Filumena Marturano

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Livrinho de teatro nº59

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livrinhos de teatro / 59

Eduardo de Filippo é por muitos considerado o maior autor teatral ita-liano do século xx ao lado de Pirandello, que muito o admirava e com quem chegou a trabalhar. No início dos anos 70, resumiu assim a sua vida: «Nasci em Nápoles, a 24 de Maio de 1900, da união do maior actor -autor -director de companhia daquela altura, Eduardo Scarpetta, com Luisa De Filippo, cos-tureira de teatro. Precisei de tempo para entender as circunstâncias do meu nascimento, porque, então, as crianças não tinham a frontalidade que hoje têm — e foi um grande choque descobrir, aos 11 anos, que era «fi lho de pai incógnito». A curiosidade doentia dos que me rodeavam não me ajudou a encontrar um equilíbrio. Foi assim que, por um lado, me orgulhava do meu pai, em cuja companhia comecei a trabalhar com quatro anos apenas, pri-meiro como fi gurante e depois como actor, por outro, a infi nda rede de intrigas e maledicência magoava -me profundamente. Sentia -me ostracizado, quando muito tolerado, por ser «diferente». Mas há muito que percebi que o talento pode avançar de qualquer maneira e que ninguém o consegue parar — tanto mais quanto se for considerado «diferente» pela sociedade. Uma pessoa assim marcada quer mesmo ser «diferente», as suas forças aumentam, o pensamento fervilha, o corpo não conhece a fadiga, o que é preciso é atingir a meta que nos impusemos. Isso não o sabia eu e a minha «diferença» pesava -me tanto, que acabei por abandonar a casa materna e a escola e pus -me a andar pelo mundo, sozinho, com pouquíssimo dinheiro, com o fi rme propósito de encontrar o meu caminho. Devo dizer: encontrar o meu caminho dentro dos caminhos que já me fi xara, o teatro — que sempre foi tudo para mim.» De Filippo começou a escrever nos anos 20, e é de 1931, quando dirige uma companhia com os seus irmãos Peppino e Titina, o seu primeiro triunfo, Natale a Casa Cupielo. O seu prestígio vai aumentando no pós -guerra com peças como Nápoles Milionária (1945) e Filumena Marturano (1946) que foram representadas em todo o mundo, muitas delas tendo também sido adaptadas ao cinema por ele próprio e também por realizadores como Castellani, Camerini ou De Sica. Até 1973 escreveu mais de quarenta peças, que foram reunidas, em 1975, em vários volumes, pela editora Einaudi, com os títulos Cantata dei Giorni Dis-pari (3 volumes) e Cantata dei Giorni Pari (1 volume). Em 1981, professor da Universidade da Sapienza, em Roma, foi nomeado senador vitalício da República Italiana. Eduardo (como é conhecido em Itália) morreu em 1985.

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eduardo de filippo

Filumena Marturano

Estes fantasmas!

Sábado, Domingo e Segunda

Tradução de

José Colaço Barreiros

< os clássicos >

ARTISTAS UNIDOSCOTOVIA

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títulos originais: Filumena Marturano

© 1961, 1965,1966, 1967, 1971, 1973, 1976 e 1995 Einaudi Editore s.p.a Torino

Sabato, Domenica e Lunedì

© 1957, 1958,1966, 1971 e 1995 Einaudi Editore s.p.a Torino

Questi Fantasmi!

© 1961, 1965,1966, 1967, 1971, 1973, 1976 e 1995 Einaudi Editore s.p.a Torino

autor: Eduardo De Filippo

tradução e glossário:José Colaço Barreiros

revisão:Madalena Alfaia

© desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Setembro de 2011

A presente edição contou com o apoio do Ministero degli Affari Esteri Italiano —

Direzione Generale per la Promozione e la Cooperazione Culturale

ARTISTAS UNIDOSR. Campo de Ourique, 120

1250 — 062 Lisboawww.artistasunidos.pt

[email protected]

LIVROS COTOVIARua Nova da Trindade, 24

1200 — 303 [email protected]

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ÍNDICE

7 Filumena Marturano 77 Estes fantasmas! 145 Sábado, Domingo e Segunda

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FILUMENA MARTURANO

— 1946 —

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Filumena Marturano foi estreada no Politeama de Nápoles em Novem-bro de 1946. A peça foi escrita por Eduardo para a sua irmã Titina de Filippo que, neste papel, teve um enorme sucesso, sobretudo a partir da estreia em Roma, no ano seguinte. Eduardo dirigia o espectáculo e inter-pretava o principal papel masculino. Integravam o elenco incial actores como Tina Pica, Giovanni Amato, Elena Altieri, Clara Crispo, Aldo Landi, actores que são o coração da companhia «Il Teatro di Eduardo con Titina De Filippo». Até 1951, a peça é reposta todos os anos, sempre com Titina, com quem Eduardo realiza o fi lme homónimo. Depois do afastamento (por doença cardíaca) de Titina Eduardo havia de remon-tar sucessivamente esta peça com actrizes como Regina Bianchi, Pupella Maggio, Valeria Moriconi, Isa Danieli, Lina Sastri e Mariangela Melato. Em 1964, Vittorio De Sica adaptou a peça com a colaboração de Edu-ardo e dirigiu Matrimonio all’Italiana, um enorme triunfo mundial com o par Sofi a Loren— Marcello Mastroianni. Em Portugal, Filumena Marturano estreou no Teatro Nacional D. Maria II, pela Companhia Rey Colaço -Robles Monteiro a 25 de Abril de 1951, com tradução de Manuel Monteiro e interpretação de Amélia Rey Colaço, Raúl de Carvalho, Luz Veloso, Álvaro Benamor, Augusto Figueiredo, Henri-que Santos, Helena Félix, Meniche Lopes, Fernanda de Sousa, Antó-nio Palma, Jacinto Ramos e Gabriel Pais, num espectáculo dirigido por Erwin Meyenburg. Mariana Rey -Monteiro retomou o papel que fora de sua mãe, em 1979, ao lado de Paulo Renato e Armando Cortez, numa produção da Repertório (Filumena Marturano), apresentada no Teatro Municipal Maria Matos com direcção de José Osuna.

