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uando um dos alunos de Mônica Rega levou para a sala de aula o dever de casa feito pela mãe, não poderia imaginar que sua mentira seria facilmente descoberta pela professora, e de forma tão simples. “Assim que ele chegou com aquele trabalhi- nho com a letra diferente disse: nossa, será que foi você mesmo que escreveu isso aqui?” E não demorou mais de cinco minutos para o menino confessar: “Foi a minha mãe, mas ela que quis fazer”. Para a professora de Psicologia do Desenvolvimento da Pon- tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Maria Inês Bittencourt, o comportamen- to do aluno de Mônica é bastante comum à faixa etária entre seis e sete anos, que mentem para se p roteger de alguma coisa que sabem que fizeram de errado. “A maioria das crianças mente, mas quando é confrontada com a ver- dade, não tem mais como susten- tar a mentira”, esclarece. Mônica, que comanda menos de um ano uma turma de alfabetização, diz que já sente muitas diferenças ao compará-la a seus alunos do jardim III. “Como estou com eles em mais uma etapa da vida escolar, perce- bo que eles amadureceram e que por isso estão mais reais. Hoje, vejo que os próprios alunos já identificam aqueles que têm o hábito de mentir”, conta. Segundo Maria Inês, crianças até quatro ou cinco anos não têm noção do que é mentira, uma vez que não são capazes de diferenciar o que é realidade e o que é fanta- sia. “Muitas vezes a mentira é algo que faz parte da verdade delas. À medida que elas crescem e vão adquirindo conhecimento da reali- dade, do que é certo e do que é e rrado, elas já conseguem discernir o que é verdade e o que é mentira”. Se em muitas crianças o hábito de mentir não é motivo de grande preocupação para pais e responsáveis, para outras, deve ser um sinal de alerta. Maria Inês afirma que problemas emo- cionais podem aparecer através da mentira em crianças. “De- sajuste afetivo e tendência anti- social são exemplos do que pode estar por trás da mentira. Elas mentem para encobrir condutas como pegar alguma coisa que não lhe pertence ou inventar histórias para encobrir uma rea- lidade que é dolorosa para ela”, revela. A psicóloga ressalta que, nesses casos, é preciso entender o moti- vo daquele comportamento. Por exemplo, se ela está carente ou MIGUEL SOUSA, MICHELLE LICORY E VIVIAN LORENZO Foi de mentirinha É tudo mentira! 47 Marisol Barcala procura mostrar a Luana o lado negativo da mentira Tudo irá depender do grau da mentira, do tipo de mentira e da intenção da mentira

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uando um dos alunosde Mônica Rega levoupara a sala de aula odever de casa feito

pela mãe, não poderia imaginarque sua mentira seria facilmentedescoberta pela professora, e deforma tão simples. “Assim queele chegou com aquele trabalhi-nho com a letra diferente disse:nossa, será que foi você mesmoque escreveu isso aqui?” E nãodemorou mais de cinco minutospara o menino confessar: “Foi aminha mãe, mas ela que quisfazer”.

Para a professora de Psicologiado Desenvolvimento da Pon-tifícia Universidade Católica doRio de Janeiro (PUC-Rio), MariaInês Bittencourt, o comportamen-to do aluno de Mônica é bastantecomum à faixa etária entre seis esete anos, que mentem para sep roteger de alguma coisa quesabem que fizeram de errado. “Amaioria das crianças mente, masquando é confrontada com a ver-dade, não tem mais como susten-tar a mentira”, esclarece.

Mônica, que comanda hámenos de um ano uma turma dealfabetização, diz que já sentemuitas diferenças ao compará-laa seus alunos do jardim III.“Como estou com eles em maisuma etapa da vida escolar, perce-bo que eles amadureceram e quepor isso estão mais reais. Hoje,vejo que os próprios alunos já

identificam aqueles que têm ohábito de mentir”, conta.

