FOLHA DE SÃO PAULO E O GOLPE DE 1964 :50 ANOS DEPOIS · estudantis de 1977, as Diretas já! de...
Transcript of FOLHA DE SÃO PAULO E O GOLPE DE 1964 :50 ANOS DEPOIS · estudantis de 1977, as Diretas já! de...
1
FOLHA DE SÃO PAULO E O GOLPE DE 1964 :50 ANOS DEPOIS
DÉBORA EL- JAICK ANDRADE1
Introdução: A Folha e a imagem que ela quer construir
A Folha de São Paulo era em 2014, segundo a Associação Nacional dos
Jornais, o jornal de maior circulação do Brasil, com média diária 351.745 leitores,
seguido de o Globo (com 333.860)2 e o maior site de jornal, com 298,8 milhões de
pageviews e 28,3 milhões de unique visitors e o jornal com maior número de
seguidores no facebook3. A assinatura digital a fez atingir o patamar de 370,1 mil
exemplares/dia, com crescimento em todas as plataformas móveis: jornal, revista,
internet. Composto por 5 empresas que atuam na produção de conteúdo, no setor
gráfico, em logística, meios de pagamento, armazenamento de dados e ensino à
distância, a Folha de São Paulo atinge todo mês 20 milhões de leitores.4 Em 2016
chegou a faturar perto de R$ 4 bilhões em 2016, o que a coloca como o segundo grupo
de mídia do país, atrás apenas do Grupo Globo, proprietário da emissora de televisão.
Para atingir esta marca, multiplicando muitas vezes a circulação em comparação
como o início da década de 1980, a Folha de São Paulo apostou em campanhas
publicitárias bem sucedidas e premiadas, como o comercial realizado em 1987, no qual
aparece uma imagem em perspectiva do ditador Adolf Hitler e o slogan:
É possível contar um monte de mentiras, dizendo só a verdade, por isto é
preciso tomar cuidado com a informação do jornal que você recebe. A Folha de
São Paulo, o jornal que mais se compra e que nunca se vende5.
Procurando fabricar a imagem de independência e confiabilidade, em um
período em que o país saía de uma ditadura, o grupo empresarial de Otávio Frias de
1 Professora Adjunta III da Universidade Federal Fluminense da área de Teoria e Metodologia da istória
Campus Campos dos Goytacazes. 2 Os maiores jornais do Brasil de circulação paga, por ano. Associação Nacional dos jornais.
Disponível em http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/ Acesso em 1/07/2017 3 Folha divulga sua opinião sobre polêmicas .Disponível em http://propmark.com.br/midia/circulacao-da-
folha-cresce-18 Acesso em 1/07/2017. 4 Friedlander, David.A partir do jornal, Grupo Folha se diversificou e hoje tem 5 empresas, 27/02/2016.
Disponível em http://m.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1744086-a-partir-do-jornal-grupo-folha-se-
diversificou-e-hoje-tem-5-empresas.shtml Acesso em 1/07/2017. 5 Comercial antigo- Hitler Folha de São Paulo.Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=pY4FCKlQISA Acesso em 1/07/2017.
2
Oliveira contratou parceria com a W/Brasil para desvencilhar-se de um passado de
autocensura e, até mesmo, de conivência com o regime autoritário de 1964. Nos aos 90
(1997) a Folha alardeava em publicidade impressa que apoiou as manifestações
estudantis de 1977, as Diretas já! de 1983-84 e o impeachment de Fernando Collor em
1992. Em 2004, na comemoração dos 20 anos da campanha das Diretas, o comercial
criado por Rodrigo Leão na W/Brasil apresentava imagens em preto e branco de
personalidades, identificando quem apoiou ou não o movimento. Concluía com o
slogan:
É difícil reconhecer a cara de quem não apoiou a campanha das Diretas Já!. É
fácil reconhecer a cara de quem apoiou. Sabe por que? Porque ela mudou a cara
do Brasil. Diretas já 20 anos. Folha de São Paulo, em 84 o Jornal das Diretas,
hoje, o maior jornal do país6.
Nos anos 1980, após a derrota da emenda das Diretas Já!, Luiz Frias, presidente
do grupo Folha, encomendou a Jarbas Publicidade, um bordão que indicasse que o
jornal “não tem rabo preso com ninguém”. O Comercial anunciava que “o compromisso
da Folha é só com você”: “Folha, de rabo preso com o leitor”. Era o início de sua
campanha para afirmar-se e apagar um passado de colaboração com o regime militar.
Procurando se associar ao retorno da democracia, poucas vezes a Folha se
pronunciou acerca da sua participação e da censura, mas ao fazê-lo nos anos 1990,
promove uma releitura da sua história, segundo a qual o jornal faria parte da resistência
ao estado de exceção. Em 1997, na ocasião do aniversário do veículo de comunicação, a
F/NAZCA S&S realizou uma campanha publicitária que trazia cenas em preto e branco
de jornalistas espancados pela repressão, encerrando-se com a frase: “A Folha não se
atrela a nenhum grupo. Por isso a notícia sempre chega ao leitor como deve chegar:
limpa. Nestes 75 anos agente apanhou um bocado, mas aprendeu a fazer o melhor jornal
do país”7.
Ao lado de esforçar-se para construir uma memória positiva em torno de si, ao
vincular a censura aos jornalistas à intimidação do próprio veículo de comunicação, o
grupo empresarial paulista também empenhou-se em convencer a sociedade e seus
6 Apoiou.Folha de São Paulo 2004. Disponível em :https://www.youtube.com/watch?v=JaDXVFiRY3o
Acesso em 1/07/2017. 7 Comercial antigo 75 anos da Folha de S.Paulo – 1997. Disponível em :
https://www.youtube.com/watch?v=PfIDw3jmQjQ Acesso em 1/07/2017.
3
leitores de que cotejava os vários lados da questão, cumprindo a premissa de
imparcialidade que ronda o periodismo desde sua difusão no século XIX.
