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  • Mogens Laerke (doutor em Filosofia) Fundao Carlsberg

    Gilles Deleuze e o sistema da natureza e da filosofia1 H um ponto em que devo concordar com Alain Badiou. A filosofia de Deleuze um sistema metafsico clssico.

    Digamos que a filosofia de Deleuze, como a minha prpria, definitivamente clssica. E bem fcil definir, neste assunto, o que o classicismo. Clssica toda filosofia que no se submete s injunes crticas de Kant; que age como se o julgamento pretendido por Kant no fosse nada e nunca tivesse acontecido.2

    Uma afirmao como esta no deveria surpreender algum familiarizado aos textos de Deleuze: Eu acredito na filosofia como sistema [...]. Sinto-me como um filsofo bastante clssico, Deleuze se explica bem claramente na carta-prefcio ao livro de Jean-Clet Martin, Variaes, de 19933. Encontramos afirmaes similares em O que a filosofia?. Em todo caso, no tivemos jamais um problema

    concernente morte da metafsica ou superao da filosofia: so disparates inteis e penosos. Fala-se hoje da falncia dos sistemas, quando apenas o conceito de sistema que mudou.4

    Como podemos explicar esta estranha parbola terica que leva um filsofo contemporneo como Deleuze a reivindicar uma herana metafsica clssica? Pode-se simplesmente apontar para seu trabalho a respeito de metafsicos clssicos: dois livros e vrios artigos sobre Espinosa e um livro sobre Leibniz. Todos sabem que Deleuze devedor com relao tica (uma concepo de imanncia) e Monadologia (uma concepo do indivduo). 5 Tanto Diferena e Repetio quanto Lgica do sentido referem-se aos dois metafsicos ps-cartesianos em lugares cruciais da argumentao. Os dois livros no projeto Capitalismo e esquizofrenia esto salpicados de referncias explcitas e implcitas a Espinosa. Em Conversaes, o prprio Deleuze descreve O Anti-dipo como uma espcie de espinosismo do inconsciente6, e em Mil plats encontramos a tica de Espinosa descrita como uma espcie de manual esquizoanaltico: Finalmente, o grande livro sobre o CsO no seria a tica? [...] Os drogados, os masoquistas, os esquizofrnicos, os amantes, todos os CsO prestam homenagem a Espinosa. O CsO o campo de imanncia do desejo, o plano de consistncia prpria do desejo7. Quanto a Leibniz, A dobra. Leibniz e o barroco, de 1988, desenvolve o contexto sistemtico para a noo de subjetividade como dobra, a qual Deleuze j tinha proposto dois anos antes em Foucault8. Mas Leibniz tem um papel importante em outras reas tambm. Foi ele que inventou a relao lgica original de (in-)compossibilidade isto , uma (in-)compatibilidade entre um conceito individual e um mundo _ que, de acordo com Lgica do sentido, governa a gnese esttica ontolgica do mundo. A compossibilidade determina que intensidades se aninham nas dobras do mundo virtual que elas atualizam9. Tentei mostrar, em

  • outra ocasio, o quanto o conceito de devires individuais em Mil plats deve descrio de Leibniz da natureza dos corpos orgnicos e da transubstanciao em suas cartas Bartholomeus Des Bosses10. Etcetera. H uma herana clssica na filosofia de Deleuze porque ele toma emprestado elementos de filsofos clssicos. Mas, mais importante, ele tambm se diz um metafsico clssico no mesmo sentido em que eles so, isto , a sua filosofia organizada estruturalmente de um jeito comparvel ao sistema metafsico clssico. O que significa sistema nesse contexto? o significado completo disso que eu gostaria de apresentar em seguida lendo o deleuzianismo como um racionalismo de quatro desdobramentos: como um sistema da razo reta; da razo natural; da razo unificada; e da razo moral universal. No pretendo provar que a filosofia de Deleuze um tal racionalismo quadruplamente desdobrado. Isto seria no apenas terrivelmente pretensioso, mas tambm muito redutor: nada deve impedir uma outra leitura de ir na direo exatamente oposta. A ambio mais de ver que tipo de coerncia (se h alguma) a assuno de um tal racionalismo quadruplamente desdobrado pode render.