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PERSONAGENS

Filumena Marturano Domenico Soriano, rico pasteleiro

Alfredo Amoroso, o cocheiro

Rosalia Solimene, confi dente de Filumena

Diana, jovem «paixão» de Soriano

Lucia, criada

Umberto, estudante

Riccardo, comerciante

Michele, operário

Doutor Nocella, advogado

Teresina, costureira

Primeiro Carregador Segundo Carregador

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PRIMEIRO ACTO

Na casa Soriano.

Espaçosa sala de jantar num decidido «estilo 1900», decorada

com opulência mas com gosto pelo menos mediano. Um ou

outro quadro e um ou outro bibelô — que recordam terna-

mente a época dos fi ns do século XIX e que, evidentemente,

outrora terão feito parte da decoração da casa paterna de

Domenico Soriano dispostos com cuidado nas paredes

e sobre os móveis, com uma violência gritante chocam com

tudo o resto. A porta, no primeiro bastidor à esquerda, é a que

dá para o quarto de dormir. No segundo bastidor,também à

esquerda, corta o canto da sala uma grande janela de vidros

que deixa ver um amplo terraço fl orido, protegido por um

cortina de pano de riscado colorido. Ao fundo, à direita, a

porta de entrada. À direita, a sala abre -se, penetrando pro-

fundamente pelo bastidor e deixando entrever, através de

um grande vão e da abertura a meio de uma cortina de

seda, o «escritório» do dono da casa. Para a decoração do

seu «escritório», Domenico Soriano preferiu também o

«estilo 1900». Também é deste estilo o móvel de vitrina que

protege e expõe uma grande quantidade de taças de variados

metais de diferentes formas e dimensões: «Primeiros prémios»

ganhos pelos seus cavalos de corrida. Duas «bandeiras» cru-

zadas na parede em frente, por trás de uma secretária, teste-

munham as vitórias obtidas na festa de Montevergine. Nem

um livro, nem um jornal, nem um papel. Aquele canto, a que

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só Domenico Soriano se atreve a chamar o «escritório»,

está limpo e arrumado, mas sem vida. A mesa central, na sala

de jantar, está posta para dois comensais, com um certo gosto

e mesmo requinte: não falta um «centro» de rosas vermelhas

fresquíssimas. Primavera avançada: quase Verão. Anoitece.

As últimas luzes do dia diluem -se através do terraço.

De pé, quase à porta do quarto, de braços cruzados, em posi-

ção de desafi o, está Filumena Marturano. Veste uma cân-

dida e comprida camisa de noite. O cabelo em desalinho e

penteado à pressa. Pés descalços dentro das pantufas de sair

da cama. As feições do rosto desta mulher são atormenta-

das: sinais de um passado de lutas e de tristezas. Não tem um

aspecto grosseiro, Filumena, mas não pode esconder a sua

origem plebeia: e ela também não o queria. Os seus gestos são

largos e abertos; o tom da sua voz é sempre franco e decidido,

de mulher consciente, rica em inteligência instintiva e força

moral, de mulher que conhece as leis da vida à sua maneira,

e que à sua maneira as enfrenta. Tem apenas quarenta e oito

anos, denunciados por um ou outro fi ozinho de prata nas

têmporas, não pelos olhos, que conservaram a vivacidade

juvenil do «negro» napolitano. É pálida, cadavérica, um

pouco pelo fi ngimento de que se fez protagonista, ou seja, de

se deixar julgar próxima do fi m, e um pouco pela tempestade

que agora, inevitavelmente, terá de enfrentar. Mas ela não

tem medo: a sua atitude, aliás, é a da fera ferida, pronta a dar

o salto sobre o adversário.

No canto oposto, precisamente na primeira cortina à direita,

Domenico Soriano enfrenta a mulher com a decidida

vontade a que ele não conhece limites nem obstáculos, desde

que faça triunfar a sua sacrossanta razão, desde que desfaça a

infâmia e ponha a nu perante o mundo a baixeza com que foi

possível enganá -lo. Sente -se ofendido, ultrajado, atingido em

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qualquer coisa que na sua opinião é sagrada, que não pode

nem tem intenções de confessar. Além disso, o facto de poder

parecer um vencido aos olhos das gentes dá -lhe completa

volta ao miolo, fá -lo perder a luz da razão.

É um homem robusto, saudável, pelos seus cinquenta anos.

Cinquenta anos bem vividos. O bem -estar e a conspícua

posição fi nanceira conservaram -no de espírito vivo e de

aspecto juvenil. A «santa alma» do seu pai, Raimondo

Soriano, um dos mais ricos e espertos pasteleiros de Nápoles,

que tinha fábricas nas Vergini e em Forcella, bem como lojas

concorridíssimas em Toledo e em Foria, não via mais nada

no mundo a não ser ele. Os caprichos de Dom Domenico

(em criança era conhecido pelo «Menino Dom Mimi») não

tinham limites, nem pela sua extravagância, nem pela ori-

ginalidade. Fizeram época; ainda hoje se contam em Nápo-

les. Apaixonado amador de cavalos, é capaz de passar horas

inteiras a evocar com os amigos as proezas desportivas, as

«gestas» dos mais importantes exemplares equídeos que

passaram pelas suas nutridas cavalariças. Agora ali está, em

calças e casaco de pijama sumariamente abotoados, pálido

e convulso perante Filumena, aquela mulher «Maria-

-ninguém», que durante muitos anos foi tratada por ele

como escrava e que agora o tem na mão, para o esmagar

como um pintainho.

À esquerda da sala, ao canto, quase junto do terraço, vê -se de

pé a mansa e humilde fi gura de dona Rosalia Solimene.

Tem setenta e cinco anos. A cor dos seus cabelos é incerta,

mais decidida para o branco do que para o grisalho. Traz

um vestido escuro, de «cores mortas». Um pouco curvada,

mas ainda cheia de vitalidade. Habitava num «baixo» na

travessa de São Libório, em frente da casa habitada pela

família Marturano, da qual conhece «venturas, aventuras e

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desventuras». Conheceu Filumena desde a sua mais tenra

idade; esteve junto dela nos momentos mais tristes da sua

existência, sem nunca lhe negar as palavras de conforto, de

compreensão e de ternura que só as nossas mulheres do povo

sabem oferecer e que são um verdadeiro bálsamo para o

coração de quem sofre. Ela segue, ansiosa, os movimentos de

Domenico, sem o perder de vista um instante. Conhece, por

dura experiência própria, os efeitos da irascibilidade daquele

homem, perante quem, presa de terror, não bate uma pálpe-

bra, como que petrifi cada.

