Flores Artificiais - Luiz Ruffato

83

description

Flores Artificiais - Luiz Ruffato

Transcript of Flores Artificiais - Luiz Ruffato

  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • LUIZ RUFFATO

    Flores artificiais

  • Para Helena Terra

  • caminho nenhum caminho de volta

    Iacyr Anderson Freitas

  • Apresentao

    Em 2007 lancei um livro, De mim j nem se lembra,1 no qual compilo cartas enviadas pormeu irmo, Jos Clio, para minha me, Geni, entre 1970 e 1978, perodo em que eletrabalhou como torneiro-mecnico em Diadema, na Grande So Paulo. Dois anos depois,publiquei Estive em Lisboa e lembrei de voc,2 degravao de quatro sesses de entrevistascom Srgio de Souza Sampaio, imigrante brasileiro em Portugal. A divulgao dos doisttulos, nos quais, mais que criador, atuo como organizador e editor, levou vrias pessoas a meprocurar com histrias que poderiam ser utilizadas em volume. Como nunca pretendi tornar-me coadjuvante de textos alheios, recusei as doaes.

    No entanto, em setembro de 2010 recebi uma correspondncia que, pela singularidade daproposta, me persuadiu a repensar a deciso. A carta, que reproduzo frente, expunha, demaneira sucinta, o desejo do remetente, Drio Finetto, de me submeter suas memrias para,quem sabe, aproveitar algum dos temas. Sincero, admitia no ser nem querer tornar-seescritor e franqueava ampla liberdade para fazer o que quisesse com os papis, at mesmojog-los no lixo.

    Engenheiro, consultor de projetos na rea de infraestrutura do Banco Mundial, Driodespendeu seus melhores dias em incurses aos ermos do planeta, quando conheceu inmeragente e vastos sucedidos, convertidos em personagens e enredos de seus cadernos.3 Soalgumas dessas pginas, intituladas Viagens terra alheia, que ancoraram em minha mesa hpouco mais de trs anos. Escritas em um portugus bastante peculiar, mescla de ecos do falarmineiro4 com rastros de clssicos da lngua,5 portavam um distrbio irremedivel, o tomexcessivamente relatorial.6 Expus meu diagnstico assunto demandando estilo e eleteimou que, ento, envernizasse a trama segundo meus predicados. Talvez por sermosconterrneos, e contraparentes, acabei aceitando o inusitado encargo.

    Com a anuncia de Drio, a quem estendi a coautoria, rechaada de maneira peremptria,elegi alguns captulos para, refeitos, compor o livro.7 O leitor perceber que, colhidos em trsdiferentes idiomas ingls, francs e espanhol ,8 os relatos, traduzidos no processo deescritura, perderam suas caractersticas, resultando numa linguagem bastante homognea.9 Essaanomalia no houve como corrigir, mas espero que o interesse despertado pela narrativaretifique a deficincia.

    Alinhavei, como posfcio, breves notas sobre o passado de Drio Finetto,10 nas quais,entretanto, ele afirma no se reconhecer. Se pilhria do biografado ou incompetncia doretratista, eis a questo.

    Enfim, ao leitor, ofereo um buqu de flores artificiais.

  • CARTA DE DRIO FINETTOWashington, 16/09/10Prezado Luiz Ruffato,

    Confesso que, embora seja de uma famlia de colonos italianos de Rodeiro como osenhor, no sabia da sua existncia como escritor. Quem falou a primeira vez em seu nome,h cerca de trs anos, foi uma psiquiatra, doutora Regina Gazolla, que despertou minhacuriosidade e, para ser sincero, meu interesse. Vivo h quase vinte e cinco anos no exterior,como consultor do Banco Mundial para a rea de engenharia, mas mantenho um pequenoapartamento no Flamengo, no Rio de Janeiro, onde passo alguns dias por ano, de folga, ouquando coincide de ter uma reunio em Braslia. Meu trabalho exige disponibilidade paraviajar e me agrada a ideia de no ter pouso fixo, coisa que, alis, nunca tive, sa da casados meus pais muito cedo para estudar em Ub, e de l fui para Juiz de Fora, de Juiz deFora para o Rio e do Rio para o mundo

    Na passagem do milnio, fui para o Brasil. Desembarquei no Galeo no dia 27 dedezembro de 1999, o apartamento estava limpo graas dona Vera, que o areja de quinzeem quinze dias. No comeo da noite do dia 31, sentei na sala, enchi uma taa de vinho tinto,coloquei um cd de msicas antigas do Roberto Carlos, e preparei para esperar o sculo xxi.A cidade fervia, foguetes estouravam, a vizinhana era um barulho s. Uma hora, chegueina janela e de repente pessoas que nunca tinha visto me cumprimentavam, desejando FelizAno 2000.

    Sentei de novo na poltrona e comecei a pensar. O que tinha feito da vida? No casei, notive filhos, nunca mais tinha falado com meu irmo e nem com minhas irms. No tinhaamigos para conversar comigo. Quanto mais aproximava a meia-noite, mais angustiadoficava. Lembrei da minha me, que morreu quando eu tinha dezessete anos. Lembrei do meupai, que na poca ainda estava vivo mas que eu no procurava h anos. Lembrei dasmulheres que cruzaram o meu caminho. Parecia que naquela sala vazia estavam todos osmeus fantasmas.

    Ouvi a contagem regressiva, jogado no sof, de roupa e tudo, os olhos abertos, mas novendo nada. Os barulhos da rua aumentaram, carros passaram buzinando, o som nosapartamentos vizinhos era ensurdecedor. Depois foi tudo diminuindo, e num determinadomomento podia at ouvir a conversa do porteiro l embaixo. O dia amanheceu e aos poucosa cidade foi acordando, deu meio-dia, veio a tarde, e de novo a noite, e eu deitado nomesmo lugar

    No meio da madrugada, consegui ir para o quarto. Deitei na cama, por cima da colchamesmo, e fechei os olhos. Foi quando ouvi um miado, mas no dei muita ateno. Na hora,pensei que estava ouvindo coisas. Mas de novo ouvi o miado. Abri os olhos devagar e vi umgato amarelo e branco andando de um lado para outro Achei esquisito, mas no tinhaforas nem para pensar, e voltei a dormir No sei quanto tempo passou, mas era demanh quando ouvi barulho de chave na porta. Algum entrou e acendeu a luz. Com muitocusto consegui levantar.

    O gato, Joo Gilberto, gostava de fugir de casa. A dona dele, dona Teresa, ouviu osmiados no meu apartamento e pediu ajuda para o zelador, senhor Ferreira, que tinha umachave reserva. Ele achou que eu estava viajando e entrou sem avisar. Depois que todospediram desculpas, dona Teresa, muito prestativa, preocupada com meu aspecto, resolveu

  • chamar a filha para me examinar. Mesmo eu dizendo que no precisava, voltou dali a poucocom a doutora Ana Paula. Ela falou que no ia ser de muita valia, porque eraendocrinologista, mas, mesmo com pressa, me apalpou, auscultou, fez algumas perguntas,falou que eu estava com sintomas de depresso e deu o telefone da doutora Regina Gazolla.

    Fiquei afastado do trabalho durante todo o primeiro semestre de 2000. Depois, passei aviajar para o Rio uma vez por ms, para a doutora Regina acompanhar o tratamento. Aolongo das nossas conversas, acabei sentindo vontade de escrever as coisas que contavapara ela. Entre maro de 2002 e dezembro de 2009, aproveitei todas as horas vagas parapr no papel as minhas memrias. So seis cadernos de cem folhas cada, num total deseiscentas folhas, que a Mriam, uma moa que contratei, passou para o computador.

    H cerca de trs anos, a doutora Regina me chamou a ateno para seus livros, disse queo senhor escrevia sobre a regio de Rodeiro,11* e quando fui ver descobri que os Ruffato eos Finetto tm at laos familiares comuns. Por isso, e somente por isso, tomei a liberdadede escrever. Gostaria de saber se posso enviar um pacote com minhas histrias. No tenhonenhum interesse em publicar um livro. No sou escritor, nem quero, nesta altura da vida,me tornar um. Pensei apenas que talvez o senhor pudesse aproveitar algum dos temas. claro que entenderei se, por acaso, no quiser ou no puder ler as pginas que escrevi. Avida curta demais para tanta solicitao. Mas, se achar que vale a pena fazer algo com ospapis, faa. Dou inteira liberdade para o que decidir. At mesmo para simplesmente jogartudo no lixo.

    Aguardando ansioso sua resposta, subscrevo, com admirao,Drio

    1. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2014.2. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.3. Aps sofrer um acidente automobilstico, Drio Finetto aposentou-se, retirando-se, em agosto de 2013, para um pequeno stioem Itaipava, distrito de Petrpolis, regio serrana do Rio de Janeiro.4. Observe a quase ausncia de pronomes reflexivos em sua carta.5. O ttulo Viagens terra alheia emula Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, e a epgrafe por ele escolhida umtrecho de Os lusadas.6. Digo excessivamente porque o tom relatorial, ou burocrtico, pode s vezes redundar em boa literatura, como na obra deFranz Kafka, ou, no Brasil, a de Carlos Sussekind, para nos limitarmos a dois exemplos.7. Menos da metade dos textos foi aproveitada. Caso conte com a benevolncia do pblico e da crtica, um segundo volumepode vir a ser editado.8. exceo de Uma histria inverossmil e Susana.9. Sobre o assunto, consultar Stephen Craig, Translation: An introduction. Champaign: University of Illinois Press, 2006.10. Baseei-me em trs memorveis encontros, dois no Rio de Janeiro (caf da manh na Colombo, do Forte de Copacabana, ealmoo no Rio Minho, na rua do Ouvidor) e um em So Paulo (almoo no Consulado Mineiro, em Pinheiros). Alm disso,interpelei familiares e conhecidos de Rodeiro.* Referncia pentalogia Inferno provisrio, iniciada em 2005 e finalizada em 2011, que tem, entre os cenrios, aregio de Rodeiro, Zona da Mata de Minas Gerais, particularmente no volume I, Mamma, son tanto felice. (N. A.)

  • VIAGENS TERRA ALHEIA

  • Para Luiz Ruffato e Regina Gazolla

  • Vo os anos descendo, e j do EstioH pouco que passar at o Outono;A Fortuna me faz o engenho frio,Do qual j no me jacto nem me abono;Os desgostos me vo levando ao rioDo negro esquecimento e eterno sono.

    Lus de Cames,Os lusadas (canto X, estrofe 9, versos 1-6)

  • Uma histria inverossmil

    Li, certa vez, um ensaio do escritor italiano Luigi Pirandello em que ele afirma que a vidapode ser inverossmil, a arte no. Pois esta histria, por ser real, soar talvez fantasiosa. Paracomprov-la sequer conseguiria avocar o testemunho do protagonista, que jaz numa cova rasano alto do Cemitrio Municipal de Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. Nem mesmosaberia localizar os personagens secundrios, h muito encobertos pelo p do tempo. Portanto,cabe empenhar minha palavra de que o aqui exposto busca recompor, da melhor maneirapossvel, alguns aspectos da biografia de Robert (Bobby) William Clarke. O resultado umaenvergonhada sombra de sua verdadeira trajetria que possui passagens muito maisinslitas

    As noites de inverno costumam ser bastante frias em Juiz de Fora. Podem tornar-seinsuportveis, caso no se esteja bem agasalhado. Eu vinha de Rodeiro, lugar quente, filho deuma famlia de sitiantes pobres, e, embora h tempos morando na cidade, no me habituavacom a mudana de clima. Naquele segundo ano cursando engenharia, tinha me estabelecidonuma penso barata na parte baixa da rua Batista de Oliveira, que, se durante o dia animava-aforte comrcio monopolizado por srios e libaneses, noite transformava-se em reduto depequenos traficantes, malandros e meretrizes. Partilhava o quarto, constitudo por doisbeliches e guarda-roupa, com dois estudantes, um de direito, outro de odontologia, e umsujeito, pouco mais velho que ns, que consumia os dias janela, fumando cigarros ordinriose falando sobre projetos irrealizveis.