    2 Vamos assumir, ento, que o deleuzianismo mais uma apologia do que uma crtica da razo; que ele uma defesa de um tipo particular de razo que Deleuze s vezes chama de problemtica (Diferena e repetio) e outras vezes criativa (O que a filosofia?). Se essa assuno verdadeira, racionalismo no sentido deleuzeano seria um esforo para reverter um movimento de desrazo que tinha deixado o mundo de cabea para baixo. Tal ambio de endireitar a razo origina-se de Espinosa (a crtica do finalismo na tica) e de Nietzsche (a crtica da reverso dos valores na Genealogia da moral). Mas fazer a razo ficar de p por si mesma tambm a ambio geral dos metafsicos clssicos: todos eles se consideram partidrios da razo reta (recta ratio). Contrariamente maioria dos metafsicos clssicos ( exceo de Espinosa), contudo, Deleuze define recta ratio como o oposto de sensus communis. Podemos dizer que a filosofia de Deleuze um tremendo esforo para repensar a maneira em que a razo ainda seria defensvel, e que um livro como Mil plats desenvolve as condies de possibilidade para uma recta ratio legtima, se bem que uma razo reta que freqentemente aparece estranhamente inclinada ou curiosamente curvada precisamente porque no est mais ligada ao sensus communis.Isso , novamente, uma lio de Espinosa, mas dessa vez, do Tratado teolgico-poltico: a razo foi terrivelmente corrompida. Ns no apenas deliramos sem razo, mas deliramos com razo (insanire cum ratione)11. A imagem do pensamento pinta o que torto como reto, o que reativo como ativo, o que negao como afirmao. E no simplesmente uma questo de uma representao m ou falsa. A imagem do pensamento corrompe o prprio representandum. Aqueles subjugados a essa imagem esto criando a natureza conforme seu prprio delrio, nota Espinosa, como se a totalidade da natureza estivesse delirando com eles (quasi tota natura cum ipsis insaniret)12 . Como Espinosa, Deleuze aventura-se a criar uma nova imagem do pensamento que endireite a razo. Coisa estranha para se dizer de uma esquizoanaltica, mas ainda assim adequada: o mundo que louco, no o esquizofrnico.

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  • Mas a questo permanece: que razo? Que retitude? Em primeiro lugar, a recta ratio deleuzeana no mais uma razo crtica do que uma crtica da razo. O primeiro aspecto que uma leitura classicista de Deleuze precisa trazer para o primeiro plano aquele tambm notado por Badiou: a recusa da virada crtica13. A filosofia de Deleuze no uma filosofia crtica. uma metafsica criativa. Primeiro, embora tenha aprendido muito com seu to respeitado adversrio, Deleuze no um kantiano. Segundo, seria preciso uma releitura criativa da crtica alem do ps-guerra ao Esclarecimento para considerar a filosofia de Deleuze uma crtica da razo na tradio de Adorno e Horkheimer (embora, reconhecidamente, isso seja bem possvel). Finalmente, seria completamente errado considerar o deleuzianismo como alguns crticos de m-vontade fizeram como um anti-racionalismo (Bata sua cabea aqui!). A filosofia de Deleuze um construtivismo. Seu primeiro princpio a criao. Um leitor de Deleuze apegado ao potencial crtico de sua filosofia objetaria o seguinte: e Nietzsche e a filosofia? Esse livro estabelece uma relao muito ntima entre crtica e criao. Pode-se at pensar que so termos intercambiveis. Eles convergem na noo nietzscheana de avaliao14. E verdade: criao e crtica so aspectos de uma mesma estimativa filosfica que nos permite avaliar a existncia de acordo com os critrios do devir. Segundo Deleuze, Nietzsche acusa Kant de ter rompido a ligao entre julgamento e criao, e assim ter proposto uma crtica que no cria valores15. Mas esse critrio da criao que condiciona o da crtica. No o potencial criativo que nos permite avaliar um conceito que criamos. Antes, o que um conceito capaz de criar a medida do seu potencial crtico: um conceito representa uma fora crtica na medida em que afirma um poder de pensar de outro modo (penser autrement)16. Em Nietzsche , por vezes, difcil determinar exatamente como esta relao de condicionamento mtuo entre crtica e criao est inclinada, pendendo s vezes para um lado, s vezes para o outro. Mas deve-se sempre ter o cuidado de no confundir Deleuze e o filsofo que ele est comentando: ele raramente concorda completamente com eles. apenas a filosofia nietzscheana que permanece abstrata e dificilmente compreensvel se no se descobre contra quem ela dirigida17. A filosofia de Deleuze, no menos que a de Nietzsche, um anti-hegelianismo. Mas, ao contrrio de Nietzsche, no essa oposio que define os contornos do sistema deleuzeano. A vantagem de pensar Deleuze segundo este vetor criativo pode ser mais bem explicada se consideramos as conseqncias de manter o oposto. Em resumo, inclinar o pensamento de Deleuze em direo a uma filosofia crtica resultaria em consider-lo uma m verso de Michel Foucault, um foucauldiano que no sabe permanecer nos limites que estabeleceu para seu prprio pensamento. Numa palestra em 1978 na Sociedade Francesa de Filosofia sobre O que crtica?, Foucault explica que todo pensamento crtico, incluindo o seu prprio, necessariamente assombrado pelo fato de que no pode existir sem a coisa que critica18. Esse o limite que Foucault estabeleceu pra seu prprio pensamento crtico: no pode existir em e por si mesmo. A herana que ele reclama a do esclarecimento kantiano. Sapere aude! primeiro a coragem de propor um contra-poder, um poder de dizer no ao governo (num sentido bem amplo, dizer no a qualquer direo da mente em vocabulrio cartesiano).

