Gândara, realizadas no mês

de Maio de 2010 [na foto ao lado], considerou a Profª

Raquel Soeiro de Brito que “na duna norte da Praia de

Mira, havia construções de palheiros que nunca deveriam

ter sido destruídos, nomeadamente muitos palheiros

sobre estacaria, alguns palheiros de 2 e 3 andares e

outros, tais como armazéns de produtos de pesca ou de

resguardo de animais”.

A este respeito vale a pena transcrever o que foi escrito na

nossa Folha Informativa Nº14-2010, de Junho de 2010: A

partir do séc. XX deu-se o assalto da construção civil ao litoral, com uma enorme densidade de

habitação, indústria e condomínios de luxo (villas), em paisagens muito ricas do ponto de vista

ambiental, mas progressivamente degradadas devido a esse tipo de ocupação.

Se se considerarem os espaços artificializados em 2004, 2/3 da população Portuguesa já estava

localizada no litoral, aí gerando 85% do PIB nacional. Aí também as construções de casas

secundárias, bem como apartamentos residenciais e turísticos, são desenfreadas. No entanto,

se os palheiros tivessem sido conservados, se essas preciosidades tivessem sido preservadas,

poderiam hoje ser propostos e aceites como património da UNESCO. Perdeu-se muito mais com

a sua destruição do que se ganhou.

Sendo construções históricas, a tipologia dos

palheiros encontra-se muito bem estudada e

identificada por investigadores clássicos como

José Leite de Vasconcelos, Ernesto Veiga de

Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira

ou Raquel Soeiro de Brito, dentre vários

outros. O próprio Raul Brandão, que viveu

parte da sua vida na Praia de Mira, aos palheiros se refere de uma forma detalhada.

Assim consideradas, como afirma a Dra. Catarina Manalvo [proprietária de uma dessas casas,

por herança do seu avô – o que revela a posse na família por três gerações] “o património

cultural existente nestes Palheiros, é testemunho vivo da história - e da própria origem

fundacional - da Costa de Caparica”. Tem razão a Dra. Catarina, porque foram os pescadores

da Costa da Caparica que estiveram na origem desta povoação.

Destruir estes palheiros é uma ofensa à memória e ao sacrifício dos que fundaram a Costa da

Caparica – mesmo a intenção de destruir este património valiosíssimo já é, em si mesma, uma

séria ofensa à memória desses homens e mulheres. Demolir os palheiros da Costa da Caparica

é, sem dúvida, um atentado contra o património cultural nacional. É essa destruição que se

deve evitar a todo o custo, em nome da nossa

própria identidade enquanto Portugueses.

Decisores com visão e esclarecimento cultural

não terão dificuldades em verificar que a

manutenção e recuperação exemplar destes

palheiros – transladados entretanto para um

local da praia que seja mais seguro do que o

actual – poderão constituir um enorme contributo para a valorização patrimonial da freguesia

da Costa da Caparica e do concelho de Almada. Afinal, uma praia com o património cultural

que ainda possui, muito ganhará com a possibilidade de ostentar um ícone nacional,

constituído pelo (certamente) único núcleo de palheiros Portugueses que se julgavam

totalmente destruídos.

Quando se fala numa estratégia para o turismo

nacional, como desígnio de desenvolvimento

económico, que melhor atracção se pode ter

do que este maravilhoso conjunto

arquitectónico, provável jóia da arquitectura

popular Portuguesa?

Não seremos ousados se nos anteciparmos ao

futuro, perspectivando que os turistas (mesmo os de hotéis de 4 e 5 estrelas) preferirão mais

as visitas de natureza cultural e histórica do que o simples sol-e-mar. Com isto queremos

significar que a destruição dramaticamente anunciada destes palheiros históricos pode

significar a morte de uma galinha dos ovos de

ouro, figurativamente falando. Afinal, o valor

que está tão próximo de nós acaba por não ser

percebido, porque mais uma vez a excessiva

proximidade nos cega. Cega-nos tanto quanto

a excessiva indiferença em relação ao que de

mais genuíno possuímos no nosso País.