Assim, a Folha de São Paulo, através da máquina publicitária, criou, a partir dos
anos 1980, uma imagem capaz de sobrepujar a memória contemporânea aos
acontecimentos do seu passado recente e do presente, afirmando uma memória
alternativa. A propaganda também tinha a função de desviar o leitor da primeira
impressão de que a Folha tomava partido e dedicava tratamento e espaços diferenciados
àquelas informações que lhe convinha fixar. Produziu a reputação de jornal
independente de governos e conflitos do momento, reivindicando o pluralismo através
das colunas de “Opinião”, do “Painel do leitor”8, do estabelecimento da figura do
Ombusdman – um jornalista escolhido pela empresa para mediar a relação entre leitores
“reclamantes” e a redação.
Não abandonando esta roupagem de independência e de posicionamentos
arrojados, a Folha caminhava para afirmar um discurso de que estava aberta à
pluralidade de ideias, calcado na polifonia de seus articulistas e colunistas. No novo
milênio, em um contexto de ascensão dos governos petistas, dos quais o periódico
figurava como oposição, o grupo empresarial dos irmãos Frias precisava justificar seu
posicionamento incisivo e ostensivo nas eleições, constatados e denunciados por ONGs,
jornalistas independentes e pelos partidos que se sentiram prejudicados. Em 2010, Paulo
Vannuchi, então ministro dos Direitos Humanos, criticou a fala de Judith Brito, editora
superintendente da Folha da Manhã, e presidente da Associação Nacional de Jornais,
que comentou durante apresentação no 3º PNDH (Programa Nacional de Direitos
Humanos) na Procuradoria Geral da República. Brito declarou: “Na situação atual, em
que os partidos de oposição estão muito fracos, cabe a nós dos jornais exercer o papel
dos partidos. Por isso estamos fazendo [isso].” Para Vannuchi: “[A imprensa] vem
confundindo um papel que é dela – informar, cobrar e denunciar – com o papel do
protagonismo partidário, que é transformar isso em ações de conteúdo unilateral”9.
8 As cartas enviadas para o painel do leitor são escolhidas pela direção do jornal e quase sempre
representativas de posicionamentos extremos. 9 “Vannuchi afirma que imprensa age como “partido de oposição” ”. Folha de São Paulo.
31/03/2010.Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3103201015.htm Acesso em 14 de
agosto de 2017.
4
Diante de tantas críticas, no aniversário da fundação do jornal, Luiz Frias
contratou a agência Africa para veicular, em agosto de 2014, uma série de 10 filmes e
de mídia impressa com a temática “O que a Folha pensa”, em que personagens reais,
agenciados pela empresa, expressam a opinião da Folha e, supostamente, sua própria,
eventualmente divergente, acerca de assuntos como casamento gay, aborto, cotas,
legalização de drogas, manifestações, pena de morte e voto obrigatório e política
econômica. Ao fim, apresentam o slogan: “Concordando ou não, siga a Folha porque
ela sempre tem suas posições, mas publica opiniões divergentes”. O publicitário Nizan
Guanaes, chairman do grupo ABC, holding dona da Africa e colunista da Folha,
afirmava sobre a mensagem da campanha: “O jornal não é conduzido, conduz. Não fica
pesquisando o que leitor pensa. Ao contrário, ele se posiciona.”10
O posicionar-se, ao contrário da pretensão de isenção que muitas vezes aparece
nos discursos e na publicidade jornalística, passa a ser valorizado, talvez como resposta
às objeções que os jornais paulistas, assim como o conglomerado Globo e diversos
outros meios de comunicação, receberam diante da cobertura das campanhas eleitorais e
da admissão do apoio a candidatos em editoriais. A publicidade da Folha afirma o
sentido positivo do tomar partido, mas, igualmente, convence o leitor de que ele não
deveria deixar de assinar ou comprar o periódico por discordar deste posicionamento.
O discurso da Folha sobre a Ditadura
A publicidade enfatiza que a Folha promove a polifonia em suas páginas,
chancela articulistas e colunistas para todos os gostos, à direita e à esquerda, abrigando
vários pontos de vista distintos, como os de Jânio de Freitas, Eliane Catanhêde, Clovis
Rossi, Demetrio Magnoli, Gregório Duvivier, Reinaldo Azevedo, Vladimir Safatle,
Delfim Netto, Elio Gaspari, etc. Porém, as manchetes da primeira página, os editoriais
na segunda página, as fotografias, charges, são espaços desproporcionais reservados às
diferentes notícias, positivas ou negativas. A discreta e econômica localização das
10 BARBOSA, Mariana. De Hitler a ratinho insistente, campanhas da Folha ficaram célebres. Poder.
Folha de São Paulo.27/02/2016.Disponível em http://m.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1744046-de-
hitler-a-ratinho-insistente-campanhas-da-folha-ficaram-celebres.shtml Acesso em 1/07/2017.
5
erratas e direitos de resposta, a seleção dentre os comentários dos leitores aqueles que
serão publicados, geralmente polarizados, emitiram determinado discurso, consolidaram
uma versão da história recente do país, apesar da pluralidade dos colaboradores, a
respeito do futuro da democracia, das lições aprendidas com o passado e as expectativas
do futuro, vinculadas à visão de mundo que seus redatores e proprietários
compartilham.
Os meios de comunicação estão longe de seguirem os manuais e prescrições que
eles mesmos elaboraram quando se trata de conformar a opinião do eleitorado. A
imparcialidade auto proclamada no discurso midiático não resiste a estudos críticos. À
luz de experiências recentes, é possível reconhecer que a autocensura, a edição, a
montagem, o factóide, a falsificação de informações e de imagens fazem parte da rotina
e da disputa política travada pelos órgãos formadores de opinião desde há muitas
décadas – uma espécie de jornalismo de guerra. Eles não apenas noticiam fatos, mas ao
noticiarem, colocam em evidência, afirmam uma posição, prescrevem comportamentos,
buscam adesões, emitem enunciados, de onde se pode extrair visões de mundo de quem
os produziu. Nossa compreensão do mundo está muitas vezes mediada pelo que
informam estes veículos, sobretudo, desde a ascensão da cultura de massas nas
primeiras décadas do século XX (DE LUCA, MARTINS, 2008,p.10). A fotografia
igualmente, segundo Boris Kossoy, é produzida com certa finalidade para possuir um
valor documental (KOSSOY, 2001,pp.47-48). Ela é um “fragmento selecionado do real,
a partir do instante em que foi registrado, permanecerá para sempre interrompido e
isolado na bidimensão da superfície sensível”(Ibid,p.44). Ela esclarece e complementa a
mensagem do texto e, outras vezes, ocupa mesmo lugar central na página, pois transmite
a mensagem quase que imediatamente para que o leitor a re-signifique com base nos
elementos culturais de que dispõe.