    Seguia com rigor uma rotina. Pela manh, incluso na mensalidade, dona Clarice oferecia-nos po mirrado, no qual lambuzava uma leve camada de margarina, e uma caneca de gatacheia de caf ralo manchado por um pingo de leite. Saa correndo, pegava um nibus lotado,assistia aulas at o meio-dia, almoava uma comida insossa e pesada no restauranteuniversitrio, acompanhava com sono algumas disciplinas tarde. De regresso, conversavacom os colegas, repassava lies, lia um romancista russo, minha obsesso naquela poca.Perto das onze e meia me dirigia avenida dos Andradas, onde aguardava, junto combomios, desempregados, prostitutas e desvalidos em geral, Bebel servir, meia-noite, suafamosa porque baratssima sopa, elaborada com sobras do dia, com que nos refestelvamos.

    Em fins de maio, meu corpo percebeu mudanas na paisagem. E quando junho se anunciou,com suas midas manhs brancas e noites azuis e melanclicas, constatei meu despreparo paraenfrentar a friagem que se avizinhava. Forrava os ps com folhas de jornal, vestia cala sobrecala, camisa sobre camisa, e ainda assim meus pulmes ardiam com o ar gelado. Possuaapenas uma blusa vermelha de l, e por isso andava todo o tempo de braos cruzados,buscando aquecer as mos sob o sovaco.

    E foi assim, a tiritar, que me posicionei na fila do Bar da Bebel, antecipando a quentura daSeleta Bodelr, apelido sarcstico para o mesmo caldo grosso anotado em letras gticas naplaca preta exposta porta, nome que Dalcdio Junqueira mudava cotidianamente, exercitandosua verve de poeta em troca da refeio grtis. Em seguida, chegou um homem de ralos

  • cabelos agrisalhados, barriga cirrtica, cachimbo pendurado no canto da boca, carregandouma valise de couro ressecado, quebradio, em formato trapezoidal, semelhante s utilizadaspor representantes de laboratrios farmacuticos. O que me chamou a ateno que nadausava sobre a camisa puda. Eu havia descoberto que falar e gesticular diminuam odesconforto e resolvi puxar conversa. O senhor no sente frio? Ele pousou-me enigmticosolhos castanhos, declarou, com forte sotaque, No, para mim isso no frio, e riu, irnico.Perguntei de onde vinha, Sou ingls, mas de ascendncia escocesa, disse, com desmesuradoorgulho, o que destoava da condio indigente que partilhvamos naquele momento.

    Logo, Bebel deu sinal para que entrssemos e arranjamos uma mesa prxima ao caldeirofumegante, o que nos garantia um prato bem servido e meio po medida que a madrugadaavanava, a concha de Geraldinho, o cozinheiro, ia se tornando avara. Tomamos a sopacalados, sfregos, sob o olhar fiscalizador de Bebel, que exigia no demorssemos mais que onecessrio, liberando lugar para os famintos l de fora. Depois, samos a caminhar pelaavenida Rio Branco, as vozes represadas pela barreira de edifcios. Percebi que Bobby,havamos nos apresentado quando na fila, mancava da perna direita e perguntei o que causaraaquilo. Ele falou, debochado, Nada, apenas uma granada que explodiu perto de mim Ento,esteve numa batalha?, e tentei adivinhar em que guerra poderia ter se metido, sem atinar comnenhuma. Sim, estive em algumas, e encerrou o assunto. Cruzamos em silncio o calado darua Halfeld e, na esquina com a Batista de Oliveira, antes de me despedir, perguntei o que,afinal, ele fazia em Juiz de Fora. Baforando o cachimbo, respondeu, Mato ratos.

    Assim, meu contato inaugural com Bobby, com quem privaria de uma estranha eespasmdica amizade pelos quase dois anos seguintes. Robert William Clarke nascera emSouthampton, sudeste da Inglaterra, descendente, como fazia questo de frisar, dos Clarkeescoceses o que os diferenciava era a presena do e final, inexistente nos sobrenomesingleses , e agora arrastava, para cima e para baixo, uma maleta cheia de veneno paraexterminar ratos, que distribua em botequins, bares e lanchonetes de Juiz de Fora. A pequenaclientela garantia seu sustento e o pagamento do aluguel do quarto minsculo num hotel dequinta categoria na rua Henrique Vaz, zona de prostituio da cidade, onde manipulavaperigosos produtos qumicos em baldes de plstico coloridos. Reviver o sinuoso caminhopercorrido entre Southampton e Juiz de Fora eis a quase impossvel tarefa a que meproponho.

    Este um arremedo de biografia, construda como pontes pnseis sobre abismos. Tudo quesei sobre Bobby, lembranas de lembranas, foi-me relatado de maneira catica, com largoslapsos e imensas contradies. E costuro esses fragmentos, ouvidos h mais de trinta anos,com uma linha que j no distingue memria e imaginao.

    Terminado o perodo de resguardo da mulher, James William Clarke, magro, comprido,ruivo, intensos olhos azuis, calado e reservado, aceitou o convite para empregar-se na SoPaulo Railway e, em 1929, mudou-se com a famlia para o Brasil. Engenheiro ferrovirio,desembarcou em Paranapiacaba encarregado da manuteno da estrada que, partindo do portode Santos, escalava a Serra do Mar rumo s fazendas de caf do interior do estado. Sodaquela vila as primeiras recordaes de Bobby, a casa de madeira, ampla e avarandada,pintada de vermelho e cercada pela mata virgem, onde habitavam extravagantes pssaros,como tucanos e papagaios, e macacos que o divertiam com suas traquinagens. Bobby gostava

  • tambm de ver as pessoas e coisas desaparecerem em meio densa neblina que subjuga olugar de repente. Sorumbtico, o pai chegava do trabalho, lavava-se, jantava, e, acomodadoem sua poltrona num canto da sala, bebia e fumava, entretido na leitura dos jornais,preservado seu sossego pela mulher, que proibia at mesmo que o filho andasse pela casa,para no importun-lo. Bobby no demonstrava nenhuma estima por ele a nicamanifestao de apreo ocorria ao recordar-se dos domingos, quando, de bon, camisa demangas compridas e largos cales, o pai posicionava-se orgulhoso no gol do time dosingleses, em acirradas partidas de futebol contra os brasileiros.

    As palavras mais afetuosas reservava para a me, Emily Merrifield, uma mulher magra,bonita, triste, olhos e cabelos castanho-claros. Lembrava-se dos primeiros tempos, a casadecorada com pequenas flores do campo coloridas que colhiam nas imediaes, as histriasque ela contava teatralmente, as brincadeiras que inventava para vencer a solido dos diasinterminveis. Bobby no sabia, mas j naquela poca a me vivia o ocaso de sua lucidez.Pouco a pouco, os macacos que atacavam as rvores frutferas do quintal e invadiam acozinha, os mosquitos que tomavam todos os cmodos da casa, as aranhas que enredavam-seno teto, as lagartixas que passeavam na parede, o alarde da natureza ao despertar pela manh eo alarido ao recolher-se no fim da tarde, o silncio apavorante da noite, o calor abafado, ofrio inapelvel, tudo desesperava seus nervos frgeis At que um dia, varrendo a sala, aempregada descobriu uma jararaca debaixo do sof, e a me, em pnico, subiu numa cadeira,gritando histrica, um tumulto to grande que de todos os lugares acudiram pessoas. Algumentrou na casa com um pedao de pau, acossou a cobra, matou-a, e sustentando-a pelo raboquis exibi-la dona inglesa, para provar que tornara-a inofensiva. Aproximou-a do rosto dame e ela, paralisada de medo, desequilibrou-se, desabou no cho, e, urrando de dor,percebeu que um sangue espesso escorria por entre as pernas, e, antes que o mdico daempresa fosse localizado, ela havia abortado uma gravidez de quatro meses. A partir da, oressentimento que devotava ao Brasil transformou-se em dio e, deprimida, isolou-se detodos. Trancou-se aterrorizada no quarto, mantido sempre escuro, estendida na cama, muda,remota, qualquer sobressalto e seu corao disparava. Em 1937, voltaram Inglaterra.

    O regresso para Southampton, embora contrariasse o desejo do pai, que gostava comsinceridade dos trpicos, atenuou as perturbaes da me, presentes apenas nos pesadelos quea deixavam zonza ao longo do dia. Dois anos depois, estourou a guerra, e James, oficial dareserva, foi convocado para a frente de batalha. Emily tornou a sofrer crises constantes,piorando de vez durante o clebre vero de 1940, quando a Luftwaffe despejou toneladas debombas sobre a cidade, arruinando para sempre seus nervos j bastante abalados. Em agosto,internaram-na em um manicmio, e Bobby, recolhido pelos avs maternos, mudou-se paraHemington, uma pequena aldeia perto de Trowbridge. Ele havia se acostumado, aps ouvir osilvo dos petardos caindo dos avies, a se esgueirar pelas ruas de Southampton em busca demetralhas entre os escombros. Trocar essa vida de aventuras por um cotidiano sem graa, emum lugar onde s moravam velhos e cujo grande acontecimento era reunirem-se no fim datarde em torno de enormes rdios para tentar escutar, entre zumbidos, as ltimas notcias doscombates, entediava-o profundamente. Ento, Bobby se escondia em cima das rvores ou noalto dos celeiros sonhando o dia em que iria corpo a corpo enfrentar sozinho seus prpriosinimigos.

    Com o fim da guerra, James instalou-se de novo em Southampton, mas por pouco tempo. Em

  • 1947, arrumou emprego na Caminhos de Ferro de Benguela e enviou Bobby para cursarengenharia qumica no Imperial College, em Londres. Estudante mediano, passou todo operodo de faculdade esquecido da me, alienada em definitivo das coisas do mundo, e do pai,apartado em algum posto fronteirio entre Angola e o Congo Belga. Dessa poca de alegreirresponsabilidade permaneceram vastas reminiscncias, como a vez em que compraram poruma bagatela um Buick velho e enferrujado, cimentaram-no por dentro, arrastaram-no, demadrugada, at o meio da ponte de Waterloo, e aguardaram a manh despertar atnita com oenorme engarrafamento provocado pelo trambolho atravessado na pista. Ou quando, desafiadopelos colegas, bebeu tantos pints de cerveja que saiu carregado do pub para o hospital, emcoma alcolico. Ou quando ateou fogo num prdio abandonado, que, no fosse a presteza dosbombeiros, teria se alastrado por todo o quarteiro. Ou ainda quando, aproveitando o smog,encarnava Jack, o Estripador, sobretudo longo, echarpe, chapu enterrado na cabea, ecaminhava pela noite assustando os transeuntes que circulavam pela East End No diaseguinte festa de formatura, Bobby se deu conta, estarrecido, de que precisaria, dali para afrente, fazer alguma coisa, ser algum, ter alguma utilidade. H muito no sabia do paradeirodo pai e a me definhava no sanatrio. Sentiu-se s, incapaz de cumprir um papel nasociedade, constituir famlia, filiar-se a algum clube, morrer enfastiado nos estreitos limitesda ilha. Animou-o a convocao para o Exrcito britnico: em meados de 1953 um impecveluniforme de tenente desembarcou satisfeito e orgulhoso no porto de Mombaa, no Qunia.

    A Revolta dos Mau Mau estourara h pouco e Bobby assumiu o comando de um pelotocom vinte e quatro homens, que entrava em ao logo aps as escaramuas entre soldadosingleses, muito bem treinados e equipados, e pastores e agricultores portando armamento levee ultrapassado, lanas e machetes. Sua misso era esquadrinhar o campo de batalha em buscade feridos e execut-los sem piedade. Bobby acreditava que combatia guerreiros selvagens esanguinrios que assassinavam cruelmente os settlers e ele e seus subordinados cumpriamas ordens com extrema eficcia, sem titubear. No comeo, ainda sentia certo mal-estar,acuavam-no noite os gritos e olhares splices dos kikuyus, mas resistia, porque comooficial, supunha, necessitava manter-se exemplo irrepreensvel para sustentar a confiana e alealdade dos subalternos. Com o tempo, mergulhou nas guas profundas da apatia, mesmoquando o conflito se acirrou e passaram a matar no mais apenas os homens, mas suasmulheres e filhos. Perambulava pelos planaltos e florestas quenianos como que anestesiado,embebedando-se com usque, o cachimbo a deformar a boca, pondo fogo em aldeias,respirando a fumaa negra, cheiro de gasolina e carne humana esturricada. Em fins de 1956,desmobilizado, tornou Inglaterra.