No quarto canto da sala vê -se outra personagem: Alfredo

Amoroso. É um homem simpático, pelos sessenta anos, de

estrutura sólida, musculado e vigoroso. Pelos companheiros,

foi -lhe posta a alcunha de «O Cocheiro». De facto, era um

bom condutor de cavalos, pelo que foi contratado por Dome-nico, e depois fi cou a seu lado, desempenhando as funções de

pau para toda a obra, bode expiatório, alcoviteiro e amigo.

Ele reassume todo o passado do seu patrão. Basta observar o

modo como olha para Domenico para compreender até que

ponto lhe permaneceu fi el e devoto, com a maior abnegação.

Veste um casaco cinzento um tanto coçado mas de corte per-

feito, calças de outra cor e boné «casca de noz» enfi ado na

cabeça um pouco à banda.

Ostenta, ao centro do colete, uma corrente de ouro. Está em

atitude expectante. É talvez o mais sereno de todos. Conhece

bem o seu patrão. Quantas vezes não terá apanhado por

tabela em vez dele! Quando sobe o pano, assim encontramos

as quatro personagens, nesta posição de jogo dos «quatro can-

tinhos». Parece que estão ali para se divertirem como umas

crianças; e, afi nal, foi a vida que os atirou assim, uns contra

os outros.

Pausa longa.

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Domenico (esbofeteando -se repetidamente com veemência e

exasperação) Doido, doido, doido! Cem vezes, mil vezes doido!

Alfredo (com um tímido gesto intervém) Mas o que é que está a fazer?

Rosalia aproxima -se de Filumena e põe -lhe pelos ombros

um xaile que terá ido buscar a uma cadeira ao fundo.

Domenico Não sou homem nem sou nada. Eu devia era pôr--me em frente do espelho e nunca mais me fartar de me cuspir na cara. (Com um lampejo nos olhos de ódio a Filumena.) Contigo desperdicei a minha vida: vinte e cinco anos de saúde, de forças, de cabeça, de juventude! Que mais queres? Que mais tem de te dar Domenico Soriano? Já me levaste coiro e cabelo, ainda queres os restos? Pois tu não fi zeste sempre o que te apeteceu? (Invectivando tudo e todos, como que fora de

si.) Toda a gente fez o que muito bem quis! (Contra si próprio,

com desprezo.) Enquanto tu te julgavas Jesus Cristo descido à terra, todos faziam o que queriam da tua pele! (Apontando um

pouco para todos, num acto de acusação.) Tu, tu, tu… a rua, o bairro, Nápoles, o mundo… Todos me comeram as papas na cabeça, sempre! (De repente, a lembrança da partida que lhe

pregou Filumena torna -lhe à mente e faz -lhe ferver o san-

gue.) Até me faz mal pensar nisto! Sim, eu já devia esperar uma destas! Só uma mulher como tu podia chegar ao ponto a que tu chegaste! Não te podias desmentir. Vinte e cinco anos não te podiam mudar! Mas não julgues que ganhaste a partida: eu ainda não perdi! Eu mato -te e não pago mais do que uns dez réis de mel coado. Uma mulher como tu é quanto custa: dez réis de mel coado! E todos os que te deram uma ajuda nisto: o médico… o padre… (Apontando com ar

ameaçador para Rosalia, que estremece, e para Alfredo,

que pelo contrário está tranquilo.) estes dois nojentos, a

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quem dei de comer por tantos anos… mato -os a todos!… (Resoluto.) O revólver… Dêem -me o revólver!

Alfredo (calmo) Levei os dois ao armeiro para limpar… Como o patrão mandou…

Domenico Quantas coisas disse eu… e quantas me fi zeram dizer à força! Mas agora acabou, ouviste?! Tenho os olhos abertos, já percebi tudo!… (A Filumena.) Tu vais -te embora, e ou vais pelo teu próprio pé, ou então sais daqui morta! Não há lei, não há Padre Eterno que faça vergar Domenico Soriano. Participação de assalto e abuso de confi ança contra toda a gente! Eu mando -os para a cadeia! Dinheiro tenho eu, portanto dancemos todos à minha música, Filumena. Eu é que te faço dançar ao meu mando! Quando eu contar quem eras, e em que casa tu te meteste para a roubar, têm todos de me dar razão. E eu destruo -te, Filumena, destruo -te!

Filumena (nada impressionada, segura de si) Já acabaste? Tens mais alguma coisa a dizer?

Domenico (num repente) Cala -te, não fales, não me fi o em nada do que tu digas! (Basta a voz daquela mulher para o abalar.)

Filumena Depois de te dizer tudo o que trago aqui dentro, estás a ver? (Aponta o estômago.) Nunca mais te olho para a cara e a minha voz mais ninguém a ouve!

Domenico (com desprezo) Galdéria! Uma galdéria é o que tu foste e nunca deixaste de ser!

Filumena E é preciso dizê -lo assim, como tu dizes? É alguma novidade? Não sabe toda a gente o que eu fui, e onde é que estive? Mas aonde eu estive, ias lá tu… Tu juntamente com os outros. E tratei -te tal qual tratava os outros também. Por-que é que havia de te tratar de outra maneira, a ti? Não são todos iguais, os homens? O que fi z eu, é cá comigo e com a minha consciência. Agora sou tua mulher. E daqui não me leva nem a guarda!

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Domenico Mulher? Mulher de quem? Filumena, resolveste gozar comigo, esta noite? Com quem é que te casaste?

Filumena (fria) Contigo!Domenico Tu és doida! A fraude está à vista. Tenho testemu-

nhas. (Aponta Alfredo e Rosalia.)Rosalia (pronta) Eu não sei nada… (Não quer ver -se impli-

cada numa questão tão grave.) Eu cá só sei que a Dona Filu-mena estava doente, que piorou e fi cou em agonia. Nada me disse e eu nada percebi.

Domenico (a Alfredo) Tu também não sabes nada? Tu tam-bém não sabias que a agonia era fi ngida?

Alfredo Dom Domenico, por amor da Virgem Santíssima! Aquela, a Dona Filumena, não pode comigo, e agora ia fazer--me confi dências, a mim?