Assim, na avaliação deste repertório documental é imprescindível desvendar os
interesses dos proprietários dos veículos de comunicação que viabilizaram a
publicização de um repertório de informações. Como esclarece Ciro Marcondes Filho, o
jornalismo atua junto a grandes forças sociais, as empresas jornalísticas são porta-vozes
de interesses de conglomerados e grupos políticos que desejam dar às suas opiniões
subjetivas estatuto de objetividade (MARCONDES FILHO,1989, p.11), ou como
6
refletiria Antônio Gramsci, convertem seus interesses corporativos em visões de mundo
compartilhadas universalmente, atuando como partidos políticos (GRAMSCI,
2000.p.350). A observação de Gramsci corrobora com este ponto de vista:
No mundo moderno, em muitos países os partidos orgânicos e fundamentais, por razão
de luta ou outra razão, dividiram-se em frações assume o nome de partido...Por isto o
Estado maior do partido orgânico não pertence a nenhuma destas frações, mas opera
como força dirigente em si superior aos partidos e, às vezes, é reconhecida como tal
pelo público (...) Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto
de vista de um jornal (um ou um grupo de), ou por revistas (uma ou conjunto de) são
também partidos. (GRAMSCI, 2000.p.350.)
Otávio Frias se declarava publisher e se considerava um comerciante e não um
jornalista. Deveras, o proprietário da Folha era um comerciante da notícia que soube
modernizar, padronizar e exitosamente adaptar seu empreendimento aos novos tempos
democráticos, se estabelecendo, e ampliando após o término do regime de exceção.
Como um negócio corporativo A Folha acumulou uma história de denúncia contra o
Estado Novo, desconfiança em relação ao trabalhismo, que a lançou na disputa pela
direção do Estado e por isto, procurou se associar com a democracia o máximo possível,
mesmo quando apoiava a deposição de um presidente eleito.
A ocasião em que completava 50 anos desde que os militares apoiados por civis
derrubaram João Goulart permite antever como a Folha apresenta esta fase da história
do Brasil e sua própria história. Sobretudo, lança luz sobre as relações entre imprensa e
poder, evidenciando como as empresas participam da produção do consenso na
sociedade capitalista. Neste caso, sobressai-se a leitura realizada por este jornal a
respeito do golpe de 1964, em meio à campanha antipetista que ocupou os periódicos e
a mídia, ao lado da emergência de um discurso conservador.
Os grandes veículos, como o Globo e a Folha continuaram ocultando ou
explicitando o apoio inicial em emissões ou editoriais, sempre justificando a adesão
inicial, à luz da polarização ou radicalização do momento. A Folha, por exemplo, tratou
de minimizar o significado e o impacto da ditadura sobre o conjunto da sociedade. O
redator, Otávio Frias Filho11 se referia ao período em questão como “Ditabranda”, em
contraste com outros regimes ditatoriais sangrentos do Cone sul, em editorial de 17 de
fevereiro de 2009 em que criticava o presidente Hugo Chávez, após sua vitória em
11 FRIAS FILHO, Otávio. Limites de Chávez. Editorial. Opinião.Folha de São Paulo.17/09/2009.p.2.
7
plebiscito pela prorrogação de mandato. Ainda atacou seus críticos, os intelectuais
Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato, chamando-os de cínicos e
mentirosos por não repudiarem ditaduras de esquerda. Uma manifestação em frente à
sede do jornal reuniu cerca de 500 pessoas contra o editorial e em apoio a Benevides e
Comparato e um manifesto e abaixo assinado com 7 mil assinaturas de intelectuais foi
entregue.
A Folha nunca admitira que a empresa colocou veículos à disposição da
repressão nos anos 197012, o que consta da versão de ex-presos e torturados políticos.
Segundo estes relatos, caminhonetes do jornal foram cedidas à Operação Bandeirantes,
versão confirmada por Engel Paschoal no livro Trajetória de Otávio Frias de Oliveira e
por Beatriz Kushnir em Cães de Guarda. Em um depoimento de um agente do Deops,
consta que a segurança da Folha a esta época era feita por 2 delegados deste
departamento, Eduardo e Roberto Quass. (GODOY, 2014.p.139). Claudio Guerra, ex-
delegado do Dops do Espírito Santo, cujas lembranças serviram de base para o livro
Memórias de uma Guerra Suja, em depoimento à Comissão da Verdade do município
de São Paulo em 2013, à bem da verdade sem oferecer provas, afirma ser Otávio Frias
de Oliveira amigo do delegado do DEOPS de São Paulo, Sérgio F. P. Fleury, tendo
visitado constantemente o prédio e financiado, junto ao jornal Estado de São Paulo, a
Operação Bandeirantes13.
Outras evidências eram mais consistente, sobretudo no momento em que se
disponibilizava em formato digital o acervo dos jornais do grupo Folha (da Manhã, da
Noite e de São Paulo) desde 1921. Os editoriais e manchetes elogiosos ao governo
Médici revelavam o posicionamento favorável do empresário (Frias), e, sobretudo, a
Folha da Tarde tornou-se colaboradora do regime, denunciando opositores como
“terroristas”. (KUSHINIR, 2004,p.232) Em fevereiro de 2011, quando a publicação
12 Em 21 de setembro de 1971, a Ação Libertadora Nacional (ALN) incendiou camionetes da Folha que
eram utilizadas para entregar jornais. Os responsáveis acusavam o dono do jornal de emprestar os
veículos para transporte de presos políticos. Frias de Oliveira respondeu ao atentado publicando um
editorial na primeira página no dia seguinte, sob o título “Banditismo” publicado em 22 de setembro de
1971.Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-02c.shtml Acesso em
10/08/2017. 13 Este relato de Guerra não consta do relatório final da Comissão daVerdade Municipal de São
Paulo.Porém está sitiada no You Tube : O Presidente da Comissão da Verdade, Vereador Natalini,
entrevista o ex-delegado Cláudio Guerra.Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=qiUErTXLxoE 28:40min. Acesso em 10/08/2017.