    No Natal daquele ano visitou a me no sanatrio em Southampton e assustou-se com suaaparncia. Gostava de lembrar-se dela jovem, o rosto iluminado pela claridade das manhs devero brasileiras, os cabelos macios exalando aroma de flores silvestres. O que encontrou,entretanto, foi uma mulher envelhecida, fedendo a urina e remdio, muda expresso derenncia. Deprimido, buscou os avs maternos em Hemington e descobriu-os no pequenocemitrio da aldeia. Viajou at Manchester, onde suspeitava haver alguns Clarke, mas, pormais que especulasse, no conseguiu localizar nenhum. Pensou em emigrar para a Austrlia oupara os Estados Unidos, pensou em ir atrs do pai em Angola, pensou em se matar numamanh de domingo em que a primavera parecia provoc-lo com tanta beleza. Fixou-se emLondres, onde arrumou emprego na Imperial Chemicals Industries. Inadaptado vida civil,

  • bebia todos os dias num pub, The Ship, em Wandsworth, desde a hora em que saa do empregoat o badalar do sino anunciando as onze horas. L, uma noite, em meados de 1961, conheceuMister Vller, um militar aposentado que se dizia sul-africano, e que interessou-se por seupassado no Qunia.

    Mister Vller no precisou de mais que cinco encontros para convencer Bobby a largartudo e juntar-se a um grupo de mercenrios contratado por Mose Tshombe, que encabeava,apoiado pelas mineradoras belgas, um movimento de secesso da provncia de Katanga contrao governo central da recm-independente Repblica do Congo. Recrutado, por suaexperincia, para a tropa de choque do IV Comando, liderada por Mad Mike Hoare,participou das refregas contra as foras regulares, e, depois, contra os cascos azuis dasNaes Unidas, at dezembro de 1962, pouco antes do ataque final a Elisabethville, capitaldos rebelados. Pressentindo a derrota, Bobby fugiu, sozinho, de trem, em direo a Dilolo, nafronteira com Angola, alcanando a Vila Teixeira de Sousa, ltima estao da Caminhos deFerro de Benguela, onde, acreditava, acharia o pai. Contudo, desapontado, dele apenas soubeimprecisas e contraditrias notcias, que morava em Luanda, que voltara para a Inglaterra, quevivia amasiado em Nova Lisboa.

    As chuvas de vero acantonaram Bobby num hotel barato, onde arrastava os dias midosembebedando-se com maruvu, afligido pelos mosquitos, imaginando que a qualquer momentoalgum iria bater porta do quarto recendendo a mofo para convoc-lo a uma novaempreitada. Menos de dois anos antes havia sido deflagrada a guerra contra os portugueses,mas ali, naquele fim de linha, as informaes escasseavam. Falava-se vagamente demovimentaes nas florestas do norte e de confrontos do Exrcito com guerrilheiros apoiadospelos russos, nas proximidades da capital. Bobby cachimbava, impaciente. At que umamanh acordou de pesadelos terrveis e um estranho cansao impediu-o de levantar-se dacama, a cabea latejava, calafrios passeavam pelo corpo. tarde abraou-o uma febrealtssima, tremores, suores, delrios. Quando a noite desceu, relmpagos iluminando oslenis empapados, troves sacudindo as paredes, mesmo esgotado percebeu-se melhor. Doisdias depois, tudo se repetiu, e o mido que varria o cho do cmodo diagnosticou, paludismo, mister.

    O quinino minorou os estragos da malria, mas Bobby no conseguiu cumprir seu intento dedeixar Angola de imediato. Estava decidindo se se arriscava a ir a Lopoldville para tentarcontatar algum dos colegas com quem havia lutado em Katanga ou se viajava at Luanda deonde voltaria para Londres, quando afundou o sapato no gargalo de uma garrafa quebrada,que, rompendo o couro esfacelado, enterrou-se em seu calcanhar, o sangue misturando-se coma lama da rua sem calamento. No hotel, lavou e esterilizou o machucado com lcool, mas oquarto inteiro latejou ao longo de toda a noite. Pela manh, o p inchado e vermelho,conduziu-se devagar ao posto de sade e o enfermeiro, observando preocupado o talhopurulento, avisou que no tinha antibitico. Enquanto absorto enchia a seringa com anti-inflamatrio, recomendou que Bobby providenciasse com urgncia algum para acompanh-loao Hospital do Vouga, perto de Silva Porto, a mais de setecentos quilmetros de distncia.

    Os dias deslizavam morosos como as nuvens que observava de seu leito no prdio brancoplantado no meio da anhara. Ao chegar, alertaram Bobby da gravidade do caso. Sempredemonstrara absoluto desprezo pela morte, mas agora, pela primeira vez, aos vinte e seteanos, aquele cheiro podre o nauseava. Teve medo de sucumbir s bactrias que devoravam seu

  • corpo e ser enterrado numa cova rasa, no modesto cemitrio que deveria haver ali por perto,cuja cruz branca com seu nome pintado mo, escrito errado, os temporais derrubariam.Agarrou-se ao brao da freira e sussurrou, com pavor, No quero morrer! No quero morrer!Acalmando-o, ela disse, O senhor cr em Deus? Reze para que Ele o auxilie neste momentodifcil. Bobby nunca havia perdido tempo em pensar nas coisas aprendidas em aborrecidasmanhs na escola dominical presbiteriana em Paranapiacaba e Southampton. Com os avsmaternos ainda frequentou cultos em Trowbridge, mas depois jamais pisara numa igreja. Eagora a irm de caridade lhe dava como nica opo um apelo aos cus.

    Salvou-o um jovem moreno, baixo e sarcstico, chamado doutor Moreira Porto. Asenfermeiras haviam dito que talvez tivessem que amputar o p direito inteiro, pois a partenecrosada era enorme, uma plasta de carne preta, mas o mdico anunciou aps a cirurgia quehavia conseguido limpar bem a rea contaminada, extirpando apenas um pedao do calcanhar.Por pouco, acrescentou, o senhor estava a conversar com anjos ou demnios que ao fim eao cabo talvez sejam a mesma e nica coisa Passava as visitas sempre contando anedotas edando notcia do mundo os conflitos raciais nos Estados Unidos, a aproximao de FidelCastro com a Unio Sovitica, o agravamento da ao guerrilheira na Guin Portuguesa, oconfuso cenrio poltico de Angola. Vagaroso e dolorido, o processo de recuperao: deitadotodo o tempo, entreouvindo incompreensveis conversas em lnguas nativas, aguardavaansioso a chegada dos enfermeiros. Pela manh, aps engolir os comprimidos, baixava a calado pijama para aplicarem-lhe injeo na bunda, motivo de assombro dos outros pacientes,impressionados com a brancura de sua pele; tarde, aps trocar os curativos, asseavam-nocom um pano umedecido; noite, mais injees e comprimidos, os barulhos dos bichos, lees,leopardos, hienas, javalis, e o pipilar de milhares e milhares de pssaros, a escolta de suainsnia.

    Embora esperada, pois padecia h anos de um cncer no estmago, a morte de Joo XXIII eos dezoito dias transcorridos at a posse de Paulo VI mantiveram o hospital em suspenso.Enquanto todos zanzavam excitados de um lado a outro, o doutor Moreira Porto dedicava oscrepsculos daqueles frios dias de junho a conversar com Bobby, que j conseguia, comauxlio de muletas, se deslocar entre os pavilhes do amplo ptio. Sentavam-se ao relento,Bobby sacava seu cachimbo, enchia-o devagar com tabaco local, e o mdico acendia umcigarro do inseparvel mao de Portugus Suave, os dedos amarelados de nicotina. Sob oesplndido cu cravado de estrelas coruscantes, contou que, filho de uma famlia pobre doAlentejo, haviam migrado para Angola vinte anos antes, e que, com muito sacrifcio, estudaramedicina em Lisboa. Segredou ainda sua simpatia pelo MPLA. Em contrapartida, confessouque, embora discretos, conservavam-se desconfiados daquele ingls quieto e misterioso, quefalava um estranho portugus, decerto no assimilado em Portugal nem na frica. Bobbysentiu-se impelido a fazer revelaes: a infncia no Brasil, o regresso para Southamptondurante a guerra, os estudos em Londres, a estada no Qunia como tenente do Exrcitobritnico, sem explicar a verdadeira incumbncia de seu peloto, e omitindo o engajamentocomo mercenrio no Congo Belga, pois temia que o mdico, simptico s ideias nacionalistas,e os religiosos, por razes morais, pretendessem de alguma forma julg-lo e conden-lo.Nesse perodo, em que a prpria natureza parecia conter-se em silncio, deitava-se muitasvezes ao sol sob um imbondeiro e percebia o quo farto estava de expor-se a aventuras semsentido a troco de um soldo no fim do ms. Suspirava saudoso da me, do pai no da me

  • internada num hospcio em Southampton, nem do pai desaparecido em alguma parte da frica,mas do pai e da me com quem convivera em Paranapiacaba, nico tempo que, sabia agora,fora de fato feliz. E ento, numa tarde em que as nuvens desenhavam lembranas no cu azul,resolveu recuperar aquele menino tmido e sonhador que um dia imaginou-se maquinista detrem e altivo dono de um viralata chamado Pellet.

    Em princpios de setembro, coxeou por toda a misso redentorista, despedindo-se caladodaqueles pavilhes, onde permanecera por quase seis meses. Sentia-se em dvida com ospadres, as freiras, os enfermeiros e at mesmo com os outros pacientes, pois constatava queaquela temporada internado no Vouga havia contribudo para dissolver parte da ferrugem decinismo que lhe turvava a vista. Emocionado, deixou de presente para o doutor Moreira Porto,por quem havia desenvolvido uma singela admirao, seu relgio de bolso Zenith, nica coisapela qual demonstrava relativa estima, e rumou para Nova Lisboa. L, andou investigando oparadeiro do pai, sem sucesso, e voltou a beber. Frustrado, s vezes chegava a duvidar daexistncia daquele homem com quem nunca privara mais que encontros fortuitos e inspidos, ecuja imagem, mesmo esforando-se, j no conseguia evocar, borrada por vagalhes deamargura e mgoa. Em Luanda, instalou-se numa hospedaria ordinria na regio do cais doporto, e aps dias de aflitiva espera, quando caminhava embriagado pelas ruas ansiosas dacidade, numa difusa expectativa por distinguir o pai de entre a multido, embarcou na segundaclasse do paquete Imprio, quinze dias navegando pelas guas da costa ocidental da frica,atracando em So Tom e Funchal, antes de divisar Lisboa, envolta no magnfico manto brancodo outono.