Rosalia (a Domenico) E o padre?… O padre, quem me mandou ir chamá -lo? Não foi você?

Domenico Porque esta… (Mostra Filumena.) queria chamá--lo. E eu para a contentar…

Filumena Porque nem querias acreditar que eu ia para o outro mundo. Nem cabias em ti de contente a pensar que fi nalmente te vias livre de mim!

Domenico (trocista) Boa! Já percebi! E quando o padre, depois de falar contigo, me veio dizer: «Case -se com ela in

extremis, pobre mulher, é o seu único desejo; Complete este vínculo com a bênção do Senhor»… Eu disse…

Filumena «O que tenho eu a perder? Aquela está a morrer. Mais umas horas e sai da minha vida.» (Irónica.) Ficou mal-disposto, o Dom Domenico, quando assim que saiu o padre eu me levantei da cama e lhe disse: «Dom Domenico, muitos parabéns: somos marido e mulher!»

Rosalia Eu ia caindo ao chão! E deu -me cá uma vontade de rir! (Ri -se mais.) Santo Jesus meu, fez tão bem a doença toda.

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Alfredo E também a agonia!Domenico Vocês estejam calados, senão quem vos dá a agonia

sou eu! (Excluindo qualquer probabilidade de fraqueza da sua

parte.) Não pode ser, não pode ser! (De repente, lembrando-

-se de outra personagem que na sua opinião poderia ser o

único responsável.) E o médico? Claro, que grande médico!… Donde lhe terá vindo tanta ciência? É médico e não deu por que ela estava boa, e que estava era a tomá -lo por parvo?

Alfredo Cá para mim, ele deve -se ter enganado.Domenico (com desprezo) Está calado, Alfredo. (Decidido.)

O médico vai pagá -las! Ele vai pagá -las, tão certo como haver Deus. Porque ele estava combinado com ela, não pode estar de boa -fé. (A Filumena, com maldade.) Também comeu, não foi?… Deste -lhe dinheiro…

Filumena (enojada) Disso é que percebes tu: dinheiro! Com dinheiro apanhaste tudo o que quiseste! Até me apanhaste a mim com dinheiro! Porque tu eras Dom Mimi Soriano: os melhores alfaiates, os melhores camiseiros… os teus cavalos corriam: tu fazia -los correr… mas Filumena Marturano fez--te correr a ti! E correste sem perceber… e ainda tens de correr, ainda tens de penar muito para perceberes como vive e como procede um cavalheiro! O médico não sabia de nada. Também acreditou, e tinha mesmo de acreditar! Qualquer uma, ao cabo de passar vinte e cinco anos contigo, está em agonia. Fui tua criada! (A Rosalia e a Alfredo.) Servi--lo, foi o que fi z durante vinte e cinco anos, e vocês sabem muito bem. Quando ele saía para se divertir, Londres, Paris, as corridas, eu cá fazia de guarda: da fábrica de Forcella, da das Vergini e nas lojas de Toledo e de Foria, porque senão os empregados comiam -no vivo! (Imitando um tom hipó-

crita de Domenico.) «Se não te tivesse a ti…», «Filumena, tu és uma grande mulher!» Tratei -lhe da casa melhor do

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que se estivesse casada! Lavei -lhe os pés! E não agora que estou velha, mas quando era rapariga. E nunca ao pé dele me senti apreciada e reconhecida, nunca! Fui sempre tra-tada como uma criada que de um momento para o outro se pode pôr na rua!

Domenico E eu nunca te vi submissa, sei lá!, compreensiva, no fundo, da situação real que existia entre mim e ti. Sem-pre de má cara, agressiva… que nos faz pensar: «Fiz alguma coisa?… Que mal é que eu lhe fi z?» Nunca vi uma lágrima sair daqueles olhos! Nunca! Nestes anos todos que estive-mos juntos, nunca a vi chorar!

Filumena Havia de chorar por ti? Era só o que faltava.Domenico Deixa lá o que falta ou não falta. Uma alma

penada, sem ter paz, nunca. Uma mulher que não chora, que não come, que não dorme. Também nunca te vi dormir. Uma alma penada, isso sim.

Filumena E quando querias ver -me a dormir, tu? O caminho de casa, tu esqueceste -o. As melhores festas, os melhores natais, passei -os sozinha que nem um cão. Sabes quando se chora? Quando se conhece o bem e não se pode tê -lo! Mas Filumena Marturano, o bem não o conhece… E quando se conhece só o mal, não se chora. A satisfação de chorar, Filumena Marturano nunca pôde tê -la! Como a última das mulheres me trataste, sempre! (A Rosalia e a Alfredo,

únicas testemunhas das sacrossantas verdades que diz.) E não falo de quando ele era jovem, que ainda se podia dizer: «Tem dinheiro, tem presença…» Mas agora, por último, com cin-quenta e dois anos, aparece com os lenços sujos de batom, que até metem nojo… (A Rosalia.) Onde estão?

Rosalia Estão guardados. Filumena Sem nenhuma prudência, sem pensar: «É melhor

ver -me livre disto… Se ela os encontra?» Pois sim, se ela os

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encontra, o que é que faz? Quem é ela? Que direitos tem? E deixa -se fi car agarrado à outra…

Domenico (como que apanhado em falso, reage furioso) A outra quem?… A outra quem?

Filumena (nada intimidada, com violência maior do que Dome-nico) Agarrado àquela nojenta! O que julgas tu, que eu não tinha percebido? Tu não sabes mentir, é esse o teu defeito. Aos cinquenta e dois anos, permite -se andar metido com uma rapariga de vinte e dois! Não tem vergonha! E mete -a cá dentro de casa, dizendo que era a enfermeira… Por isso é que lhe convinha que eu estivesse a morrer… (Como se contasse uma coisa incrível.) E não foi senão há uma hora, antes que chegasse o padre para nos casar, julga-vam que eu estava para dar a alma a Deus e que não via, que ao pé da minha cama se abraçavam e beijavam! (Com um

irreprimível sentimento de náusea.) Virgem Santa… Como me metes nojo! Se eu estivesse mesmo a morrer, tu irias fazê--lo? Pois, eu a morrer e a mesa posta (Aponta a mesa.) para comerem, ele e a sentinela à morta.

Domenico Mas então, lá por tu morreres eu nunca mais poderia comer? Não havia de me alimentar?

