Filosofia Ou Filosofias

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Filosofia ou Filosofias? Perguntar-se sobre o que é a filosofia é uma questão complexa, porque o conteúdo mesmo da filosofia mudou ao longo do tempo. Nos anos oitenta do século passado, por exemplo, na Europa, e especialmente na França, nasceu uma escola filosófica chamada de Nouveaux Philosophes, cuja figura mais relevante é a figura do filósofo B. H. Lévy. Trata-se de um grupo de pensadores que unem o interesse político e prático ao interesse teórico. Eles imitam o modelo de filósofo que, pela primeira vez, o filósofo francês Jean Paul Sartre interpretou na França, no século vinte. Pelo contrário, na Inglaterra, assim como na Rússia, China ou Japão, o filósofo é, sobretudo, um lógico e um filósofo da ciência. Qual é a razão de a filosofia ter conteúdos e interesses tão diferentes? Temos duas tentativas de resposta, a primeira está relacionada ao homem que faz filosofia; a segunda à filosofia em si mesma. Em primeiro lugar, é propensão do ser humano aceitar idéias que circulam no lugar onde foi criado e rejeitar aquelas que vêm de fora. Com a filosofia, as tendências locais também são dominantes. Filósofos educados nas universidades britânicas não são, em geral, simpáticos à filosofia francesa, que consideram pretensiosa, obscurantista e vazia. Apesar disso, não é assim que os filósofos educados na França a enxergam. Assim, está claro que os aspectos locais influenciam a impressão dos filósofos sobre o que é

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Filosofia ou Filosofias?

Perguntar-se sobre o que é a filosofia é uma questão complexa, porque o

conteúdo mesmo da filosofia mudou ao longo do tempo. Nos anos oitenta do século

passado, por exemplo, na Europa, e especialmente na França, nasceu uma escola

filosófica chamada de Nouveaux Philosophes, cuja figura mais relevante é a figura do

filósofo B. H. Lévy. Trata-se de um grupo de pensadores que unem o interesse político e

prático ao interesse teórico. Eles imitam o modelo de filósofo que, pela primeira vez, o

filósofo francês Jean Paul Sartre interpretou na França, no século vinte. Pelo contrário,

na Inglaterra, assim como na Rússia, China ou Japão, o filósofo é, sobretudo, um lógico

e um filósofo da ciência.

Qual é a razão de a filosofia ter conteúdos e interesses tão diferentes? Temos

duas tentativas de resposta, a primeira está relacionada ao homem que faz filosofia; a

segunda à filosofia em si mesma. Em primeiro lugar, é propensão do ser humano aceitar

idéias que circulam no lugar onde foi criado e rejeitar aquelas que vêm de fora. Com a

filosofia, as tendências locais também são dominantes. Filósofos educados nas

universidades britânicas não são, em geral, simpáticos à filosofia francesa, que

consideram pretensiosa, obscurantista e vazia. Apesar disso, não é assim que os

filósofos educados na França a enxergam. Assim, está claro que os aspectos locais

influenciam a impressão dos filósofos sobre o que é a filosofia.1 Talvez possamos

encontrar um esboço de resposta levantada no começo também remontando à origem do

termo filosofia. “Filosofia” é um termo composto, mas isso não é uma característica

apenas do termo “filosofia”. Na língua grega existem muitas palavras compostas.

Filosofia é composta de philos, um prefixo extremamente complicado para traduzir,

porque carrega certa ambivalência e pode assumir sentidos diferentes em diferentes

contextos. A tradução mais comum de philos e philia é amigo, amizade, mais a palavra

pode indicar também o amante. Com efeito, o termo philia, na língua grega, tem uma

multiplicidade de sentidos: a partir do amor mais apaixonado pela pessoa amada, até

indicar a relação entre dois colegas de trabalho ou de comércio. Em conjunção com

outro termo, a palavra philos indica uma paixão, um desejo por uma coisa. O filósofo,

então, é um apaixonado pela sophia. Por sophia não se entende apenas o conhecimento

científico, mas o saber num sentido mais amplo. Assim, pode ser designado como

sophia o saber necessário a um artífice, por exemplo, um carpinteiro. Da mesma forma,