    Ainda vagabundeava atnito pelas artrias escuras do fevereiro londrino, quando alcanou-o um telegrama comunicando a morte da me. Ele a havia visitado no Natal, ou melhor, haviaentrevisto uma forma esqulida e imvel, o rosto sempre voltado para a parede, que serecusava a comer e beber, urinando e defecando pernas abaixo, encarcerada num mundoobscuro e indevassvel. Bobby sentira como se sua frente subsistisse apenas uma carcaacuja alma h muito escapara apavorada, um cantil murcho, cuja gua escorrera intil para aterra agreste. No necrotrio, aquele cadver irreconhecvel se confundiu com as dezenas decorpos que executara no Qunia e no Congo, a me uma kikuyu amarrada palmeira, o ventreaberto baioneta, um feto ainda suspenso pelo cordo umbilical, ele menino evitandohorrorizado pisar nos homens, mulheres e crianas amontoados no quintal da casa emParanapiacaba, todos o mesmo olhar pnico de quem percebe a vida se esvaindo inexorvel, oterno de aluguel impregnado de suor putrefato, apesar do frio da manh. Para carregar ocaixo teve que contratar funcionrios da funerria, que, guarda-chuvas aoitados pelo vento,a entregaram sepultura, rpida e burocraticamente. Consumiu toda a primavera e parte dovero velando seus remorsos em mesas de pubs em Londres, at que um fim de tarde esbarroupor acaso, na entrada da estao Gloucester Road do metr, com um colega dos tempos defaculdade, Martin Holmes, que o convidou para tomar uma cerveja ali perto, no The StanhopeArms. Circunspecto, Holmes disse no se lembrar do Buick abandonado na ponte de Waterloonem de qualquer episdio constrangedor da juventude, mas relatou comedido, pormorgulhoso, a histria feliz que construa, a esposa, o casal de filhos, o pequeno apartamento naLexham Gardens, o emprego na Imperial Chemicals Industries. Ento, Bobby desejou tambmtornar-se urgente homem srio, pai de famlia, cidado respeitvel, e, envolto em repentinaconvico, falou que achava-se prestes a deixar a Inglaterra, talvez em definitivo, rumo ao

  • Brasil. Holmes citou o nome de um conhecido, parente distante da mulher, diretor de umafbrica de pneus em So Paulo, e despediram-se. Pouco tempo depois Bobby depositou suamala de papelo na segunda classe do navio Andes, em Southampton, e na manh de umsbado, 17 de outubro de 1964, avistou confiante os prdios da cidade de Santos.

    So Paulo lhe lembrou Londres, em sua agitao ferica. Edifcios irrompiam na madrugadaarranhando o horizonte cinza. Aos milhares, assoberbados automveis assinalavam novosdesenhos de ruas. Multides erravam no vaivm de estreitas caladas comerciantes. Bobbyalugou um pequeno apartamento na Sade, no muito longe da Dunlop, onde trabalhava. MisterWilkinson, o parente distante da mulher de Holmes, o recebera com a solidariedade deexpatriado, a fraternidade de colega formado no Imperial College e o preconceito contra osbrasileiros de maneira geral, a quem julgava insolentemente submissos no campo profissionale simpaticamente cnicos no trato pessoal. Wilkinson tentou convenc-lo a tornar-se scio doclube ingls, mas Bobby no suportava a companhia afetada dos frequentadores, classe mdiaque se aferrava a certas tradies como se nobres britnicos fossem. Preferia a solido dosbares e botequins das redondezas da fbrica, onde todos os dias bebia duas cachaas e trsgarrafas de cerveja e mastigava tira-gostos, antes de voltar para casa. Tinha sono ruim epesadelos recorrentes, dos quais quase nada recordava, embora soubesse que se passavam nafrica e envolviam sua me. Planejava sempre uma visita a Paranapiacaba, e a adiavasempre, receio de rever a paisagem da infncia, o lugar agora decadente, diziam. O pasrespirava dias agitados, greves e manifestaes polticas inflamavam as avenidas e as pginasdos jornais, mas ele mantinha-se ignorante das marchas e contramarchas. Gostava, nos fins desemana, de assistir no Pacaembu os jogos do time do Santos, que escalava uma linha comDorval, Menglvio, Coutinho, Pel e Pepe, de quem se tornara torcedor entusiasmado. Cercade um ano e meio aps sua chegada ao Brasil, aceitou o insistente convite de Mister Wilkinsonpara acompanhar a partida final entre Inglaterra e Alemanha Ocidental pela Copa do Mundono Athletic Club, onde, durante as comemoraes da vitria, esbarrou em Marianne, secretriano British Council, derrubando um copo de grog em seu vestido branco. Loura, olhos azuis,muito magra e desengonada, Bobby no achou graa nela, mas completara trinta e sete anos eela ultrapassava os trinta vislumbravam ambos o futuro do outro lado da ponte. Marcaramo casamento para 8 de julho de 1967.

    H muito Bobby ensaiava abrir-se com Marianne. Com o vencimento dos meses, foracriando afeio por aquela mulher discreta e reservada, que lhe relatou uma histria trivial esem cor de filha nica de professor primrio e de dona de casa em Bristol, sem privaes,mas sem farturas, visando a uma destinao tambm previsvel e corriqueira, casar-se, terfilhos, regressar Inglaterra, morar numa casa limpa e confortvel em algum subrbioagradvel de Londres, envelhecer de forma decente. Nada nesse quadro melindrava agoraBobby, que bebia menos e at comparecia de quando em quando sede do clube ingls. Apsas cerimnias, ocupariam seu apartamento, pequeno, porm suficiente o bastante para esseincio de convvio, que Marianne redecorava com mveis baratos, mas funcionais. Viviam,enfim, felizes, harmnicos, enamorados. Por isso mesmo, incomodava a Bobby a noivadesconhecer parte que considerava importante de seu passado, do qual, se j no se orgulhava,tambm no se envergonhava, pois estivera envolvido em guerras, uma a servio da ptria,outra compreendida por ele como uma ocupao igual a tantas. Escolhera com cuidado umrestaurante francs, no centro da cidade, para revelar suas agruras a Marianne. Depositou o

  • guardanapo sobre a mesa, aps tomar um gole de vinho, e perguntou a ela se ocultava algumsegredo. Sorrindo, respondeu que sim, que poucos sabiam mas descendia de uma famlia demineiros galeses. Bobby sorriu tambm e, reticente, contou que suas melhores lembranasprovinham da infncia transcorrida em Paranapiacaba. Depois, exagerou ao expor seudestemor durante os bombardeios de Southampton, falou com amargura da loucura da me edo desaparecimento do pai, com graa sobre os tempos em que cursou engenharia qumica emLondres, coisas que, mais ou menos, j havia exposto a ela em outras ocasies. E ento,tomando flego, explicou sobre o chamamento para o Exrcito durante a Revolta dos MauMau e descreveu, em detalhes, o que seu peloto fazia no Qunia. Procurou adivinhar asreaes de Marianne, mas no conseguiu observar nada no desfiladeiro azul de seus olhos.Continuou, falando da sua volta a Londres, da inadaptao vida civil, do retorno fricacomo mercenrio no Congo Belga e do papel que desempenhara entre os rebeldes no planaltode Katanga. Concluiu com sua estada no hospital em Angola e a morte da me no manicmio.No carro, a caminho do prdio de Marianne em Pinheiros, Bobby ainda confessouesperanoso seu sonho de localizar o pai para poder contar com sua presena no casamento,embora achasse impossvel consegui-lo, e especulou sobre em que parte do mundo ele poderiaestar naquele exato momento, frica do Sul, Rodsia, Egito A noiva se distanciando nadireo do porto do edifcio, vista pelo espelho retrovisor do Aero-Willys, naquele domingo,foi a ltima imagem que Bobby conservou de Marianne.

    Na tera-feira, quando haviam combinado de ir juntos ao clube para acertar detalhes dafesta, apertou vrias vezes a campainha do apartamento, sem resposta. Aflito, bateu porta dozelador, que, espantado, disse que dona Mariana sara no domingo, tarde da noite, com duasmalas, lhe deixando as chaves, e que pensou que ele soubesse para onde ela fora. Bobbypegou o carro e guiou sem rumo por toda a madrugada, tenso, ansioso, mas aptico, igual nostempos em que liderava seus homens em horrveis massacres, sem dio, raiva, repulsa,desprezo, como se participasse de um espetculo irreal, que ocorria independente de suavontade, um invlucro esvaziado dos sentidos. A manh o encontrou estacionado em frente fbrica. Aguardou a abertura do Departamento Pessoal, ditou uma carta de demisso, que oestagirio datilografou com agilidade, leu, assinou. Dali dirigiu-se a uma loja de ferragens,comprou serrote, martelo, chave de fenda, alicate, pregos e chapas de compensado. Entrou emcasa perto das quatro da tarde, desligou o telefone, com as ripas vedou as janelas, e, semestardalhao, passou a serrar um a um todos os mveis, as mesas e cadeiras da cozinha e dasala, o armrio, o sof, as poltronas, a cama, o guarda-roupa, a desmontar pea por pea ageladeira, o fogo, o rdio, o aparelho de televiso, a amassar as panelas, chaleira, leiteira,garfos, facas, colheres, concha, escumadeira, a quebrar copos, taas, xcaras, pires, pratos,travessas. Destrua os objetos no com fria, mas com o desapego do doutor Moreira Porto,que, quando em recuperao, preso ao leito no Hospital do Vouga, lhe contava, em mincias,mas indiferente, como realizava suas operaes, a inciso, a dissecao dos msculos,tendes e fibras, a interveno cirrgica, as suturas. Bbado, saa, profundas olheiras, roupasmal-ajambradas, barba por fazer, apenas para comer um prato-feito nas redondezas, eregressava, o cho coberto de serragem e pedaos de madeira, carcaas de eletrodomsticoseviscerados, vasilhas de alumnio deformadas, cacos de vidro e de loua espalhados peloscantos. Na segunda-feira pela manh, retornou firma, colocou o dinheiro da indenizao numenvelope pardo, depositou a bolsa de viagem com algumas mudas de roupa no porta-malas do

  • Aero-Willys, e sem pressa tomou a BR-55 rumo a Belo Horizonte e em seguida a BR-7 paraBraslia. Queria ir para bem longe, e sabia que a direo noroeste o levaria Amaznia. EmAnpolis apanhou a BR-14 e aps oitocentos quilmetros de estrada sinuosa e esburacada,ainda antes de alcanar a floresta, o motor do carro fundiu, prximo a uma acanhada vilachamada Miranorte. Exausto, gastou as economias na compra de um modesto posto na beira daestrada Belm-Braslia, empregou um rapaz, Kledir, que, alm de manipular as bombas degasolina e diesel para encher o tanque dos poucos caminhes e automveis que trafegavam poraquelas lonjuras, entendia de borracharia e mecnica, e dedicou-se a colecionar garrafas decachaa que entulhavam o pequeno cmodo onde vivia, mido e cheirando a azedume e fumogoiano.

    Em Miranorte, Bobby andava sempre metido numa bermuda esfiapada, camiseta rota depropaganda poltica, ps enfiados em sandlias franciscanas de couro ressecado, as unhasgrandes e sujas. Perdia dentes e cabelos, comia pouco e mal, o abdome avolumava-se.Dispunha de um cadelo sem nome, magro e hipcrita, que se espojava em sua cama. Comprarauma espingarda e apreciava, de vez em vez, entrar na mata rala, na companhia do viralata,para, como dizia, dar uns tiros. Mas nunca trazia nenhuma caa. Renunciara h muito a saber odestino do pai considerava-o morto. Ouvia, sem interesse, as histrias dos caminhoneiros eprostitutas, e sempre que as conversas confluam para assuntos do cotidiano, distanciava-se,contrafeito. Vivia como se aguardasse a qualquer momento o relgio que pendulava no peitoparar. E, se no ansiava por isso, enfrentava a ideia com desassombro. No tinha maispesadelos, ou melhor, no se lembrava deles. Deitava bbado e acordava embriagado,insensvel se a manh se apresentava com sol ou nublada, se aqueles que o rodeavammostravam-se tristes ou alegres, se o movimento do caixa era bom ou ruim. Gostava do co, ese ele adoecesse ou algum o molestasse, talvez isso o perturbasse um pouco, mas, de resto,enfadado, sentia apenas asco por tudo. Em quatro anos acoitado naquelas paragens, apenasduas vezes envolvera-se com as coisas do mundo. Aps a partida do Brasil contra a Itlia pelafinal da Copa do Mundo, 21 de junho de 1970, extasiou-se vendo, entre bombinhas e foguetes,um cordo ensandecido percorrer urrando as avenidas sem calamento de Miranorte,chuviscos de papel picado, buzinas liderando comovidos cortejos, que, espichando a tardesem fim, pareciam querer enxotar a calma misria que rondava aquele ermo. Engolfado nadelirante confuso, arrepios beliscaram sua pele entorpecida, e pensou saudoso em Marianne,talvez valesse mesmo a pena esforar para tornar-se um homem melhor, e lamentou que suasdecises o conduzissem sempre a descaminhos, e quis reerguer-se, e exaltado planejou mudartudo, recobrar as esperanas encerradas no apartamento em So Paulo, resgatar o meninodeslumbrado de Paranapiacaba, mas a noite achegou-se dissipando a poeira de euforia quecobria o povoado, e, quando Bobby retornou cambaleante para casa, nas ruas cachorrosfuavam a madrugada em busca de restos dos festejos.