8
comemorava seus 90 anos de existência, a colaboração foi discretamente admitida
através de um texto de Oscar Pilagallo intitulado “90 anos em 9 atos”, em um encarte
que reconstituía a trajetória do periódico14.
Na ocasião dos 50 anos do golpe civil-militar, o jornal Folha de São Paulo
dedicou-se a abordar o evento através de uma série de reportagens que divulgavam
mesas redondas com intelectuais simpáticos ao grupo Folha, textos de articulistas do
jornal, charges, quadrinhos, entrevistas de ex-guerrilheiros (Cid Benjamin e Daniel
Aarão Reis) e de oficiais da reserva, além de pesquisas de opinião que produziram
determinado retrato da disposição dos brasileiros, no ano em que a Comissão da
Verdade, tão criticada à esquerda e à direita entregava seu relatório final. Apesar da
polifonia e heterogeneidade de seus articulistas, existe determinada unidade de visão de
mundo que seus colaboradores e proprietários compartilham.
Nos círculos universitários, a ocasião incitou debates e reavaliação. Ocorreram,
claro, eventos, amostras, entrevistas, dossiês; as editoras aproveitaram para lançar livros
e coletâneas. O tópico apareceu em alguns jornais, revistas e séries jornalísticas na
televisão fechada, mas de modo geral a mídia noticiou esparsamente, sem alarde e a
maioria da população parecia indiferente ao significado da data. Enquanto isto,
tentativas de comemoração por parte de militares da ativa foram proibidas pela
presidência da República15 e eventuais homenagens foram confrontadas por protestos de
estudantes e ativistas de esquerda, o que já vinha ocorrendo em outros aniversários do
golpe celebrados pelo Clube Militar16.
Por ocasião dos 50 anos do golpe, no mesmo 30 de março de 2014, o
proprietário Otávio Frias Filho admitiu no editorial que a Folha errou ao dar apoio
inicial à ruptura democrática, mas o justificou enquanto um erro de não ter “rechaçado
toda violência, de ambos os lados”, embora tenham agido “como lhes pareceu melhor
ou inevitável naquelas circunstâncias”:
14PILAGALLO, Oscar. “90 anos em 9 atos”. Folha de São Paulo.19/02/2011. 15 MONTEIRO, Tânia. “Dilma orienta Defesa a não comemorar os 50 anos do golpe militar”. O Estado
de S. Paulo. 14/03/2014.Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-orienta-defesa-
a-nao-comemorar-os-50-anos-do-golpe-militar,1140999 Acesso em 21/06/2016. 16 ELIZARDO, Marcelo.“Ato no Rio em 'descomemoração' dos 50 anos do golpe tem confronto”. Portal
G1.01/04/2014 Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/04/nos-50-anos-do-golpe-
de-1964-rio-tem-protesto-contra-ditadura-militar.html Acesso em 21 de junho de 2016.
9
Este jornal deveria ter rechaçado toda violência, de ambos os lados,
mantendo-se um defensor intransigente da democracia e das liberdades
individuais.
É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções
daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas
que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas
circunstâncias.” (FRIAS FILHO, 30/03/2014)
Em suma, para Frias, encurralado diante dos extremistas da direita que deram o
golpe e da esquerda que sustentavam as ambições golpistas de Jango, a empresa fez
uma opção e não deve ser responsabilidade por ela. Afirma que a Folha mantém-se
defensora da democracia.
Mas a democracia que parecia consolidada, enfrentava um período de
turbulência. Após as manifestações de 2013, um novo quadro se configura: ocorre o
ressurgimento das mobilizações à direita, como há muito não se via, reivindicando
intervenção militar. A crise econômica, ao lado da ascensão política de muitos ex-
guerrilheiros e militantes que ajudaram a fundar e integravam o Partido dos
Trabalhadores, têm uma parcela de responsabilidade neste ressurgimento. Estes últimos
são acusados de revanchistas e de romperem o pacto firmado através da lei da Anistia.
A memória “sufocada” dos militares ressurge em um novo contexto, à luz dos
acontecimentos da última década, em que, ao menos no discurso, minorias e grupos
étnicos foram empoderados. O governo concedeu direitos trabalhistas a assalariados que
não gozavam de todos os benefícios sociais, bolsas e cotas como paliativo para a
extrema pobreza, recebendo o apoio de atores sociais importantes como a Central Única
dos Trabalhadores, a União Nacional dos Estudantes e o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra. Este conjunto de medidas produziu um “novo-velho” descontentamento
emergente da memória de grupos sociais abastados, ressentidos com os parcos avanços
para classes populares.
De fato, toda a política compensatória e de reparação, como aquela que criou a
Comissão Nacional da Verdade, é questionada pela direita e gerou reações imediatas
dos oficiais da reserva, provavelmente alarmados com as ações penais acatadas pelo
Ministério Público Federal desde 201117. Ou, ainda, temeriam uma reviravolta da
17 Os militares da reserva já criticavam a Comissão desde sua implantação em 2012, por investigarem
apenas os crimes dos agentes do Estado. Diante do relatório final que arrolava 377 agentes públicos
10
opinião pública em benefício da revogação da lei da Anistia, proposta que chegou a
46% de adesão em pesquisa do Datafolha de 2014 (MENDONÇA, 2014). O grupo
Folha noticiou a maioria a favor da revogação na edição de 31 de março de 2014. Neste
mesmo ano um grupo de oficiais da reserva se declarou contrário ao pedido de
desculpas do Ministro da Defesa, o civil Celso Amorim, pelas violações cometidas pelo
Estado, argumentando que os militares salvaram o Brasil18.
Em um contexto em que os formadores de opinião voltavam seu arsenal para as
denúncias envolvendo a Petrobrás e o governo Dilma19, a Folha de São Paulo de
domingo 23 de março dividiu espaço editorial com o aniversário de 50 aos do golpe,
oferecendo a seus leitores uma reportagem multimídia que incluía “Tudo sobre a
ditadura”: entrevistas, imagens e áudios históricos, banco de dados sobre mortos e
desaparecidos, infográficos alternativos, o 31 de março em videográficos. A Folhinha
trazia dia 29 de março “A ditadura em quadrinhos” e um caderno especial que revisitava
a crise que levou ao golpe, os momentos cruciais do regime militar e um exercício de
imaginação de como seria o Brasil sem a queda de Jango. Além disto, anunciava
“depoimentos de quem viveu aquele período”, o lançamento de um site da Folha sobre
a temática e noticiava um ciclo de debates por ela patrocinado, no auditório da Folha.