1 BAGGINI, 2008, p. 157-158.

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filosofia é também o conhecimento correspondente à moderna ciência e os

conhecimentos práticos relativos a habilidades artísticas em particular. Filosofia

significa, antes de tudo, o empenho para alcançar o conhecimento em geral. Nos séculos

VI-V a.C., ainda não se fazia nítida a distinção entre a filosofia e as diversas ciências, de

tal sorte que a matemática, a física, a cosmologia, a astronomia eram todas constitutivas

da filosofia. Paralelamente, o pensamento filosófico revestia-se de um aspecto prático,

enquanto era também conhecimento da vida correta, virtuosa e justa. Somente na

filosofia grega clássica começou-se a distinguir entre metafísica ou filosofia primeira,

como a chama Aristóteles, filosofia da natureza ou física, lógica, ética ou filosofia

prática em geral, incluindo também a política.

O filósofo, então, é um apaixonado pelo saber em geral, entendido como

conjunto sistemático e racional de conhecimento sobre o mundo e o homem, ao passo

que o sophos é o sábio. Sábio é aquele que conhece verdadeiramente a realidade, e pode

ser também aquele que sabe conduzir a sua própria vida de uma maneira virtuosa e feliz,

quem sabe praticar o bem. Enfim, sophos é quem sabe, quem conhece, filosofo é uma

pessoa apaixonada pelo saber e pela sabedoria. Para usar uma terminologia mais atual, o

filósofo da época antiga é um intelectual, o apaixonado pela ciência e pelas artes

liberais. Não é que o filósofo não consegue chegar ao saber, mas o filósofo não se

contenta com a resposta obtida, vê que a sabedoria, a ciência é sempre maior do que ele

sabe. Filósofo é o amante do saber, da sapiência, da erudição, da cultura, uma pessoa

devotada às coisas do espírito e da inteligência. Os historiadores da filosofia afirmam

que a palavra filosofia possui uma data e um local de nascimento. Aparece pela primeira

vez num fragmento de Heráclito, recolhido e repetido pelo filósofo neo-platônico

Simplício. Simplício escreve mil anos depois de Heráclito. A Simplício devemos a

principal conservação dos fragmentos dos filósofos pré-socráticos.

O que denota tudo isso?

Isso indica que na Grécia antiga do século VII a.C. existe um grupo de

intelectuais que, numa época posterior, foram chamados de filósofos. Em outras

palavras, existem homens que foram chamados de filósofos muitos séculos depois do

nascimento da filosofia, mas eles mesmos, na época em que viveram, não sabiam que

eram filósofos: trata-se de intelectuais que, muitos anos depois, foram chamados de

filósofos pré-socráticos. Como dizer que os filósofos pré-socráticos dos séculos VI-V

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a.C. não sabiam que eram filósofos? O termo filosofia passa a existir, com certeza, na

época clássica, isto é, no século de Péricles.2

Ora, tudo isso é apenas uma parte da história do termo “filosofia”. Existe

também uma etimologia do termo, ou seja, um estudo da origem semântica da palavra

“filosofia”. A etimologia é atribuída ao filósofo Pitágoras de Samo, um filósofo do

século VI a.C. O problema com o estudo de Pitágoras é que o sentido que ele atribui à

palavra é diferente do sentido que vimos. Para Pitágoras, o filósofo não é um intelectual

apaixonado pelo saber e pela sabedoria. Na etimologia que Pitágoras atribui à palavra

ele põe uma oposição entre o filósofo e o sábio, entre o philosophos e o sophos.

Pitágoras teria dito ser a sabedoria plena (sophia) privilégio dos deuses, cabendo aos

homens apenas desejá-la, aproximar-se dela, ser seus amantes ou seus amigos, isto é,

filósofos. Filósofo é quem tem por fim a sabedoria total, mas nunca consegue chegar a

ela, pois apenas pode se aproximar.