    Um ano depois, 18 de julho de 1971, quatro caminhes estavam estacionados no ptio doposto. A mulher de um dos motoristas armara o fogareiro a gs num canto e fritava linguiasnuma frigideira enegrecida, distribudas espetadas em palitos de dente por um homem pequenoe gordo com sotaque nordestino, enquanto um rapaz, alto e louro, catarinense ou gacho,enchia os copos de cerveja gelada, que retirava de uma caixa de isopor. O locutor da RdioTupi do Rio de Janeiro esgoelava informando que em menos de meia hora entraria em campo,vestindo pela ltima vez a camisa canarinha, o maior jogador de todos os tempos, Pel,

  • naquela histrica partida contra a Iugoslvia, o Maracan repleto. Ansioso, Bobbycachimbava de um lado para outro, em meio fumaa de gordura. Chegada no comeo danoite do sbado num caminho-truque, de carona, junto com o irmo, uma moa, nem vinteanos talvez, franzina, negros olhos tmidos, negros cabelos escorridos, despertara acuriosidade de Bobby, que, observando-a na janta, sombra do lampio a querosene, achou-abonita, e mais bonita ainda na manh do dia seguinte. No conseguira dormir direito pelaprimeira vez em anos, o corao acelerado, suor merejando o sovaco. Ouvira que Alcina, esseseu nome, e o irmo dirigiam-se ao Par, onde o tio gerenciava uma serraria, e moldou namadrugada armadilhas para ret-la. Acordara cedo, cortara as unhas dos ps e das mos,fizera a barba, tomara banho, colocara uma camisa fedendo a naftalina, enfiara-se comdificuldade dentro da cala, sem conseguir aboto-la, e at a hora do jogo vagueou, buscandoempavonado mostrar-se a ela, cavalheiresco e atencioso. Finda a partida, convidou-os todospara conhecer seus planos e, luz difusa da tarde que se extinguia, apontou para um terrenoonde o Aero-Willys desfazia-se enferrujado em meio ao mato alto e montes de lixo, e disse,Ali vou levantar dois andares, lanchonete por baixo, penso por cima, e vou ampliar aborracharia e a oficina, o movimento tem aumentado muito, e falava com tanta convico quechegou mesmo a convencer-se de suas palavras. No final, como se por acaso, revelou quebuscava pessoas de confiana para trabalhar com ele. O rapaz lamentou que tivesse empregocerto em Marab, mas Alcina, encantada com aquele homem estranho, que falava esquisito e atratava com considerao, resolveu deixar-se ficar.

    Nos primeiros tempos, caminhava as manhs de Miranorte, onde hospedara-se numa casade famlia, at o posto e abancava-se junto s bombas de combustvel, aguardando Bobbydespertar, o que raro acontecia antes do meio do dia. Kledir ainda tentou puxar conversa, mas,como s conseguia arrancar muxoxos dos olhos sempre chos, desistiu. Bobby cumpria umritual: ao acordar, no lembrava por que tinha tido a estpida ideia de laar aquela xucra, queagora rondava o lugar silenciosa como um animal arisco; mais tarde, quando a luz do solqueimava a paisagem, recordava-se de sua beleza agressiva, e aspirava a ser uma pessoa boa,correta, casar-se, ter filhos. Mas Alcina submergia na noite, e, bbado, ele chapinhava nopntano de um sono sem sonhos. At a manh em que, pegando a cartucheira, saiu com ocachorro para o mato. Ento, Alcina comprou balde, vassoura, rodo, sabo em p e em pedra,creolina, ratoeira, chumbinho e Neocid, e auxiliada por Kledir ps a cama, o guarda-roupadesmilinguido, a mesinha de cabeceira e o travesseiro ao sol para afugentar a morrinha,esfregou e desinfetou o piso, lavou, enxaguou e estendeu o lenol, a toalha e as poucas roupasnum varal improvisado. Quando regressou, Bobby deparou-se assustado com as mudastremulando na escurido como bandeiras esfarrapadas num campo de batalha. Quis esbravejarcontra aquela intromisso, mas antes de deitar sentiu-se obrigado a tomar banho para noempestear o cheiro selvtico que, insinuando-se pela janela, evocava sua meninice emParanapiacaba, e trancou o cachorro do lado de fora. Amanheceu bem-disposto e, no momentoem que o viu, Kledir encaminhou-o a um canto e disse que aquilo no estava direito, que amoa mandava e desmandava nele, Quem vai respeitar agora uma borracharia assim todaasseada, indagou, ofendido. Bobby mandou que a ouvisse e cumprisse seus quereres.Contrariado, o rapaz despejou no lato dezenas de coisas que nem mesmo sabia para queserviam, enquanto Alcina desalojava do cmodo ratos e baratas e psteres de mulheres debiquni. Faxinou a oficina, varreu de ponta a ponta o ptio, limpou e carpiu o terreno baldio.

  • Quando acabou, Bobby decidiu traz-la para morar com ele.Derrubou uma das paredes, ampliou o quarto e puxou uma cozinha; adquiriu fogo a gs,

    armrio, vasilhas, pratos, talheres, mesa e tamboretes; prometeu geladeira. Habilidosa, Alcinaexigiu rdio de pilha e pendurou na cabeceira da cama um quadro do Corao de Jesus. Nocomeo, desentenderam-se, ela insistia em continuar recebendo o salrio de empregada, e, pormais que Bobby se empenhasse em persuadi-la de que, marido e mulher, formavam umafamlia, empacou, venceu. Ele refreou as bebedeiras, interessou-se superficialmente pelosnegcios do posto. Entretinha suas tardes observando o pedreiro e o ajudante a esticarbarbantes em estacas fincadas no cho, que traavam o desenho do futuro prdio,acompanhou-os a escavar as valas da fundao, a encherem-na de ferragem e concreto, acomearem a armar pilares e vigas. Descobriu que, embora semianalfabeta, mostrava-searredia a papis e documentos, Alcina possua sangue barganhista, e deixava para ela discutiro custo da empreita da obra, pechinchar o preo do material de construo, regatear osvalores das compras no armazm. Em pouco tempo, tornou-se popular entre os comerciantes etambm entre os motoristas que encostavam no ptio. E isso, de alguma maneira, solapou aconfiana de Bobby. Ele mirou o espelho e viu-se envelhecido, feio, imprestvel enquantoAlcina vicejava. Abalado, pouco a pouco voltou antiga rotina de constante embriaguez, e,engasgado com a blis do cime, agarrava com fora o brao da mulher e interrogava-a, queriasaber por que tanto ia na cidade, por que rodeava os caminhes, por que usava tal vestido, porque cantarolava msicas romnticas ouvindo programas de rdio, importunando-a comxingamentos, descomposturas, insultos. Alcina resistia nas sombras, em silncio, e,desgovernado, Bobby arriava nela pontaps, tapas, socos, murros, pescoes, tentandoimpedi-la de dar as caras fora das cercanias, buscando for-la a permanecer enfurnadadentro dos dois cmodos. Asfixiada pela solido, ela observava os dias escalarem lentos osmeses no calendrio. Sabia-se malquista ali, Bobby a detestava, Kledir se divertia com asbrigas, o viralata no ocultava sua antipatia. O mato dominou o terreno, esmagando,insinuante, o esqueleto da lanchonete.

    Num dia em que outro dezembro avizinhava-se, Bobby estranhou, ao acordar, o sossego datarde. quela hora, Alcina estaria na cozinha preparando o almoo ou no quintal, agachadajunto bacia, lavando roupa, e, entretanto, no sentia cheiro de comida nem escutava o chape-chape de suas mos sobrenadando na gua. Apenas o farfalhar do vento entre as rvores. Teveum pressentimento ruim, levantou-se de chofre, e, zonzo, segurando o cs da cala, saiu para optio, a sola dos ps machucando na terra arenosa. Kledir respondeu, dando de ombros, queno havia visto a mulher. O viralata, como se guardasse algum segredo, esquivava-se, raboentre as pernas. Trmulo, Bobby voltou ao quarto e notou que a mala de viagem no estavasobre o guarda-roupa, e escancarando o mvel compreendeu que Alcina o havia abandonado.Em desespero, enfiou os ps na sandlia franciscana, vestiu uma camisa, e, com o cadeloantecipando seus passos, resfolegou trpego rumo a Miranorte. Nas ruas, indagando de um eoutro, descobriu que ela tomara o nibus para Goinia, e regressou devagar, extenuado, acabea latejando, o andar incerto, procurando lembrar a localidade de onde provinha, semconseguir atinar, um nome esquisito, complicado. Pegou a cartucheira que guardava sob abancada da morsa e penetrou azumbizado na mata rala. Voltou tarde da noite, ansiando que,como de outras muitas vezes, se depararia com Alcina porta da casa, o radinho ligado, ohalo de perfume adocicado conformando seu corpo magro. Mas o lugar estava vazio e as raras

  • nuvens que borravam o cu imenso deixavam entrever estrelas pulsando como feridas.Apanhou uma garrafa de cachaa e um copo, deixou-se ruir onde a mulher costumava se sentar,acendeu o cachimbo, e a manh espantou-se com ele ali, ainda desperto, atnito, paralisado.Quando Kledir chegou para trabalhar, Bobby ergueu-se, encaminhou-se ao povoado, comprouum atlas geogrfico numa papelaria, retornou, dispensou o rapaz do servio no dia seguinte,explicando que no ia abrir o posto, precisava fazer um balano, e retirou-se para dormir.Despertou com a algaravia dos passarinhos acomodando-se nos galhos para enfrentar as horasmortas da madrugada. Desatarraxou o bujo de gs e arrastou-o para o quintal. Ps numasacola de papel duas mudas de roupa, o mapa de Minas Gerais que arrancara do livro, e umdinheiro que mantinha escondido, e largou-a junto ao matagal. Encheu quatro gales degasolina e enfileirou-os perto do Aero-Willys. Com uma marreta destruiu as duas bombas decombustvel. Depois, encharcou os mveis do quarto-cozinha, encharcou a borracharia e aoficina, encharcou a carcaa do carro. Chamou o cachorro, que desconfiado resistiu a deixarenlaar-se, amarrou-o com uma corda curta no botijo, e, aproximando o cano da espingardade sua cabea, atirou. Uma a uma acendeu quatro fogueiras. Recarregou a arma, tomou asacola, e afastou-se mata adentro, iluminado pelo claro dos incndios.