Participaram dos debates, por exemplo, seu colunista e ex-ministro de Sarney e FHC
Luiz Bresser Pereira e o ex-ministro de Sarney, João Sayad. A mesa em que estavam
FHC, Serra, Bolívar Lamounier e Boris Fausto foi amplamente registrada com uma
foto, na página 9 do Primeiro caderno do dia 30 de março de 2014.
Polifonia e produção do consenso
Na edição do domingo dia 23, na primeira página, a Folha estampou abaixo da
chamada do encarte especial, fotografias de duas manifestações, ao lado da manchete
envolvidos, os Clubes Militares entraram com medida judicial contra a Comissão da Verdade.DAL PIVA,
Juliana. Militares criticam Comissão da Verdade em ato comemorativo ao golpe militar.O
Globo.28/03/2013.Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/militares-criticam-comissao-da-
verdade-em-ato-comemorativo-ao-golpe-militar-7974681 Acesso em 7/08/2016 e DUAILIBI, Julia.
Clube Militar pede medidas judiciais contra Comissão da Verdade.Estado de São Paulo. 15/12/14.
Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/julia-duailibi/clube-militar-pede-medidas-judiciais-
contra-comissao-da-verdade/ Acesso em 7/08/2016. 18 Disponível em :https://noticias.terra.com.br/brasil/militares-dizem-ter-salvado-o-brasil. 27 set 2014 19 A coluna da Folha de São Paulo de Eliane Catanhêde “Rasgando a fantasia” previa que o escândalo de
Pasadena redundaria na derrota de Dilma a eleição de outubro daquele ano.
11
sobre as denúncias de corrupção na compra da refinaria de Pasadena (Estados Unidos),
sob o título de “Petrobrás já tinha tentado obter 100% de refinaria”20. A primeira
fotografia retrata a reedição da marcha da Família com Deus favorável à intervenção
militar “contra o comunismo e o governo Dilma”. A marcha intervencionista citava
outra, de mesmo nome, que a precedeu em 19 de março de 1964, reunindo entre 300 e
500 mil pessoas, e se concentrou na praça na capital paulista, organizada por alas
ultraconservadoras da sociedade paulistana. Contando com o apoio de parte da Igreja e
empresariado, teve como principal pauta política pedir a deposição do então presidente
da República João Goulart (1961-1964). Em outro lado da cidade ocorria no dia 22 a
Marcha Antifascista integrada pelo PCO, PC do B, União da Juventude Socialista21.
Ambas foram convocadas pelas redes sociais que contaram com cerca de mil
participantes cada. A contraposição das duas imagens, uma acima da outra, insinua a
ideia de polarização ou radicalização.
O Primeiro Caderno, na página 2, dedica-se a focar nas denúncias de
superfaturamento da refinaria que comprometem o governo, com a charge de Jean
Galvão, colunas de Catanhêde, crítica de Henrique Meirelles à política econômica e um
editorial de Frias Filho, justificando uma reforma na previdência social. Nos exemplares
do dia 23 de março até 1º de abril, o periódico traz material sobre os 50 anos do golpe
que dividiram a atenção com o noticiário sobre escândalo da Petrobrás (Pasadena), crise
na Venezuela, decisões do STF, a crise econômica, a queda da popularidade da
presidente e noticiário internacional. Como resultado, uma pesquisa no Painel do Leitor
da segunda página do Primeiro Caderno no dia 30 de março indicava que o assunto da
Petrobrás constava como o mais comentado da semana, seguido pela Ditadura Militar e
em terceiro, o STF22. Os articulistas Carlos Heitor Cony, Carlos Chagas, Luís Bresser
Pereira, Ruy Castro, Elio Gaspari, Reinaldo Azevedo, Valdo Cruz, Rubens Ricupero,
Ricardo Mello, Jânio de Freitas, Leão Serva e Vinicius Mota publicaram artigos ao
20 Folha de São Paulo. 23/03/2014.p.1 Na legenda das imagens: “Direita volver: em reedição da marcha
da família com Deus, de 64, manifestantes pró-intervenção militar atacam o governo e o comunismo, no
centro de SP”. 21 A legenda da foto onde aparece um cartaz com os dizeres “Punição aos torturadores e assassinos da
ditadura” “Esquerda volver:Em repúdio, e também no centro paulistano, a marcha antigolpista Ditadura
nunca mais foi um protesto simbólico contra o golpe de 64”. 22 Folha de São Paulo.30/03/2014.p.2
12
longo da semana, emitindo opiniões distintas sobre os acontecimentos do período. No
entanto, destacam-se as versões de que a sociedade estava polarizada e o golpe teve
apoio da população e da mídia (Cony, Chagas, Ruy Castro, Elio Gaspari), de que 1964
já ficou para trás e é preciso pensar para frente e não se ater a revanchismos (Reinaldo
Azevedo, Vinicius Mota), de que indivíduos, empresas e a imprensa apoiaram o golpe,
aspecto propositalmente esquecido (Demétrio Magnoli, Luís Bresser Pereira, Ruy
Castro).
Como exemplo de um colunista cujo texto detrata o trabalho de memória
realizado nos últimos tempos é Reinaldo Azevedo. Em sua coluna do dia 28 de março
de 2014 ele dispara:
1964 já era! Tenho saudade é de 2064! Os historiadores podem e devem se
interessar pelos eventos de á 50 anos, mas só oportunistas querem encruar a
história, vivendo-a como revanche. Enfara-me a arqueologia vigarista. Trata-se
de uma farsa política, intelectual e jurídica, que busca arrancar do mundo dos
mortos vantagens objetivas no mundo dos vivos.23
Traduzindo um pensamento da ultradireita ressentida, Azevedo relaciona
passado e presente, objetando que a esquerda revanchista que está no governo usa golpe
para legitimar a corrupção. Segundo ele, ela omite a repressão e mortos do governo
Vargas que superaria, em muito, os da ditadura militar, por este ser pai intelectual de
João Goulart, a quem chama de “golpista incompetente”. Enquanto nos anos 1980 e
1990 se relembrava a repressão do Estado Novo, celebrando o seu fim, atualmente a
esquerda esconderia os cadáveres e transformaria Vargas em herói. Azevedo vincula os
escândalos de corrupção do presente com os mal feitos de ex-militantes e guerrilheiros.
