Florestan fernandes nova republica

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1. NOVA REPBLICA FLORESTAN , FERNANDES NOVA REPBLICA 3 EDIO JORGE ZAHAR EDITOR RIO DE JANEIRO BRASIL, OS ANOS DE AUTORITARISMO. 1. CONTRA-REVOLUO INTERROMPIDA A crise da ditadura coloca-nos diante de um processo histrico revelador: na Amrica Latina, no so s as revolues que so interrompidas . As Classes burguesas dominantes so impotentes para conduzir as revolues inerente transformao capitalista. Ameaadas (ou supondo-se ameaadas), elas recorrem ao seu brao armado, implantam uma ditadura civil-militar e fazem a vitria pender para a contra-revoluo. Em seguida descobrem que os mesmos problemas e dilemas sociais que criavam desassosego e inquietao social, colocando as revolues burguesas na ordem do dia, so arraigados e fortes demais para serem resolvidos dentro da ordem , sem aquelas revolues temerosas das conseqncias e do agravamento das tenses, que as dividem entre si e jogam as faces e estrados das classes possuidoras em campos opostos (pelo menos politicamente) elas do marcha r , recolhem os militares ao quartel e interrompem a contra-revoluo. claro que as presses das massas e das classes trabalhadores esto na base do malogro e do recuo. Mas essencial que se note o que ocorre na autofragmentao das foras da ordem . Impotentes para realizar-se suas tarefas maiores, de interesse geral e nacional, elas tambm so impotentes para impor a Nao, contra a vontade e sob a resistncia crescentemente organizada da maioria, seus particularismos de classe e seus interesses egosticos. A interrupo dos dois tipos de processos possui a mesma natureza e significados 2. anlogos , pondo a nu a impossibilidade em que se encontram as classes burguesas de se evadirem facilmente do peso de uma herana histrica que se torna dia a dia mais calamitosa e insustentvel. Em vista dessa situao global, preciso que se de a crise 1o da ditadura" (que no s um desengajamento dos militares do comando do governo) a mesma importncia que foi (ou deveria ser) atribuda ao que, por uma fico, muitos chamaram de "crise da democracia". No temos a os dois lados de uma moeda. Quase um quarto de sculo foi percorrido, ocorreram transformaes profundas na economia, na sociedade, na cultura e no Estado em suma, no est em jogo o mesmo poder burgus. o que temos uma incapacidade crnica, que no intrnseca burguesia, mas do imperialismo diante das scios menores da periferia e com as. oras sociais secreta as p o mo o e produo capitalista e ela organizao social, cultural e poltica correspondente, quaisquer que sejam as circunstancias histricas envolvidas. Nenhuma classe social ode criar a histria sua vontade e tampouco ode mover-se no histrico existente segundo critrios arbitrrios. o que parece possvel", em um a o momento, logo em enunciar que fatos so fatos, trate-se da natureza, da sociedade ou da cultura. o capitalismo difcil da periferia opera como um alapo. Ao revelar seu preo e suas conseqncias, as ousadias encurtam o espao histrico do movimento burgus, fechado sobre si mesmo, e deixam patente que a transformao da sociedade de classes incompatvel com a acumulao em espiral de privilgios. Por isso, a "crise da ditadura" constitui uma chave para a descrio e a interpretao do que est ocorrendo no Brasil, tanto quanto do que est nascendo. 3. A bem da verdade, as elites polticas das classes possuidoras mostraram-se "britnicas" nessa emergncia. Reduzidas ao componente essencial comum, as vrias reaes "conservadoras" e "liberais" continham a mesma decifrao: "A ditadura morreu. Viva a ditadura!" Esse componente pode parecer ilgico (e qui "infantil" ou "primitivo"). No entanto, ele substantivamente maduro, racional e ousadamente civilizado no contexto histrico em que opera a imaginao burguesa e em que se desenrolam as prticas capitalistas da "terceiro mundo". A ditadura foi pedir que a revoluo nacional e democrtica interferisse "negativamente" (de uma perspectiva burguesa, ou seja, univocamente nacional e imperialista) na ecloso do capitalismo monopolista; manter o mximo de ditadura possvel, quando esta poderia ser 11 reduzida a p de traque , por sua vez, uma forma de "segurar" a revoluo nacional e democrtica montante, de garantir ritmos lentos, graduais e seguros de transio poltica (um sonho dourado dos militares no poder que os polticos garantiram perfeio). Ora, no existe s uma transio, e esta tambm no exclusiva ou predominantemente poltica. Uma ditadura em crise, que logra determinar o que vem depois, assegurando a seus pares e a seus aliados uma transio e conferindo-1he um teor especificamente poltico, uma ditadura semigloriosa, que amarga uma derrota com sabor de vitria. Se as coisas so assim, algo existe que deve ser desvendado. Os militares sozinhos no poderiam decretar a contra-revoluo e dar um golpe de Estado de xito retumbante. De novo, os militares no poderiam dar marcha a r sozinhos, e ao mesmo tempo, deixar todo o terreno minado. O mundanismo dcil no esfinge. Ele declara ostensivamente que a contra-revoluo foi interrompida no tope e para o proveito dos de cima . O que sublima que militares e civis dos estratos dominantes das classes altas no romperam as composies que conduziram, primeiro, ditadura e, em seguida, a uma mortia transio conservadora. Nenhum publicista pode examinar os fatos de uma tal situao histrica ignorando os smbolos equvocos e as ideologias perversas e pervertidas. o reino da poltica 4. nunca um cipoal. o cipoal aparece como uma primeira linha de defesa passiva e de engano dos "outros". Quem usa o cipoal no cai em sua armadilha. Pois a ao poltica real se desenrola por trs dessa linha e dentro de um terreno que se procura resguardar das interferncias (e do conhecimento objetivo) dos adversrios. Este captulo busca penetrar um pouco no mago dos smbolos equvocos, ds gestos vazios, da palavra e, tambm, o sen i o d continuidade que se estabeleceu entre a ditadura e a "repblica" que saiu e seu ventre. Ele permite acompanhar os ltimos dias de um desfalecimento, que poder converter-se em agonia se as "foras vivas" da Nao descobrirem meios eficientes e rpidos de extinguir as metamorfoses assumidas pelo antigo regime. Este sobreviveu desagregao do regime escravista, implantao do trabalho livre, traio da Repblica e chamada "crise da oligarquia" , que foi, antes e acima de tudo, uma recomposio generalizada e global do sistema oligrquico, o nico que poderia cimentar a 12 elaborao histrica do surto industrial e, principalmente , do capitalismo monopolista. A formao de uma nova sociedade (e, portanto, de uma nova repblica) depende de tais foras e de sua ecloso vitoriosa na cena histrica. Retrica e realidade O delrio se apossou das mentes dos que travaram os combates mais ardorosos nos idos de 6o. Ele talou dos dois lados - o do conservantismo e reacionarismo, to imbricados um ao outro que seria impossvel separ-los tanto ideolgica quanto politicamente; e o do populismo radical, com o governo janguista 5. frente, ou revolucionrio, tendo testa Lus Carlos Prestes e as