A etimologia de Pitágoras, com certeza, é falsa. Por quê? Porque os antigos, pelo

medo de chocar os contemporâneos com ideias novas e transgressoras inventavam

novas palavras e novos sentidos de palavras já conhecidas e atribuíam a etimologia

delas a um pensador dos tempos antigos, pois as épocas antigas sempre são

consideradas épocas de maior sabedoria, nas quais os homens ficavam numa

proximidade maior com a divindade, então, sabiam mais. O antigo é sempre uma

autoridade legítima pelo simples fato de ser antigo. Quem atribuiu a Pitágoras a

etimologia da palavra filosofia no sentido de “aproximação ao saber”, isto é, “desejo de

saber em contraste com a sabedoria plena, que é privilégio dos deuses” foi Eraclide

Pontico, o mais religioso discípulo de Platão, o qual criou essa etimologia e a atribuiu à

Pitágoras pelo fato de este ser considerado uma autoridade na época antiga.

A conclusão dessa longa digressão é a seguinte: Sabemos que no século IV a.C.,

ou seja, na época de Platão, existem textos que testemunham um debate sobre o sentido

certo do termo filosofia. Na época de Sócrates, de Parmênides e de Empédocles (VI-V

séc. a.C.) ninguém se atribuiu o título de filósofo. A palavra filosofia, no sentido

comum do termo, depende de um debate que surgiu no século V, isto é, na época de

Platão, embora muito antes da época de Platão existissem intelectuais apaixonados pelas

ciências.

2 V-IV século a.C. O século de Péricles é a época que vai de 440 à 404 a.C. Chama-se de “século de Péricles”, mesmo que a temporada não dure cem anos.

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Da filosofia me defenda Deus, que dos inimigos me defendo eu!

Na época de Platão havia dois grupos de intelectuais: os oradores, que

praticavam a retórica como Isócrates, o fundador da mais célebre escola de retórica da

antiguidade, e os filósofos como Platão e os seus discípulos.

Nessa mesma época, a filosofia estava numa condição desfavorável do ponto de

vista político. O povo ateniense desconfiava da filosofia, por que a considerava

perturbadora da ordem pública.

No século V a.C., Atenas se coloca à frente de toda a Grécia. É um centro muito

vivo, para onde convergem aristocratas e famílias ricas que querem aprender. Essa

época, que vai de 440 até 404 a.C. é conhecida como “século de Péricles”, e é

caracterizada pelo governo democrático da cidade-estado (polis). A cultura é florescente

e isso faz com que se produzam mudanças na mentalidade dos cidadãos. Consolidaram-

se as tendências culturais que vinham sendo criadas e surgiram novas tendências, como

a dos Sofistas. No século de Péricles, em Atenas, a figura do sofista indica um grupo

social particular, isto é, os professores profissionais, que forneciam instrução aos jovens

aristocratas e davam mostra de eloquência em público mediante pagamento. A incrível

habilidade dos Sofistas de obter a benevolência do interlocutor, ou do ouvinte, e a

habilidade deles para persuadi-lo a aceitar o que eles asseveravam provocava uma

mescla de admiração, temor e desconfiança no povo.

O público ateniense sente-se ameaçado e preocupado pela mudança de

mentalidade e pelas novas tendências culturais que vinham sendo criadas e reagiu

instaurando processos contra os homens suspeitos. Normalmente a acusação era de

asebeia, isto é, impiedade, falta de devoção pela divindade tradicional.

Qual é a razão de essa acusação ser tão assustadora? A razão é que a presença

de homens ímpios numa cidade, ou seja, de homens que não tem fé na divindade,

provoca a raiva dos deuses e causa a vingança deles contra a cidade. Sem dúvida a

profissão de intelectual, de filósofo, de professor viajante, ou visitante, como se diria

hoje em dia, é uma profissão perigosa nessa época. Emblemático é o caso do filósofo