Filumena Que rosas puseste na mesa?Domenico Que rosas pus na mesa!Filumena VermelhasDomenico (exasperado) Vermelhas, verdes, roxas. Mas por-

quê, eu já não era senhor de as pôr? Não era senhor de fazer aquilo de que gosto por tu estares a morrer?

Filumena Mas eu não estou morta! (Implicativa.) Nem estou para morrer agora, Domenico.

Domenico Esse é o pequeno contratempo. (Pausa.) Mas eu não consigo perceber. Sim, tu trataste -me sempre como aos outros todos, porque, na tua opinião, os homens são todos

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iguais. Então por que raio te importava casares comigo? E se eu me apaixonasse por outra mulher e me quisesse casar com ela… E caso -me, porque com Diana me caso mesmo, o que importa se tem ou não tem vinte e dois anos?

Filumena (irónica) Dás -me cá uma vontade de rir! E como me metes dó! Mas o que me importa de ti, da miúda que te fez perder a cabeça e de tudo o que tu dizes? Mas tu julgas mesmo que eu o fi z por ti? Eu não quero saber de ti, nem nunca quis. Uma mulher como eu, disseste -me tu e andas a dizer há vinte e cinco anos, faz as suas contas. Convém--me… Tu convéns -me! Julgavas que ao cabo de vinte e cinco anos em que fi z de escrava ao pé de ti, me ia embora assim, com uma mão à frente e outra atrás?

Domenico (com ar triunfante, julgando ter compreendido a

razão oculta da partida de Filumena) Dinheiro! E eu não to dava? Na tua opinião, Domenico Soriano, fi lho de Rai-mondo Soriano (Em tom altivo.) um dos mais importantes e honestos pasteleiros de Nápoles, não iria tratar de te pôr casa, e te deixaria passar alguma necessidade?

Filumena (ofendida com a incompreensão, com desprezo) Está mas é calado! Será possível que vocês homens nunca perce-bam nada de nada?… Qual dinheiro, Domenico? Goza -te lá do teu dinheiro com boa saúde. É outra coisa que quero de ti… e que tu me dás! Tenho três fi lhos, Domenico!

Domenico e Alfredo fi cam estupefactos. Rosalia, pelo

contrário, permanece impassível.

Domenico Três fi lhos?! Filumena, o que estás tu a dizer?Filumena (maquinalmente repete) Tenho três fi lhos, Dome-

nico!Domenico (desorientado) E… de quem são fi lhos?Filumena (a quem não escapou o temor de Domenico, fria-

mente) De homens como tu!

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Domenico Filumena… Filumena, tu estás a brincar com o fogo! O que quer dizer: «de homens como tu»?

Filumena Porque vocês são todos iguais.Domenico (a Rosalia) Você sabia?Rosalia Sim senhor, isto sabia.Domenico (a Alfredo) E tu?Alfredo (a desculpar -se prontamente) Não. Dona Filumena

odeia -me, como eu lhe disse.Domenico (ainda não convencido da realidade dos factos,

como que para consigo mesmo) Três fi lhos! (A Filumena.) E quantos anos têm?

Filumena O mais velho tem vinte e seis anos. Domenico Vinte e seis anos?Filumena Não faças essa cara! E não tenhas medo: não são

teus fi lhos.Domenico (bastante aliviado) E conhecem -te? Falam -se,

sabem que és mãe deles? Filumena Não. Mas vejo -os muitas vezes e falo -lhes.Domenico Onde estão? O que fazem? De que vivem?Filumena Do teu dinheiro!Domenico (surpreendido) Do meu dinheiro? Filumena Eh, sim, do teu dinheiro. Fui -te roubando! Rou-

bava -te dinheiro da carteira! Roubava -o mesmo à frente dos teus olhos.

Domenico (com desprezo) Gatuna! Filumena (imperturbável) Roubei -te! Tirava -te roupa, sapa-

tos! E tu nunca deste por nada! Aquele anel com o brilhante, lembras -te? Eu disse -te que o tinha perdido: mas vendi -o. Com o teu dinheiro, criei os meus fi lhos.

Domenico (enojado) Eu tinha uma gatuna dentro de casa! Mas que mulher és tu?

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Filumena (como se não tivesse ouvido, prossegue) Um tem uma ofi cina aqui na rua ao lado: é latoeiro.

Rosalia (que nem quer acreditar no que ouve) Canelazador…Domenico (que não percebeu) O quê? Rosalia (tentando pronunciar bem a palavra) Canalizador.

Como se diz: arranja as torneiras, põe os repuxos a funcio-nar… (Depois, aludindo ao segundo fi lho.) O outro… como se chama? (Lembrando -se de repente do nome.) Riccardo. Como é bonito! Um rapagão perfeito! Vive em Chiaia, tem uma loja no número setenta e quatro, é camiseiro… faz camisas. E tem uma boa clientela. A seguir, Umberto…

Filumena Estudou, quis estudar. É contabilista e até escreve no jornal.

Domenico (irónico) Nem sequer falta um escritor na família! Rosalia (exaltando os sentimentos maternos de Filumena)

E como foi boa mãe! Nunca lhes deixou faltar nada! E eu que não tarda nada me vou embora, sou velha e terei de me encontrar, o mais depressa possível, na presença do Ser Supremo que tudo vê, considera e perdoa, e não se deixa levar por conversas… Desde quando eram pequeninos, de fraldas, nunca lhes deixou faltar o leite…

Domenico … Com o dinheiro do Dom Domenico!Rosalia (espontânea, com instintivo sentido de justiça) Você

só estragava o dinheiro! Domenico E tinha de dar contas a alguém?Rosalia Não senhor, graças a Deus! Mas você nem deu por

isso…Filumena (com desprezo) Não lhe ligue! Ainda lhe dá resposta?Domenico (dominando os seus nervos) Filumena, tu à viva

força queres dar cabo de mim? Estamos a passar dos limites! Mas tu não percebes o que fi zeste? Reduziste -me e tratas -me como a um palhaço! Resumindo, estes três senhores, que eu

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não conheço nem de perto nem de longe, que não sei donde saíram, pouco falta para se rirem na minha cara! Porque pensam: «Boa -vai -ela, com o dinheiro do Dom Domenico!»