vrias correntes de esquerda que desaguavam em vrios "ismos", os quais no vem ao caso arrolar. Esse delrio irrompeu como um fato histrico repetitivo (pois ele vem de longe, de uma colnia que se pretendia metropolitana em seus vincos senhoriais e portugueses; e de um escravismo que no se reconhecia como tal, pois entendia que, aqui, a "instituio infame" era humana e catlica, como jamais o fora em outras partes! ). o liberalismo, por sua vez; tirava dele a sua seiva (ou a super- hipocrisia em que se fundava), pois no haveria como ajust-lo sequer ao espao histrico restrito dos mais iguais do mundo senhorial. . . Na verdade, h uma constante nas transforma da sociedade brasileira: abalada em seus fundamentos materiais, em seus mores e em suas estruturas, ela no s liberta ecloses inconsolveis de delrios em contradio - ela exige o delrio como uma forma compensaria de autodefesa do equilbrio do eu, de preservao de iluses ameaadas e de relao neurtica com a ordem social, em convulso catastrfica mais aparente que real. No um bom procedimento descritivo isolar fatos e prticas que se desenrolam em interao recproca. Porque, parece bvio , quando Luis Carlos Prestes afirmava que os comunistas estavam no governo ou Celso Furtado interpretava a situao do Nordeste (e, portanto, a do pas) como pr-revolucionria, essas manifestaes "irritavam" liberais e conservadores e "incendiavam" o pavor dos reacionrios. O delrio da direita se media com o delrio do centro e da esquerda. Tambm existiam formas 13 moderadas de delrio. Quando Ignacio Rangel aconselhava Jango Goulart a se encolher diante da reforma agrria ou o prprio Jango se recusava a assumir a responsabilidade de desatar uma guerra civil - que j comia solta a partir das posies-chaves do Estado e da sociedade civil, comandadas por militares, empresrios nacionais e estrangeiros, lderes religiosos P polticos, organismos como a CIA ou a embaixada da superpotncia, etc. -, eles encenavam o delrio brando, que iria cozinhar o "governo progressista" 6. em seu prprio caldo, em uma verso centro-esquerda do que iria suceder, mais tarde, no Chile. o delrio, nessa esfera, serviu para obscurecer os fatos e ara desviar as for as revolucionrias da sociedade de seu eixo poltico centra. Em segundo lugar, conferiu aos conservadores e reacionrios uma oportunidade histrica: podiam aproveitar a fraqueza dos adversrios e derrot-los com maior facilidade, simulando que defendiam o pas, a "Humanidade" e a "civilizao" da ameaa comunista, do "inimigo externo" e do "inimigo interno". A "revoluo passo a passo" cedeu lugar contra- revoluo, ao golpe de Estado militar e implantao de uma ditadura de extrema direita, protofascista. Contudo, no me proponho sondar como as formas de delrio se entrecruzaram, se fortaleceram e conduziram, finalmente, a um beco sem sada. Meu objetivo modesto. Localizar o delrio da extrema direita em seu campo histrico e detectar por a os vrios ns cegos, que o delrio do discurso ambos alimentando o moinho de prticas econmicas, culturais e polticas delirantes. Uma sociedade nacional que n o possui grandeza e cultiva cegamente a mania da grandeza acaba sendo vtima da mania, pois a grandeza se esvai com o pensamento, a palavra pronunciada ou escrita e a prtica perversa ou pervertida. Onde colocar um De Gaulle? Ou um Lenin? Vencer a guerra ou levar a revoluo proletria vitria: o grande homem no cria as condies que infundem historicidade a sua grandeza. Elas existem ou no existem. Grandeza fora de lugar significa ridculo ou catstrofe. Ns tivemos uma dose amaznica de ridculo e de catstrofe nos entreveres entre extrema esquerda e extrema direita e sob o manto autocrtico da ditadura. E, acredito chegou a hora de refletir sobre os delrios, que nos custaram to caro, da daqueles que assaltaram o poder para destruir as limitadas possibilidades de uma revoluo 14 os obscurantistas delirantes confundiram com o fim do ~ mundo. 7. Nesse plano, o que se ergue, como um desafio interpretativo, vem a ser o delrio primordial: entender a contra-revoluo como a revoluo e, mesmo, como a revoluo vitoriosa, que protegia a ordem, a democracia e a religio. Os nexos das ideologias as classes dominantes os pases perifricos com as ideologias das naes capitalistas hegemnicas e sua superpotncia so conhecidos. De l veio, pronta e acabada, uma teoria de desenvolvimento com segurana que punha nfase no carter "revolucionrio" da modernizao, dirigida e graduada a partir de fora; Os cientistas polticos norte-americanos trabalharam extensamente a noo de que os pases pobres e atrasados abrem suas vias histricas por meio de "oligarquias modernizadoras", que usam a represso e a opresso para desencadear "mudanas profundas" em seus pases. A "teoria" silenciada a respeito de vrios pontos essenciais. o mais importante que tais oligarquias so modernizadoras para si prprias e para os centros imperiais. Elas no operam no sentido de provoca o aprofundamento da desorganizao, da revoluo nacional e da revoluo democrtica; mas, em direo inversa, de estabelecer as bases econmicas e polticas da "revoluo modernizadora", promovendo a criao dos elos necessrios a formas crescentemente mais complexas e difceis de incorporao da periferia ao ncleo das economias, do sistema de poder e da organizao ideolgica das naes imperialistas. Portanto, elas se convertem em elementos perigosos para os seus prprios pases, nos quais introduzem medidas repressivas intrinsecamente imperialistas, anti-sociais e antinacionais. o outro ponto importante diz respeito ao sufocamento dos dinamismo espontneos (por vezes mais ou menos organizados, institucionalmente) de mudana social revolucionria. A modernizao, comandada por elites que controlam ou tomam o imperialismo, dissocia a mudana social da revoluo. A preocupao nmero um, alis consiste em esterilizar o carter antielitista, antiimperalista e anticapitalista das tendncias polticas revolucionrias da mudana social. Esta passa a ser canalizada para o leito dos interesses da minoria no poder, das classes privilegiadas e de seus aliados (ou amos e mentores estrangeiros). A conseqncia 15 8. geral que as foras da contra-revoluo tomam as aparncias , os vocabulrios e as posturas das foras da revoluo na nsia de desloc-las do endosso popular. E, atravs do Estado e de todas as instituies chaves da Nao, realizam polticas de acelerao da acumulao capitalista (por sua prpria essncia anti-sociais e antinacionas) e de fuso programada s economias, aos sistemas de poder e s organizaes ideolgicas dos pases centrais e de sua superpotncia. Para o senso comum, essa evoluo parece fora de propsito. Como "justificar" que pessoas educadas e treinadas nas melhores escolas do pas e do estrangeiro e presas por interesses e/ou por valores a lealdade que excluem (ou deveriam excluir) formas explcitas de "traio nacional" no s atuem individualmente, mas ainda usem todas as oportunidades e todos os mecanismos de poder para engendrar um novo tipo de colonialismo? Como "explicar" que at os militares das posies mais altas da hierarquia e os empresrios mais