    Bobby alcanou Juiz de Fora na noite do sbado de Carnaval de 1973. Exausto, barbaencanecida, ralos e compridos cabelos desgrenhados, olhos vermelhos empapuados, corpofedendo a suor, roupa recendendo a cachaa e fumo de cachimbo, embrulho malfeito embaixodo brao. Perdido em meio ao burburinho dos folies fantasiados, mascarados, travestidos,hospedou-se num hotelzinho vulgar da zona bomia. Desapontado, imaginava que a cidadefosse menor, que seria fcil localizar Alcina, que em qualquer lugar dariam notcias dela, mas,agora percebia, quase impossvel encontr-la ao acaso. Passou uma semana trancafiado nocmodo minsculo, sem ventilao, mido, cheirando a mofo, ouvindo os gemidos de casaisque usavam o lugar para encontros clandestinos. Ento, veio-lhe o propsito de subsistir deseus conhecimentos de qumica. Visitou bares e botequins, que a preos mdicos serviampratos-feitos a comercirios e operrios, oferecendo-lhes, como demonstrao, uma maneiraoriginal de exterminar ratos, um veneno que os ressecava em vez de mat-los por hemorragia,rpido, limpo, higinico. Conseguiu assim seus primeiros fregueses, que pagavam pouco emesmo assim buscavam calote-lo. Os fins de semana, gastava-os a errar pelos labirnticosbairros da periferia, perguntando se conheciam uma moa, uns vinte anos, franzina, negrosolhos tmidos, negros cabelos escorridos, cujo tio gerenciava uma serraria no Par, e que sechamava Alcina, Alcina da Cunha. Durante a semana, zanzava pelas ruas do centro, Halfeld,Batista de Oliveira, Mister Moore, Floriano Peixoto, Marechal Deodoro, Santa Rita,perambulava pelas avenidas Getlio Vargas, Francisco Bernardino, Rio Branco, circulavapela praa da Estao, Rodoviria e Parque Halfeld, tentando enxerg-la na multido. svezes, via-a na mulher que quebrou a esquina, na que entrou na loja, na que tomou o nibus, naque saiu do banco, na que cruzou a avenida, na que carregava no colo um recm-nascido

    Em 1976, menos de dois anos aps meu encontro com Bobby no Bar da Bebel, arrumeiestgio numa construtora, aluguei uma quitinete com um colega de faculdade na avenidaIndependncia, perdi contato com ele. Avistei-o de longe duas ou trs vezes no centro dacidade, sempre com sua maleta trapezoidal cheia de veneno para matar ratos, o cachimbopendendo do canto da boca, a barriga enorme, as pernas finas e varicentas, o andar

  • dificultoso. Soube, anos depois, que, falecido em 1979 ou 1980, na enfermaria geral da SantaCasa de Misericrdia, foi enterrado numa cova rasa em Juiz de Fora. Creio ter havido umacruz no sepulcro, estampando seu nome, que com o tempo apodreceu.

  • O presente absoluto

    De p, no hall do hotel, acompanhava o noticirio da televiso, que mostrava imagens dasguas do Rio da Prata invadindo ruas e casas de bairros da periferia de Buenos Aires,frustrado por no poder percorrer as caladas arborizadas com seus cafs elegantes, comohavia planejado para meu ltimo dia na cidade, quando ela falou, a Sudestada. Eu no ahavia percebido antes, sentada na mesa atrs de mim. Sorri, e me desculpei, em castelhano,Estava impedindo sua viso? Simptica, respondeu, No, no, e com um sotaque francs, quea deixava mais charmosa em seus erres carregados e acentos tnicos finais, continuou, Estavadizendo que essa chuva o que os argentinos chamam de Sudestada. A escurido engolira amanh e l fora a gua caa do cu em chibatadas. Sorri de novo, e s ento a observei sob aluz esmaecida: magra, mas no muito, cabelos pretos, olhos castanho-esverdeados. O senhorno quer sentar?, a tempestade ainda demora. a Tormenta de Santa Rosa Com prazer,respondi cavalheiresco, arrastando a cadeira e fazendo sinal para o garom. Contam que santaRosa de Lima rezou por um temporal contra os inimigos. E, desde ento, por essa poca, sopraforte o vento sudeste, comentou, airosa. Pedi dois cafs, ela acendeu um cigarro. Perscruteiseu rosto, sulcos revolvidos pela engrenagem das horas, misteriosa beleza que suscita em nsa urgente necessidade de largar tudo. Quantos anos teria? Estranha lenda, essa, observou. Ogarom depositou as xcaras na mesa, trocou o cinzeiro. Ela sorveu um gole, sem acar, eindagou, examinando o cigarro que se consumia em brasa avermelhada, O que o traz a BuenosAires? Perguntei se podamos falar em francs, ela, surpresa, exclamou, Claro, entoexpliquei que estava a trabalho, que era meu ltimo dia e que aquele mau tempo haviaatrapalhado meus planos de flanar pela cidade. E emendei, Se me permite, e a senhoraVoc, por favor, trate-me por voc Sim, desculpe E voc?, o que faz aqui? Seus dedoslongos guiaram o cigarro aos lbios discretamente pintados, e com fora aspirou a fumaa,expulsando-a em seguida, numa espiral ascendente. O senhor voc, meu querido, talvez noperceba, h coisas, como vou dizer, h coisas que ultrapassam o nosso entendimentoQuando falava, suas mos buscavam libertar as palavras, como se fossem pssarosaprisionados. Um pequeno, mas barulhento grupo postara-se junto televiso e comentavasobre a enchente que parecia, a cada momento, ganhar fora. Uma funcionria, metida numuniforme cinza, calando galochas brancas, rodo mo, tentava, com estrpito, manter seca aentrada do hotel, mas a todo instante surgia algum, guarda-chuva pingando, capa impermevelescorrendo. Ah, a vida!, suspirou. Quo irnico o deus que outros chamam destino E,mirando um ponto qualquer da avenida que se revelava alm do vidro-fum embaado, disse,Quando me restava apenas contabilizar os dias no calendrio, me deparei com a descoberta dopresente absoluto Sim, meu caro, o presente absoluto! Sua face se contraiu num enlevo,ausncia que durou segundos. Logo se recomps, dizendo, no como convite, mas ordem a seracatada, Vamos tomar algo forte, meu amigo. Chamei o garom, ele recitou quatro ou cincoopes de bebida, ela escolheu conhaque, No excelente, mas no nos humilhar, gracejou.E, mirando-me, num misto de curiosidade e desdm, retomou, Agora estou aposentada, fazpouco mais de oito meses. A vida inteira ministrei aulas de lngua e cultura alem. Veja que

  • zombaria: nunca me interessei, nada que fosse, pelo Terceiro Mundo Tudo que estivessepara alm das fronteiras da Europa, e, a bem da verdade, para mim a Europa limitava-se Frana e Alemanha, todo o resto representava a barbrie, terras apartadas da civilizao.Claude, meu marido, tambm professor, especialista em histria medieval. Temos dois filhosmaravilhosos: Philippe, engenheiro qumico, trabalha na Rhne-Poulenc, bem casado, logonos dar um netinho; e Chantal, atriz de teatro infantil, uma palhaa bastante conhecida, Mimi,La Douce. Ou seja, construa uma plcida biografia burguesa Eu era uma mulhermediocremente feliz Dava minhas aulas, contentava-me com os elogios a meus artigospublicados em revistas e livros acadmicos, visitava as universidades alems por conta dasminhas investigaes, as frias passvamos numa pequena casa de praia na Bretanha. Enfim,administrava em paz minha reta final de vida Proferiu tudo isso num jorro, em frasescompassadas e escandindo cada slaba, como se tomasse conhecimento daquela histria nomomento mesmo em que a narrava. Interrompendo, sorveu um gole de conhaque e acendeu,absorta, outro cigarro. Buzinas impacientes congestionavam a avenida. A gua da chuva,adivinhava, avolumava-se na sarjeta. H uns cinco anos, retomou, um apagado aluno dodoutorado, Jrme, o sobrenome escapou em definitivo, me convidou para assistir apresentao dele num curso de tango, no 19o arrondissement. At hoje no sei por queaceitei Moro longe, no 14o, e no tinha qualquer intimidade ou mesmo empatia com ele.Como disse, um apagado aluno E, alm do mais, nunca me interessaram as manifestaespopulares Coloquei-me a um canto, entediada, e aguardei com mau humor o fim daquelapantomima. Primeiro, apareceram os iniciantes, grupo do qual Jrme fazia parte. A dana,extica e lasciva, me desagradava, porque, por mais que se esforassem, os pares,atarantados, no alcanavam seguir a msica, sincopada e trgica Findo o triste espetculo,me preparava para sair, quando surgiu um casal de bailarinos. A contragosto, sentei de novopara acompanhar a exibio. Ento, algo ocorreu Pouco a pouco, minha m vontade tornou-se arrebatamento. Eu contemplava aquele homem e aquela mulher movimentando-seharmoniosos minha frente e percebia que de alguma maneira eles encontravam-se em outraoutra dimenso Os corpos estavam ali, compreende?, mas a alma a alma havia migradopara um espao sem tempo O grupo que acompanhava o noticirio se dispersara e no saloapenas permanecamos ns dois agora. Ela levou a taa boca, engoliu o resto da bebida. Eiso incio do meu desassossego, decretou. A moa de uniforme cinza conversava, desolada, como camareiro e a recepcionista, apontando o piso molhado. Solcito, o garom sugeriu outrarodada. Ignorando-o (eu aceitei por ns a proposta, com um meneio de cabea), ela reassumiu.Aquele ritmo, meio primitivo na sensualidade brutal, meio grotesco na postura caricata,anunciava um universo bipartido, onde a mulher se entrega submissa aos caprichos doparceiro, contrariando tudo o que eu aceitava como sinnimo de bom gosto, de transcendncia,de elevao espiritual. E, no entanto, aquilo aquilo, de certa forma, fez aflorar em mim umsentimento desconhecido abissal Na volta para casa, no metr, pela primeira vez presteiateno nos passageiros que me rodeavam, to diferentes entre si! Que mistrios, que segredoscada um deles, como eu, ocultava? Por trs de fisionomias to dspares, quanto desejoinsatisfeito! E uma espcie de arrependimento se apossou de mim, arrependimento por nuncater me lanado vida, contente por habitar um mundo alicerado na segurana de verdadesprevisveis, na convico de um caminho sem embaraos, sem percalos, sem turbulncias,mas tambm sem cor, sem alegria, sem paixo. Era feliz, me perguntava, e no sabia

  • responder, porque renunciara h muito ideia de felicidade em nome do cumprimento dealgumas modestas aspiraes. Imersa nesses pensamentos, perdi a estao Gare du Nord esaltei na Gare de lEst, baldeando para a Linha 4, quase em pnico, quase em xtase.Encantada pela cadncia da prpria voz, j no importava a minha presena. Distrada,tragava a fumaa do cigarro; desatenta, bebericava o conhaque. Vivi por uns tempos, taciturnae dispersiva, at tomar a deciso mais importante da minha vida: me inscrevi num curso detango. Logo frequentava tambm aulas de espanhol, buscando corrigir meu imensodesconhecimento, causado, por que no admitir?, por um absurdo preconceito. Passei a meinteressar por tudo que se relacionasse Argentina e me deparei com um pasinteressantssimo. Claude, um homem afvel, bovinamente pacato, estranhou quando passei achegar tarde e animada em casa eu no contei a ele sobre essa aventura, nunca entenderia, e at deve ter desconfiado que estava tendo um caso, mas, como das outras vezes, limitou-se ao silncio, preferindo a serenidade da ignorncia perturbao que a certeza imporia aoseu cotidiano. Em quatro anos me tornei uma boa milongueira, o que me fortaleceu as pernas eme deu nimo novo. Mas faltava algo E interrompeu a frase, para talvez estudar o efeito queexercia sobre mim. Ela era fascinante. E eu disse isso, Voc fascinante. Cuidado para no seapaixonar, gracejou, olhos marotos. Ah, se me conhecesse mais jovem, suspirou, mas semnenhuma nostalgia, pois a vida ebulia ainda mais vigorosa nela agora. Dois casais de turistasbrasileiros alojaram-se barulhentos em uma mesa prxima. As mulheres reclamavamdecepcionadas da tormenta; entusiasmados, os homens exaltavam a qualidade da carneargentina. Um txi estacionou em frente ao hotel e gil o porteiro dirigiu-se a ele, um enormeguarda-chuva verde. A moa de uniforme cinza e galochas brancas desaparecera. Voc gostade danar?, ela perguntou, e, diante da minha negativa, comentou, desapontada, Que lstima! Ateleviso continuava a exibir cenas de ruas inundadas e entrevistas com moradores aflitos.Durante quatro anos, retomou, me dediquei com desvelo ao tango: empenhava-me noaprimoramento das tcnicas, ao mesmo tempo em que buscava o ardor da paixo, que,aprendi, no reside no corpo Mas permanecia muito distante da sensao vislumbrada nosdanarinos do 19o arrondissement, espcie de vrtice temporal, de queda para o alto, desuspenso da descrena E eu queria, eu desejava, eu precisava experimentar aquiloEnto, aconselhada por Jean, meu professor, Jean Narvez, h cerca de um ano e meio vimpela primeira vez a Buenos Aires. Hospedei-me num hotelzinho, pequeno, mas confortvel, emPalermo, e gastei os dias vagueando inquieta pelo mapa da cidade. Logo percebi que andavalonge do que almejava, frequentando milongas tpicas para turistas, onde, sim, se dana otango, porm destitudo de qualquer verdade. Porque, se h algo que aprendi, nas noites todasem que meus cabelos branquearam, reconhecer o que h de verdadeiro em um ato humano.Percebo sinais, indcios, interpreto as coincidncias significativas, casos em que somos a ums tempo chamariz e armadilha. Veja voc, meu amigo, na vspera da minha partida, frustradaaps nove dias de nadas, tropecei num personagem improvvel que me encaminhou para oabismo, porque a felicidade um abismo, e sequer soube seu nome. Pouco a pouco, outrasmesas foram sendo ocupadas, aumentando o bulcio, mas o tom de sua voz permanecia omesmo, obrigando-me a acompanhar o movimento de seus lbios para apreender tudo o que iadescrevendo. J nos encontrvamos na terceira rodada de conhaque, e eu, intoxicado pelafumaa do cigarro, sentia engulhos entretanto, a gua de seus olhos castanho-esverdeadosme atraa, sonmbulo, para outros precipcios. A coisa se deu assim, ela sussurrou. Caminhava