Seremos realistas e objectivos se perspectivarmos que a preservação deste património

também contribuirá para enriquecer o novo destino turístico no nosso país, fluvial e cultural,

que neste momento se está a organizar no rio Tejo, desde a Marina do Parque das Nações até

Valada/Cartaxo, por rio e posteriormente até Constância, por via rodoviária (por questões de

falta de navegabilidade do Tejo a partir de Valada). É possível interligar essa futura Rota

articulando-a com os palheiros da Praia da

Saúde, na Costa da Caparica! Afinal já estamos

a fazer o mesmo actualmente com a Praia de

Vieira de Leiria! Afirmamo-lo devido à matriz

cultural comum dos palheiros e das

construções palafíticas em madeira dos

pescadores Avieiros e dos pescadores da costa.

Que melhor pretexto se poderá oferecer aos turistas, ávidos de conhecimento, do que revelar-

lhes uma cultura de pescadores que tiveram a coragem de enfrentar as adversidades da vida,

que se estabeleceram na costa Portuguesa, e depois no rio Tejo, construindo uma cultura

identitária, única e inimitável, constituída por uma matriz comum, que teve nas suas casas de

madeira, assentes em estacarias, uma das suas mais originais manifestações? Essas casas,

barracas, palhotas ou palheiros, de acordo

com as terminologias dos locais onde

constituíram os seus assentamentos têm afinal

a mesma tipologia de construção. Se

visitarmos o interior de um dos palheiros da

Costa da Caparica, não evitaremos - mesmo

com este conhecimento antecipado - ficar

surpreendidos com o facto de a forma da arquitectura interior e exterior, bem como os

materiais aplicados, serem idênticos aos das barracas dos pescadores do Tejo.

Quem assim visitar estas casas dos pescadores da Costa da Caparica - e do Tejo - não pode

deixar de sentir, como nós o sentimos, um frémito de encantamento e de êxtase pela

elegância, simplicidade e funcionalidade destas construções, valores da arquitectura popular

Portuguesa e sinais fortes do engenho humano na forma como soube afirmar-se perante os

elementos adversos.

2ª Parte – Um pouco de história

De acordo com o que pudemos encontrar nos registos do portal da heráldica portuguesa, os

primórdios da fundação da Costa da Caparica estão intimamente ligados aos pescadores que aí

chegaram e se fixaram no decurso do século XVIII, provenientes da região da Gândara.

Nesse portal, http://www.freguesias.pt/portal/heraldica_freguesia.php?cod=150303, regista-

se que “a história da Costa, no termo de Caparica, esteve durante séculos intimamente ligada

às actividades marítimas, repartidas pela pesca artesanal e por uma agricultura de

subsistência, implantada em pequenas hortas de terrenos dunares, fertilizados durante

gerações com [adubos derivados de] espécies piscícolas de menor valor comercial e nutritivo.

Tanto quanto foi possível apurar, o povoamento da Costa da Caparica verifica-se no decurso

do século XVIII, tendo como origem duas "companhas" de pesca que progressivamente se

fixam no lugar, em casebres construídos sobre as dunas e cobertos por juncos e caniços”.

Procurámos no site da Junta de Freguesia da Costa da Caparica referências históricas à

fundação da localidade mas relativamente pouco ou nada se encontra.

No entanto, no mesmo portal da heráldica portuguesa, na galeria de fotos mais significativas

da Costa da Caparica, encontramos a belíssima casa de madeira que a foto ao lado

testemunha. No site da Junta de Freguesia nada

encontramos que nos possa elucidar sobre a

localização e a origem daquela excepcional

estrutura, porque não existe uma única

referência de contextualização relativa aos

palheiros existentes na praia. No entanto, ao

olhar para a foto, reconhecemos de imediato

tratar-se de uma casa de madeira, típica de veraneio, certamente adaptada a partir de um

modelo de barraca de pescadores, e chegada até hoje num impecável estado de conservação.