poderosos, das cidades e do campo, adiram com frenesi a uma filosofia econmica entrevista e a uma filosofia poltica de capitulao passiva dominao externa? Como " entender" que essa reviravolta se autodefina como "revoluo" e se proclame nacionalista, democrtica e patritica? O delrio no nasce de si mesmo. Ele deita razes histricas, quando se apresenta como um processo social . Parece que duas razes ajudam a esclarecer o assunto. Primeiro o fracasso da ideologia burguesa clssica. As burguesias mais fortes da Amrica Latina - e, em particular, a burguesia brasileira - tomou o "possvel" pelo "real". Pareceu-lhe que o capitalismo possua caminhos naturais ou invariveis de difuso e crescimento. O que foi possvel na Frana, na Inglaterra e nos Estados Unidos e o que se revelou vivel na Alemanha em condies duras e singulares) deveria ser possvel nas condies da revoluo urbano-industral no Brasil. A realidade negativa patenteou-se como um "choque": a guerra fria colheu as burguesias perifricas dentro de uma vasta rede, cujo manejo ficava no exterior O perigo comunista s podia ser vencido por uma cartada ousada esmagar o inimigo, ao mesmo tempo em que se lograriam meios de desenvolvimento capitalista "seguros" e "crescentes". A perverso ideolgica se associa uma perversidade poltica: as tenazes que apertavam de fora para dentro coincidiam com o medo das tenazes que apertavam de baixo para cima. Na 9. 16 verdade, o lao do controle imperialista foi bem armado e as burguesias dependentes queriam cair no logro. Mas da resultaram prticas econmicas, sociais e polticas que eram por si mesmas desgastastes e exigiam perverso ideolgica e mecanismos coletivos de auto a dos estratos hegemnicos das burguesias de dependentes. No Brasil, o processo caminhou muito rpido classes possuidoras no havia nada demais em `vender" riquezas que, de outra maneira, ficariam "debaixo da terra"; era vantajoso para o pas "importar" capital acumulado e excedente nos pases ricos; o Brasil possua todos os requisitos de uma grande potncia e seria possvel convert-lo, com apoio externo apropriado, em potncia intermedirio, o ponto de partida da "Grande Ptria"; assim se desenhava uma revoluo pelo "caminho mais fcil" e os que sepultaram (ou pretenderam sepultar) todas as transformaes seculares, em difcil gestao, ergueram a bandeira da "revoluo", escreveram a sua "constituio" e, com ela ou contra ela, alertaram a Nao de que "a revoluo impe as suas prprias leis". A questo no consiste em negar que os deslocamentos ocorridos envolviam mudanas de contedo revolucionrio na esfera da acumulao capitalista, do sistema de produo e de trabalho ou nos dinamismo imperantes na sociedade civil. Essas mudanas foram conseguidas a custos penosos para o Brasil como um todo e, em especial, para a massa pobre e destituda de sua populao. Mas, obviamente, no existia uma conscincia de classe burguesa revolucionria. A revoluo burguesa percorreu, aqui, a rota do desenvolvimento desigual perifrico: as classes burguesas correram atrs das transformaes capitalistas no provocaram e conduziram (como , alis, a norma na revoluo burguesa secundria). A contra-revoluo e a repblica institucional, com sua ordem poltico-constitucional autocrtica (pudera), tornaram-se necessrias como premissas desse tipo de transformao capitalista. A questo est, pois, em esclarecer essa modalidade de falsa conscincia burguesa, perversa e pervertida, mas racional e eficiente. Nesse caso , as ideologias entram no circuito do consumo como as tcnicas , os valores e as instituies: por um processo de difuso cultural , que se irradia do centro imperial para a nao hospedeira. Nas naes capitalistas centrais e em sua superpotncia 10. 17 tais ideologias se dissociam das prticas sociais reais e so o reflexo invertido dos valores que elas professam (os estudos de Myrdal e de Hollingshead so exemplares a esse respeito). Os valores existem, corno mores ou normas ideais, para todos, mas, como possibilidade concreta, s se tornam efetivos para certos estratos sociais de uma sociedade de classes avanada. De outro lado, a contradio entre sistema axiolgico e a estrutura de classes inerente ao capitalismo insupervel . Esses dilemas se reproduzem com virulncia e devastadoramente na sociedade capitalista perifrica. A dissociao e a contradio chegam a um extremo to chocante que as classes possuidoras precisam restringir o mundo dos homens as fronteiras da humanidade seu pequeno universo social e usar Os demais, a massa da populao especialmente o seu setor majoritrio miservel e mais oprimido), como bode expiatrio. Eles so a fonte e a razo de ser de todos os males: da seca n Nordeste; do atraso econmico; do obscurantismo cultural; da impraticabilidade de um regime democrtico, etc. Essa imagem do outro aparece tanto na cabea de um mdico e latifundirio no Cear, quanto na viso cataclsmica do presente e do futuro de um economista consagrado, como Eugnio Gudin. Como diriam os franceses: c'est la merde. o que no estranho a essa imagem do outro, pois ouvi vrias vezes, de um representante notvel das famlias de 4oo anos em So Paulo, que "o Brasil s tem conserto depois de uma chuva de merda de trs meses". Como sucede com as tcnicas, os valores e as instituies: deslocadas de seu contexto histrico imediato, as ideologias ou se sustentam sobre seus ps ou se alimentam das fantasias dos que as absorvem e lhes infundem realidade, isto , historicidade. No se estabelece um vazio histrico nem um vcuo moral. Mas , inevitvel que surjam tenses psicolgicas, morais e polticas. Em vez de a situao de interesses alimentar a ideologia e ambas interagirem entre si, criativamente, a ideologia para nas nuvens da imaginao e do sonho , refletindo em si mesma uma realidade que poderia existir-se ... Por isso o contraste entre o pas real e o pas ideal algo concreto e que afeta a conscincia de classe dos mandes 11. e sua propenso ao quixotismo. Seu ponto de referncia egocntrico procede do pequeno universo social a que pertencem e da idealizao das naes centrais e de sua superpotncia, que, de fato, nunca esto dispostas a fazer tudo o que os seus aliados fracos supem que seja do seu interesse ou necessidade de por em prtica. 