Sócrates, que foi acusado de asebeia, de desvirtuar os jovens com os seus ensinamentos

e foi condenado à morte. Isso quer dizer que, além de ser considerada uma prática inútil,

a filosofia é também temida quando parece ameaçar o sistema político. De fato, na

medida em que ela tem um papel eminentemente crítico, ela pode exercer um papel

eminentemente subversivo. Como conseqüência, ela pode alterar a ordem social e

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perturbar a política vigente. Basta ler a Apologia de Sócrates, um dos primeiros escritos

de Platão, para descobrir no diálogo entre Sócrates e os Sofistas um jogo ético, político

e pedagógico, uma crítica açulada e intransigente à face corrupta da sociedade

ateniense. O mestre de filosofia da juventude vivia em choque com alguns Sofistas, com

políticos e demagogos, porque ensinava aos homens a tomar consciência da situação

social e política na qual viviam. O que ele reputava ser mais útil do que ganhar cargos

públicos e suas vantagens é a resposta pessoal ao sentido da existência. Sócrates

ensinava a sentença escrita no Pórtico de Atenas: Homem acorda! Por isso ele foi

excluído do meio político, por causa da suas idéias subversivas e ameaçadoras, e foi

obrigado a tomar a cicuta.

O povo ateniense, em particular os políticos, temem quem faz com que as

pessoas raciocinem e discutam, quem faz com que as pessoas pensem.

Como Sócrates, os Sofistas também eram personagens suspeitos. No século de

Péricles, a palavra “sofista” era empregada sempre num sentido pejorativo por causa do

tipo específico de saber que os Sofistas ensinavam e pelo fato de os Sofistas serem

pagos. Entre as duas características, a mais perigosa, do ponto de vista político, é a

primeira, isto é, ensinar um tipo específico de saber; do ponto de vista filosófico, é a

segunda, pois para filósofos como Sócrates, Platão ou Aristóteles, e o mesmo pode-se

dizer para as escolas helenísticas, a filosofia é um fim a si mesma, e não é permitido que

ela seja tomada como um meio em vista de um fim ulterior como o ganho de dinheiro.

Então, os aristocratas atenienses achavam os Sofistas personagens ameaçadores,

pelo fato de serem peritos na arte reputada necessária aos membros de uma democracia,

a arte de argumentar e de persuadir. Isso significa que o sofista ensina a arte de ser

cidadão, dado que a arte de argumentar e de persuadir é decisiva para quem exerce a

cidadania numa democracia direta. A democracia ateniense é exatamente esse tipo de

sistema político, no qual as discussões e as decisões são tomadas publicamente,

vencendo, nelas, quem melhor souber persuadir os demais, sendo hábil e capcioso na

argumentação em favor da sua opinião e contra a do adversário.

A crítica dos oligarcas aristocráticos de Atenas contra todos os que exerciam

uma profissão como tal foi feroz. Eles temiam que as outras classes sociais, tornando-se

hábeis no manejo da palavra, pudessem dominar as assembléias e ganhar o consensus

gentium nas discussões que determinavam as votações, obtendo do júri votos contrários

aos interesses aristocráticos. O filósofo Platão e o mestre de retórica Isócrates acharam

importante defender a sua própria profissão, e se acusaram reciprocamente de praticar a

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sofística, o que era como dizer, de serem mercadores de mentiras, atletas da agonística

aplicada aos discursos.

Por isso, na reflexão filosófica seguinte surgirá a necessidade de saber o que, na

realidade, são a filosofia e o filósofo. Isócrates, para defender a sua própria escola de

oratória, acusa a filosofia, em particular aquela de Sócrates e, por conseguinte, de

Platão, de limitar-se à arte de dominar a palavra e as opiniões das pessoas, ensinando a

argumentar persuasivamente; ao passo que Platão defende a filosofia tentando persuadir

o povo ateniense de que ela é a busca real, a pesquisa sincera pela verdade. Enfim, o que

é, realmente, a filosofia?

A resposta a essa questão é importante para os pensadores da época clássica,

porque é fundamental defender o valor da filosofia em relação à crítica dos inimigos que

fazem desse ensinamento uma disciplina suspeita. Os inimigos da filosofia não são

apenas pessoas como Isócrates, que difama a filosofia para defender a sua própria obra

retórica. Um inimigo não menos ameaçador é a mentalidade comum, representada pelo

povo e pelos políticos de Atenas, os quais desconfiam não apenas da filosofia, mas

também da retórica e da oratória, pois o povo acredita que essas áreas de conhecimento

contenham algo obscuro.

A sofística e a oratória conseguem persuadir as pessoas de forma aparentemente

inexplicável. Por sua vez, a retórica é concebida como uma arma numa democracia

direita, na qual as decisões são tomadas em público e ganha quem melhor pode

persuadir. Enfim, o filósofo é um indivíduo suspeito e isso em particular na época de

Péricles, na qual a figura mais representativa do filósofo é Sócrates.