  • Crtica arte de no ser governado assim, nem para isto, nem por eles (ibid). Em si mesma, um projeto maravilhoso, mas no tem nada a ver com o de Deleuze, no importa o quanto Deleuze adapte e retora o pensamento de Foucault para encaixar no seu em Foucault19. A ambio de Deleuze bem diferente: no pensar de outro modo em relao a uma forma de pensamento x que se tornou insuportvel, mas fazer toda forma de pensamento x pensar de outro modo em relao a si mesma, faz-la gaguejar, faz-la existir afirmando um devir nela. Ele est tentando fazer formas existentes de pensamento criarem seus prprios monstros atravs de estranhas combinaes com outras formas de pensamento (imaculada concepo = sntese disjuntiva)20. E atravs deste ecletismo perverso, ele tenta criar algo que pare em p sozinho, que dura (durao = evoluo criadora = diferir de si mesmo). A filosofia da imanncia mais um monumento do que uma arma, mais uma arte combinatria de agenciamentos do que uma arte estratgica de dispositivos (uma noo foucauldiana que conota a distribuio estratgica de foras numa situao de guerra). Mesmo quando Deleuze fala de mquinas de guerra, ele est construindo mquinas, no travando um combate. Contrariamente a Foucault, ele no critica prioritariamente formas de governo, mas cria um sistema de orientao no pensamento, uma mquina de orientao, como Arnaud Villani o chamou21. Todos sabem: esse um tema kantiano, essa questo de se orientar no pensamento, da razo como um senso de localizao22. Mas poderia vantajosamente ser revivido num sentido no kantiano: no como um sistema de orientao no meu pensamento, como se o pensamento fosse uma qualidade inerente de um sujeito constitutivo, mas como um sistema que permitiria ao sujeito se orientar num pensamento do qual ele participa como uma de suas manifestaes (do mesmo modo que a alma para Espinosa uma simples modificao do atributo do pensamento, e uma parte da mente de Deus). No um guia para a conscincia individual, mas um mapa para se mover num mundo feito de pensamento. Poderamos dizer que a filosofia de Deleuze um sistema para orientar numa concepo espinosista do pensamento.

    4 Segunda assuno: a razo reta a razo natural ou a razo na natureza. A filosofia de Deleuze est flutuando (mais do que assenta) numa enorme ambio de construir um sistema de orientao total e criar um novo senso de localizao (uma nova imagem do pensamento). A esse respeito, ela herda projetos da metafsica do sculo XVII, como a characteristica universalis de Leibniz e o sistema more geometrico demonstratum de Espinosa que nutrem ambies similares de uma filosofia total. Essa ambio , em Deleuze como nos sistemas clssicos, intimamente relacionada com a noo de um sistema da natureza. A tica de Espinosa e a Monadologia de Leibniz no so simplesmente livros, mas mundos. Em Deleuze, o sistema da natureza chamado de o virtual. Para medir a profundidade desse segundo aspecto do classicismo de Deleuze, preciso questionar o estatuto ontolgico desse sistema da natureza, isto , o estatuto ontolgico do virtual. Esse outro lugar onde Badiou est no caminho certo, embora ele interprete mal a natureza da ontologia envolvida23. De acordo com Kant, as coisas so cognoscveis porque o sujeito esquematiza os fenmenos