Segundo Maria Inês, crianças atéq u a t ro ou cinco anos não têmnoção do que é mentira, uma vezque não são capazes de difere n c i a ro que é realidade e o que é fanta-sia. “Muitas vezes a mentira é algoque faz parte da verdade delas. Àmedida que elas crescem e vãoadquirindo conhecimento da re a l i-dade, do que é certo e do que ée rrado, elas já conseguem discern i ro que é verdade e o que é mentira”.

Se em muitas crianças o hábitode mentir não é motivo degrande preocupação para pais eresponsáveis, para outras, deveser um sinal de alerta. Maria Inêsa f i rma que problemas emo-cionais podem aparecer atravésda mentira em crianças. “De-sajuste afetivo e tendência anti-social são exemplos do que podeestar por trás da mentira. Elasmentem para encobrir condutascomo pegar alguma coisa quenão lhe pertence ou inventarhistórias para encobrir uma rea-lidade que é dolorosa para ela”,revela.

A psicóloga ressalta que, nessescasos, é preciso entender o moti-vo daquele comportamento. Porexemplo, se ela está carente ou

MIGUEL SOUSA, MICHELLE LICORY E VIVIAN LORENZO

Foi de mentirinha

É tudo mentira!47

Marisol Barcala procura mostrar a Luana o lado negativo da mentira

Tudo irá depender do grau da mentira, do tipo de mentira e

da intenção da mentira

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com medo de alguma coisa, podeestar revelando ser um problemaque não envolve somente ela.“Uma criança que conta umahistória do tipo ‘ah, no final desemana eu fiz e aconteci’, pro-vavelmente está fazendo issopara se afirmar diante dos ami-gos, para levantar a auto-estimafragilizada”, diz Maria Inês. Noentanto, ela ressalta que tudo irádepender do grau, do tipo e daintenção da mentira.

O que os responsáveis devem fazer

Luana Barcala, de seis anos,estava na casa de sua madrinhaquando, na hora do lanche,começou a falar sobre sua“amiga do colégio que era men-t i rosa”. Indignada a ponto defazer os adultos presentes acha-rem graça, contou que a meninadizia que tinha um brinquedoque na verdade não tinha, que ofeijãozinho crescia e na verdadenão crescia, entre outros episó-dios. A tal menina, que antes era

considerada uma das melhore samigas de Luana, passouentão a ser criticada, quasecondenada por suas supostasgrandes mentiras. “Eu achoque deviam contar para o dire-tor e expulsar ela da escola. Vina televisão que mentir émuito feio”, disse.

Marisol Barcala, mãe deLuana, diz que em casa procuramostrar à filha que mentir é umhábito negativo e que ela devedizer sempre a verdade. “Luanajá mentiu algumas vezes e emtroca ficou de castigo. Quando

descobrimos que alguém próxi-mo a ela está mentindo, procu-ramos usá-los como exemplopara mostrar como a mentira éalgo negativo, que deve ser evita-do”.

Para a psico-pedagoga LucíolaAgostini, os pais ao notarem essetipo de comportamento nos fi-lhos, devem estabelecer um diá-logo com elas. Lucíola tambémsugere que a família não contepequenas mentiras na frente dascrianças, pois se vivenciarem ohábito de mentir, tenderão arepetir o mau hábito. “ N ã omintam na frente dos filhos.Porque o exemplo educa maisque mil palavras”, ensina. Elaainda faz um apelo para que seevite, por exemplo, pedidos como“Se tocar o telefone, fala que amamãe não está”.

Mentir para educarQuem nunca ouviu dizere s

como “Se mentir o nariz cresce?”Muitos pais e responsáveis recor-rem a historinhas ameaçadorasou pequenas mentiras com ointuito de evitar que as criançasmintam. De acordo com Lucíola,essa postura não é adequadapara a criança já que ela vai con-tar a mentira e, ao olhar noespelho, verá que nada aconte-ceu. Argumentos como “não vaidoer” também devem ser descar-tados, “porque vai doer e, dapróxima vez, a criança não vaiacreditar na mãe”, esclarece apsico-pedagoga.