Ora, realmente a figura de Sócrates inspira desconfiança: Sócrates é um fulano

que perturba a vida dos cidadãos ricos e bem reputados de Atenas com perguntas fátuas

sobre a sabedoria, a justiça, a temperança, a santidade. Nunca satisfeito com as

respostas obtidas, ele insiste e inventa mais questões afastadas da vida prática e da

rotina dos negócios. A única tarefa que ele parece se atribuir é aquela de perturbar a

vida das pessoas. Narra Nícias, um dos personagens do diálogo platônico Laques, que

qualquer um que se aproxime de Sócrates e ponha-se com ele a raciocinar,

qualquer que seja o assunto a tratar, arrastado na espiral do discurso, é

inevitavelmente constrangido a ir adiante, até que chegue a dar conta de si, e a

dizer de que modo vive e de que modo viveu; e uma vez chegado a isto, Sócrates

não o deixa mais, enquanto não tiver discernido muito bem cada palavra.

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Ninguém lhe escapa. E qualquer infeliz que tenha o azar de encontrar Sócrates

uma segunda vez pode sofrer um choque ainda pior: “ele nos recorda que não temos

vivido e não vivemos como se deveria”, continua Nícias. Enfim, cada um que encontra

Sócrates é posto à prova por ele. Estando Sócrates presente, o discurso é determinado

não pelas notícias da cidade, pelo andamento econômico de Atenas, ou pela condição

meteorológica do tempo, mas por nós mesmos. Não é muito surpreendente que o povo

suspeite dos filósofos se for Sócrates o padrão. Além disso, Sócrates é uma pessoa que

não gosta da competição política. Essa conduta faz com que ele seja considerado uma

pessoa ainda mais suspeita, pois o leva a uma vida solitária, a preferir longas conversas

com restritos grupos de pessoas, a brigar com a esposa Xantipa e a descuidar dos seus

próprios filhos.

Seja tudo isso verdade ou verdade misturada à mentira, resta o fato de que a

filosofia, como nova forma de cultura, foi dificilmente aceita e mal tolerada até a época

de Alexandre Magno, embora ainda no 323 a.C., ano da morte de Alexandre, tenham

ocorrido processos contra os filósofos.

Ora, independentemente de Sócrates, a imagem de filósofo que circula na época

antiga é realmente a de uma pessoa muito esquisita. Numa obra de Cícero, Tusculanae

Disputationes, o autor latino narra uma anedota: Leonte, príncipe de Fliunte,

deslumbrado pela espetacular sabedoria do filósofo Pitágoras, perguntou-lhe qual era a

profissão na qual ele se reputava perito. Pitágoras respondeu que ele não exercitava

nenhuma arte em particular, porém era filósofo. Então Leonte perguntou quem era o

filósofo e a resposta de Pitágoras foi que o filósofo é uma pessoa muito rara, que não se

importa das coisas práticas, dos negócios, da vida política, mas é possuído pelo desejo

de conhecer a natureza. Ainda não satisfeito com a resposta, Pitágoras descreveu a

filosofia como uma atividade que representa um estilo de vida superior a todas as

outras atividades, porque a filosofia é a busca do saber e não visa outra utilidade a não

ser a busca pelo conhecimento. Nesse episódio, que Cícero reproduz na sua obra, mas

que na realidade foi narrado por Heraclide Pontico, é preciso salientar dois elementos:

a) Pitágoras afirma que o filósofo não conhece uma arte em particular (techne),

não conhece uma profissão específica, que tenha um objeto próprio de estudo;

b) Pitágoras garante que a filosofia não é praticada tendo em vista ganhar

dinheiro.

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O modo de enfrentar e valorizar o significado das coisas para o filósofo, isto é,

para a pessoa que pensa e enfrenta a vida na sua radicalidade, não se identifica com a

atitude do homem de negócios, que reduz o sentido da existência à vida monetária. A

postura do filósofo não combina com a postura do mercenário, que tudo aposta para

ganhar, dando golpes em qualquer um. O filósofo oferece uma leitura diferente do

mundo e da vida em geral.