  • dados a ele na percepo antes que eles sejam apresentados s categorias do conhecimento: o esquema prepara ou condiciona as percepes para serem processadas no entendimento. O esquema um sistema subjetivo para ordenar os fenmenos (um mapa subjetivo da percepo em que o entendimento marca os nomes dos lugares). Se Deleuze s vezes compara seu conceito ed virtual com o conceito kantiano de esquema, apenas para se distanciar do subjetivismo do modelo kantiano. O sujeito no est nunca na origem do esquema, mas o sujeito est no esquema, porque o esquema , na realidade, um sistema da natureza. O sujeito est imerso no infinito. Estamos familiarizados com esse trao clssico do pensamento de Deleuze: seu ponto de partida est no infinito24. No o sujeito que pensa, mas o sujeito aparece no pensamento. Longe de ser uma doutrina reservada aos espinosistas, essa era tambm a intuio de Hume na leitura ontolgica um tanto estranha de Deleuze do empirismo. Hume no mostrou que o sujeito existente tem hbitos. Ele mostrou que o prprio sujeito um hbito de existncia, hbito sendo uma espcie de repetio material espontnea no prprio Ser25. Lido dessa forma curiosa, Hume no um precursor da filosofia crtica, mas antes um pensador clssico imerso na infinitude do Ser. Se Hume mostra, contra os racionalistas clssicos, que a origem da ordem da natureza so simples hbitos, a ordem da natureza que produzida por esses hbitos so hbitos da natureza infinita, no do sujeito finito que a contempla; se a ordem da natureza produzida por hbitos e no por Deus, o sistema , ainda assim, um jeito de ser da natureza e no uma fico do sujeito. Lido dessa forma, Hume est mais prximo de Espinosa do que de Kant.

    5 a oscilao conceitual entre Espinosa e Hume que nos permite definir mais precisamente a ontologia do sistema da natureza. No pensamento clssico, h duas concepes principais da noo de sistema. H uma noo nominalista e uma noo realista: sistema concebido como modelo da natureza, sistema concebido como um modo de ser da natureza. Em Leibniz, por exemplo, a noo de sistema pertence prpria natureza.: no um modelo, mas uma maneira de ser. Tudo o que uma filosofia faz representar uma ordem que pertence ontologicamente prpria natureza independentemente de sua representao sistemtica (como a harmonia pr-estabelecida de Leibniz). Essa tambm a concepo que Michel Foucault analisa em As palavras e as coisas em relao a outros domnios de pensamento que no a filosofia (histria natural, gramtica geral, anlise da riqueza). O pensamento clssico um pensamento que representa porque repousa na pressuposio de um a ordem na prpria natureza26 . A noo ntica de sistema criticada por certos nominalistas radicais. De acordo com Hobbes, por exemplo, todos os sistemas conceituais so simples funes de uma ordem arbitrria imposta pelo sistema da linguagem. Por esta razo, todos os sistemas de pensamento so simples modelos no pensamento (Leibniz designou isso de super-nominalismo). esse princpio nominalista que encontramos generalizado no empirismo radical de Hume: todos os sistemas so exteriores em relao ao que eles sistematizam. Ou seja, todas as relaes ordenadas que o pensamento estabelece entre as coisas so puramente extrnsecas e no fundadas nas coisas elas mesmas. De acordo com a leitura de Deleuze,

