Filosofia, dogmatismo e engajamento nas investigações ...
Transcript of Filosofia, dogmatismo e engajamento nas investigações ...
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 263
Filosofia, dogmatismo e engajamento nas investigações filosóficas de Wittgenstein1
Matheus Colares do Nascimento
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Ciclo Filosófico de Belém.
E-mail: [email protected]
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar um modo como a filosofia de
Wittgenstein pode ser considerada engajada. Para isso enfatizaremos a adoção
de um princípio ético antidogmático na sua concepção de filosofia como
investigação gramatical nas Investigações Filosóficas. Isso permite que
Wittgenstein conceba o dogmatismo como problema filosófico. Entretanto,
julgamos que essa concepção de filosofia possui implicações éticas
significativas, porque o problema do dogmatismo é recorrente também em
outros contextos discursivos, e.g., a política, moral, etc. Nesse sentido,
reforçaremos o significado do engajamento da atividade filosófica, aplicando
suas ferramentas de análise à defesa da posição ideológica conservadora
proferida por Roger Scruton. O resultado disso será mostrar que ela incorre
nos mesmos problemas discursivos que o dogmatismo da filosofia metafísica
criticado por Wittgenstein, qual seja, a idealização das propriedades de um
modelo de representação.
Palavras-chave: Wittgenstein; Investigações Filosóficas; dogmatismo;
conservadorismo; Roger Scruton
1 A primeira versão deste artigo foi escrita para uma fala na primeira edição de palestras do Ciclo Filosófico de Belém, cujo título inicial era “Dogmatismo linguístico e discurso autoritário”. Este foi um evento de divulgação realizado nessa cidade que teve como tema “Dissonância cognitiva e a crise da contemporaneidade” e contou com diversas apresentações de temas filosóficos variados. Agradeço a todos os membros do Ciclo que contribuíram para a discussão e estruturação deste artigo, são eles: Felipe Sampaio de Freitas, Hailton Guiomarino e Rafael Costa.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 264
Introdução
O objetivo deste artigo é mostrar que concepção wittgensteiniana de
filosofia como clarificação pode ser concebida como engajada. Não só isso, o
sentido desse engajamento pode ser ampliado, na medida em que seus
conceitos podem ser mobilizados contra diversas posições dogmáticas e até
mesmo como uma crítica da cultura (CABANCHIK, 2018, p.186). Portanto,
para além da crítica a alguns pressupostos da filosofia tradicional.
Segundo julgamos alguns conceitos que Wittgenstein elabora nas
Investigações filosóficas (IF, doravante)2 podem ser mobilizados para deslegitimar
as pretensões discursivas de posições ideológicas que incorram no mesmo
erro dogmático da filosofia tradicional, a saber, a atribuição de necessidade à
propriedades conceituais de certos modelos de representação.
Nosso caso será a posição ideológica conservadora proferida por
Roger Scruton. Nas suas obras ideológicas, Scruton pretende demonstrar uma
suposta necessidade dos valores tradicionais judaico-cristãos ocidentais,
atribuindo-lhes uma necessidade supostamente comprovada pela história. Por
esse motivo, tais valores deveriam servir como critérios de validação do
discurso moral e político. Pretendemos demonstrar como as pretensões dessa
profissão ideológica são ilusórias, porque elas se apoiam sobre uma concepção
de necessidade metafísica e porque tal pretensão conduz a entrecruzamentos
2 Para a referenciação às obras de Wittgenstein seguirei o costume da literatura secundária de utilizar abreviações seguidas do número do parágrafo ou aforismo: Tractatus logico-philosophicus (TLP), Investigações Filosóficas (IF). As referências completas encontram-se no final do texto.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 265
entre jogos de linguagem. Ambos os pontos são criticáveis a partir de
conceitos encontrados na obra de Wittgenstein.
Com efeito a concepção de que a filosofia não pode avançar teses à
maneira das ciências naturais é um motivo que perpassa o desenvolvimento
filosófico de Wittgenstein. No Tractatus logico-philosophicus (TLP, doravante), ele
estabelece essa visão afirmando que o resultado de investigações filosóficas
não pode ser doutrinas ou teorias que nos informem algo de positivo sobre o
mundo, tal como as doutrinas e teorias científicas (TLP 4.112). Nessa mesma
linha, nas Investigações Filosóficas (IF, doravante) ele reafirma essa posição, apesar
de se debruçar criticamente sobre alguns aspectos do seu pensamento (IF
109).
Esses comentários deram origem a algumas caracterizações a respeito
da concepção wittgensteiniana de filosofia como sendo neutra, quietista3 ou
simplesmente conservadora. Marcuse, por exemplo, formula uma crítica nesse
sentido. Para ele, a observação meta-filosófica de Wittgenstein, segundo a qual
“a filosofia deixa tudo como está”4, inviabiliza críticas e propostas alternativas
às formas prevalecentes de discurso e comportamento. Isso, porém, segundo
afirma, revelaria um compromisso ideológico intrínseco dessa orientação
filosófica com o status quo(MARCUSE, 2002, p.177-8).