O pensar filosófico é em vista do prazer que o homem sente em observar as

coisas e não em vista de algum outro fim. Isso quer dizer que a filosofia é o

conhecimento pelo prazer do conhecimento. A filosofia não tem outro fim a não ser ela

mesma. A filosofia é o saber em vista do próprio saber. “Por isso , todas as outras

ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior”, diz

Aristóteles.

Contudo, há ainda uma coisa que não é clara na resposta de Pitágoras, ou seja,

quanto ele afirma em relação ao primeiro ponto: se a filosofia não é conhecimento de

uma ciência em particular, mas é amor pela sabedoria, sem ter outro fim alheio, o que

ela conhece? O que é a busca do saber, se não for o saber de alguma coisa em

particular? Será que a filosofia é o conhecimento de muitas coisas, o que, no final, se

reduz a decorar muitos conceitos? Não. Tal tipo de sabedoria é bem conhecido na

Grécia antiga e se chama de polymathia, (polus = muito; manthano = conhecer), então,

não é filosofia. Decorar muitas coisas não é sinal de inteligência, diz o filósofo pré-

socrático Heráclito. Heráclito declara que o filósofo é aquele que busca a arché, o

princípio absoluto de tudo o que existe, o fundamento de todas as coisas, da totalidade,

da ordem universal. O problema da arché é o problema do fundamento de tudo o que

existe, o fundo imortal e imutável, incorruptível de todas as coisas, que as faz surgir e as

governa.

É difícil, para nós, representar a filosofia como a busca do fundamento de todas

as coisas, visto que, na época contemporânea, estamos acostumados com as ciências

muito específicas, especializadas, cada uma com o seu objeto próprio e peculiar. Essa é

nossa visão comum, nem poderia ser diferente. A razão disso é que o conhecimento

desenvolveu-se muito e seria impossível conhecer cientificamente todo o caminho

percorrido ao longo de muitos séculos. Apesar disso, não seria inapropriado mover uma

crítica a nossa argumentação, visto que a filosofia também tem as suas disciplinas

particulares: há uma filosofia da ciência, uma lógica, uma ética, uma epistemologia. Isso

é certo, porém, essas disciplinas particulares são apenas convenções acadêmicas, que

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não mudam o estatuto especial da filosofia. Pelo contrário, Pitágoras afirma que o

filósofo não conhece uma ciência em particular. Como interpretar essa afirmação?

Poder-se-ia achar que se trata de uma afirmação óbvia: o filósofo não faz o pedreiro,

assim como o pedreiro não faz o advogado. Certo, mas não basta. Na filosofia, as coisas

têm outro rumo. O filósofo é um apaixonado por todas as coisas, ele observa todas as

coisas a partir do fundamento, do ponto de vista do fundamento. O filósofo, enfim,

busca o fundamento de todas as coisas.3

Aristóteles, no livro primeiro da Metafísica,4 fornece uma definição do tipo de

conhecimento que é a filosofia:

Ora, visto andarmos a procura desta ciência, devemos examinar de que causas e

de que princípios a filosofia é a ciência. Se considerarmos as opiniões que

existem acerca dos filósofos, talvez o problema se nos manifeste com maior

clareza. Nós admitimos, que o filósofo conhece, na medida do possível, todas as

coisas, embora não possua a ciência de cada uma delas. Em seguida, quem

consiga conhecer as coisas difíceis a que o homem (comum) não pode

facilmente atingir, esse também consideramos filósofo. Além disso, quem

conhece as causas com mais exatidão, e é o mais capaz de ensiná-las, é

considerado em qualquer espécie de ciência como mais filósofo.

O que diferencia a filosofia das outras ciências é não apenas o conteúdo (todas

as outras ciências têm um conteúdo particular, ao passo que a filosofia não o tem), mas

o ponto de vista a partir do qual a filosofia observa, estuda as coisas, todas as coisas. O

ponto de vista a partir do qual o filósofo observa todos os entes é o ponto de vista do

fundamento. Na filosofia não é importante o objeto da observação, pois o filósofo pode

observar todas as coisas (o mundo animal, assim como o homem e a virtude

propriamente humana; a política, assim como o que está fora da natureza, isto é a

metafísica). Então, na filosofia não é importante o objeto, mas sim a disposição do

observador e o jeito da observação.