A semente do Mensalão está nos delírios do Araguaia O dossiê dos aloprados
foi forjado pela turma que roubou o “Cofre do Adhemar”. Os assaltos à
Petrobrás foram planejados pelos homicidas VAR-Palmares, de Dilma, e ALN,
de Marigella. A privatização do passado garante lugares de poder no presente e
no futuro.24
Além dos colunistas, o jornal preocupou-se em garantir espaço para especialistas
interpretarem o golpe, a ditadura e o papel da Comissão Nacional da Verdade. No dia
23 AZEVEDO, Reinaldo. “1964 já era Viva 2064!”. Folha de São Paulo. 28 de março de 2014.p.10. 24 Ibid.
13
23 traz um artigo na coluna “Opinião” de Marcelo Ridenti, sociólogo da Unicamp que
diagnostica que:
... a ditadura não foi um acontecimento isolado na história do Brasil, antes um
capítulo decisivo do longo processo de industrialização e urbanização
caracterizado pelo que alguns chamam de modernização conservadora, outros
de via prussiana ou revolução passiva.25
Enfatiza que as classes dirigentes reagiram a uma modernização alternativa cujo
sentido era alargar os direitos dos trabalhadores na cidade e no campo, movimentos
populares que os conservadores consideraram “comunismo”. Para ele a modernização
conservadora não teria sofrido abalos após a redemocratização e partidos como o PSDB
e PT fizeram negociações pelo alto sem rupturas e transformações de fundo. Conclui
que o país continua refém das forças que deram o golpe de 64 e impedem mudanças que
pudessem aprofundar a democracia política, econômica e social.26 Uma avaliação que
não reduz o projeto das classes dirigentes ao período de 1964 a 1985, mas o vê como
uma saída atual contra os avanços das classes trabalhadoras.
Na página 15, a Folha trazia também uma entrevista de meia página concedida
pela cientista política Maria Celina d’Araújo professora da PUC-RJ, ao jornalista
Bernardo Mello Franco, que explica que a Comissão da Verdade é um avanço, ao
coletar a confissão de quem prendeu e torturou. Porém, constata que existe um pacto de
silêncio. 50 anos depois os militares ainda tratam o assunto como segredo de Estado e
vê como problemático o fato de que “Os militares pensam que tem a prerrogativa de
construir sua memória”. Para ela, os militares escondem documentos e não atendem à
ordem das autoridades de apresentá-las, ao invés de fazer a autocrítica, prevalece o
discurso de que “nós salvamos o país”.
Neste número, todas as demais páginas do Primeiro Caderno tratam da
Petrobrás, ostentando foto da ex-presidente Dilma e ex presidente da Petrobrás Graça
Foster. No entanto, a página 14 na seção Poder, traz duas reportagens que reforçam a
argumentação de Benevides, uma sobre a omissão de informações das Forças Armadas
à Comissão da Verdade e ao Ministério Público sobre as violações do período da
ditadura, em que se argumenta que desde 2012 quando a Comissão da Verdade foi
25 RIDENTI, Marcelo.O golpe de 64, aqui e agora. Folha de São Paulo,23 /03/2014.p.3 26 Ibid.
14
criada, não recebeu nenhuma informação relevante do Exército, Marinha e
Aeronáutica27.
Ao longo da semana, a Folha entrevistou Fernando Henrique Cardoso
(sociólogo da USP e ex-presidente) em 26/03/2014 e Daniel Aarão Reis (historiador da
UFF e ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)) em
29/03/2014. Este último concedeu a entrevista intitulada “A luta armada esqueceu de
fazer consulta ao povo”, dividindo a página com o artigo “Os idos de março (e o 1o de
abril)” do colunista Demétrio Magnoli.28 Em seu depoimento Aarão reavalia o papel da
luta armada, mas considera que não havia alternativa e que a estratégia parecia viável na
ocasião. No entanto, a luta armada não tinha apoio do povo e isto a asfixiou. Defende
que o golpe não era inevitável e que é preciso lembrar das suas conexões civis. O
mesmo historiador também escreve um artigo “Ditadura cronológica” no dia 26 de
março. Em tom revisionista, afirma que a visão dos vencidos foi vitoriosa e certas datas
foram consagradas pela esquerda, tanto o dia 1º de abril, quanto o término da ditadura
em 1985 com a Nova República. Aarão encurta a ditadura até 1979, quando foi
revogado o AI -5.
A Folha ainda traz depoimentos de protagonistas dos acontecimentos. Nas
páginas A6 e A7, no dia 30/03/2014, uma entrevista com o ex-ministro cassado e
exilado de Jango, Almino Afonso, que lançava seu livro “1964 na visão do ministro do
trabalho de João Goulart”. Nele, Afonso nega a intenção de Goulart de promover um
golpe à esquerda, evidenciando que a composição do ministério, que incluía o industrial
José Ermírio de Moraes, uma das maiores lideranças industriais, e Mangabeira Unger
revelam o absurdo do argumento. Afirma que este discurso teve origem na esquerda e
na direita, na imprensa, inclusive propagado pela Folha, além de destacar os interesses
econômicos dos EUA.
27 FRANCO, Bernardo de Mello, FERRAZ, Lucas. “Ao responder a pedidos da lei de Acesso, órgãos
militares adotam tática de prestar informações incompletas”. Folha de São Paulo,23 /03/2014.p.14. 28AARÃO,Daniel.“A luta armada esqueceu de fazer consulta ao povo”.Folha de São Paulo,29
/03/2014.p.12.