Impelidos por um espírito observador, e motivados pela necessidade de encontrar pelo menos

uma referência à raiz histórica dos palheiros,

procurámos imagens dos “casebres construídos

sobre as dunas e cobertos por juncos e caniços”. Era

para nós fundamental compreender a realidade a

partir de sinais que nos pudessem orientar no início

do nosso caminho de pesquisa, como recém-

chegados a um local para nós ainda desconhecido.

Depois de pesquisar, foi possível identificar através de uma foto o tipo de habitação primitiva a

que o texto se refere. Trata-se de um palheiro, identificado como uma barraca de colmo e

tabuado, fotografado e apresentado na página 36 do livro Caparica Doutros Tempos, da

autoria de Salvador Félix Martins, e publicado no ano de 2004, a partir da impressão

tipográfica da Socingraf.

A mesma foto se pode encontrar na página 15 do excelente livro monográfico Tu, Costa Minha

– O Passado e o Presente, da autoria de Mário Silva Neves, e publicado em 2002 a partir da

impressão da Selenova – Artes Gráficas. Na página 181 deste livro poderemos ver retratado

este mesmo tipo de palheiro, incluindo na fotografia a família de Júlio Duarte e identificando o

construtor como sendo “Manuel das Burras”.

Sintomaticamente, nas fotos apresentadas nos livros identificados, os palheiros são

designados como “barracas” – sendo aqui pertinente considerar que os palheiros do Tejo

edificados pelos pescadores Avieiros, são também aí designados por “barracas” em muitas das

suas aldeias, porque se trata de um tipo de construção que obedece a uma raiz matricial e a

nomes muito comuns. Podemos comparar, nas fotos abaixo, os tipos primitivos de coberturas

de colmo - da barraca da Costa da Caparica, à barraca da Aldeia das Mulheres (assentamento

Avieiro da Chamusca, no rio Tejo), em época de cheias.

Júlio Duarte e família junto da sua barraca Barraca Avieira da Chamusca, durante as cheias

De acordo com Veiga de Oliveira et al. (1994), “hoje, na Costa da Caparica, nenhum exemplar

subsiste de tais barracas, e domina inteiramente a casa de tabuado, não só para banhistas,

numa feição cuidada, como também, no velho bairro dos pescadores, estas térreas, de pau a

pique, e tabuado horizontal, virando para a rua a empena, onde se situa a porta; a cobertura

em telha de Marselha é a única diferença sensível entre elas e as barracas descritas por Raul

Brandão (Raul Brandão, «Os Pescadores», 1923, p. 248: «Quatro tábuas e um tecto de colmo

negro»)”.

Também a este propósito escreve José Leite de Vasconcelos: “a Costa da Caparica, com

algumas casas cobertas de colmo, isto é, de telhados de estôrmo, como diz o povo, por

estôrno, a Ammophila arenaria dos botânicos, porque o estôrmo apanha-se no meio das

médas d’areia. Comparam-no, para o efeito, à palha de centeio que se usa no Norte e na Beira.

O telhado faz-se de barrotes de pinheiro, castanheiro, etc., pondo-se-lhe por cima canas

grossas, e sub’las canas («sobre as»), feixes de estôrmo, atado a elas com linha de carreto.

Chamam barracas a estas casas, que vão desaparecendo” (pg. 487).

3ª Parte – O enquadramento arquitectónico (um texto do Arquitecto Luís Morgado)

"O viajante não vê palheiros, sente-se definitivamente logrado mas vai perguntar a um

velhíssimo homem que se entretém a olhar o mar: Faz favor onde são os palheiros?". José

Saramago testemunha assim na sua "Viagem a Portugal" o seu desencontro com o mítico

palheiro do litoral central.

De Espinho a Vieira de Leiria já muito pouco resta das antigas construções em madeira,

designadas pelos pescadores por palheiros. Tendo surgido a partir do século XVIII, os palheiros

marcaram a identidade de vários povoados piscatórios desta região marcada pela "arte da

xávega", como o vulgo passou a designar a actividade da pesca costeira – correctamente

designada simplesmente como “arte”. Mário Neves (2002, pg. 59) descreve a origem desta

comunidade caparicana, que praticava a “arte”, da seguinte forma: (…) os Ílhavos emigraram

para a Costa no Século XVIII, referência que fica reforçada pelo que escreve um responsável da

época. «Até os pescadores são importados como os que aqui vemos, provenientes de Ílhavo.