O desejo do filósofo é o desejo de chegar ao fundo. Ele não se contenta em

observar a aparência, em permanecer na superfície das coisas. O filósofo busca o que

vem antes de tudo, o que está abaixo de tudo, o que está no começo e no fim de tudo.

3 Ver MANCINI, BATTISTIN, MARINI 2002, vol. 1, Dall'Antichità alla fine del Medioevo, Unità 1.4 ARISTÓTELES, Metafísica, A 2, 982a4-15.

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A terminologia que Aristóteles utiliza para indicar o caminho do filósofo é mais

precisa do que a terminologia de Pitágoras: o fundamento, o que está no fundo, o que

vem antes de um acontecimento, o que está no começo são as causas primeiras e

últimas, para Aristóteles. É útil analisar a passagem na qual Aristóteles esboça uma

definição da filosofia, justamente pela importância que essa definição adquiriu. Com

efeito, a partir dessa imagem da filosofia, os medievais e a tradição da filosofia cristã

estabeleceram uma determinada definição e divisão da filosofia em suas partes

fundamentais. Em geral a definição aristotélica estabelece que: “Filosofia é a ciência de

todas as coisas, por suas causas mais elevadas, adquirida à luz da razão”. Vamos

analisar quais são as palavras-chaves:

Ciência: conjunto de conhecimentos certos, baseados nas causas, obtidos através

do método que conduz à verdade comprovada pela razão.

De todas as coisas: toda a realidade: homem, natureza, objetos materiais, o que

está acima da natureza (a metafísica) é objeto da filosofia.

Por suas causas mais elevadas: as causas primeiras e últimas. O que significa

que a filosofia deve estudar as coisas, não enciclopedicamente (seria polymathia), mas

de modo determinado, racional, visando descobrir as origens e os fins de um fenômeno

ou de um ser. A filosofia não estuda as leis imediatas, pois esse é o âmbito de análise

das ciências particulares. As causas primeiras e últimas constituem o objeto específico

da filosofia, ou seja, o que lhe é peculiar. Enquanto o cientista se limita à causa

imediata, com a descrição das propriedades do fenômeno, o pensador, o filósofo procura

o sentido último da existência.

Adquiridas à luz natural da razão: eis o instrumento do filosofar, que exige

estudo da lógica, já que deve seguir o método racional. O filósofo se apoia na

investigação intelectual, racional e não na autoridade divina, como os teólogos, que se

fundamentam na Revelação Bíblica. Não se quer, com essas palavras, formular um juízo

de valor, mas apenas indicar um modo diferente de buscar a verdade da realidade.

Continuar a pensar:

A filosofia não dá respostas, só levanta dúvidas. Por isso ela se torna desnecessária para quem não quer pensar por conta própria e se limita a adotar as ideias dos outros, e ameaçadora para uma sociedade que tem medo de mudar. Através da dúvida e da pergunta, a filosofia descobre a manipulação do pensamento e da linguagem, que são os instrumentos utilizados no sistema político, social e econômico em qualquer época. Como diz Hühne, estamos pisando num solo cheio de equívocos.

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O principal papel da filosofia é um papel crítico, isto é, de análise dos costumes dos homens, da sociedade e da realidade em geral.

Sócrates vivia em choque com os políticos, foi excluído do meio político e público, pois afirmava que é preciso ter a coragem de pensar, às vezes, até mesmo pensar de maneira contrária ao que pensa o meio social.

Por que o ato de pensar é necessário, mas incomoda?Por que a coerência e a repetição do mesmo gera tranquilidade?

Sócrates, Gandhi, Martin Luther King deram a vida para ensinar que pensar é mais importante do que ganhar cargos públicos e políticos. Valeu a pena?5

5 Origem da imagem: “Elaboração de atividade de filosofia. Atividades de introdução à filosofia e filosofia política”, Universidade de Santa Maria, RS, 2009, p. 2. Acadêmicos: Ariana, Camila, Lisiane, Mateus, Rafael A. e Tânia.