  • Hume uma espcie de anti-Leibniz. Ele reverte o princpio de razo suficiente (esse grito da razo, como Deleuze o denomina). A expresso lgica do princpio de razo aquela da natureza universal e analtica da verdade, a inerncia de todos os predicados possveis no sujeito ou a interioridade de todas as relaes aos seus termos (in esse)27. O princpio que governa o empirismo de Hume o exato oposto: Hume descobre a exterioridade das relaes aos seus termos. uma pura lgica das relaes28. Leibniz ou Hume, ento? Eu diria que Deleuze escapa a esta alternativa entre nominalismo sistmico e realismo sistmico, muito embora seu pensamento se incline em direo concepo realista. Mas como isso possvel? Antes de tentar explicar a possvel coexistncia dessas duas concepes, precisamos primeiro considerar como essas duas concepes de sistema (nominal e real) fazem sua entrada na filosofia de Deleuze. Deleuze insiste freqentemente na realidade do virtual. O virtual [...] no oposto ao real, ele tem uma plena realidade por si mesmo29. Ele tem o estatuto ontolgico um tanto enigmtico de ser real sem ser atual, ideal sem ser abstrato, como diz Deleuze com uma forma que toma emprestado de Proust30. Essa afirmao levou Badiou a rotular a filosofia de Deleuze de platonismo do virtual31. Mesmo que esta seja uma interpretao inadequada, permanece verdadeiro que essa realidade do virtual de enorme importncia para qualquer entendimento do pensamento de Deleuze. No nosso contexto, o fato de que o virtual tenha uma ontologia torna bastante claro que Deleuze adere, de uma maneira ou de outra, a uma concepo ntica do sistema da natureza. Mas e a exterioridade das relaes descoberta por Hume? Essa idia envolve uma separao entre a ordem do pensamento e a existncia do Ser, tornando-as (ao menos momentaneamente) exteriores uma a outra, tirando um pouco do poder do pensamento, mas tambm liberando um pouco de caos dos regimes da representao. Tal concepo parece envolver um certo dualismo que Deleuze, de fato, endossa (ao menos provisoriamente). Ele fala das duas metades do absoluto e distingue entre um poder de Ser e um poder de pensar32. Estes so tambm duas faces do plano de imanncia: o plano de imanncia tem duas faces, como Pensamento e como Natureza, como Physis e como Nous33. Mas como Deleuze pode afirmar que essas duas faces do absoluto, extrnsecas uma em relao outra, ainda so duas faces do mesmo absoluto? E como pode afirmar a realidade do sistema (pensamento, representar a natureza), se o sistema exterior realidade (natureza, ser)? Expresso no aparato conceitual um tanto tcnico de Diferena e repetio, o problema do estatuto ontolgico do sistema diz respeito a como o domnio do virtual (o cu, o poder de pensar, o virtual, o sistema, Nous) est relacionado ao domnio do intensivo (a terra, o poder de ser, o intensivo, a natureza, Physis).: a tradio racionalista clssica defende a interioridade do virtual no intensivo (pressuposio da ordem), enquanto a tradio empirista radical afirma o exato oposto, isto , a exterioridade do virtual em relao ao intensivo. Como podemos afirmar que o virtual exterior ao ser, mas que ele ainda assim tem uma ontologia, sem postular dois tipos de ser (isto , uma equivocidade do Ser)? Essa maneira como a realidade do sistema virtual da natureza deve ser enunciada: o problema espinosista mais do que platnico. tambm a questo que deve ser posta para entender como Deleuze concilia os dois

  • conceitos de sistema (como modelo ou como sistema da natureza): como pode o sistema, ao mesmo tempo, ser um puro modelo de pensamento extrnseco natureza e uma ordem de ser intrnseca natureza? A reconciliao dessas duas concepes aparentemente opostas repousa no apelo criatividade, inveno e experimentao na leitura de Deleuze do empirismo. Essa interpretao reverte mais uma vez a tradio filosfica segundo a qual o empirismo de Hume um preldio crtica kantiana. Segundo Deleuze, o empirismo no um pensamento pr-crtico que destri a pressuposio racionalista de uma ordem da natureza, mas um pensamento criativo que mostra como tal ordem produzida. Ele mostra como o sistema da natureza e precisa ser criado e inventado atravs de experimentao34. O empirismo de Hume se torna uma extenso criativa do paradigma clssico. Deleuze reconcilia as concepes empirista e racionalista de sistematicidade sugerindo que uma ordem da natureza, ou um sistema no sentido ntico, no simplesmente o que , que ns apenas descobriramos (como a maior parte da tradio racionalista afirma). Isto , no a construo de um sujeito perceptivo, um simples esquema (como a tradio crtica afirma), mas a ordem da natureza algo que vem a ser (no sentido ntico do termo) atravs de um sujeito perceptivo. O empirismo uma ars combinatoria. As experimentaes empiristas so propostas para modos de ser, esboos sistemticos que aparecem na natureza (constelaes). E o empirista um inventor de lgica, um pequeno bricoleur. Tal sujeito constitutivamente aberto funciona como uma espcie de rel atravs do qual o poder de ser ordenado e distribudo num ato de experimentao ou inveno de ordem. Esse sujeito-rel aberto ser chamado de mquina em Capitalismo e esquizofrenia.