  • sem esperana pelas alamedas do Jardim Botnico, at que, cansada, me acomodei num bancocom o propsito de folhear meu guia Michelin. Observava os pssaros, invejando as pessoasque perambulavam despreocupadas, quando, de repente, um homem, cabelos e barba brancosmuito bem cuidados, vestindo terno de linho branco, estacou minha frente, e, todo charme,me abordou, num francs empolado, mas perfeito, Bom dia, madame! Permitiria que umrepublicano recalcitrante se dirigisse senhora? Assustada, reagi gentileza com gentileza,Onde o senhor aprendeu um francs assim to impecvel? Ele sorriu, lisonjeado, e, fixando-me sua ris azulssima, que reluzia por trs dos culos de aros redondos, explicou, Eu eraquase adolescente quando estourou a nossa odiosa guerra civil. Convivi com dezenas devoluntrios da Brigada Internacional e a lngua comum era o francs Parou por um instante emurmurou, longnquo, Quantos amigos mortos! Sucumbido s lembranas, seu corpo frgiloscilou por um instante. Apreensiva, propus que se sentasse ao meu lado, sugesto que depronto acatou, agradecendo, cheio de mesuras. Desde ento, minha vida transcorreu aqui, noexlio. Minha esposa argentina, meus filhos so argentinos meus netos minha bisnetaPoderia, at mesmo, por que no?, me dizer argentino Mas, no fundo, minha senhora, souapenas um pobre aragons que suspira por uma infncia abandonada numa aldeiazinha quenem sei se ainda existe Mas estou fazendo literatura! Diga-me, madame, em que umvelho, que j sente o bafejo da morte, pode ajud-la? Achei inadequada aquela abordagem,no havia concedido liberdade para tanto, e indaguei, Quem disse que estou necessitando deauxlio, meu senhor? E ele, sem titubear, Seus olhos, madame, seus lindos olhos Calei-me,desconcertada. Permanecemos assim por alguns minutos, como que debruados num mirante aobservar os montes e vales pelos quais conduzimos a carga da nossa existncia mida. Porfim, resolvi confiar quele homem a minha histria. Contei a ele o que contei a voc, palavrapor palavra. Ele ouviu, quieto e grave. Quando conclu, falou, Madame, procure Germn, erecitou, por duas vezes, um endereo em Villa Urquiza. S isso! Procure Germn, nesteendereo, em Villa Urquiza Levantou, e da mesma maneira que havia surgido, sumiu. Agora,meu caro, voc prestou ateno em um detalhe? Ele me recomendou encontrar GermnGermn!, percebe?, disse quase gritando, to excitada. Semiergueu-se, o brao direitoesticado, a mo magra amarfanhando o tecido da minha camisa, Germn! Germano! Ou seja,alemo! Alemo! Uma vida inteira de equvocos Minha felicidade, entende?, estava no nosolo da Germnia, mas no voo de Germn! E aqui ela cometeu um trocadilho intraduzvel,entre o solo da Germnia (le sol de Germanie) e o voo de Germn (le vol de Germn)Chamei o garom, e, ressequido, solicitei uma garrafa de gua mineral sem gs. Ela pediucaf, e, mais tranquila, contemplou o hall, agora tomado por diferentes tipos, entre turistas ehomens de negcios, acossados todos pela tempestade. A televiso exibia, como despojos,casas pobres em ruas descalas, subjugadas s guas turvas e enraivecidas do Rio da Prata.Uma mulher, rosto indgena, em desespero lastimava por seus pertences perdidos, enquanto,ao fundo, algumas crianas sorriam, timidamente inocentes. No incio da noite, retomou, a vozpausada, peguei um txi, e, hesitante, me dirigi ao endereo indicado pelo excntricocavalheiro espanhol. O carro estacionou em frente a um prediozinho comum, de que existeminmeros nos subrbios de Buenos Aires, na fachada escrito, em letras gticas recm-retocadas, que se trata de um crculo desportivo e social. Permaneci algum tempo do outrolado da calada, fingindo interesse pelo jardim de uma casa, observando o movimento dejovens casais e grupos de amigos, de procedncia vria, quer dizer, de classes sociais

  • distintas, visvel nas roupas e nos modos como se apresentavam. Intimidada, caminhei at aAvenida de los Constituyentes, decidida a regressar ao meu quarto aconchegante e esqueceraquela aventura insana, mas no apareceu nenhum txi vazio e eu no me arriscava, comoainda no me arrisco, a andar sozinha de metr ou nibus aqui. De tal maneira que, confusa,fiz o percurso de volta, respirei fundo, entrei no salo, e, agoniada, perguntei por Germn. Osdedos longos, trmulos, levaram um cigarro aos lbios agora plidos, desprovidos de batom, ea mo direita, abraando um isqueiro amarelo, vulgar, acendeu-o. Os olhos castanho-esverdeados embrenharam-se, e perderam-se, em um denso bosque de recordaes. Eu haviapassado a tarde inteira imaginando como Germn seria Ora ele se manifestava como umlorde, grisalho, gentil e educado, trajando um terno cortado com esmero e bom gosto Oraaparecia encarnado em meu pai, magro, alto, bem-vestido, mas sempre com um toque dehumor, um leno colorido agredindo o palet escuro, um enorme relgio de bolsoembaralhado nas correntes Ora mostrava-se como prncipe encantado, louro, jovem eatltico, sedutor em seu herosmo sincero, mas ingnuo E ora revelava-se at mesmo comoo misterioso republicano espanhol Acabei por me fixar em um modelo que consideravamais prximo do real, um homem de cerca de quarenta anos, cabelos pretos reluzentes,estatura mediana, braos fortes, maneiras requintadas. Impaciente, ou angustiada, espetou ocigarro no cinzeiro lotado, e voltou-se contrafeita para a entrada do hotel, onde algunshspedes travavam uma acalorada, e obscura, discusso. O senhor a quem perguntei porGermn me olhou com desconfiana e guiou-me a uma mesa, em um canto onde havia outrasmulheres, mas nenhuma, como eu, solitria. O lugar, muito modesto, devia ser usado tambmpara outros fins, pois ostentava folhas de cartolina coladas nas paredes, com distintas listas deatividades, escritas mo, para velhos, crianas e mes. Sentei-me, acendi um cigarro, e, porcortesia, pedi uma taa de vinho e uma empanada. Logo, me entretive com os pares que semoviam circunspectos sobre o assoalho de madeira. Sem que notasse, acercou-se de mim umrapaz, vinte e poucos anos, enfiado num terno azul-marinho surrado, mas decente, moreno,vasta cabeleira negra, rosto duro, de uma beleza estranha e hostil, um pouco mais baixo queeu, ombros largos, um indivduo comum, desses com quem cruzamos na rua a todo momento enem percebemos. Ele disse, seco, A senhora est me procurando? Mirei seus olhos tristes e,sem que conseguisse disfarar minha surpresa, no, no, meu desapontamento, perguntei,Germn?! Nervosa, me afligi tentando explicar como tinha chegado at ali e o que desejava,enquanto ele, de p, muito srio, me dizia, spero, num forte sotaque portenho, alguma coisaque eu no assimilei. Embaraada, falei, Sou uma entusiasta do tango Mas ele meinterrompeu, com respeitosa ironia, Minha senhora, ns nos reunimos aqui para esquecer omundo l fora, no para divertir turistas, e virou as costas. De sbito, levantei, as pernasbambas, agarrei seu brao com ousadia, e falei, rspida, Rapaz, voc acha que deixei meusafazeres em Paris para ser tratada assim? Estou em busca de uma experincia singular e vocno vai me privar dela! No sei se ele me entendeu, at porque quando exaltada meu espanholtorna-se pssimo, e, alm disso, garons circulavam e as pessoas conversavam, sei que,assustado, no retrucou, apenas deixou cair os braos, em desalento. Por fim, ziguezagueandopelo labirinto de mesas, caminhou para a pista improvisada, eu a persegui-lo. De repente,parou, voltou-se para mim, envolveu-me com o brao direito e conduziu-me pelo salo,aborrecido e irritado. Ofegante, ela acendeu outro cigarro. No comeo, custei a me adequar aoritmo impetuoso de Germn, mas, superada a inibio inicial, senti que ele, talvez espantado

  • por perceber que eu conseguia acompanh-lo, distendeu os msculos, e, absortos na msica,pouco a pouco nossos passos foram se confundindo O que ocorreu da para a frente,impossvel descrever No existia mais aquele salo, o subrbio de casas parecidas, BuenosAires, a Argentina, o mundo Eu j no era uma mulher que carrega nome e sobrenome,professora aposentada, casada, me de dois filhos, francesa, mas um corpo mergulhado numinstante nico No havia passado, pegadas deixadas por algum que no fomos. Nem futuro,mera projeo de nossos desejos Para alm do tempo e do espao, eu habitava o presenteabsoluto! E caiu em silncio. Perguntei se queria mais caf, no respondeu, exausta e alheada.L fora, a chuva parecia ter amainado. Quem voltou a Paris no dia seguinte no era a mesmapessoa, apesar de o passaporte insistir que sim Tudo tinha se tornado to prosaicoto vulgar Eu poderia dizer que aps essa experincia no me preocupava mais com aminha finitude, porque, de alguma maneira, havia colocado o p na eternidade. Mas estariamentindo Somos humanos, insaciveis Estou aqui de novo porque quero tentar repetiraquela sensao de de felicidade? No sei No fundo, talvez a morte seja isso, umaespcie de presente absoluto Ela ento se levantou, Meu deus, essa conversa toda deve lheparecer uma enorme tolice, no mesmo? Desculpe, desculpe Eu no deveria ter tomadoseu tempo com isso, desculpe E, sem me dar chance de contest-la, abriu uma pequenabolsa de mo, depositou dinheiro sob o pires, e caminhou em direo ao elevador.

  • El Gordo

    Uma das coisas ruins do restaurante de Don Pepe era que, todas as vezes que algum abria aporta, tocava um sininho, fazendo um barulho irritante, que na hora do almoo tornava-seinsuportvel. Eu no entendia a necessidade do mecanismo, pois Don Pepe, encastelado atrsdo balco, cuidava do caixa e dava ordens, atravs de uma janela verde minscula, a umacozinheira invisvel, enquanto Claudia, a garonete de idade indeterminada, desfilava suatristeza por entre os fregueses, equilibrando bandejas com carne, batata e verdura e issoera outra das coisas ruins, o prato do dia, sempre o mesmo.