18 Por ai se desenha uma dialtica da conscincia burguesa em muitos aspectos contraposta ao padro original e que decisivo , muito dependente da retrica. A verso retrica da ideologia to decisiva (ou ainda mais) quanto a sua relao racionalizadora ou falsificadora com a realidade. A idia de "revoluo" da direita, na dcada de 6o, e a suposio de que seria vivel acelerar a transformao capitalista com "capital importado" sem mais, so exemplos claros. Ningum quer enganar ningum. Estava na cabea dos mandes que e estaro fazendo uma revoluo e que essa revoluo permita engrenar o raspas dinamismo centrais do crescimento do complexo imperial: Tal coe o no era s de chefes militares e grandes empresrios; era de economistas, socilogos e cientistas polticos que produziam a teoria da contra-revoluo, assessoravam-na e eram os seus mandarins. Esses fatos patenteiam que a ideologia no se evapora, no se metamorfoseia em pura retrica. S que na perspectiva de nosso solo histrico, ela possui realidade mediante sua verso retrica. Os homens no so senhores da fala. O que eles falam toma conta do que eles fazem ou gostariam de fazer, como uma imagem invertida e um falso fazer ou um fazer de conta. A palavra volta a ser magia desprendida do rito e do mito. a palavra revoluo um abre-te-Ssamo. Ela um ato e um fato. a poltica , aparentemente divorciada da ideologia , pura ideologia, uma tentativa de transformar o mundo com boas intenes, sem alterar a substncia das coisas (e a ordem da sociedade). Na outra ponta do arco, na "luta pela redemocratizao" depara-se com o mesmo n. No mago da campanha pelas eleies diretas, depois que o PMDB lograra infundir-lhe uma intensidade de massa que o PT no conseguira sozinho, o centro do palco tomado por uma figura pattica, cuja doena e morte empolgaram a imaginao popular. 12. o "presidente", referido por essa crnica generosa como um grande presidente e o nico que se imporia como "o maior presidente de todos" no cultivou a "frase revolucionria" de mo invertida mas tramou o pacto conservador mais ardiloso de uma histria riqussima em ardis. Um pacto com vrias pontas. Uma recaptura a integridade da revoluo afirmando explcita e enfaticamente a inteno de reconduzi-la 19 por sua vocao democrtica! No combate ditadura, o fiel da balana seria dado pelo fulcro poltico que esta erigira como seu marco histrico. As outras trs pontas representavam articulaes de interesses econmicos, sociais e polticos. O brao militar se desarmaria, continuando, porm, por trs da presidncia, como uma retaguarda pronta para o ataque se os "inimigos da ordem" chegassem a se erigir em um obstculo efetivo. A cpula poltica do principal partido da oposio em aliana democrtica com os liberais do regime , que finalmente, descobriam que o seu ardor revolucionrio renderia maiores dividendos se eles continuassem a testa do governo. Por fim, o brao civil, que se desengajara antes dos militares, deixando o regime sem uma base social de sustentao poltica, abraou a composio poltica que garantia ao grande capital nacional e estrangeiro uma transio sem ousadias e sem turbulncias. Isso queria dizer simplesmente, que a ditadura no seria desmantelada e que ela serviria de guia a uma democratizao sui generis, que sairia das entranhas do regime , como sangue do seu sangue. Os militares , desde Geisel e principalmente sob Figueiredo , sonharam com essa forma de transio , que convertia o Brasil em uma imensa bacia de Pilatos . No era uma vitria da democracia, era uma nova derrota do republicanismo e um conchavo descarado, o qual escorava a "transio lenta, gradual e segura" que fora arquitetada pela ditadura, mas que os militares e os seus aliados se mostraram impotentes para conquistar em uma fase de declnio de sua autoridade e do seu poder. O delrio, aparece na plenitude da "poltica tradicional" como uma obra de arte. No chegamos a ter um Maquiavel, mas os vrios prncipes da poltica e das manobras 13. eleitorais aprenderam a tecer um belo quadro de composies inconcebveis - e Tancredo Neves excedeu a todos! Por isso, queiramos ou no, ele nos pe diante do apogeu de uma tradio cultural e nos obriga a admirar um talento que constrange, uma obra-prima que causa arrepios, um feito que revela o quanto o dscurso poltico se mantm "condoreiro" e a prtica poltica, "barroca", dissociando-se por inteiro de uma cultura cvica solidamente nacional e democrtica. A audcia de ir aos ltimos extremos para conquistar o poder e a presidncia, de agradar a Deus e ao Diabo, e de admitir, para isso, que a poltica dos fatos consumados crescesse alm de todos os limites, tomando impraticvel qualquer 2o ordem existente em sua forma vigente. Portanto, atos e fatos esto entrelaados ao discurso poltico hbil, que distingue os "homens do poder" dos outros e entrega a Nao a um destino miservel e cruel. Getlio Vargas j foi apontado como o paradigma do "gnio poltico" ao estilo brasileiro. Contudo, ele no encarnava uma exceo. Foi um dos polticos mais bem-sucedidos na observncia daquela tradio cultural, que teve vrios pontos altos e encontrou em Tancredo Neves um artfice exemplar. A "poltica dos notveis", dos polticos orgnicos do conservantismo moderado, que se acreditam democracia e humanitrios porque no recorrem chibata, no pretende regredir ao escravismo e se cobrem com um manto de lantejoulas iluministas, eduzindo as massas com as palavras e as minorias privilegiadas com as naes. sob esse signo que a ova Repblica se cruza com a existncia do homem comum. a no rompeu com o passado, remoto ou recente. No combateu de frente a ditadura. Contornou-a e prolongou-a. Nasceu de seu ventre e foi batizada em sua pia batismal. O Colgio Eleitoral tinha de ser o seu bero e, tambm, o seu leito de morte. A retrica empolgou a sua defesa, atravs' da indstria cultural de comunicao de massas e da ao rasteira. dos polticos profissionais. Todavia, a retrica est sendo desafiada pelos ritmos histricos da sociedade brasileira . Os diques romperam-se em todas as posies estratgicas do poder conservador . O governo que sucede 14. ditadura nasce marcado por sua ineficincia e impotncia . Ele procura avanar na direo do mundanismo, mas as mudanas que ele apregoa envelheceram e se esvaziaram depois de mais de 2o anos de calamidade ditatorial. Ele busca alianas populistas, mas manietado por seu contedo ambguo e por suas impulses conservadoras. ele quer mobilizar o apoio popular, mas o faz desmobilizando a prtica democrtica dos vrios movimentos populares (dos proletrios, dos estudantes , das mulheres, dos professores , dos favelados , dos ndios, dos negros etc. Portanto, confunde cooptao , mas no pode faz-lo sem destroar as empresas estatais e semi-estatais, transferi-las para o controle privado (nacional ou estrangeiro) e escolher o seu caminho : qual o seu Deus Mamon? Submete-se pela metade ou por inteiro batuta do FMI e dos banqueiros internacionais? Enfrenta as decises as amarguras e a voracidade 21 dos grandes capitalistas brasileiros ou baila com eles? A realidade catica atingiu o clmax j no pode ser exorcizada pelas palavras fortes e por seu eco. A retrica se converteu em um alapo do pacto conservador e a ressonncia do conceito de nova repblica se extingue no mesmo ato da difuso propagandstica. Ela no poltica , ela no sria ela o oco de uma ideologia importada e inflada como o sapo da lenda a pique de estourar. A que nos leva esta digresso A concluso pessimista dos conservadores, segundo a qual o Brasil desgraado pelo tipo de gente que o ocupa? Ao contrrio, ela coloca a questo da nova Repblica em termos da negao da retrica do maniquesmo e do delrio. O bonde chegou estao. A viagem que comea ter de partir do cipoal construdo por uma imaginao conservadora perversa e pervertida, que parece ser o seu contrrio, mas exatamente o que deveria ser para que o passado se prolongue no presente e sufoque, antes de se dissipar, o futuro. A presena do Povo na histria significa o contrrio disso, uma liberao pela via das oprimidos, da luta proletria por transformaes reais e substantivas da sociedade brasileira. A ruptura que no se corporficou nem cresceu na dcada de 6o configura-se, agora, como uma vitria da maioria esmagada contra a minoria dominante. o pacto conservador cortou a trajetria inicial desse processo. 