Nessa mesma linha, Bloor (1983, p.161-2), por exemplo, afirma que
a orientação temática da filosofia de Wittgenstein o torna um filósofo
conservador. Como bem afirma, a tradição conservadora
3 Cf., e.g., Blackburn, S. Spreading the Word. Oxford: Oxford University Press, 1984. p.146. 4 Cf. (IF 124)
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 266
contrarrevolucionária – na qual Scruton se insere (COUTINHO, 2014, p.9-
11) – defende uma primazia dos aspectos práticos e concretos da vida,
representados pela tradição, os quais garantem a unidade orgânica de uma
sociedade. Para o autor, a predileção de Wittgenstein por esses aspectos da
vida nas suas reflexões filosóficas, i.e., pelo concreto e pelas práticas
discursivas cotidianas em relação ao abstrato e às normas, justificariam a
classificação do filósofo como inclinado para um conservadorismo desse tipo.
Segundo Strandberg (2006, p.149-50) o principal pressuposto dessas
críticas é o fato de que a posição metodológica de Wittgenstein quanto à
filosofia não fornece um pano de fundo estável sobre o qual críticas podem
se basear. Isso é correto, porém, segundo acreditamos, não fornece
justificação plausível para as duas observações mencionadas acima por dois
motivos.
Em primeiro lugar, segundo acreditamos os comentários
metodológicos de Wittgenstein apresentados nas IF não podem ser
considerados como pretensas alegações de neutralidade, porque eles, na
verdade, representam um compromisso com uma determinada (positiva, não-
neutra) posição quanto à natureza da filosofia e dos problemas filosóficos
(KUUSELA, 2011, p.606-7). Segundo ela, como veremos, a tarefa da filosofia
é crítica e analítica (negativa), e os problemas filosóficos são problemas de
dogmatismo, os quais devem ser dissolvidos.
Além disso, como tentaremos mostrar, esses comentários têm como
objetivo chamar atenção para a tendência científica para generalidade e
precisão conceitual de nossas definições (WITTGENSTEIN, 1960, p.17-8).
Segundo Wittgenstein, essa tendência adentra concepções filosóficas e se
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 267
transforma em exigência de que tudo deva ser geral e preciso. Trata-se,
portanto, de diferenciar os métodos da filosofia e das ciências naturais,
desfazendo confusões conceituais em que a filosofia metafísica está envolvida
ao importar elementos do método científico para uma investigação de caráter
conceitual.
Tendo isso em mente, em segundo lugar, a sua tendência ao concreto
e cotidiano tampouco representa um compromisso com uma posição
ideológica conservadora. Pois, no presente caso, a referência à efetividade das
nossas práticas visa a chamar atenção para certos aspectos que tendências
filosóficas dogmáticas tendem a negligenciar. Nesse sentido, “a filosofia deixa
tudo como está”, porque, para Wittgenstein, ela não tem a mesma função
científica de aumenta nosso conhecimento sobre um determinado objeto, mas
sim de fornece-nos diferentes perspectivas sobre as coisas que já existem (IF
144).
Esse esclarecimento mostra, portanto, como uma concepção crítica
de filosofia pode ser equacionada com o comprometimento com
determinados pressupostos ou princípios filosófico-metodológicos desde que
eles não sejam considerados como afirmações com caráter de teorias
científicas. Nesse sentido, podemos afirmar que a atividade filosófica
wittgensteiniana focalizada na crítica ao dogmatismo está motivada por um
princípio ético, a saber, clareza5 (IF 144).
5 Evidentemente, essa clareza conceitual não tem o mesmo teor que a clareza almejada no TLP, visto que esta dependia da aplicação de um simbolismo correto que eliminasse as ambiguidades da linguagem cotidiana no emprego dos sinais, a mesma ambiguidade que dava origem a problemas filosóficos (TLP 3.323-5). No presente contexto a clareza se refere ao uma visão panorâmica sobre a multiplicidade dos vários
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 268
Segundo acreditamos, isso viabiliza o uso da sua filosofia como
ferramenta filosófica em um sentido mais amplo. Pois, esse princípio ético
pode servir de orientação para criticar outros dogmatismos presentes, e.g., em
contextos morais e políticos. Isso justifica a aplicação do aparato conceitual
wittgensteiniano para criticar o conservadorismo defendido por Scruton.
Acreditamos que o empreendimento dessa tarefa, se bem-sucedido, poderá
colocar mais ênfase no engajamento que atribuímos à atividade filosófica tal
como concebida por Wittgenstein
Para isso, primeiramente, tomaremos o próprio caso do
desenvolvimento filosófico de Wittgenstein como uma reflexão autocrítica
antidogmática. Mesmo considerando significativos aspectos de continuidade
na sua obra, Wittgenstein passa a apresentar importantes modificações na sua
concepção de sentido proposicional a partir da sua vinculação com a práxis
efetiva da linguagem. Ao evidenciar essa mudança conceitual, em algumas
passagens, Wittgenstein também toma oportunidade para fazer referências
autocríticas a alguns pressupostos do TLP. Com elas, Wittgenstein toma a si
mesmo como um exemplo do perigo que representava para ele “o
dogmatismo em que se cai tão facilmente em filosofia” (IF 131).
Daí a importância de esboçar a sua virada metodológica. Nesse
contexto, devemos considerar as IF de uma perspectiva global como o
aspectos semelhantes e aparentados nos quais a linguagem se apresenta. Chamar atenção para esses múltiplos aspectos é importante para atingir justiça conceitual e honestidade intelectual no uso da linguagem, através da eliminação confusões conceituais que originam os dogmatismos (IF 118-22; Cf. também DALL’AGNOL, 2011, p.38-9; KUUSELA, 2005, p.105-7; 2008, p.285).
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 269
resultado de uma reorientação metodológica na filosofia de Wittgenstein (IF
108)6, dentro da qual a luta contra o dogmatismo deve ser considerada.