15
Outro depoimento dos que combateram o regime militar foi de Cid Benjamin
“Luta Armada foi resistência legítima à ditadura militar”, publicado em 27 de março, na
página 9. Benjamin narra como surgiu a ideia dos sequestros, como foi preso e torturado
e diz que a luta armada foi um equívoco, mas igualmente uma forma legítima de
resistência, do qual não se arrepende. O ex-guerrilheiro mostrava-se favorável à
condenação dos torturadores para que a tortura não continue. Alexandre Padilha,
ministro dos governos Lula e Dilma, publicou um testemunho pessoal intitulado “Filhos
da resistência” no dia 27/03/2014, em que conta sua difícil infância separada do seu pai,
torturado e exilado, devido ao seu envolvimento com a luta armada.
Porém, a maioria dos depoimentos publicados nesta semana foram de oficiais da
reserva e críticos da Comissão da Verdade. No dia 24/03/2014, Romulo Bini Pereira,
general do Exército na reserva, escreve “Nova História” protestando contra a falta de
isenção da CNV. O jurista Celio Borja escreve “Regime militar não foi uma ditadura”
em 25/03/2014, alegando que o governo Jango era fraco e a esquerda estava prestes a
dar o golpe. No dia 27/03/2014, Armando Paiva Chaves, general do exército reformado,
escreve um artigo intitulado “Meio século”, afirmando que o governo Jango era
favorável aos comunistas, defendendo o movimento das Forças Armadas para garantir a
“liberdade”. Por fim, na entrevista intitulada “Os generais nunca foram intrusos na
história brasileira” em 28/03/2014, o general e ex-ministro Leônidas Pires, que
comandou o exército durante o governo Sarney, declara à Folha que a história contada
hoje é mentirosa. Pires denomina o golpe de “revolução democrática”, posto que o
Exército seria um poder moderador que evitou a quebra do país. Intitula-se a si próprio,
que era tenente coronel na época, um dos revolucionários históricos, e afirma ser um
democrata. Esclarece que Jango não era comunista, mas não tinha dispositivo militar,
razão pela qual não houve resistência, que os militares se sacrificaram, cortaram na
própria carne, com centenas de oficiais cassados. Para o general, as cassações eram
“civilizadas” e os presidentes militares não eram ditadores, embora eleitos através de
votação indireta, não eram ilegítimos. Desqualifica a esquerda como “canalhas” porque
não quererem falar da subversão. Descarta a existência de censura e estado de exceção
como “teorias” – existiria apenas pressão política - e reconhece ter havido tortura, que
16
os militares cometeram equívocos, mas que estavam cumprindo ordens, e minimizou o
número de mortos da resistência à ditadura.
Pires chefiou o Estado-Maior do I Exército, entre 1974 e 1976, ao qual era
subordinado o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e seu nome foi citado no
relatório final da CNV. O general já havia declarado ao jornal O Estado de S. Paulo,
tratar-se de "hipocrisia" e injustiça" a inclusão de seu nome no relatório. À Folha,
quando perguntado por Lucas Ferraz porque a Comissão da Verdade o incomodava
tanto, apenas retruca que a verdade é filha do poder.
Pesquisas de opinião e construção da memória da ditadura e da democracia
Um indicador do estado de espírito da opinião pública foi a pesquisa do
Datafolha, publicada na Folha de São Paulo no dia 30 de março de 2014, que apurou a
percentagem de apoio ao regime democrático e à ditadura. A chamada da matéria
disputa lugar com outra, de maior destaque, reportagem de Monica e Marlene Bergamo
sobre os protestos contra Nicolás Maduro e a repressão, e uma entrevista de Maduro
rebatendo as críticas sobre prisões e torturas. A pesquisa reproduzida na seção Poder na
página A4 demonstra que desde 1989, quando a pesquisa começa a ser feita, a crença
neste regime nunca foi tão alta: 62% consideravam o regime democrático, “sempre
melhor que qualquer outra forma de governo” (em contraste com 43% em 1989),
enquanto 16% afirmavam que “tanto faz se for uma democracia ou uma ditadura”, e
apenas 14% acreditavam que “em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura”29.
Constatando que, se 30% dos consultados eram indiferentes à democracia, na avaliação
do jornalista da Folha de São Paulo, o contingente dos que a aprovavam nunca foi tão
elevado desde 199030.
Apenas mencionando o número de 2.614 ouvidos entre 19 e 20 de fevereiro de
2014, sem menção de onde realizou-se esta pesquisa, o Datafolha também perguntou
como eles avaliavam o funcionamento da democracia no Brasil hoje, a maioria
constatou que a democracia brasileira tinha grandes problemas e o índice de satisfação
29MENDONÇA, Ricardo. Democracia brasileira é record, mostra pesquisa. Folha de São Paulo. São
Paulo,30/03/2014.Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1433074-conviccao-na-
democracia-e-recorde-mostra-pesquisa.shtml. Acesso em 12/11/2015. 30 Ibid.
17
com a democracia brasileira foi avaliada em 9% apenas, enquanto a maioria 59% sentia-
se um pouco satisfeito. A reportagem assinada por Ricardo Mendonça no intertítulo
“Esquecimento” avalia que também foi encontrado elevado índice de 32% de pessoas
que não sabia dizer se a ditadura deixou mais realizações positivas ou negativas, levanta
a hipótese da distância temporal: muitos entrevistados eram crianças ou adolescentes ou
ainda não nascidos em 1985, embora considere que este fator é elevado, mesmo entre os
mais velhos, e maior entre os menos instruídos. Mas 46% contra 22% acham que o
legado da ditadura foi maior em realizações negativas. Porém 75% das pessoas não
acreditavam que o país poderia cair em uma nova ditadura.
Para explicar o fenômeno, a Folha entrevistou o filósofo Marcos Nobre, o
sociólogo Marcelo Ridenti e José Arthur Gionotti. Nobre terminava por concluir que
pela primeira vez é possível dizer que a ditadura foi ideologicamente derrotada, “Até
pouco tempo,era forte a ideia de que a ditadura teria deixado um legado positivo. Isto
ruiu.É uma posição cada vez mais encastelada em grupos minoritários”. Ridenti explica
dizendo que a população percebe que os direitos sociais têm avançado. Entrevista o
filósofo José Arthur Gianotti, simpatizante do PSDB, que atribui o aumento de
confiança à fantástica transformação das classes que ocorreu nos governos de Fernando
Henrique Cardoso com a estabilização da economia e de Lula, com os programas de
assistência social e formalização da força de trabalho.