15. No obstante, est com ele atravessado na garganta. Paralisa-se o governo, paralisa-se a iniciativa privada, paralisa-se a Nova Repblica! S h um meio de sair desse imobilismo, o qual consiste em aprender a conviver com a democratizao da sociedade civil, do Estado e das demais instituies-chaves. Deixar correr a revoluo democrtica e a revoluo nacional, at que surja uma Repblica capaz de conter os contrrios e de compor as contradies inerentes ao antagonismo entre capital e trabalho. Depois disso, a histria encetar outro percurso, sem precisar curvar-se retrica, ao delrio e ao arbtrio dos donos do poder. O negativo da ditadura As ditaduras se constituem e se desintegram de vrias maneiras. No caso brasileiro, o "desengajamento" dos militares do comando 22 do governo e da chefia processou-se da pior maneira possvel. Eles no foram derrubados; prepararam uma retirada estratgica da qual e sobre a qual mantm um controle direto e quase intocvel at hoje. Teria sido diferente se o movimento pelo sufrgio imediato alcanasse xito. Esse movimento, como e conhecido, foi desbaratado pelas foras da cpula do sistema de poder (nele se incluindo, naturalmente, o PMDB) e do tope da sociedade, mais ou menos empenhadas em evitar um "recrudescimento" (de novo, o delrio e a frase contra-revolucionria) da opresso e da represso militares. Na verdade, o "movimento das diretas" forneceu uma radiografia poltica a sociedade brasileira atual. O que essa radiografia revelou assustou os crculos conservadores do principal partido da oposio, impulsionou os "liberais" ou polticos "civilizados" do governo ditatorial a mudar de barco em plena viagem e estimulou os militares da Presidncia e de outros rgos estatais a aproveitarem a oportunidade para se retirarem do centro do palco rumo aos bastidores (resguardando para si, porm, o direito de "guardies" da democracia emergente! ). Podiam proteger-se, assim, a 16. curto prazo; intervir nos acontecimentos de acordo com suas convenincias e interesses; e contrabandear para o novo governo todas as instituies e estruturas do Estado de segurana nacional que j estavam montadas e funcionando. Se no tivemos a ditadura mais sangrenta e aguerrida, coube-nos a que ficou mais enquistada nos organismos do Estado e no aparelho do governo. mister , pois que se diga :a ditadura militar sofreu uma derrota, mas uma derrota que se caracteriza pela autopreservao. As foras conservadoras descobriram , pelo movimento das diretas, que a inquietao social campeava mais solta e mais forte que em 1964. Avanaram no sentido de uma composio pelo alto, repeitando o seu brao armado, j que em tempos de democracia ningum sabe qual ser a veneta do povo. Uma retarguarda guarnecida por militares, e em especial por militares sados da aventura ditatorial, tisnados por ela e ansiosos por encontrar no governo eleito em composio com antigos scios-civis a testa do poder e do comando de partidos importantes, uma slida garantia de transio prolongada . O fantasma do recrudescimento olhe que os homens voltam etc. um breque fenomenal, ao qual sucumbem as intenes radicais responsveis. 23 A prpria esquerda do PMDB mostrou-se sensvel aos efeitos letrgicos dessa fantasia e um governo de transio sem rumo obteve uma anuncia britnica s suas circunvolues. . . Uma avaliao global pe a nu duas coisas. Primeiro as chamadas elites das classes dirigentes" esto pouco alertas aos "interesses do pas": elas querem garantir prioritariamente os seus prprios interesse aprisionar o governo nas cadeias da tradio cultural. Segundo apesar da misria, da inquietao social e do desemprego, as massas populares ainda no encontraram os meios de luta poltica organizada mais eficientes para os seu propsitos: ficam merc de envolvimentos que fortalecem os seus adversrios e mantm statu quo ante com pequenas modificaes. o governo bamboleia, mas avana, beneficiando-se de uma situao de imobilismo parcialmente forjada e parcialmente produto natural das condies histricas. 17. O ponto crucial dessa discusso est no quantum de ditadura militar que resta ativo. Uma derrota liquida e definitiva do governo ditatorial teria exterminado o corpo institucional da ditadura e eliminado uma vasta poro de pessoal recrutado com base na identidade poltica, ideolgica e policial-militar com o fascsma enrustido. Um esboroamento no produz o mesmo resultado . o aparato institucional da ordem ilegal continua tendo vigncia, inclusive a constituio que foi ditada com o propsito de criar um Estado de segurana nacional tpico da periferia, com todos os recursos modernos do Estado capitalista de hoje. Essa constituio foi expurgada dos atos institucionais; e vrias medidas tomadas pelo Congresso permitem iniciar um processo novo de passagem para um "Estado de direito". No conjunto, as elites polticas fizeram o mnimo possvel para erradicar a ordem ilegal implantada pela ditadura. Tanto os polticos profissionais quanto os interesses do grande capital nacional e estrangeiro temem mudanas rpidas, que, pelo seu prprio dinamismo, podem escapar ao seu controle direto Por isso, assistimos a um jogo de cabra-cega no qual ningum est no lugar certo. Pois no existe lugar certo para ningum ficar. . . inclusive o governo! Tem-se atribudo a responsabilidade por esse desfecho a Tancredo Neves. Ele teria levado para o tmulo o segredo de uma arquitetura poltica rebuscada e impraticvel sem sua presena. Ora, essa explicao infantil. O que paralisa o governo o choque de interesses de faces 24 polticas dentro dos partidos da AD e as divergncias inconciliveis entre os partidos que a compem. As classes possuidoras, em seus estratos decisivos e poderosos, no esto dispostas a arcar com os "riscos" de uma democracia de verdade e manietam o governo, que se v forado a procurar "aliados para baixo", no para valer, mas para assustar sua prpria base social e desemperr-la. Se h a um segredo, um segredo de polichinelo. O "mundanismo de superficial no encontra endosso nas classes dominantes e o governo simula ultrapassa-las para ganhar flexibilidade e vitalidade. Mas ningum se abala com isso. A parte fraca no so as c as dominantes e sim o governo. 