A virada de Wittgenstein contra o dogmatismo
Uma das questões principais nas reflexões sobre a linguagem ao longo
da história da filosofia é a questão do significado. Como pode uma palavra
indicar algo para além dela? Como se estabelece uma relação entre palavras e
as coisas que elas representam? Predominantemente, segundo Marcondes
(2017, p.49), os filósofos se concentraram em pensar esse problema sobre o
espectro da relação entre linguagem e realidade. Pois, a linguagem em si
mesma não teria sido um problema filosófico central ao longo da história da
filosofia. O interesse a respeito dela tinha origem unicamente na medida em
que ela deveria ser um meio para externalizara relação mental entre um
determinado conteúdo cognitivo e objetos da realidade7.Essa visão acerca da
linguagem implica uma concepção mentalista de significado.
Em contraste, Wittgenstein assimila de seus influenciadores
importantes elementos de ruptura com relação a essa perspectiva. De Russell,
em especial, ele assimila a ideia de que uma proposição aparentemente bem
construída na linguagem cotidiana pode não ter uma proposição bem
construída correlata quando traduzida para um simbolismo (TLP 4.0031)8.
6 Cf. também (KUUSELA, 2005, p.95) 7 Segundo Marcondes, isso implica também uma problematização da tentativa de pensar a “filosofia da linguagem” como uma “disciplina” filosófica fora do contexto da virada linguística da passagem do século XIX para o XX (MARCONDES, 2017). 8 Cf. também CONANT, 1989, p. 258.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 270
Com isso, Wittgenstein também nega que as formas da linguagem cotidiana
seriam apenas formas neutras para externalização de pensamentos, não
interferindo muito no conteúdo mental veiculado (TLP 4.002)9.
Apesar disso, esse posicionamento ainda não representa uma ruptura
completa com relação à posição tradicional da filosofia sobre o
funcionamento da linguagem. Isso porque Wittgenstein ainda assimila de
Frege e Russell a concepção de definição real ou essencialista (BAKER;
HACKER, 2005, p.204-6). Segundo tal concepção, uma definição conceitual
deve ser formulada em termos de condições necessárias e suficientes, de modo
a ser aplicável a todas as coisas portadoras de uma determinada propriedade
F. Ela deve definir F, mostrando ser unicamente em virtude dessa definição
que todas as coisas que portam F podem ser consideradas indivíduos ou
objetos subsumidos a esse conceito (BAKER; HACKER, 2005, p.201). Uma
vez que cada objeto que participa do conceito não possui F de maneira pura,
a formulação de uma definição consistiria numa operação mental de abstração
de impurezas separando-as de F.
Nesse sentido, no TLP a concepção de proposição como figuração é
encarada como uma exigência: todas as proposições devem ser figurações (TLP
3.11-12)10. Isto é, deve existir uma propriedade P que faz de todas as
proposições, proposições, a saber, a possibilidade de ela figurar um estado de
coisas, i.e., de ela ter sentido.
Para Wittgenstein, a possibilidade de o sentido de uma proposição ser
determinado depende de que os nomes, os elementos mais simples da
9 Cf. também HUTTO, 2003, p. 27-8. 10 Cf. também BAKER; HACKER, 2005, p. 205.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 271
proposição, denotem objetos simples (TLP 3.23). Esses objetos constituem a
substancia do mundo (TLP 2.021), i.e., todas as possibilidades de configuração
de estados de coisas (TLP 2.014). A possibilidade de substituição dos
elementos nos estados de coisas por nomes garante a vinculação da
proposição com a realidade (TLP 2.1511, 4.0312). Isto é, a partir dessa
substituição a proposição pode projetar uma configuração de nomes
congruente à configuração de objetos na estrutura de um fato (TLP 2.15).
Essa concepção restrita de sentido pautada na exigência da correlação
entre aspectos da linguagem e da realidade (e.g., nomes denotando objetos
simples)é um dos pontos de ruptura que Wittgenstein apresenta com relação
as suas ideias tratariam as a partir do seu retorno à filosofia por volta de 1929
(MONK, 1995, p. 251-2). A partir daí ele passa a convencer-se gradualmente
de que a determinação exigida pela concepção de definição real sobre a
necessidade de se destacar um aspecto ou propriedade comum a todas as
manifestações linguísticas era uma exigência metafísica no seu pensamento (IF
107). Tal exigência o levara a postular a comparação entre proposições e
figurações como revelando um aspecto necessário sobre a natureza das
proposições (IF 94).
Essa intuição sobre o TLP, proporciona uma consideração
retrospectiva e autocrítica sobre o estado de convicção que Wittgenstein
nutria com relação às teses defendidas no TLP (IF, Prefácio). A exigência
conceitual por uma definição essencialista de proposição era um dos motores
da ideia de que as partes constituintes devem ser explicadas de maneira precisa,
uma vez que a aplicação do sinal proposicional com sentido dependeria da sua
denotação(KUUSELA, 2011, p.611-2). Tendo abandonado essa concepção de
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 272
definição, Wittgenstein também abandona a concepção de que a prática
linguística é totalmente determinada por regras – as regras da sintaxe lógica
no TLP – estabelecendo em termos necessários e suficientes as suas condições
de aplicação (IF 84)11. Ao invés disso, ele admite novas possibilidades de
construção de sentido, na medida em que este pode ser determinado a partir
da função que uma proposição pode desempenhar em um determinado
contexto, i.e., a partir do seu uso (IF 43).