Rosalia (excluindo esta hipótese) Não senhor, isso não! O que podem eles saber?… Dona Filumena fez sempre as coisas como devia ser: com prudência e de cabeça no seu lugar. Pelo notário entregou o dinheiro ao canalizador, quando abriu a loja aqui ao lado, dizendo que era uma senhora que não se queria dar a conhecer… E o mesmo fez com o camiseiro. E o notário tem a incumbência de entregar a Umberto a mensalidade para os estudos. Não, não… Você não tem nada a ver com isto.

Domenico (amargo) Eu só paguei!Filumena (num repente imprevisto) E havia de matá -los?…

Era o que eu devia fazer, hem, Domenico? Devia matá -los como fazem tantas outras mulheres? Então sim, então Filu-mena já teria feito bem? (Insistindo.) Responde!… Era o que me aconselhavam todas as minhas companheiras lá em cima… (Alude ao lupanar.) «Estás à espera de quê? Livra -te dessa chatice!» (Consciente.) Livrava -me da chatice! E quem é que podia viver com um remorso daqueles? E depois falei com a Nossa Senhora. (A Rosalia.) À Virgem das Rosas, lembra -se?

Rosalia Claro que sim, a Virgem das Rosas! Ela todos os dias faz um milagre!

Filumena (evocando o seu encontro místico) Passavam três horas da meia -noite. Eu ia sozinha pela rua fora. Já tinha saído de casa há seis meses. (Aludindo à sua primeira sen-

sação de maternidade.) Era a primeira vez! O que faço? A quem vou contar? Ouvia dentro da cabeça as vozes das minhas companheiras: «Estás à espera de quê? Livra -te da chatice! Eu conheço um que é bom…» Sem querer, fui

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andando, andando, até dar comigo na minha rua, diante do nicho da Virgem das Rosas. Enfrentei -a assim (Leva as mãos

às ancas e eleva o olhar para uma efígie imaginária, como se

falasse com a Nossa Senhora de mulher para mulher.) «O que hei -de fazer? Tu sabes tudo… Até sabes porque me encon-tro no pecado. O que hei -de fazer?» Mas ela, bico calado, não respondia. (Excitada.) «Ouve lá, é assim que tu fazes? Quanto menos falas, mais a gente acredita em ti?… Estou a falar contigo! (Com vibrante arrogância.) Responde!» (Fazendo maquinalmente o tom de voz de alguém que lhe é

desconhecido e que, naquele momento, falou de ignota pro-

veniência.) «Os fi lhos são fi lhos!» Fiquei gelada. Deixei -me estar assim, quieta. (Rígida, fi xando a efígie imaginária.) Se calhar, se me tivesse voltado, veria ou perceberia donde tinha vindo a voz: de dentro de alguma casa com a varanda aberta, da rua ao lado, do alto de uma janela… Mas pensei: porquê logo neste momento? O que sabe esta gente da minha vida? Então foi Ela… Foi a Virgem Santíssima! Viu -se interpelada assim, tu cá tu lá, e quis falar… Mas, então, a Senhora para falar serve -se de nós… E quando me disseram: «Livra -te da chatice!», também foi Ela a dizer -me para me pôr à prova!… E não sei se fui eu ou a Virgem das Rosas que fez assim as coisas! (Faz um sinal com a cabeça como que a dizer: «Sim,

percebeste.») «Os fi lhos são fi lhos!» E jurei. Por isso é que fi quei tantos anos contigo… Por eles suportei tudo o que tu me fi zeste e como me trataste! E quando aquele jovem se apaixonou por mim, que até queria casar -se comigo, lembras -te? Já estávamos juntos há cinco anos, tu casado, em tua casa, e eu em San Putito, naquele apartamento de três assoalhadas e cozinha… a primeira casa em que me puseste quando, ao fi m de nos conhecermos há quatro anos, fi nal-mente me tiraste de lá de cima! (Alude ao lupanar.) E queria

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casar -se comigo, o pobre rapaz… Mas tu encheste -te de ciú-mes. Ainda me soa nos ouvidos: «Eu já sou casado, não posso desposar -te. Mas se esse tal se casar contigo…» E puseste -te a chorar. Porque tu sabes chorar, tu… Exactamente o contrário de mim: tu és capaz de chorar. E eu disse cá para mim: «Está bem, é este o meu destino! Domenico gosta de mim, mas com toda a sua boa vontade não se pode casar comigo; é casado… Então fi quemos lá em San Putito, naquele apartamento!» Mas depois, passados dois anos, a tua mulher morreu. O tempo passava… e eu sem sair de San Putito. Eu pensava: «Ele ainda é jovem, não se quer prender por toda a vida a outra mulher. Há -de chegar a altura em que se acalma e considera o sacrifício que fi z!» E eu esperava. E quando às vezes dizia: «Domenico, sabes quem é que se casou?… Aquela rapariga que estava ali em frente, sempre por trás da janela…», tu rias -te, punhas -te a rir, tal e qual como quando subias, com as tuas amigas, lá em cima onde estive eu, antes de San Putito. Aquela risada que não é verdadeira. Aquela risada que começava a meio das escadas… Aquela risada que é sempre a mesma, seja quem for que a faz! Apetecia -me matar -te, quando te rias assim! (Paciente.) E esperámos. E eu esperei vinte e cinco anos! Sem-pre à espera do milagre de Dom Domenico! Agora já tem cin-quenta e dois anos: é velho! E então? Maldito seja, que se julga sempre um jovenzinho! Corre atrás das garotas, lambuza -se todo, traz os lenços borrados de batom, mete -ma dentro de casa! (Ameaçadora.) Metes -ma cá dentro de casa, agora que sou tua mulher. Mas eu corro contigo e com ela. Nós estamos casados. O padre casou -nos. Esta é a minha casa!

Toca a campainha lá dentro. Alfredo sai pelo fundo, à

direita.

Domenico Tua casa? (Ri -se com forçada ironia.) Agora és tu que me dás vontade de rir a mim!

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Filumena (provocando -o, com perfídia) Ri -te, ri -te… Agora até já me dá gosto ouvir -te rir… Porque tu já nem sabes rir. Alfredo regressa, olha para todos um por um, preocupado

com o que tem para dizer.

Domenico (dando por ele, apostrofa -o grosseiramente) O que queres tu?