18. Portanto, malgrado o fato de o governo ter herdado o complexo institucional da ditadura e grosso da sua administrao; e apesar de, em grande parte, os polticos de proa serem os mesmos nas posies-chaves, o impulso mais forte de preservao da estrutura ditatorial vem de fora. Se existe um "recrudescimento" militar invisvel, ao que parece ele perde para o pnico burgus e o endurecimento do furor poltico ds classes dominantes. Como ocorreu e a 9 , as classes burguesas buscam uma sada barata, e esta s pode ser proporcionada por um "governo forte". o governo que a est no forte e se ; desorientado por essa presso extrema inesperada. Afinal, o pacto das elites consagrava um estilo de fazer poltica e garantia uma transio "equilibrada", isto , "sem anarquia" e sem "desestabilizao da ordem". No nterim, o movimento pelas diretas e as "liberalidades" (provocativas?) do atual governo ressuscitam a parania da revoluo social. E isso ocorre em um contexto sufocante. A descompresso lana os operrios e os bia-frias s ruas e ocupao de fabricas ou de fazendas - a sociedade civil parece ferver e prestes a pegar fogo, pelas pontas que j eram esperadas. A inquietao burguesa sobe, `enquanto a cotao do governo para a grande burguesia cai. Para conquistar vantagens relativas, os grandes empresrios nacionais precisariam abocanhar as empresas estatais, dispor de uma poltica amena e gradativa de tratamento da dvida externa (uma composio com o FMI e os banqueiros internacionais) e uma reviravolta sria do governo diante da amortizao da dvida interna. Tudo isso impraticvel, pois o scio estrangeiro mais forte e garalisa o governo e, doutro lado a pequena burguesia, as classes mdias e, principalmente, as classes trabalhadoras investem na 25 direo contrria, imobilizando o governo. A moldura histrica e o retrato so igualmente trgicos. Por paradoxal que seja, a turbulncia concentrada vem de cima e se multiplica velozmente graas ao .poder 19. real dos ricos e poderosos. Por sua vez, a turbulncia dos de baixo adquiriu outro carter. Ela se tornou persistente e contnua, como uma chuva fina. No h com arred-la. A compresso ditatorial forou o aparecimento e consolidao de rgos de base que permitiram e deram eficcia s comisses de fbrica, aos comits de bairro, s associaes de camponeses e favelados, politizao parcial ou global de escolas de samba e associaes recreativas, convertidas em frente de luta popular, do protesto negro, etc. Se o governo possusse uma poltica unificada de democratizao da sociedade civil do controle do Estado e da participao popular, poderia equilibrar-se na corda-bamba e sair por dentro da sua prpria capacidade de ao e de interveno, reconhecidamente muito forte na tradio presidencialista brasileira. Todavia, ele no possui uma poltica : um conciliador de polticas antagnicas de interesses do capital nacional e estrangeiro em conflito . Como no pode criar a sua poltica, dilacerado e inviabilizado pelas polticas que obrigado a absorver, mas no pode digerir, articular e por em prtica. O mximo que logra consiste em neutralizar as presses que vm de baixo e em contemporizar com as presses que vem de cima . A atuao dos ministrios do Trabalho e da Educao exemplificam o primeiro ponto. O governo avana at uma posio de neutralidade favorvel aos operrios e aos estudantes. Roubar-lhes a iniciativa dos movimentos e converter o debate espontneo nas bases em estudos de cpula, de comisses tcnicas. sob a aparncia mais democrtica possvel , autocratiza a soluo dos problemas e desmoraliza os prprios movimentos por meio de formas explcitas de cooptao governamental. A reforma agrria exemplifica o segundo ponto governamental. Um diagnstico correto serve de pano de fundo para a proposio de medidas prticas andinas. O sinal era claro. O governo buscava apoio popular sem arriscar os interesses fundamentais dos proprietrios. Uma barragem de fumaa que estes fingem no entender. pois aproveitaram melhor a oportunidade para consolidar a sua propriedade sobre a ordem estabelecida e o seu governo... A massa reacionria da burguesia entendeu bem a manobra coesa no massacre dos 26 20. Em suma, estamos diante de uma situao histrica clara. No o governo que retende impor um "retrocesso". a estrutura e classes a sociedade civil sob o capitalismo selvagem que no comporta um "avano". As classes dominantes precisam de um Estado forte para preservar a ordem e reproduzir o seu poder real. Elas no se do bem com um presidente que hesita e com um governo vacilante, que oscila (ou parece oscilar) da direita esquerda. De um lado, elas fincam p na tradio cultural: se as outras classes desejam a democracia, que a conquistem. Cabe-lhes o privilgio da supremacia econmica do despotismo o poltico. Portanto, elas lutam com afinco por um presidencialismo de corte ditatorial, no qual democracia para os de cima se superponha uma ditadura dissimulada para os de baixo. Sempre foi assim e no h por que mudar. . . (a no ser as "aparncias constitucionais")! De outro lado, as classes dominantes perderam confiana na ditadura, mas continuam a necessitar de um Estado semiditatorial, ou completamente ditatorial, para lidar com Os descontentes, com as inquietaes sociais e para resolver com maior facilidade os problemas nascidos de um capitalismo de essncia poltica de rapina e de rapinagem incrustado no Estado e criatura dele. Acresce que o capital estrangeiro e as naes imperialistas tambm temem a "instabilidade poltica". o que uniformiza (se no unifica) a convergncia no tope em favor de um Estado forte, de uma democracia dcil e instrumental aos mais iguais. Essa moldura paradoxal ressalta de onde procede a "fraqueza" do governo; e porque, tornado situao, o PMDB teria de trair a sua pregao democrtica. Os de cima no se abrem sequer para a revoluo dentro da ordem , a revoluo que se sustenta em transformaes capitalistas necessrias embora tardias naturalmente, tendo-se em vista outra forma de desenvolvimento capitalista - no o desenvolvimento capitalista que j foi qualificado como "perverso", tpico do capitalismo selvagem). Revoluo, para eles revoluo: tanto faz que seja dentro da ordem ou contra a ordem Cumpre estanc-la impedir que uma fomente o aparecimento de condies favorveis outra. E funo crucial do governo consiste exatamente nisso. Ele contm o brao poltico e o brao militar a burguesia. Deve empenhar-se para que a ordem "no sofra ' abalos" e para que as classes dominantes no se vejam ameaadas em sua capacidade 27 21. de exercer em toda a plenitude a sua dominao de classe. Houve um momento no qual parecia que a grande vitria da ditadura (e dos conservadores) fora alcanada quando se concertou o pacto poltico pelo qual a escolha do sucessor do general de planto na Presidncia se transferira definitivamente para o Colgio Eleitoral. Hoje j se pode discernir que a vitria de militares e civis empenhados na "transio lenta, gradual e segura" apresentava um leque de desdobramentos e vergara todas as foras oposicionistas. Determinar o sucessor e as condies polticas da "transio" constituam dois objetivos centrais, mas no os mais importantes. O essencial consistia (e ainda consiste) em impedir um deslocamento de poder, com uma acumulao d foras polticas acelerada das classes subalternas. O que os militares temiam era ainda mais temido pela massa reacionria da burguesia. Trocar a ditadura por um governo de "conciliao conservadora" era uma barganha imprevista, que o sustentaria de podei e de propagao ideolgica da burguesia fortaleceu com estardalhao por todos os ~ meios possveis (conferindo, inclusive, campanha eleitoral de Tancredo Neves o estatuto de um movimento de salvao