Nesse contexto filosófico, o conceito de jogo de linguagem toma um
lugar central.Com tal conceito Wittgenstein propõe pensar a linguagem não
como determinada a priori a partir de formulações teóricas, mas sim como uma
prática situada na vida concreta, revelando, assim, o seu caráter dinâmico e
plural. Tal como ele afirma em IF 23:
Há [...] incontáveis espécies diferentes da aplicação daquilo a que chamamos “símbolos”, “palavras”, “proposições”. E esta multiplicidade não é nada fixo[...] [novo parágrafo] A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de que falar uma linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida (WITTGENSTEIN, 2015, p.189).
A partir disso, se quisermos começar a considerar a linguagem sem
preconceitos filosóficos não podemos perder de vista a vinculação desses
critérios com o funcionamento dessas práticas na vida concreta. Somente
nesse contexto o papel linguístico de determinadas expressões de um
determinado jogo de linguagem tem sentido (IF 98).
Tendo isso em mente, torna-se problemático traçar um critério de
validação universal, e.g., uma propriedade compartilhada por todas as
11 Cf. também SCHROEDER, 2017, p. 252-3.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 273
manifestações da linguagem, para o uso correto da linguagem. Pois, no
funcionamento cotidiano de nossas práticas linguísticas o que se revela não é
a existência de um aspecto comum que unifica todos os jogos de linguagem,
mas a existência de uma capilaridade de semelhanças aparentadas entre eles
(IF 65).
Esse argumento permite problematizar a concepção mentalista de
significado adotada no TLP, resultante do comprometimento com a
concepção de definição essencialista. Como vimos, segundo ela o significado
de um conceito é determinado por um ato mental de vinculação entre a
propriedade comum existente e uma palavra arbitrariamente escolhida
(MARCONDES, 2017, p. 57).
Essa concepção pode ser considerada uma concepção com
tendências realistas ou quasi-realista, porque ela impõe certas condições
ontológicas (deve haver objetos simples) (KIRKHAM, 1992, p. 75-6), como
justificação da possibilidade da figuração. Apesar de que ela não defende a
afirmação ingênua de um vínculo direto entre formas lógicas e um mundo
previamente constituído antes da linguagem12.Pois as figurações que fazemos
por meio de proposições são apenas modelos mobilizados para coordenar
nossa representação proposicional do mundo (TLP 2.1511-2.1515). Além
disso, saber como o mundo é, i.e., saber quais objetos ou proposições
elementares de fato existem, seria tarefa de uma análise empírica(HACKER,
1986, p.102). Portanto, uma tarefa não para a lógica, mas para a sua aplicação
(TLP 5.557).
12 Cf., e.g., DALL’AGNOL, 2005, p.114; WALLNER, 1997, p.33
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 274
Contra essa concepção de significado, Wittgenstein faz uma
afirmação forte em IF 65 mobilizando a concepção de semelhanças de família.
Segundo ele, não há nada em comum nos fenômenos a que chamamos
linguagem. Tendo isso em mente, poder-se-ia pensar que ele transita para o
extremo oposto da sua antiga concepção de definição e, consequentemente,
de significado(BAKER; HACKER, 2005, p.212). I.e., para uma concepção
antirrealista que nega a possibilidade de existir uma propriedade
compartilhada por um conjunto de casos.
Isso, porém, contradiria a posição metodológica wittgensteiniana de
que a filosofia não pode avançar teses ou doutrinas explicando em que
consiste, e.g., a natureza da linguagem13 (IF 109, 124). Mantendo a coerência,
logo Wittgenstein ameniza a sua afirmação, esclarecendo as pretensões
negativas da mobilização da concepção de semelhanças de família. Para ele,
não é que haja uma impossibilidade lógica em traçar limites precisos para um
conceito, circunscrevendo uma propriedade em comum para todos os objetos
subsumidos nele. O que Wittgenstein encara como problemático é, na
verdade, a exigência de que toda conceituação deva circunscrever uma
propriedade compartilhada por todos os casos relevantes (IF 68-9).
Para justificar sua posição nesses parágrafos, Wittgenstein invoca o
exemplo do conceito de jogo no seu argumento, estruturando-o na forma de
uma reductio. Segundo ele, se a posse de uma definição essencialista fosse
necessária para a compreensão de um conceito, e.g., o de jogo, seguir-se-ia
que práticas relacionadas a tal compreensão não poderiam ocorrer
13 Uma vez que estas aspirariam ter o mesmo estatuto de uma teoria científica acerca da natureza da linguagem.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 275
normalmente, antes da formulação de uma definição do tipo. Identificar
exemplos de jogos, explicar em que consiste um jogo, etc., não seriam
operações possíveis sem uma definição sobre a propriedade que faz de um
jogo um jogo.
Isso, porém, não é o que acontece, defende ele. A especificação de
exemplos de jogos prescinde de um conceito com limites fixos. Com efeito, é
perfeitamente possível aduzir a um conjunto de indivíduos como sendo
exemplos de jogos apenas a partir da correlação de similaridades entre eles (IF
66). O mesmo ocorre com a explicação sobre o que é um jogo. Para
Wittgenstein, a adução a exemplos destacando certas similaridades já constitui
em si um tipo de explicação (IF 69). Portanto, a capacidade de exemplificar
jogos já constitui uma evidencia da compreensão do que é um jogo.