Alfredo Eh… O que quero?… Vieram trazer a ceia.Domenico Mas então, vocês acham que eu não havia de comer? Alfredo (como que para dizer «não é comigo») Eh… Dom

Domenico! (Falando para o fundo à direita.) Tragam lá isso! Entram dois Carregadores, moços de um restaurante, que

trazem uma lancheira e um cesto com a comida.

Primeiro Carregador (subserviente) Aqui está o jantar! (Para

o outro.) Põe aqui. (Pousa o cesto no chão, no ponto indicado

pelo moço.) Meu senhor, o frango é só um porque é grande e dá para saciar até quatro pessoas. Tudo o que nos encomen-dou é de primeira qualidade. (Apressa -se a abrir a lancheira.)

Domenico (detendo o moço com um gesto irritado) Ouve lá, sabes o que é o melhor que tens a fazer? É pores -te a andar.

Primeiro Carregador Sim senhor, sim senhor. (Tira do

cesto um doce e põe -no em cima da mesa.) Este é o doce de que a menina gosta muito… (E pondo também uma gar-

rafa.) E este é o vinho. (As palavras do moço caem no mais

profundo silêncio. Mas o homem não se dá por vencido: con-

tinua a falar. Desta vez para pedir qualquer coisa, em tom

melífl uo.) E… não se lembra? Domenico De quê? Primeiro Carregador Como? Quando foi hoje encomen-

dar o jantar, não se lembra? Eu perguntei -lhe se tinha umas calças velhas. E o senhor disse: «Aparece esta noite, e se logo acontecer uma coisa que eu cá sei, se eu tiver uma boa notícia, tenho um fato novinho, vou buscá -lo e ofereço -to!»

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(O silêncio dos outros é sombrio. Pausa. O Carregador fi ca

ingenuamente contrariado.) Não aconteceu a coisa de que falou o senhor? (Aguarda a resposta. Domenico mantém -se

calado.) Não teve a tal boa notícia?Domenico (agressivo) Já te disse, põe -te a andar! Primeiro Carregador (espantado com o tom de Domenico)

Estamos já de saída… (Olha mais uma vez para Domenico,

e depois diz com tristeza.) Vamos, Carlo, afi nal não teve a tal boa notícia… Azar o meu! (Suspira.) Bom serão! (Sai pelo

fundo, à direita, seguido pelo companheiro.) Filumena (após uma pausa; sarcástica, a Domenico) Come!

O que tens, não comes? Passou -te o apetite? Domenico (atrapalhado, furioso) Já como! Mais logo, como

e bebo! Filumena (aludindo à jovem de que se falou pouco antes) Sim:

quando chegar a sentinela à morta. Diana (entra pela sala comum. É uma bela jovem de vinte e dois

anos, ou melhor, esforça -se por parecer de vinte e dois mas na

realidade tem vinte e sete. É de uma elegância afectada, um

tanto snobe. Olha toda a gente de cima para baixo. Cami-

nhando, fala um pouco com todos, sem se dirigir a nenhum

dos presentes, que demonstra desprezar em bloco. Por isso,

não dá pela presença de Filumena. Traz um pacote de medi-

camentos que coloca maquinalmente em cima da mesa. Tira

das costas de uma cadeira uma bata branca de enfermeira e

veste -a.) Tanta gente, tanta gente na farmácia. (Autoritá-

ria, com modos de patroa.) Rosalia, prepare -me um banho. (Repara nas rosas em cima da mesa.) Oh, rosas vermelhas! Obrigada, Domenico. (Sentindo o cheiro da comida.) Que cheirinho: estou cá com um apetite. (Tirando da mesa uma

caixa de ampolas.) Arranjei a cânfora e a adrenalina. Oxigé-nio, nada. (Domenico está como que fulminado. Filumena

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nem pestaneja: aguarda. Rosalia e Alfredo estão quase

divertidos. Diana senta -se ao lado da mesa virada para o

público e acende um cigarro.) Estava a pensar: se… meu Deus, não queria usar a palavra, mas agora… se morrer esta noite, amanhã de manhã vou -me embora cedinho. Arranjei boleia no carro de uma amiga. Aqui só fi cava a incomodar. Em Bolonha, pelo contrário, tenho certas coisas a fazer, uns negócios meus para tratar. Volto daqui a dez dias. Virei visitá -lo, Domenico. (Aludindo a Filumena.) E… como está ela?… Ainda em agonia?… Já veio o padre?

Filumena (dominando -se com afectada cortesia, aproxima -se

lentamente da jovem) O padre já veio… (Diana, apa-

nhada de surpresa, levanta -se e recua uns passinhos.) e cando viu qu’eu ‘tava em agoniação… (Felina.) Tira a bata!

Diana (que realmente não compreendeu) Como?Filumena Tira a bata!Rosalia (compreende que Diana ainda não percebeu e, para

evitar o pior, aconselha -a, prudente) Tire isso. (E com dois

dedos sacode a sua própria blusa para que, fi nalmente, Diana

possa perceber a alusão de Filumena à bata de enfermeira.) Diana, com um temor instintivo, despe a bata.

Filumena (que seguiu o gesto de Diana sem tirar os olhos dela) Põe -na em cima da cadeira… Põe -na em cima da cadeira!

Rosalia (prevendo a incompreensão de Diana) Ponha -a na cadeira.

Diana obedece.

Filumena (retoma o anterior tom cortês) Viu que eu ago-niava e aconselhou Dom Domenico Soriano a aperfeiçoar o vínculo em extremos. (Alude ao padre. Diana, para não

perder a compostura, não sabendo o que fazer, tira do cen-

tro de mesa uma rosa e fi nge aspirar o perfume. Filumena

fulmina -a com o tom opaco da sua voz.) Larga a rosa!

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Rosalia (prontamente) Largue a rosa. Diana, como que obedecendo a uma ordem teutónica, volta

a colocá -la na mesa.

Filumena (volta a ser cortês) E Dom Domenico achou bem porque pensou: «Está certo, esta desgraçada esteve comigo vinte e cinco anos…» e muitas outras consequências e des-consequências que nós não temos o dever de lhe explicar. Veio ele até junto da cama (Sempre aludindo ao padre.) e casámo -nos… Com duas testemunhas e a bênção do sacer-dote. Serão os casamentos que fazem bem, a verdade é que me senti logo muito melhor. Levantei -me e adiámos a morte. Naturalmente, onde não há enfermos doentes não são pre-cisos enfermeiros… nem as porcarias… (Com o indicador

da mão direita dá a Diana leves empurrões no queixo que

obrigam a rapariga a dizer repentinos e involuntários «Não»

com a cabeça.)… as nojices… (Repete o gesto.) à frente de uma infeliz que está a morrer… Porque tu sabias que eu estava a morrer… e tu vai mas é para a casa da tua mana! (Diana sorri como uma imbecil, como se dissesse: «Não a

conheço.») Vá pelos seus pezinhos procurar outra casa que não esta.