nacional). A partir da, o PMDB perdera a capacidade de afirmar-se numa linha de combate coerente pela democracia e adernou a direita arrastando na queda sua esquerda parlamentar e sua riqussima irradiao popular. O antiditatorialismo passou por um processo anlogo ao esvaziamento do republicanismo, provocado pela aliana dos fazendeiros com os republicanos histricos . Os touros ficaram soltos na praa . Mas no havia toureiros. Os prceres do PMDB ocupavam-se em "matar as cobras com o prprio veneno" , enquanto estas mudavam de covil e se instalavam confortavelmente entre as cobras que infestavam o PMDB. Em seu clmax, o movimento poltico popular sofrera um golpe mortal . A transferncia de poder converteu-se numa troca e nomes e, como afirmou um notvel comentarista poltico, as velhas e as novas raposas aplainaram o caminho que levava satisfao de seus apetites. Esse era o desdobramento que mais convinha s elites econmicas, culturais e polticas das classes dominantes. Esvaziar a praa pblica, recolher as bandeiras polticas "radicais", matar no nascedouro o movimento cvico mais impressionante da nossa histria - restaurando de um golpe as transaes de gabinete, as composies entre os vares "liberais" da Repblica, o mundanismo 22. 28 poltico. No h que negar: as figuras' de proa, como Tancredo Neves, Ulisses Guimares, Marco Maciel e Aureliano Chaves frente, lavraram um tento. Exibiram um profissionalismo poltico de causar inveja. E tiveram xito. O que consagra a ao poltica a vitria. Vitoriosos, eles demonstraram o seu valor e a sua competncia . E a Nao? Esta foi inapelavelmente empurrada da estrutura principal! Moldura e cenrio de uma restaurao especfica, que nos coloca metade na dcada de 2o e outra metade na dcada de 4o. Mais Que a eleio direta de um presidente perdeu-se a oportunidade histrica nica de usar o rancor contra a ditadura e a conscincia geral da necessidade de mudar profundamente como o ponto de partida de uma transformao estrutural da sociedade civil e do Estado. E se ganhou uma mistificao monstruosa:a montagem poltica e ideolgica de um Frankstein, batizado de Nova Repblica e trombeteado pela cultura da comunicao de massa com uma vitria do povo na luta pela democracia. Poder-se-ia dizer que se realizou uma "operao semntica". No entanto, nem isso verdadeiro. Um embuste um embuste e no uma operao semntica. A montagem a realidade. Ela traduz o que as elites podem fazer no plano das atividades polticas esterilizadas e sem risco. Um Frankenstein arquitetado, segundo dizem, por um homem de grande talento poltico, mas que punha a conquista da Presidncia acima de tudo. Um Frankenstein concebido para dar a vrios Csares o que pertence a todos eles. Os militares reservaram-se a sua parte e prefixaram o seu "peso poltico" em termos do papel das Foras Armadas na poltica de segurana nacional. Os "liberais" com servides conhecidas ou ocultas ditadura cobraram caro o seu amor causa pblica e "restaurao da democracia". Os vrios crepsculos e as diversas faces do PMDB agiram pelo mesmo padro. Os empresrios e as associaes empresariais garantiram-se alguns ventrloquos, o mesmo fazendo o grande capital estrangeiro. 23. E por a afora . A pulverizao do governo tem sido apregoada como uma conseqncia do advento da democracia1 contudo esta est hoje mais distante do que sob os dois ltimos perodos da ditadura , pois se torna difcil combater por algo cuja visibilidade opaca. Um gro-vizir do regime ditatorial viu-se com o curral presidencial nas mos. E tenta agradar a gregos e troianos , na nsia de obter algum endosso ou uma faixa de poder para si prprio. O que isso quer 29 dizer'? Aproximamo-nos da democracia? Enterrou-se a ditadura e se implantou uma Repblica democrtica efetiva? A resposta bvia. A pulverizao gerou vrios centros de comando e de tomadas de deciso. No lugar de uma ditadura unificada pelo fuzil contra- revolucionrio, temos uma mirade de pequenas ditaduras, zelosas pela consolidao de absolutismos nanicos desarticuladas Esse governo dbil no nem pode ser democrtico. Ele deixa passar as correntes fortes do poder real e, algumas vezes, luta por uma visibilidade poltica favorvel nas classes trabalhadoras' e camponesas. Portanto, s pode ser instrumental como um governo de transio dos de cima. Sua fraqueza e 'seu imobilismo constituem um risco potencial que s elites dirigentes das classes dominantes tem de pagar para no perderem terreno em um momento a verso Ele no conduz uma cruzada convir herana da ditadura nem se movimenta contra a tradio cultural centrada na democracia dos poderosos e dos mais iguais. Faz um jogo de pacincia e de desarticulao das classes trabalhadoras e dos setores rebeldes da sociedade. Pe no seu haver iniciativas que lhe do visibilidade democrtica ou, pelo menos, "democratizante" e " populista"), como a legalizao dos partidos comunistas, a moderao diante das greves ou da necessidade de uma nova regulamentao do trabalho, dos sindicatos e das greves, a simpatia diante da reforma agrria, etc. Tais medidas fazem parte do jogo de pacincia. De um lado, elas so desmobilizadoras e centralizam a tomada de deciso no tope poltico (ministerial e presidencial). De outro lado, ao mesmo tempo em que busca alargar a sua base social de sustentao poltica, o governo 24. compele os estratos mais ou menos conservadores da burguesia a procurar nele o seu eixo privilegiado de equilbrio poltico. Nesse sentido, o atual governo-no o oposto da ditadura, mas a sua reproduo fragmentada e compartimentada. A estratgia nascida do pacto conservador no tornou como ideal a Repblica democrtica da era atual. Perfilhou o caminho das composies de interesses, o que redundou, naturalmente, em um estgio no qual o poder ditatorial se prolonga com eficcia em vrios segmentos contguos. Como a ordem ilegal construda pela Repblica institucional no foi destroada, a parte e o todo infundem ao cenrio histrico uma aparncia fantstica. Cada Csar maneja o seu pequeno despotismo e, s vezes, nem 3o sequer tenta ocultar as coisas ao presidente, o Supercsar. natural que isso acontea. Pois a ditadura teria de se morta no corpo da sociedade civil, no na cabea do Estado. A democracia uma realidade histrica a conquistar. Um governo sadio da "conciliao pelo alto" - alm disso, em termos polticos, "fraco" e "barato" - no pode incluir-se no rol dos fatores capazes de dar sustentao, profundidade e maior rapidez a tal processo. Outros sim, a rede de instituies especificamente polticas tambm dbil. Elas foram violentadas pela ditadura, a ataram-se a ritmos e a estilos de funcionamento mais ou menos incompatveis com qualquer forma poltica de democracia real. O Congresso e os partidos existentes, especialmente, no so as armas desejveis para a envergadura e a complexidade da dura luta de classes que est sendo travada neste instante entre burgueses e proletrios e para a construo de um regime democrtico pluriclassista. No houve tempo de expurgar um e outros dos vcios e deformaes institudos pelo regime ditatorial, embora neles esteja a base para o arranco da elaborao de uma Repblica