Nesse sentido, os argumentos de Wittgenstein operam uma deflação
na aplicação da concepção essencialista de definição. Evidentemente, ela é
uma escolha metodológica possível, porém, a sua adequação só pode ser
avaliada a partir do estabelecimento de propósitos conceituais específicos (IF
68-9). A mobilização da concepção de semelhanças de família é nesse sentido
negativa, porque ela visa a problematizar a exigência da definição essencialista
como único referencial metodológico(BAKER; HACKER, 2005, p.214).
Uma vez que o TLP também firmava comprometimento com essa
concepção, esses comentários devem ser entendidos como autocríticas. Nesse
sentido, eles fornecem o caminho para entender o significado do
desenvolvimento filosófico de Wittgenstein. Não significando a mudança de
um referencial teórico para outro (DIAMOND, 1995, p.19), mas
representando uma reconsideração metodológica sobre o papel que os
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 276
modelos têm na investigação filosófica (KUUSELA, 2005, p.95). Como
veremos, a falha em considerar modelos como ferramentas filosóficas uteis,
resulta na reificação das suas propriedades conceituais como representando
aspectos necessários dos objetos. Isso, para Wittgenstein, conduz ao
dogmatismo conceitual.
O dogmatismo conceitual na filosofia da linguagem e além dela
Para Wittgenstein, o dogmatismo ou confusão metafísica ocorre
porque “[...] há uma má-compreensão do papel que desempenha o ideal na
nossa linguagem” (IF 100). Isto é, em diversas investigações, não apenas em
filosofia, mobilizamos modelos ou esquemas conceituais para representar
certas propriedades de certos objetos. Quando falhamos em encarar o modelo
como tal, i.e., como ferramenta útil de investigação, tomamos as suas
propriedades como desvelando aspectos necessários pertencentes à natureza
do objeto de investigação (IF 91-2). Porém, quando isso acontece a função do
modelo é desvirtuada: as propriedades por ele atribuídas aos objetos passam
a ser exigências. Nesse sentido, ele deixa de ser um referencial útil e passa a
ser um referencial normativizado, ao qual todo objeto de investigação deve
corresponder(IF 104).Isso, para Wittgenstein, cria a ilusão de que para
apreender esses aspectos necessários devemos desvincular o uso de certos
conceitos das práticas cotidianas, às quais ele está originalmente vinculado,
abstraindo as imperfeições da sua aplicação nesses contextos (IF 96).
Nessas circunstâncias, porém, o conflito entre a exigência e o
funcionamento cotidiano de nossas práticas é inevitável. Ao considerarmo-lo
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 277
vemos que os aspectos necessários que se procura não se revelam como reais.
Eles são, na verdade, frutos de uma exigência conceitual originada de um tipo
de relação interpretativa dogmática com um determinado modelo de
investigação (IF 107). Nesse sentido o modelo deixa de ser considerado como
fornecendo intuições sobre propriedades conceituais dos objetos e a
normativização das suas propriedades passa a ser considerada como uma
prisão conceitual (IF 115).
Segundo Wittgenstein, a normativização de um modelo de expressões
gramaticais constitui o cerne do problema das pretensões discursivas da
filosofia metafísica. Porém, como vimos, essas observações também têm teor
autocrítico. No TLP Wittgenstein tratara a afirmação de que as proposições
são figurações de possíveis estados de coisas como uma intuição revelando a
natureza de todas as proposições. Ao não considerar essa comparação como
modelo útil, ele julgara ter descoberto um referencial normativo, decretando
que uma proposição deve ser assim-e-assim ou não pode ser uma proposição
(IF 112-4)
Nesse contexto, a reconsideração do papel dos modelos e exemplos
em investigações se torna um dos pontos chave do desenvolvimento
metodológico de Wittgenstein (IF 108)14. A mobilização de, não um, mas
vários modelos se torna o próprio método da investigação filosófica (IF 71-
2). Seu objetivo é chamar atenção para as várias redes de semelhanças e
dessemelhanças no emprego dos conceitos nas práticas cotidianas,
reconduzindo a elas conceitos idealizados e oferecendo uma visão panorâmica
14Cf. também KUUSELA, 2011, p.614.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 278
do seu emprego (IF 116-7, 122). Segundo Wittgenstein, o valor dessa
investigação advém da clareza conceitual que ela pode proporcionar ao
desfazer bolhas conceituais e desconstruir preconceitos filosóficos (IF 118-9).
Entretanto, julgamos que essa concepção de filosofia como
investigação gramatical pode ter implicações éticas mais amplas. Afinal, assim
como há problemas em normativizar conceitos empregados em determinados
modelos filosóficos, é perfeitamente possível conceber o mesmo fenômeno
no emprego de modelos para pensar a ética, política, etc. Sabendo disso, a
manipulação da linguagem com pretensões dogmáticas de necessidade pode e
deve ser problematizada também nesses âmbitos.
Podemos reconhecer as implicações éticas da tarefa filosófica
de análise gramatical se admitirmos que ela pode mostrar a verdadeira origem
de nosso comprometimento com determinadas crenças filosóficas. Kuusela,
por exemplo, afirma:
[...] a visão tradicional das afirmações acerca de conexões conceituais como sendo afirmações de verdades imutáveis pode ser vista como expressando um desejo de transcender os limites da existência corpórea humana. Essa sugestão, de que as raízes de perspectivas filosóficas podem algumas vezes ser encontradas em desejos do cotidiano, pode também ser estendida para incluir, por exemplo, preferencias estéticas e convicções políticas como fonte (ou motivação) de perspectivas filosóficas(KUUSELA, 2008, p.284, tradução nossa)15.