    6 Um sistema representacional ou imagem do pensamento torna-se efetivo atravs de uma mquina-sujeito. O poder de ser (ou o intensivo) atualiza o poder de pensar (ou o virtual); o virtual, por sua vez, organiza o intensivo num determinado jeito de ser. A Physis ou Natureza se torna um sistema atravs do Nous ou pensamento- Nous ou sistema devm atravs da Natureza ou Physis. Esta concepo do sistema como sistema-produo tem a seguinte conseqncia: nenhum pensamento simplesmente a representao de algo que ele no condiciona ao mesmo tempo (ordem divina, transcendncia, ordem natural dada). Antes, o prprio representado s existe no ato de representar (o virtual no existe fora das suas atualizaes Deleuze o repete constantemente). por isso que Deleuze se d tanto ao trabalho de advertir contra os regimes da representao no captulo central de Diferena e repetio. Eles no so apenas abstraes ou falsas imagens. Os regimes da representao no representam algo que no existe (falsidade), mas trazem existncia o que representam. So perigosos porque muito reais: os regimes da representao no so simplesmente ms maneiras de pensar, eles induzem uma existncia m (isto , reativa). Mas como isso possvel? Como representar algo pode faze-lo tornar-se igual ao seu representado? Resumindo: como pensar afeta o ser? Deleuze, no menos que os ps-cartesianos, confronta-se com o clssico problema psico-fsico da relao (ou ausncia de relao) entre corpo e mente. Segundo a

  • terminologia de Diferena e repetio, esse o problema de como o virtual se relaciona com o intensivo35. A soluo para o nosso problema simples e espinosista: se o virtual pode afetar (isto , organizar) o intensivo e o intensivo pode afetar (ou seja, atualizar) o virtual porque o virtual ou poder de pensar j um aspecto do poder de Ser. Essa construo perfeitamente anloga maneira como Deleuze explica a doutrina do (duplo) paralelismo na metafsica de Espinosa36. Uma das lies que Deleuze aprendeu de Espinosa de que o pensamento afeta o ser porque participa desse ser (o atributo pensamento de Espinosa). O puro pensamento do virtual no simplesmente situado em frente de um mundo de intensidades que escapa de suas representaes, mas h no prprio virtual um tipo de ser, um grau de intensidade, uma participao do Ser que no tem nada a ver com o mundo das Idias platnico. Deve ser, entes, entendido segundo o modelo do conceito de atributo pensamento de Espinosa, o virtual sendo, ao mesmo tempo, o que uma representao global da natureza (como o intellectus Dei de Espinosa) e uma das expresses da natureza que ele representa (como o atributo pensamento de Espinosa ou cogitata absoluta)37. O virtual tem sempre uma parte imersa no domnio selvagem das intensidades: ele participa daquilo que representa. O dualismo do momento empirista (exterioridade entre virtual e intensivo, entre relaes e termos) aqui resolvido num monismo complexo (inscrio do virtual no intensivo, o virtual como intensidade ou o ser do virtual). A parte intensiva do pensamento determinada, em Diferena e repetio, como a faculdade da imaginao, que transgride todos os domnios e alcana a unidade da natureza e do esprito38. atravs da imaginao que o pensamento afeta o ser, porque ela , ao mesmo tempo, representao e produo de pensamento-ser (o ser cru do pensamento, diria Foucault). Mas tambm por intermdio da imaginao que ser se torna pensar, ou um sistema de pensamento se torna o sistema da natureza, e pensamento se torna ser.

    7 Mas como isso acontece mais especificamente: quais so os mecanismos pelos quais um sistema adquire existncia e um modelo se torna natureza? Deleuze trata essa questo sob o nome de sntese passiva em Diferena e repetio. H trs dessas snteses: hbito, memria e eterno retorno Hume, Bergson e Nietzsche. As duas primeiras snteses so estticas, elas concernem o modo pelo qual algo passa a ser. A terceira, o eterno retorno, uma sntese dinmica: ela concerne apenas o devir e coloca o princpio de acordo com o qual as coisas so na medida em que devm. Hbito e memria so dois mecanismos pelos quais um sistema ou imagem de pensamento se impe sobre a natureza atravs de um sujeito-mquina pelo qual o pensamento permeia o ser e vice-versa. O hbito um mpeto do pensamento para o futuro: precipitao ou ante-viso, expectativa. Mas tambm , num certo sentido, ante-fazer. Hbitos no so simplesmente hbitos de pensamento, mas tambm hbitos de ser (no temos hbitos, somos hbitos)39. O hbito no s nosso hbito de ligar uma coisa com outra pelo pensamento, mas o hbito age sobre o ser porque estabelece relaes seriais entre singularidades e conecta intensidades (sujeitos larvares).