Trouxeram-nos para que os Ílhavos entrechaçados com os algarvios lhes influíssem aquela

diligência e espírito que eles já tiveram e que ao presente tem amortecidos…»

A partir desse núcleo original de palheiros, outros pólos foram sendo disseminados por toda a

costa e borda-d'água: da acção pioneira de povos migrantes como os ílhavos, varinos,

murtoseiros e avieiros vamos hoje felizmente encontrando vestígios de uma história que

parece ter ainda muito para contar.

O recente despertar para o valor do património edificado que constituem as construções

palafíticas Avieiras ao longo do Tejo coloca-nos a questão: existirão ainda outros pólos de

interesse que nos possam redimir do esquecimento e destruição a que votámos formas de

arquitectura tradicional tão singulares e tão autênticas? Talvez!

Dizemos “talvez”, e felizmente!, porque a sul da Costa da Caparica, na praia da Saúde,

deparámos agora com uma linha de construções em madeira que se prolongam por cerca de 2

Km. Recordamos aqui que Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano descreveram em

1964 uma " (…) linha de casinhas variadas. Erguidas sobre estacas ou no sistema pau a pique,

térreas ou de andar, com torres góticas ou janelas mouriscas, simpáticas na sua modéstia ou

pretensão (...)". O interesse que estes autores encontraram nestas construções justificava-se

por parecerem um prolongamento da "anterior construção em madeira". Ou seja,

reconheciam nelas uma certa continuidade da tradição construtiva em madeira que tinham

vindo a estudar.

Este conjunto hoje existente na Costa da Caparica terá tido origem em 1952 com a deslocação

das construções originais situadas no casario da Cova do Vapor. Tal parece estar de acordo

com José António Cerejo (2002), quando escreve que desde os finais da década de 40,

registaram-se importantes recuos da linha de costa entre a Cova do Vapor e a Costa da

Caparica (somente entre 1947 e 1951 desapareceram 500m).

"Quando o mar começou a comer isto, aqui há uns cinquenta anos, as barracas de madeira que

estavam a um quilómetro do Bugio tiveram de ser arrastadas por juntas de bois. O Manel da

Fruta é que mudava as casas. Umas desmontavam-se, outras vinham inteiras", lembra Hernâni

Pereira, o presidente da Associação de Moradores [da Cova do Vapor]."

Estas casas foram deslocadas sobre rolos de madeira, puxadas por bois, ao longo da costa, há

mais de 50 anos atrás. Segundo alguns testemunhos, algumas casas poderão ter vindo

também do Dafundo transportados por barcas. Oliveira e Galhano identificam-nas como

habitações de veraneio e realçam nelas a expressão da fantasia dos proprietários.

E o que nos resta hoje? O viajante que, como nós, já visitou Esmoriz, Cortegaça, Costa Nova,

Mira, Tocha, Palhota (Cartaxo), Escaroupim (Salvaterra de Magos), Caneiras (Santarém),

Patacão (Alpiarça), e várias outras, tem a sensação de estar em casa. Identificam-se, de

imediato e praticamente por instinto, os parentes de uma grande família cuja árvore

genealógica ainda não está completamente desenhada ou, para sermos mais correctos, pode

começar agora obrigatoriamente a ser rigorosamente desenhada, a bem da salvaguarda do

valiosíssimo património edificado de construções em madeira dos pescadores da costa

ocidental Portuguesa, bem como dos rios Tejo e Sado. Reúnem-se aqui, na Costa da Caparica,

na praia da Saúde, os vários tipos que encontramos noutros lugares: a ligação ao solo em

estacaria, o predominante revestimento de tabuado vertical com matajuntas, as empenas no

alçado principal, o sótão, as paredes com forro interior, as varandas, as escadas exteriores, as

beiradas das empenas salientes... as cores vivas e os muitos pormenores e decorações que

personalizam cada habitação.