15[...] the traditional view of statements about conceptual relations as statements of immutable truths might be seen as expressing a desire to transcend the limits of corporeal human existence. This suggestion that the roots of philosophical views might sometimes be found in practical desires may also be extended to include, for
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 279
Nesse sentido, uma análise gramatical poderia mostrar-nos que uma
tese filosófica seria uma combinação entre uma determinada preferência
subjetiva e uma necessidade gramatical transformada em necessidade
ontológica, i.e., a concepção de uma necessidade pertencente aos objetos em
si mesmos e não à preleção por um modelo conceitual. Uma confusão
filosófica do tipo pode ser propagada, sem uma crítica gramatical no sentido
wittgensteiniano.
Um bom exemplo disso é a inclinação do discurso conservador em
ver determinadas práticas e modelos éticos como necessários. O sentido de
tal inclinação, como afirma o ideólogo britânico do conservadorismo Roger
Scruton, é subsumido no conceito de tradição. Ele sustenta que os valores da
tradição de uma determinada época são fixados por uma espécie de lógica não
planejada inerente ao desenvolvimento histórico-social que seleciona os
melhores valores conforme o curso natural da história(SCRUTON, 2001,
p.31-2). O objetivo desse argumento é justificar valores tradicionais como as
melhores formas de acordo e unidade social de que dispomos atualmente, pois
elas teriam sobrevivido um suposto “teste do tempo”. Nesse sentido, Scruton
não se lhes refere apenas como modelos de vida, mas como conhecimento
social que progrediria por acumulação (SCRUTON, 2001, p.32). Por esse
motivo, ele reivindica uma necessidade ontológica para suas práticas ou sua
forma de vida com base na sua capacidade de sobrevivência
histórica(COUTINHO, 2014, p.57-8).
instance, aesthetic preferences and political convictions as a source of (or motivation for) philosophical views.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 280
Sem a noção de tradição, sustenta ele, todas as relações sociais
sucumbiriam à dinâmica de vida do homo oeconomicus, i.e., seriam reduzidas a
relações triviais e pragmáticas, como trocas comerciais, etc.(SCRUTON, 2015,
p.38) Por isso, os indivíduos e a sociedade inseridos nesse contexto
supostamente possuiriam uma inclinação natural para defender as tradições
(SCRUTON, 2001, p.10).
Essa visão, porém, resulta numa atitude conceitual dogmática16, pois
representa uma tentativa de fundamentar determinadas propriedades de um
modelo ético-cultural reivindicando para elas um caráter normativo pautado
num tipo problemático de necessidade. Nesse movimento a posição
16 Pode ser interessante também comparar a aplicação do diagnóstico wittgensteiniano do dogmatismo para o conservadorismo de Scruton com outras reflexões sobre o dogmatismo. Para Milton Rokeach, por exemplo, o dogmatismo deve ser compreendido como uma posição para com um sistema de crenças fechado que demonstra ser a sustentação psicológica da autoestima e da visão de mundo do indivíduo e onde se possa identificar uma hierarquia entre as crenças (centrais ou periféricas) (ROKEACH, 1981, p.1-3) Segundo Etchezahar et al. (2013, p.208), essa definição pode ser mais elucidada a partir de três características: (a) um aumento gradativo no envolvimento com uma crença é concomitante a uma tendência decrescente no reconhecimento da legitimidade de outras; (b) o indivíduo tem a sua crença como uma verdade absoluta que deve ser difundida e reconhecida; (c) o sentimento de que sua visão de mundo, seus valores etc, estão sempre em constante ameaça por crenças diferentes. Nesse sentido, maior dogmatismo implica em diferenças cognitivas mais polarizadas entre os “adeptos” e os “não-adeptos”. As crenças diferentes são rejeitadas a priori já que o diferente é visto como inimigo. A defesa do conservadorismo por Scruton parece se encaixar nessa definição de dogmatismo, na medida em que, como veremos, ao tenta reivindicar necessidade para seus valores, o conservador estaria reproduzindo o ponto (b). Enquanto que ao afirmar uma suposta redução do valor das interações humanas, caso os valores da tradição deixassem de ser defendidos, Scruton parece reproduzir o ponto (c). Isto é, de que o indivíduo dogmático sente sua crença ameaçada por outras. No caso, aqui se trata de uma ameaça por parte de pautas mais progressistas.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 281
conservadora de Scruton reifica determinados aspectos do modelo ideológico
conservador. Esses elementos são elevados ao estatuto de regras norteadoras
de outros âmbitos da realidade social. Isto é, eles são postulados como
critérios de validação para avaliar a validade de afirmações de outros discursos
inseridos em outros jogos de linguagem, por exemplo, o discurso político e
moral (SCRUTON, 2001, p.24). Isso, porém, representa um esquecimento ou
negligência do fato de que o que torna objetivo um discurso são critérios de
validação internos e não um apelo a uma realidade externa (DALL’AGNOL,
2006, p.76). Nesse sentido, o discurso político e moral são discursos com
critérios de validação próprios e autônomos baseados, geralmente, em
consensos, trocas e concessões. Tendo isso em mente, eles não precisam se
adequar a critérios determinados por uma alegada necessidade cultural de
certos valores conservadores.