  • A sntese passiva da memria , no menos que o hbito, uma ao do pensamento sobre o ser. Ela coordena as sries conectivas que o hbito estabelece coordenando sries anteriormente presentes (x como realmente foi) e sries presentemente presentes (y como realmente ), fazendo-as comunicar uma com a outra. A memria pura ou coexistncia virtual resulta desta ressonncia entre eventos. estrutura sem termos, nem x nem y, mas a essncia de sua diferena: isso o passado puro, o modo como as coisas nunca foram, ou o virtual enquanto tal (dy/dx)40. Os hbitos so apenas trapos muito ardilosos de virtualidade: no duram para alm do presente de sua constituio repetitiva. Com a segunda sntese, adquirimos um sistema completo capaz de se manter na existncia e se reproduzir em outras reas do pensamento. Vou insistir mais uma vez: estes sistemas de ressonncia no so simplesmente instrumentos do entendimento. A memria no um elemento em uma psicognese que tem lugar num sujeito constitutivo. antes o sujeito que constitudo nas dobras da rememorao. O sujeito aquele que resulta da ressonncia. A memria, como o hbito, parte de uma ontognese geral e o virtual uma espcie de memria global na qual as coisas so determinadas41. A questo do souvenir pur e o estatuto do virtual no so uma questo de psicologia. uma questo de ontologia: S o presente psicolgico, - mas o passado pura ontologia, apenas a memria pura tem significao ontolgica42. Ora, como Deleuze coloca em Cinema II - A imagem-tempo, no a memria que est em ns, mas ns que nos movemos em um uma memria-ser, um mundo-memria43. Hbito e memria capturam singularidades. Eles concretamente agarram as coisas: j vi algo assim antes; algo assim ou assado, etc. No uma questo de simples identificao, mas o prprio processo pelo qual as coisas se tornam identificveis. Um evento x se singulariza como exatamente x ao mesmo tempo em que se torna cognoscvel. A sntese passiva implica uma aplicao particular do princpio berkeleyano do esse est percipii: x x porque eu o percebo assim, porque eu agarro e moldo (ou dobro) esta singularidade desta maneira particular. No h nada mstico nesta operao: todos ns a realizamos constantemente, fazendo um evento se tornar este evento, identificando x em relao a y atravs de determinao recproca e diferencial (dy/dx).Contudo, temos a tendncia de acreditar que x era x independente de nossa percepo dele, de acreditar que a determinao (dy/dx) derivada do determinandum (x e y), e no o contrrio. A snteses passivas do hbito e da memria so intimamente ligadas a uma funo de esquecimento e mascaramento44. Hbito e memria nos permitem identificar, mas tambm nos fazem esquecer de onde as coisas vieram. Esquecemos que somos pequenas mquinas atravs das quais as coisas se tornam o que so; pensamos que a determinao de x emanou do prprio x como de algo semelhante a ele. atravs desse esquecimento que as coisas adquirem uma essncia ou uma idia de que nos recordamos por trs de cada uma de suas efetuaes como algo tanto perdido quanto presente (reminiscncia). Por formular o conceito de reminiscncia, o platonismo a arte de esquecer as origens do pensamento.