    Dolores uma pequena cidade no extremo sudoeste do Uruguai, recortada em ruas planasde quadras idnticas, onde no h quase nada para fazer. Eu me encontrava h uma semanahospedado num hotel modesto, prximo praa da igreja e, da janela do meu quarto, nos finsde tarde, observava a passagem de enormes caminhes carregados de farinha de trigo. Logono primeiro dia, Don Pepe me falou, entusiasmado, de um morador brasilero, El Gordo, Querdizer, ele no brasilero, mas conhece bem o Brasil, inclusive fala brasilero, e me prometeuapresent-lo.

    Na sexta-feira, abandonando o balco, escancarou a porta com estardalhao e, em seguida,voltou, acionando o sininho, conduzindo um homem de cerca de um metro e setenta de altura,ligeiramente gordo, pouco menos de quarenta anos, meio calvo, dentes amarelados de fumo. este o brasilero, apresentou, altivo. Me levantei, cumprimentando-o, e ele, constrangido,explicou, No sou brasilero, no, apenas conheo o Brasil. Satisfeito, Don Pepe afastou-se.Convidei-o a se sentar, puxou uma cadeira, quis que me acompanhasse na cerveja, naquele diano iria trabalhar mais, mas ele recusou, esclarecendo que no tomava bebida alcolica, epedindo a Claudia uma garrafa de pomelo, um refrigerante local. Ento, conhece o Brasil?,indaguei, para puxar assunto, e ele, retrado, respondeu, , uma vez fui de nibus at SoPaulo Tem uns cinco anos j Ah, So Paulo! Eu moro no Rio de Janeiro. No pensou emvisitar o Rio? Contrariado, afirmou, olhos baixos, No foi uma viagem de turismo

    Sitiados pelos rudos de pratos, garfos, facas, vozes, orquestrados pelos gritos de Don Pepee pelo tilintar do sininho, ficamos em silncio. Embaraado, El Gordo perguntou, O que vaifazer amanh? Nada, declarei. Ento, para se livrar daquela situao de desconforto, props,Ao meio-dia, passo no hotel, em que hotel o senhor est?, vamos fazer um asado na minhacasa, o senhor gosta de carne, no? Nem sequer me ocorreu rejeitar, por delicadeza, o convite,to aflito me achava. Ele se levantou, apertou minha mo, e saiu, acionando o sininho.

    No dia seguinte, sob o esturricante sol do comeo de dezembro, montei na garupa da Yasuki125 cilindradas, e, aps percorrermos sete quadras, El Gordo parou em frente a uma casasimples, h muito carente de pintura, assentada na calada estreita, que permitia ingressodireto porta da sala. Empurrou o porto lateral, descortinando um pequeno quintalmalcuidado, cercado por um muro baixo, e um viralata acorreu at ns, pulando e lambendo echeirando e fazendo festa, apesar de El Gordo repreend-lo com carinhosa severidade, Chega,Tigre! Chega! Depois de estacionar a motocicleta sombra de uma amoreira solitria, disse,Vamos entrar, subindo trs degraus para alcanar a cozinha, onde deparamos com uma mulher

  • magra, de uma beleza melanclica, trinta e poucos anos, cabelos louros, apagados olhoscastanhos, que escorria gua quente para a garrafa trmica. Cristina, minha esposa. Aperteisua mo, ainda mida, declinei meu nome, ela sorriu, encabulada. El Gordo pendurou o molhode chaves no gancho de um quadro com o escudo azul do Nacional, de Montevidu, conferiuas horas no relgio de parede, acendeu, vido, um cigarro, e berrou, Julio!, Natalia!, aulandoduas curiosas e assustadias cabeas louras surgidas por detrs da cortina de plstico queseparava os cmodos. Os herdeiros!, exibiu-os, orgulhoso.

    Escaldando a erva, Cristina perguntou se eu desejava provar. Respondi que haviaexperimentado e julgava muito amargo. Ento, ela passou o mate para El Gordo, que,chupando a bomba, elogiou a inteligncia de Natalia, A melhor da classe, e o talento de Juliopara o futebol, Um excelente defensor, tem raa, tcnica, viso de conjunto. Natalia indagousobre minha profisso e o que fazia em Dolores, Julio demonstrou profundo conhecimentosobre times e jogadores brasileiros. Cristina, de posse da cuia, afirmou que o marido sabiaportugus e pediu que falasse comigo. Intimidado, esquivou-se, mas, como teimvamos,pronunciou algumas frases num portunhol incompreensvel, levando os filhos s gargalhadas.Afinal, ele tambm achou graa e, afetando zanga, convocou, Agora basta, vamos acender ofogo!

    Regressamos ao quintal, Tigre, excitadssimo, trovejava de um lado para outro, rodeamos acasa e nos instalamos sob uma varanda improvisada, coberta por folhas de zinco. Comdesvelo, El Gordo, bermuda, camisa semiaberta que deixava mostra um cordo de ouro coma medalha da Virgen de los Treinta y Tres, sandlias franciscanas, tomou uma escova decerdas de ao e passou a limpar a parrilla. Julio aproximou-se com paus de lenha, depositou-os no cho, e saiu correndo para pegar jornais velhos. Sem saber o que fazer, apartei-me,disposto a explorar, com dissimulada ateno, cada recanto do lugar, mas uma msica distante,que falava de amores perdidos, saudades, solido, me tornou, de repente, ensimesmado Deimeia-volta, apanhei uma das quatro cadeiras de plstico brancas espalhadas pela gramaindomada, arrastei-a para junto de El Gordo e me pus a observ-lo, com admirao, instruindoo filho sobre a melhor maneira de confeccionar uma isca de papel para obter com sucesso achama inaugural.

    Entretido, nem percebi quando um senhor espigado, cabelos brancos, barba agreste, grandesolhos verdes, chegou, perguntando, efusivo, Gostando da nossa cidade? Ah, disse El Gordo,Esse Don Carlos, pai de Cristina. Sogro dele, completou o velho, simptico,cumprimentando-me, Muito prazer! J ofereceram algo para tomar? Aborrecido, El Gordocontestou, , Don Carlos, ns nem atiamos o fogo ainda, mas ele, ignorando o resmungo dogenro, continuou, Trouxe vinho!, vinho uruguaio! Assenti com a cabea e, contente, ele sedirigiu cozinha. Don Carlos uma boa pessoa, El Gordo confidenciou, mas s vezes bebeum pouco demais fica inconveniente Sem que notssemos, Cristina avizinhava-se,carregando dobrada uma toalha xadrez, branca e vermelha, Ele tambm bebia bastante, falou,melindrada, apontando o marido, e, esticando o tecido sobre a mesa de madeira, completou,S parou por causa do acidente.

    Don Carlos retornou, acompanhado por Julio e Natalia, trazendo uma garrafa de vinho euma de Pepsi-Cola, e seis copos. Ruidoso, encheu trs com tinto e trs com refrigerante eprops, eufrico, um brinde, amizade de Brasil e Uruguai! Em seguida, Cristina autorizou osfilhos a assistir televiso e eles desembestaram casa adentro, seguidos, espalhafatosamente,

  • por Tigre. El Gordo, consultando o relgio de pulso, buscou, aliviado, um cigarro no mao,acendeu-o com impacincia, e distraiu-se montando a grelha ao lado das achas de madeira queagora queimavam cleres, espalhando um cheiro bom pela infinita tarde azul.

    Ento, indagou Don Carlos, de que parte do Brasil vem? Moro no Rio, respondi. Ah, Rio deJaneiro! Maracan Eu tinha catorze anos quando ganhamos a Copa do Mundo. Vivia emCanelones, na poca, ouvimos o jogo pelo rdio. Foi uma festa quando o Ghiggia fez aquelegol Que tragdia para os brasileiros, no? verdade que os torcedores largaram oscalados no estdio, porque no eram dignos de pisar o cho l fora com eles? Esclareci queaquilo parecia uma lenda, sem o convencer. Cristina, que ajudava El Gordo a pr chorizo,morcilla e provolone na grelha, ralhou, Pap, que conversa! Isso foi h mais de cinquentaanos! , ele suspirou, e foi a ltima vez que fizemos alguma coisa que preste, minha filha, altima Depois, nos tornamos o qu? Um pas sem importncia El Gordo, amuado, quisargumentar, mas Don Carlos antecipou-se, O senhor notou que somos uma nao de velhos ecrianas? No h jovens, vo todos embora. Vo para a Espanha, para os Estados Unidos,para o Canad At para a Austrlia vo No tm futuro aqui. Cristina, sugando a bombado mate, reagiu, No bem assim, pap Claro que A ditadura acabou com o Uruguai!Nesse momento, El Gordo falou, irritado, Don Carlos, o senhor sabe que nesta casa no sediscute poltica! O velho, desgostoso, ingeriu o resto do vinho, sussurrou, entre dentes, , nose discute, e calou-se.

    Ouvamos o crepitar das chamas na parrilla. Cristina despejou gua quente na cuia e alevou ao pai, que, afastado, de p, mirava casmurro o cu sem nuvens. Fora de hora, um galocantou. Perguntei ento, rompendo com ansiedade o silncio, como o casal havia seconhecido. Cristina desconversou, a face enrubescida, alegando que tratava-se de uma histriacomum. Porm, diante de minha insistncia, contou, em linhas gerais, que quando cursava oltimo ano de licenciatura em enfermagem, em Montevidu, uma amiga, Paloma, Lembradela?, apresentou-os. Ele j tinha esse apelido naquele tempo, embora hoje esteja bem maismagro, comentou, divertida. Reconheceu que no simpatizou de imediato com o futuro marido,porque ele fumava muito e s falava sobre futebol, no que foi repreendida, com troa, por ElGordo, , isso no verdade! De qualquer maneira, comearam a namorar, sem muitaesperana da parte dela, porque, diplomada, voltaria para Dolores, onde a famlia morava, ame ainda viva, e Don Carlos mantinha um pequeno comrcio. Desesperado com aperspectiva de se separarem, El Gordo, que sobrevivia como escriturrio numa firma decontabilidade, props que noivassem. No ano seguinte, ela j trabalhando no hospital deDolores, meteu-se a estudar e passou no concurso do Banco Repblica, tendo sido designado,no comeo, para Minas, a trezentos e cinquenta quilmetros, onde permaneceu por um ano, atconseguir transferncia para Fray Bentos, a uma hora de distncia. Ento se casaram,nasceram Julio, Natalia Durante dois anos e meio, El Gordo viajava segunda-feira cedopara Fray Bentos e regressava sexta-feira, aps o expediente. At que houve o desastre

    Entediado com a paradeira das crianas, Tigre retornara, e aguardava, atento, que lheoferecessem algo para comer, que abocanhava e engolia sem mastigar. Ao longo do relato deCristina, Don Carlos desaparecera, mas, pouco antes do final, ressurgiu com outra garrafa devinho e a trmica renovada de gua quente, pondo ambas sobre a mesa. El Gordo colocou umapartida de chinchuln e riones na grelha, e, desviando o assunto, disse, Estou de dieta, jperdi quase quinze quilos Alm disso, estou fumando apenas de hora em hora Logo ser

  • conhecido como El Flaco, comentou Don Carlos, sardnico. Enquanto comamos pedaos devaco, regados com chimichurri, e po, Cristina especulou se eu sabia do destino daspersonagens de Alma Gmea. Apressado, Julio aproximou-se, interrompendo a me, que nosexplicava a trama da novela brasileira que a Teledoce transmitia, Papi, telefone, Don Alcides!El Gordo voltou-se para o sogro, entregando-lhe, esbaforido, o tenedor, enquanto Cristina,irnica, comentava, a amante dele, o futebol

    Roncando a bomba do mate, Don Carlos passou a cuia para a filha, e falou, incomodado,Desculpe ele, um trauma o pai sumiu durante a ditadura Cristina completou, Ele chegoua viajar para o Brasil, foi at So Paulo, sem xito. Uma fr