A estudante de ComunicaçãoSocial Marisol França re c o rd aque na infância, era proibida deassistir a programas como os dosapresentadores Sérgio Malandro

Julho/Dezembro 200548

As mentiras não funcionam nem para

educar nem para corrigir (...) ameaças

do tipo “come se não ohomem do saco vai tepegar” traumatizam

e não resolvem o problema

Como qualquer brincadeira, os amigos imaginários fazem parte do desenvolvi-mento da criança

Márcia Alonso

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e Bozo. Segundo a mãe de Ma-risol, Sérgio Malandro “era paracrianças com deficiências men-tais” e o Bozo “era um bêbadoque caía por cima das crianças”.“Só descobri a verdade quandoentrei no Ensino Médio e descobrique todos os meus amigos ti-nham assistido a pro g r a m a scomo o do Bozo. Enquanto isso,minha mãe mentia com aintenção de me poupar”, declara.Para Lucíola, as mentiras nãofuncionam nem para educarnem para corrigir. Segundo ela,ameaças do tipo “come se não ohomem do saco vai te pegar”traumatizam ao invés de educaras crianças.

Amigos imagináriosQuando falamos de mentira na

infância, é comum o caso dosamigos imaginários. De acordocom especialistas, a existênciadesse tipo de amigo não está dire-tamente ligada ao hábito dementir, mas à capacidade de fan-t a s i a r, prática natural e ne-cessária ao desenvolvimento dacriança.

A funcionária pública LílianS i l v a res lembra que seu filhoP e d ro tinha cerca de três anosquando inventou três amigos –Red, Tapu e Luizinho. Segundoela, não aconteceu nenhum fatona vida do menino para queP e d ro criasse esses personagens.No entanto, ela destaca que seufilho sempre foi uma criançamuito tímida. “Acho que seu tem-peramento influenciou”, afirm a .

Pedro falava dos três como seeles existissem. Ele pedia à mãe,por exemplo, que fizesse almoçopara eles, e contava que tinha

viajado para São Paulo com oLuizinho. “No início eu estranhei,mas como já havia lido a respeitode amigos imaginários, tenteiagir normalmente, mas semincentivá-lo. Aos poucos, elemesmo foi se despedindo deles”,recorda.

Para Lucíola, trata-se de umafantasia, isto é, as crianças acre-ditam de fato neles. “Como edu-cadora já vi muito isso. Minhafilha mesmo tinha dois, o Biu e oBau. A gente tinha que botar namesa uma cadeira pro Biu eoutra pro Bau. Uma vez no carroela não queria deixar a avóentrar porque não iria caber oBiu e o Bau. Foi uma luta con-vencer que o Biu ia no meu colo eo Bau no colo do pai”, contaLucíola. Entretanto ela destacaque esse tipo de fantasia é nor-mal e passageira.

Segundo ela, essa experiênciasó precisa ser tratada quando acriança inventa que tem umamigo imaginário para atingiralgum fim por este meio, comopara chamar a atenção ou fugirde uma determinada situação.“Se a criança não presta atençãona aula e não consegue explicaro motivo, ela pode acabar inven-tando que isso acontece porque odeterminado amigo a impede”,exemplifica a psico-pedagoga.

Lucíola explica também que aexperiência de se ter amigosimaginários não tem nenhumarelação com a timidez da criança.“A criança que é muito tímida evive isso com dor não tem tantasfantasias quanto a criança que ébem relacionada, que vive bemsocialmente”, diz. De acordo comLucíola, algo que pode influen-ciar é a existência de algum trau-ma familiar vivido anteriorm e n t epela criança, que pode se agravarse ela não tiver com quem con-versar sobre o assunto. “Se elanão sabe como lidar com o queestá sentindo, poderá elaborarum mecanismo falando sozinha,com o amigo imaginário”, com-pleta Lucíola.

É tudo mentira!49

A maioria das crianças mente, mas

quando é confrontada com a verdade, não tem mais

como sustentar

Crianças por volta dos seis anos já são capazes de identificar a verdade e amentira

Márcia Alonso