Diana (continuando a rir, recua até ao limiar da entrada) Está bem.

Filumena Se realmente quiser estar mesmo bem, pode ir lá para cima, para onde eu estive… (Alude ao lupanar.)

Diana Onde?Filumena Pergunte ao Dom Domenico, que essas casas ele

frequentou e ainda frequenta. Vá -se daqui.Diana (dominada pelo olhar escaldante de Filumena, quase

tomada por um súbito orgasmo) Obrigada. (Dirige -se para

o fundo, à direita.) Filumena Não tem de quê. (E volta para o seu lugar, à esquerda.)

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Diana Boa noite. (Sai.) Domenico (que até esse momento esteve pensativo, absorto em

estranhas elucubrações, aludindo a Diana, dirige -se a Filu-mena) Porque é que a trataste assim?

Filumena É como ela merece. (Faz um gesto de desprezo.)Domenico Mas vamos lá ouvir uma coisa. Tu és uma diaba…

Contigo uma pessoa tem de estar sempre de olhos bem abertos… As tuas palavras, temos de as recordar, têm de ser bem pesadas. Agora é que te conheço. És como uma carun-cha. Uma caruncha venenosa que onde se mete destrói. Tu há bocadinho disseste uma coisa que agora me faz pensar. Tu disseste: «… E há outra coisa que quero de ti… e vais dar -ma!» Dinheiro não é, porque sabes que eu to daria… (Como que obcecado.) O que mais queres tu de mim? O que é que se te meteu na cabeça? Fiquei a pensar nisso, e ainda não mo disseste… Responde!

Filumena (com simplicidade) Domenico, conheces aquela canção? (Esboça a música com alusão.) «Estou a criar um belo pintassilgo… Tantas coisas que tem de aprender»…

Rosalia (elevando os olhos ao céu) Ah, Virgem Santa! Domenico (cauto, suspeitoso, pávido, para Filumena) O que

signifi ca?Filumena (precisa) O pintassilgo és tu!Domenico Filumena, fala claro… Pára de gozar comigo…

Até me fazes febre, Filumena…Filumena (séria) Os fi lhos são fi lhos!Domenico O que queres dizer?Filumena Têm de saber quem é a mãe… Têm de saber o que

ela fez por eles… Têm de gostar de mim! (Fervorosa.) Não têm de se sentir mal ao pé dos outros homens: não têm de se sentir humilhados quando vão pedir qualquer papel, qual-quer documento: a família, a casa… a família que se reúne

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para um conselho, para um desabafo… têm de se chamar como eu!

Domenico Como eu o quê?Filumena Como me chamo eu… Estamos casados: Soriano!Domenico (abalado) Eu já tinha percebido! Mas queria

ouvi -lo de ti… Queria ouvi -lo dessa boca sacrílega, para me capacitar de que, mesmo que corra contigo a pontapé, mesmo que te corte a cabeça, é como se a cortasse a uma ser-pente: uma serpente venenosa que se destrói para libertar-mos os pobres cristãos que caiam no seu engodo. (Aludindo

ao plano de Filumena.) O quê, o quê? Dentro da minha casa? Com o meu nome? Esses fi lhos de…

Filumena (agressiva, para o impedir de pronunciar a palavra) De quê?

Domenico Teus!… Se me perguntas «de quê?», só te posso responder «teus!». Se me perguntas «de quem?», não te posso responder, porque não sei! Nem tu sabes! Ah!, jul-gavas que ias arrumar o assunto, fi car em paz com a cons-ciência, e que te salvavas do pecado metendo na minha casa três estranhos?… Mais valia perder a luz dos meus olhos! Cá dentro é que não metem os pés! (Solene.) Pela alma de…

Filumena (de repente, com um impulso sincero, interrompe -o

para o prevenir de um castigo que lhe podia advir de um

sacrilégio cometido por causas imponderáveis) Não jures! Eu cá, por ter feito um juramento, ando a pedir -te esmola há vinte e cinco anos… Não jures porque é um juramento que não podes manter… E que morras condenado se um dia não tiveres de me pedir esmola tu a mim…

Domenico (impressionado com as palavras de Filumena,

como se perdesse o domínio da situação) O que mais estás tu a pensar?… Grande bruxa que és! Mas eu não te temo! Não me metes medo!

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Filumena (desafi ando -o) Então porque é que o dizes?Domenico Está calada! (A Alfredo, tirando o pijama.)

Dá -me o casaco! (Alfredo sai para o «escritório» sem falar.) Amanhã vais -te embora! Vou ter com o advogado, processo--te. Foi uma cilada. Tenho testemunhas… E se a lei não me der razão, mato -te, Filumena! Ponho -te fora deste mundo!

Filumena (irónica) E onde me pões? Domenico Onde tu estavas! (Está exasperado, ofensivo.

Regressa Alfredo, trazendo o casaco. Domenico arranca-

-lho da mão, dizendo -lhe.) Tu amanhã vais chamar o meu advogado, sabes quem é?… (Alfredo acena que sim com a

cabeça.) E então falamos, Filumena!Filumena Então falamos.Domenico Vou -te mostrar quem é Domenico Soriano e de

que material é feito. (Dirige -se para o fundo.)Filumena (indicando a mesa) Rosalia, senta -te… que tu tam-

bém deves ter fome! (Senta -se à mesa, de frente para o

público.) Domenico Passa muito bem… Filumena napolitana!Filumena (cantarolando) «Estou a criar um belo pintassilgo»…Domenico (ao cantarolar de Filumena, ri -se, trocista, no

intuito de escarnecer e de ultrajar voluntariamente Filu-mena) Lembra -te sempre desta risada… Filumena Martu-rano!… (E sai, seguido por Alfredo, pelo fundo, à direita,

enquanto cai o pano sobre o primeiro acto.)

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