Quando fazemos isso estamos importando ilicitamente a gramática
dos nossos preconceitos filosóficos e de nossas crenças metafísicas
naturalizadas para dentro desses âmbitos discursivos. A filosofia metafísica,
por exemplo, ao tentar conferir necessidade às propriedades conceituais do
seu modelo conceitual de representação, não consegue ver que elas estavam,
em sua origem, vinculadas a certas práticas, das quais foram
descontextualizadas (IF 96)17. De forma análoga, o discurso conservador falha
em perceber que a necessidade reivindicada para as tradições está ligada a uma
prática ética, cultural e linguística específica. Isso, segundo Wittgenstein (1960,
p.55), é resultado da incapacidade de perceber que o uso das palavras “pode”
17Cf. também DALL'AGNOL, 2016, p.219; 2006, p.76.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 282
e “deve” em afirmações com pretensão de necessidade são de caráter
conceitual estabelecendo o uso de uma regra, e não proposições factuais
enunciando necessidades ontológicas18. Por esse motivo, o conservadorismo
configura como um exemplo de dogmatismo e, por isso, suas pretensões
discursivas são injustificadas.
Para Wittgenstein, segundo Diamond (1995, p.184), confusões do
tipo em que a filosofia e, como mostramos, também o conservadorismo de
Scruton estão envolvidos sempre envolvem um tipo de ilusão devido à falta
de um certo tipo de clareza19. Tendo isso em mente, as pretensões
injustificadas de atitudes discursivas do tipo podem passar despercebidas e
agregar capacidade de convencimento. A partir disso elas poderiam ser
mobilizadas em discursos manipuladores para a adoção das mais diversas
posições acerca da vários temas. Contra isso, a crítica da linguagem
empreendida por Wittgenstein visa a garantir clareza ao intelecto que sofre de
confusões conceituais (IF 111). Nesse contexto, o reconhecimento da
multiplicidade é essencial para a clareza e a clareza é uma questão de
honestidade intelectual20.
Essa clareza que impulsiona tanto o princípio ético quanto as
implicações éticas da sua prática filosófica está voltada inicialmente apenas
para contextos filosóficos. Apesar disso, julgamos que o argumento acima
esboçado pode contribuir para mostrar como os seus horizontes de aplicação
18 Como diria Austin (1990, p.72), essas palavras são partículas úteis para agregar força ilocucionária à afirmação, i.e., para agregar força ao efeito normativo intencionado por elas. 19 No sentido em que clareza é concebida nas IF, cf. nota 6. 20 Cf., e.g., DALL’AGNOL, 2011, p.38-9; KUUSELA, 2005, p.105-7; 2008, p.285.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 283
podem ser ampliados e sua importância fortalecida. Nesse sentido, a atividade
filosófica como investigação gramatical têm implicações éticas e políticas
amplas, no sentido de que ela deve nos deixar mais conscientes acerca da
maneira que utilizamos certos conceitos21 (WITTGENSTEIN, 2008, p.370).
Conclusão
Mesmo que Wittgenstein rejeite a ideia de que a filosofia se
encarregue de avançar teses, acreditamos que a sua concepção de filosofia
pode apresentar um engajamento ao adotar um princípio ético antidogmático.
Concebida a partir dele, a filosofia como investigação gramatical trabalharia
especificamente mobilizando uma gama de exemplos e modelos não com o
objetivo de indicar um caminho a ser seguido, i.e., uma escolha conceitual a
ser adotada, mas sim indicando a existência de inúmeras possibilidades
conceituais. Com isso, consequentemente, a filosofia traz à tona o problema
da normativização de uma ou outra prática conceitual. Essas, doravante, são
concebidas como localizadas, reconduzidas de volta ao jogo de linguagem aos
quais elas estavam originalmente vinculadas (IF 116). Nesse contexto, o valor
da filosofia está no tipo de equívocos que ela pode ajudar a evitar por meio da
evidenciação de conexões conceituais entre nossas expressões e seus
respectivos propósitos e critérios de validação dos jogos de linguagem em que
estão inseridas(IF 119).
21 Cf. também GEBAUER, 2013, p.40; MALCOLM, 2001, p.31, 35; STRANDBERG, 2006, p.153-4.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 284
Como vimos, confusões conceituais do tipo são, para Wittgenstein,
características da filosofia metafísica. Porém, ele mesmo adotara uma
perspectiva similar encarando um determinado modelo de proposição como
fornecendo uma intuição sobre a natureza destas. Nesse sentido, tomamos o
caso de Wittgenstein como paradigmático na identificação do fenômeno do
dogmatismo a partir do seu desenvolvimento metodológico. A reconsideração
autocrítica de alguns pressupostos firmados ao longo do seu percurso
filosófico até então lhe proporcionara uma maneira de se reinventar
metodologicamente ao problematizar a própria tendência filosófica em buscar
definições essencialistas.
A partir disso procuramos identificar esses elementos dogmáticos em
outros âmbitos de discurso. Afinal, modelos conceituais não são mobilizados
exclusivamente na filosofia, mas em um sem-número de outros contextos.
Para esse fim, mostramos como a defesa do conservadorismo de Roger
Scruton pode ser enquadrada como um caso de dogmatismo. Isso ocorre,
porque na profissão de sua posição, Scruton idealiza as propriedades dos seu
modelo de representação do mundo, da realidade social, etc., atribuindo
necessidade ontológica a essas propriedades e tomando-as como critérios de
justificação para outras práticas. Ao mostrar os problemas envolvidos nessa
tentativa, operamos uma ampliação nos horizontes de aplicação dos conceitos
mobilizados por Wittgenstein contra o problema do dogmatismo.
Consequentemente, operamos também uma ampliação do princípio ético
antidogmático que os impulsiona.