Mas outro tipo de viajante, e um olhar distraído, poderão ver o outro lado do cenário:

adulterações na forma e nos materiais, degradação, predomínio da chapa, madeira

apodrecida, incongruências várias, sinais de vandalismo, ilegalidade e desarmonia global, como

consequência, enfim, do inexplicável e inaceitável esquecimento a que foi votado este

conjunto.

É por isso actual o discurso de Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (1964):

" (...) e hoje o velho palheiro do litoral, sacrificado ao gosto falseado de quem não sabe nem

sente o que ele representa, agoniza irremediavelmente condenado como uma velharia de que

se tem vergonha (...) e alguns casos ela [a sua morte] é decretada pelos poderes públicos, que

proíbem a reparação dos velhos palheiros. Nesses casos, sem dúvida, a pobreza e a decadência

a que são votados fazem deles uma ruína que confrange."

No âmbito do programa Polis, o Plano de Pormenor das "praias de transição" identifica

claramente que o destino imediato destas construções é a sua demolição sumária (de acordo

com os anexos que apresentamos a este trabalho).

Quando ouvimos os moradores (como agora tivemos o cuidado de os ouvir), quando lemos os

antropólogos, quando percebemos que estas "casinhas de madeira" são usadas como símbolos

de grandes instituições nacionais e internacionais, bem como ícones de promoção turística

internacional, pensamos que algo não está a bater certo. Quando constatamos que o potencial

cénico deste conjunto é explorado continuadamente por reportagens internacionais,

produções de moda [Heidi Klum], sendo até procurado como pano de fundo para séries de

grande audiência da TV, questionamo-nos se a informação que nos chega é verdadeira.

É certo que aquilo que na praia da Saúde ainda resta pode ser apenas uma imagem ténue de

um brilho original já passado. É verdade também que a construção nestas zonas costeiras tem

aspectos muito sensíveis a serem tidos em consideração. Mas quem no seu perfeito juízo iria

destruir um património destes que está aí à espera de ser estudado, potencializado,

reabilitado e acarinhado?

Os poucos exemplares de construção tradicional em madeira em Portugal já foram quase

todos destruídos. Porque não pensar numa solução para estes que ainda permanecem e

resistem (alguns de cabeça erguida) às contrariedades do tempo?

Esperemos no futuro não encontrar pela Praia da Saúde um viajante definitivamente logrado

perguntando: "Faz favor!, onde são as casinhas de madeira da Costa da Caparica?"

ANEXO 1 – LEVANTAMENTO FOTOGRÁFICO DOS PALHEIROS EXISTENTES

Palheiro nº 1

Palheiro nº 2

Palheiro nº 3

Palheiro nº 4

Palheiro nº 5

Palheiro nº 6, de tipo chalé

Palheiro nº 7

Palheiro nº 8

Palheiro nº 9

Palheiro nº 10

Palheiro nº 11

Palheiro nº 12

Palheiro nº 13

Palheiro nº 14

Palheiro nº 15

Palheiro nº 16

Palheiro nº 17

Palheiro nº 18

Palheiro nº 19

Palheiro nº 20

Palheiro nº 21

Palheiro nº 22

Palheiro nº 23

Palheiro nº 24

Palheiro nº 25

Palheiro nº 26

Palheiro nº 27

Palheiro nº 28

Palheiro nº 29 – Oásis dos Meus Netos

Palheiro nº 30

Palheiro nº 31

Palheiro nº 32

Palheiro nº 33

Palheiro nº 34

Palheiro nº 35

Palheiro nº 36

Palheiro nº 37

Palheiro nº 38

Palheiro nº 39

Palheiro nº 40

Palheiro nº 41

Palheiro nº 42

Palheiro nº 43

Palheiro nº 44

[junto à linha de caminho de ferro das praias da Costa da Caparica]

Palheiro nº 45

Palheiro nº 46

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