Na página 8 da seção Poder, na metade inferior da página, outra pesquisa do
DataFolha responde à indagação: o Brasil de hoje é melhor, pior ou igual ao Brasil da
ditadura? Para testar o “enraizamento da cultura democrática”, averiguou que para 68%,
a corrupção é maior hoje do que na época da ditadura, seguido pelos itens segurança e
saúde. O jornalista pondera que a “Dúvida sempre lembrada sobre nesse tema: a
corrupção seria efetivamente maior hoje ou seria inegável aumento das denúncias, das
investigações e da divulgação que gerariam essa sensação?” Conclui dizendo que hoje
há mais instituições engajadas no combate à corrupção do que na época da ditadura.
Com o fim da censura, as denúncias têm muito mais publicidade.
Comentando a pesquisa, Boris Fausto afirma que a corrupção aumentou porque
as instituições hoje são mais complexas, enquanto Marcelo Ridenti pondera que é uma
percepção equivocada, atribuída ao esquecimento das pessoas, e relembrou a
18
Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e uma lista enorme de escândalos. O jornalista
considera que mesmo errada, esta percepção nunca deixa de ser relevante. Conclui que
limpar o país da corrupção foi uma das principais alegações dos militares e civis
conservadores para dar o golpe.
A Folha testou a penetração da cultura democrática, inquirindo sobre o voto de
analfabetos, tortura, movimentos sociais, participação, direitos humanos, vigilância
estatal. Constata que há um apoio majoritário aos principais alicerces da democracia, à
exceção do item sobre a atribuição da vigilância estatal sobre as pessoas com 56% que a
Folha considera tendência autoritária.
No número do dia 31 de março de 2014, com anúncio na primeira página, uma
nova pesquisa realizada pelo Datafolha apontava o crescimento do apoio à revisão da lei
da Anistia: “46% apóiam a revisão da lei da Anistia”, diz o Datafolha. “54% querem
julgar quem realizou atentados, e 46%, os torturadores”. A pesquisa aponta que 68%
dos pesquisados acreditavam que a corrupção no país seria maior em 2014 do que na
época da ditadura, e que, paradoxalmente, 62% consideravam o regime democrático
“sempre melhor que qualquer outra forma de governo”31. A pesquisa revela não apenas
o caráter seletivo e fragmentário da memória social, e que há, a despeito dos esforços
para passar a limpo o passado de violações, a permanência da convicção de que quem
lutava contra a ditadura era terrorista e que cometeu ilegalidades sem punição. O
episódio revela que a adesão das pessoas, especialmente da classe média, aos princípios
democráticos é circunstancial e suscetível de manipulação através de uma campanha
anticomunista e moralista veiculada pelas mídias, por partidos de oposição de direita. O
mesmo havia feito jornalistas e empresas de comunicação em março de 1964,
insuflando a opinião pública contra Jango, seu governo e contra pessoas associadas à
esquerda (tanto reformista, quanto revolucionária).
Considerações finais
Através das opiniões dos colunistas, das entrevistas, pesquisas e editoriais, a Folha de
São Paulo deu voz especialmente à direita, vigorando a versão de que direita e esquerda
31 MENDONÇA, Ricardo. “A maior parte das pessoas querem anular lei da Anistia”. Folha de São Paulo.
São Paulo,31/03/2014.p. 4. Disponível em: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2014/03/31/2/ Acesso em
9/03/2017.
19
eram golpistas, de que os excessos foram de ambos os lados, de que houve ganhos e
perdas com a ditadura e de que mal intencionados querem usar o passado para se vingar.
A Folha procurou produzir uma imagem positiva a respeito do seu posicionamento na
luta pela democracia, enquanto minimiza sua participação na derrubada da mesma
democracia em março de 64. Ao mesmo tempo, contratou articulistas e colunistas de
diversas orientações político partidárias para sustentar uma pretensa polifonia que a
absolve, ao declarar publicamente seus posicionamentos e apoios políticos eleitorais.
Acerca da produção de memória pela imprensa, podemos concluir que a
mudança da correlação de forças promove a releitura e reinterpretação de episódios
passados através do olhar contemporâneo; a opinião reflete reações cambiantes do
sentimento coletivo diante de interrogações a acontecimentos presentes na busca de
legitimação(LABORIE,2009,p.2).As opiniões aferidas por sondagens podem ser
transitórias e binárias, contudo, dão visibilidade e legitimidade a um discurso de
memória dentre muitos, veiculado pela mídia (LABORIE, 2009,p.2). Assim, embora
Laborie alerte que opinião pública não coincide com as pesquisas de opinião, elas são
um indicador, e mais do que isto, produzem um panorama que repercute sobre os
julgamentos. É possível auferir que a mídia é uma importante instância de produção de
memória, sobre si mesma, sobre seu papel e sobre a história do país.
Quando a Folha defende a democracia – em um entendimento elitista e
antipopulista do conceito – mas condena a corrupção, estigmatiza um governo, do qual
a empresa se coloca como opositora, como corrupto, ressalvando o sistema político.
Assim, como resumiu o general Leônidas Pires, acusado como responsável por crimes
de tortura, a verdade é filha do poder, mas também é filha do presente, e é reinventada a
cada momento, em função de interesses corporativos e projetos de classe.
Referências bibliográficas:
DE LUCA; MARTINS, Ana. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008.
DREYFUS, René Dreyfus. 1964: A conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe
de Classe. 2ª Ed,Petrópolis, Vozes,1981.
20
GODOY , Marcelo. A Casa da Vovó: Uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o
centro de seqüestro. São Paulo,Alameda 2014.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, Maquiavel notas sobre o Estado e a Política. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2.ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda.Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
1988. São Paulo, Boitempo, 2004.
LABORIE, Pierre. “Memória e Opinião”.AZEVEDO,Cecilia; ROLLEMBERG, Denise;
BICALHO, Maria Fernanda; KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha (orgs.) Cultura
política, memória e historiografia. FGV Editora, 2009, pp. 79-87.
LUCA, Tânia de. História dos, nos e por meio dos periódicos. PINSKY, Carla
Bassanezi.Fontes Históricas.2ª Ed, São Paulo, Contexto, 2008.
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática, 1989.
PILAGALO, Oscar.História da Imprensa Paulista. São Paulo, Ed. Três estrelas,2013.