democrtica multipolarizada. O Judicirio, por sua vez, vergou demais s injees da Repblica institucional ou autocrtica, e s avanar mais lentamente, sob presso das foras em choque na 25. sociedade civil e dos efeitos nstablizadores que forem liberados pela transformao do Congresso e dos pastidos. De qualquer modo, quebrou-se a soldagem no tope entre Executivo, Legislativo e Judicirio e sistema de partidos. Desapareceu o elemento central que unificava ditatorialmente o poder poltico e permitia a centralizao do poder poltico indireto das classes dominantes. Essa alterao parece ser a mais importante de todas. o "desengajamento" dos militares e sua retrao para a retaguarda do "poder civil" estatal pressupem um deslocamento histrico que privadas elites econmicas, culturais e polticas das classes dominantes de uma centralizao artificial de seu pode de classe.. Elas ainda continuaro a contar com o Estado como um instrumento estratgico de autodefesa coletiva e de estancamento ou amortecimento das mudanas polticas da. ordem existente; No contaro , mais, porm, com um Estado automaticamente defesa de Seus interesses particularizas e com um excedente de poder poltico que lhes possibilitava uma supremacia de classe quase invulnervel. 31 Isso significa que a fragmentao do poder estatal que est ocorrendo com certo mpeto debilita o tope da sociedade e sua capacidade atual de controle e utilizao do aparelho do Estado . Sob a ditadura , a fragmentao seguia linhas determinadas (por exemplo, as que se impunham como premissa da concentrao da autoridade e de certos papis executivos em um organismo prprio: as que relacionavam com a programao poltico militar do desenvolvimento capitalista de uma "potncia intermediria"; as que se impunham como condio sine qua non do livre fluxo da corrupo e das negociatas; as que constituam o requisito da diferenciao e do crescimento dos organismos especiais necessrios a um Estado repressiva e terrorista, etc.) e era simultaneamente inibida e dirigida pela razo poltica ditatorial: alm de certos limites, a fragmentao tornaria a ditadura impraticvel. Sob o "governo de transio", existem mltiplos focas incontrolveis de fragmentao do poder poltico-estatal, situados dentro do Estado, operando no seio dos quatro poderes (o Executivo, o Legislativo, o Judicirio e as Foras Armadas) e no mbito da sociedade civil (e, nesse caso, de forma contraditria irredutvel). Portanto, 26. se no existe uma democracia, h um caos fecundo, que tanto poder favorecer o seu aparecimento e consolidao quanto poder contribuir para uma regresso (hiptese menos provvel) . Retendo-se os aspectos positivos da situao: fica claro que, se no existe uma liberdade poltica com fronteiras institucionais reguladas, h pelo menos um campo aberto s mais variadas formas .de luta poltica. Depois do Colgio Eleitoral, a ditadura no s entrava em declnio - ela negociava as condies de seu desaparecimento "gradual" e "barato" (do ponto de vista dos militares e civis que barganharam com o poder e estavam empenhados em impedir uma argentinizao). Esse ponto deveras relevante e provocativo para os analistas do presente. J no vivemos sob a meia ditadura e a promessa de democracia que pairavam no ar sob os consulados de Geisel e Figueiredo. o que fica de ditadura, aberta ou ocultamente, insuficiente para conferir ao "governo e transio" a capacidade de se mover autocraticamente ou, pelo menos, de resistir com xito e impunemente as presses das foras sociais democratizantes e democratizadoras da sociedade civil. O que evidencia que uma das fronteiras decisivas da luta poltica psicolgica e qualitativa. 32 necessrio arriscar-se, travar o combate democrtico essencial, perder ou ultrapassar o medo. Em suma, no admitir imobilismo forjado pelo "governo de transio e pelas elites polticas militares e civis, conservadoras ou reacionrias. No que eles sejam equivalentes funcionais do tigre de pape . A situao histrica alterou-se , e os rumos da -evoluo poltica tambm, pois agora pode ser influenciada por todas as foras sociais contraditrias e pelo livre jogo da luta poltica. Isso desvenda novos horizontes para 'a transformao da sociedade civil e do Estado. Os proletrios das cidades e do campo, a pequena burguesia enraivecida, as classes mdias insatisfeitas, os setores mais ou menos radicais das classes altas - enfim, todos os que se batem pela revoluo democrtica podem (e devem) avanar na direo da conquista de uma _ sociedade civil civilizada e de uma Repblica democrtica. O assim chamado "entrismo" e o esprito de "conciliacionismo" a qualquer preo como medidas de "defesa 27. da democracia" no resguardam os interesses das classes trabalhadoras e os objetivos dos seus partidos. Ao contrrio, oferecem quase de graa um respiro s classes dominantes e sua estratgia de explorar a transio lenta, gradual e segura como um expediente para montar um Estado de segurana nacional com as a aparncias de um "Estado de direito " Ver o presente em termos obsessivos do passado constitui uma deformao da tica poltica. O passado no pode ser ignorado e tampouco subestimado. Todavia, se a massa reacionria da burguesia tivesse a faculdade de "interromper a histria" ou, pelo menos, de construir a ditadura de seus sonhos, a contra-revoluo no teria sido interrompida. Os que dizem "os homens esto a" , "os militares esto prontos para fazer o que der e vier", "nada mudou", etc., exageram os fatos - e o fazem atribuindo massa reacionria da burguesia um poder real que ela efetivamente no possui. H um enlace dialtico entre passado, presente e futuro; o futuro est embutido em nosso presente tanto como contra-revoluo quanto como revoluo necessrio no perder isso de vista, o obviamente porque esse o caso no Brasil atual. "Os homens esto a" (Sarney na Presidncia, os militares por trs do trono, a AD manejada por remanescentes e herdeiros da ditadura e o PMDB escamoteando ou traindo as suas promessas, etc.), mas eles enfrentam os outros, os que constrem o Brasil de hoje e lutam, 33 organizada ou desorganizadamente, pela democratizao da sociedade civil, do Estado e do estilo emergente de vida social. Os que lutam pela nova sociedade civil e pelo novo Estado no esto interrompendo ou freando a descolonizao, a revoluo democrtica e a revoluo nacional. Ao contrario , eles esto construindo um futuro que nasce da transformao substantiva e revolucionria do presente. Esses outros tambm so eles (ou melhor: ns) . Ns estamos aqui. Cabe-nos impedir que o passado se prolongue e se reproduza no presente e faa do futuro uma reproduo ampliada (e renovada) do passado , ou seja, cabe-nos extinguir uma forma de barbrie 28. que deveria Ter desaparecido com a escravido ou com a Primeira repblica. Esse o buslis do raciocnio poltico que no se confunde com a conciliao nacional. Os que interromperam as revolues capitalistas e, depois, tambm interromperam a contra- revoluo que gerou a Repblica institucional devem ser lembrados . Mas para que os seus erros no se repitam e para que o n grdio da revoluo democrtica seja efetivamente cortado.