Nesse contexto, acreditamos que isso torna clara a implicação política
da atividade filosófica: ao tornar-nos mais conscientes da multiplicidade de
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 285
práticas presentes no que chamamos de linguagem, torna-nos também mais
atentos para eventuais problemas conceituais que venham a surgir. Assim, a
filosofia se torna uma ferramenta antisséptica contra discursos dogmáticos de
qualquer tipo.
Referências AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Traducao Danilo Marcondes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BAKER, G. P.; HACKER, P. M. S. Wittgenstein: understanding and meaning. Part I. Chichester: Wiley-Blackwell, 2005. BLOOR, D. Wittgenstein: A Social Theory of Knowledge. LONDON (U.A.: MACMILLAN, 1983. CABANCHIK, S. M. Crítica y Ética: dimensiones del filosofar wittgensteiniano. In: AZIZE, R. L. (Ed.). . Wittgenstein nas Américas: legados e convergências. Salvador: EDUFBA, 2018. p. 163–186. CONANT, J. Must we show what we cannot say? In: FLEMMING, R.; PAYNE, M. (Eds.). . The Senses of Stanley Cavell. Lewisburg: Bucknell University Press, 1989. p. 242–283. COUTINHO, J. P. As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e ReacionáriosSão PauloTrês estrelas, , 2014. DALL’AGNOL, D. Ética e Linguagem: uma introdução ao Tractatus de Wittgenstein. 3. ed. Florianópolis, São Leopoldo: Ed. da UFSC, Editora Unisinos, 2005. DALL’AGNOL, D. Jogos Morais de Linguagem. In: MORENO, A. (Ed.). . Wittgenstein: Ética - Estética - Epistemologia. Campinas: UNICAMP, 2006. p. 59–79.
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 286
DALL’AGNOL, D. Seguir Regras: Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein. 1. ed. Pelotas: Ed. da UFPel, 2011. DALL’AGNOL, D. SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA NOS USOS DE ‘BOM’. ethic@ - An international Journal for Moral Philosophy, v. 15, n. 2, p. 216–230, 2016. DIAMOND, C. The Realistic Spirit: Wittgenstein, Philosophy and the Mind. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT Press, 1995.
ETCHEZAHAR, E. et al. El Dogmatismo : Sistema Cerrado De Creencias, Autoritarismo e Intolerancia. Anu. investig. [online], v. 20, n. 1, p. 207–210, 2013. GEBAUER, G. O pensamento antropológico de Wittgenstein. Traducao Milton Camago Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2013. HACKER, P. M. S. Insight and Illusion: Themes in the Philosophy of Wittgenstein (Revised Edition). Oxford: Clarendon Press, 1986. HUTTO, D. D. Wittgenstein and the end of philosophy: Neither theory nor therapy. London: PALGRAVE MACMILLAN, 2003. KIRKHAM, R. Theories of Truth: A Critical Introduction. Massachussetts: MIT Press, 1992. KUUSELA, O. From metaphysics and philosophical theses to grammar: Wittgenstein’s turn. Philosophical Investigations, v. 28, n. 2, p. 95–133, 2005. KUUSELA, O. The Struggle Against Dogmatism: Wittgenstein and the Concept of Philosophy. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2008. KUUSELA, O. The development of Wittgenstein’s philosophy. In: MCGINN, M.; KUUSELA, O. (Eds.). . The Oxford Handbook of
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 287
Wittgenstein. [s.l.] Oxford University Press, 2011.
MALCOLM, N. Ludwig Wittgenstein : a memoir. New York; Oxford: Clarendon Press; Oxford University Press, 2001. MARCONDES, D. As armadilhas da linguagem: significado e ação para além do discurso. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. MARCUSE, H. One-Dimensional Man: studies in the ideology of advanced industrial society. Traducao Douglas Kellner. 2. ed. London and New York: Routledge, 2002. MONK, R. Wittgenstein: o dever do gênio. Traducao Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ROKEACH, M. Crenças, atitudes e valores. Traducao Angela Maria Magnan Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Interciência, 1981. SCHROEDER, S. Grammar and Grammatical Statements. In: GLOCK, H.-J.; HYMAN, J. (Eds.). . A companion to Wittgenstein. 1. ed. Hoboken: Wiley Blackwell, 2017. p. 252–267. SCRUTON, R. The Meaning of Conservatism. 3. ed. Basingstoke: PALGRAVE MACMILLAN, 2001. SCRUTON, R. Como ser um conservador. Traducao Márcia Xavier De Brito; Bruno Garschagen. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015. STRANDBERG, H. The Possibility of Discussion: Relativism, Truth
and Criticism of Religious Beliefs. Aldershot, Hants, England ; Burlington, VT: Ashgate, 2006. WALLNER, F. A obra filosófica de Wittgenstein como unidade. Traducao Álvaro Alfredo Bragança Júnior; Idalina Azevedo Da Silva. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997. WITTGENSTEIN, L. The Blue and Brown Books. Oxford: Blackwell,
petdefilosofiaufpr.wordpress.com v. 18 , n. 2, agosto 2020 288
1960.
WITTGENSTEIN, L. Wittgenstein in Cambridge : letters and documents, 1911-1951. 4. ed. Malden, Mass.: Blackwell, 2008. WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Traducao G.E.M. Anscombe; P.M.S Hacker; Joachim Schulte. 4. ed. Malden, USA; Oxford: Wiley-Blackwell, 2009. WITTGENSTEIN, L. Tratado lógico-filosófico & Investigações Filosóficas. Traducao M. S. Lourenço. 6. ed. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 2015. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Traducao Luiz Henrique Lopes Dos Santos. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2017.