Fluzz capítulo 3

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1 Capítulo 3 | Pessoa já é rede AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Capítulo 3 | Pessoa já é rede

AUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Pessoa já é rede

Toda pessoa é uma pequena sociedade.

Novalis em Pólen (1798)

Não passamos de remoinhos num rio de água sempre a correr. Não somos material que subsista,

mas padrões que se perpetuam a si próprios.

Norbert Wiener em Cibernética e sociedade (1950)

Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.

(“Umuntu ngumuntu ngabantu”: Máxima Zulu)

Todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.

http://twitter.com/augustodefranco (08/07/10)

Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos.

John Guare em "Six degrees of separation" Peça de teatro na Broadway (1990)

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Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio, vida humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos. Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas sociais”. Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters, “regiões” da rede social a que estamos mais imediatamente conectados. Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um “clone” de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia Novalis (1798), é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é rede! Pessoa é um ente cultural que replica uma configuração. É um ghola social.

Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a tenha criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”). Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente são nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e conscientemente tais escolhas. Adotamos princípios, escolhemos carreiras, compramos produtos

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e priorizamos atividades em função do que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos). Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única, desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos). O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura dos novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse superorganismo humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas, computadores ou alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que experimentamos em todos os milênios pretéritos. E tudo isso pode ocorrer sem a necessidade de termos consciência (individual) do que está se passando. Ao viver a vida da rede, apenas vivemos a convivência: não precisamos mais tentar capturá-la e introjetá-la, circunscrevê-la ou mandalizá-la para conferir-lhe a condição de totalidade, erigindo um grande poder interior de confirmação para nos completar da falta dos outros e nos orientar nos relacionamentos com eles. Tal necessidade havia enquanto podia haver a ilusão da existência do indivíduo separado de outros indivíduos; ou quando um (ainda) não era muitos. Toda consciência é consciência da separação, inclusive a consciência da unidade, da totalidade, ou da unidade na totalidade, é uma resposta à separação. No abismo em que estamos despencando ao entrar em fluzz, não há propriamente isso que chamávamos de consciência.

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Como epígrafe de um dos capítulos de "Os filhos de Duna", o escritor de ficção Frank Herbert (1976) colocou na boca de Harq al-Ada, cronista do Jihad Butleriano (a guerra ludista contra as máquinas inteligentes) (1):

"O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela uma perigosa ignorância. Essa tem sido freqüentemente a abordagem ignorante daqueles que chamam a si mesmos de cientistas e tecnólogos".

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Gholas sociais

Um ghola não é um borg No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965-1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente. No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas habilidades. A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa (que seria, então, uma espécie de “ghola social”). Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é tão importante dizer isso? No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a

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injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades mentais e físicas. Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações, aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a seguinte litania:

“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou. Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa. Resistir é inútil”.

Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é “aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”. Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg. Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a seguinte:

Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões sociais. É só preciso deixar-ir.

A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.

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Pessoas são portas

“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos” Pessoas são portas. Abrem caminhos. Na verdade, são caminhos. Atalhos entre clusters. Pontes. É sempre por meio de uma pessoa que podemos interagir com quem está em outros mundos. Isso significa que os interworlds são realmente as pessoas, não um novo ambiente tecnológico, mas um novo ambiente social com novos recursos tecnológicos. Esta é uma típica compreensão-fluzz: pessoa não é o individual e sim o social. Surpreendentemente, em mundos altamente conectados as novas internets são... as pessoas! Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A partir de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer, superorganismos humanos. Quando a tecnologia fornecer os meios para manter as pessoas continuamente conectadas e para acelerar a interação, ela o fará a partir dessa possibilidade social. Aliás, foi assim que nasceu a velha Internet: como percebeu Castells, sua estrutura interativa só foi projetada assim porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (2). E as pessoas que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos dispositivos móveis interativos, seja com implantes bio-eletrônicos ou cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais. Há sempre um risco. O risco de ser borg. A fronteira entre um borg e um ghola-social é móvel, nebulosa e quase sempre invisível. A hierarquia produz borgs. As redes humanas distribuídas geram gholas-sociais. Mas a maioria dos padrões de interação se configura no intervalo entre centralização máxima e distribuição máxima. Evitar o risco é refugiar-se na vida individual, escolhendo racionalmente as interações, sendo seletivo nos relacionamentos, fechando-se ao outro. Esse é o fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso”. Fecham-se à interação com o outro-imprevisível e, ao fazer isso, a despeito de serem

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muito conhecidas, obstruem conexões com a nuvem que as envolvem, desatalham clusters (ao se recusarem a servir como pontes), excluem outras pessoas do seu espaço de vida e simultaneamente se excluem de outros mundos, isolando-se do superorganismo humano e deixando de contar com uma parte (justamente aquela parte inusitada, que os marqueteiros, os políticos profissionais e os psicólogos sociais tanto procuram e não conseguem encontrar) das imensas potencialidades do social. São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo. Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda de si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem alcançou tal condição). Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal, como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como conseqüência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por defict de interatividade. Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões de followers nas mídias sociais mais freqüentadas ou se seu blog tem milhares ou milhões de pageviews). E o risco? Bem, nos Highly Connected Worlds a pessoa é compelida a correr o risco, a fluir com o curso. Não pode se proteger, se sedentarizar em seu mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a ser mais-do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds, navegar, ser nômade, fluzz. “Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (3). Nos novos mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma porta para outros mundos).

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Pessoa já é rede | 3 (1) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (2) CASTELLS, Manoel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (3) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam inveniam” cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>