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  • A terceira sntese passiva do eterno retorno introduz o devir, diferena no ser e no apenas entre entes. Nietzsche e a filosofia relaciona de perto o eterno retorno idia de um lance de dados, ou afirmao do acaso45. O um lance de dados do ser. Mas o que um lance de dados? um mpeto catico do poder de ser, mas tambm o retorno de outra ordem de necessidade (imagem do pensamento): O jogo tem dois movimentos, que so os do lance de dados: os dados jogados e os dados caindo46. um lance do ser em que o virtual arranjado numa constelao particular. O mundo organizado e distribudo numa forma necessria pela ao do acaso. O lance de dados a natureza propondo um sistema para si mesma atravs de algum sujeito-mquina. uma distribuio das coisas, um sistema da natureza no sentido ntico do termo sistema. Lanando dados, a natureza experimenta consigo mesma, Deus como um pequeno bricoleur. O eterno retorno faz.nos mover da diferenciao (como as coisas diferem umas das outras) para a diferenao (como as coisas diferem de si mesmas), segundo o termo complexo que Deleuze constri para a individuao dinmica em Diferena e repetio, a noo de indi-diferenci/ao47. O eterno retorno ou sntese dinmica o princpio de transformao imanente. , em primeiro lugar, um princpio que nos permite introduzir a diferena sem introduzir ruptura. Diz-se que Deleuze redescobriu o eterno retorno como um princpio de diferena, como eterno retorno do diferente. Mas Deleuze no foi o nico a faz-lo. Ele tinha isso em comum com vrios pensadores da sua gerao, sobretudo, Pierre Klossowski48. Certamente, Deleuze fornece uma forte leitura do conceito original de Nietzsche. Mas o que h de muito original nesta leitura que Deleuze concebe tal conceito como princpio de unidade e de continuidade. Os filsofos envolvidos na construo desse conceito original de unidade so Espinosa, Leibniz, Bergson e Nietzsche: unidade da substncia (univocidade), princpio de continuidade, evoluo criadora, eterno retorno. Essa a base para a nossa terceira afirmao concernente ao classicismo de Deleuze. Sua metafsica uma apologia para uma razo unificada. O sistema de Deleuze sempre permanece um sistema, um sistema dinmico e em transformao, claro, um sistema em evoluo criadora constante, mas, ainda assim, um sistema sem quaisquer rupturas: a natureza deleuzeana no d saltos. nisso que se sente muito fortemente a diferena entre Deleuze e seu amigo Foucault. Enquanto Foucault est sempre apegado noo de ruptura introduzida na epistemologia francesa por Bachelard e Canguilhem, Deleuze d continuidade s reflexes de Brgson em torno da evoluo criadora. Leibniz costumava dizer que tudo contnuo no oceano do conhecimento, que todas as cincias se comunicam com todas as demais. No h ruptura no conhecimento verdadeiro porque no h ruptura na ordem da natureza. Todas as maneiras de conhecer, se so verdadeiras, falam exatamente do mesmo mundo49. Deleuze e Guattari fazem uma alegao semelhante em O que a filosofia? Quando afirmam que h um plano de imanncia, apenas um plano unvoco sobre o qual os planos de imanncia se comunicam. Este mundo, contudo, no mais o da harmonia pr-estabelecida, mas da sntese disjuntiva, da harmonia constantemente restabelecida, perpetuamente recomposta atravs de movimentos forados. o mundo do eterno retorno.

  • No que haja uma ordem ou um sistema da natureza. antes a natureza que se torna uma ordem ou sistema, ou o prprio sistema est em devir. Ou seja, est sempre se transformando numa dinmica imanente. Deleuze freqentemente descreve esta dinmica por meio da noo de multiplicidades qualitativas (uma multiplicidade que muda de princpio mtrico em cada estgio de seu desenvolvimento. Esse acento no mltiplo, contudo, no deve nos fazer esquecer da unidade dessa evoluo criadora. um princpio de continuidade, ou durao, em termos bergsonianos50. A idia lebniziana de que a natureza no salta mais claramente formulada no conceito de univocidade do eterno retorno que Deleuze desenvolve na vigsima quinta srie de Lgica do sentido e em Nietzsche e a filosofia atravs da metfora da unidade dos lances de dado (eventum tantum)51. Unidade deve ser entendido num sentido muito particular, porque no uma determinao numrica52. Mais do que um princpio de unidade (o nmero 1), a univocidade um princpio de continuidade53. A doutrina da univocidade do lance de dados afirma que o sistema est em duplo contnuo devir. O devir sempre retorna sem interrupo porque um nico evento que retorna incessantemente como evento, como algo (diferente) que acontece: (a univocidade do ser) acontece como um nico evento para tudo aquilo que acontece s mais diversas coisas, Eventum tantum para todos os eventos54. No eterno retorno, apenas subsiste o Acontecimento, o nico Acontecimento, Eventum tantum para todos os contrrios, que se comunica consigo mesmo atravs de sua prpria distncia, ressoa atravs de todas as disjunes55. No que o ser repita o mesmo, mas o ser sempre a mesma repetio da diferena (sntese da diferena ou sntese disjuntiva). O que o eterno retorno expressa o novo significado de sntese disjuntiva. O eterno retorno no dito do mesmo (ele destri identidades). Ao contrrio, s o Mesmo que dito daquilo que difere em si mesmo56. A unidade do sistema uma unidade mais de acaso do que de necessidade. A unidade a do lance. Se no nunca a mesma constelao que resulta, sempre o mesmo lance de dados, o mesmo acaso ou caos que afirmado: No so nunca vrios lances de dados que, em funo de seu nmero, chegariam a reproduzir uma mesma combinao. Pelo contrrio: um s lance de dados que, em funo do nmero da combinao produzida, consegue se reproduzir enquanto tal57. a unidade do caos (ou do acaso o lance) que constitui a filosofia de Deleuze como um sistema unificado. Isso tambm expresso na estranha noo de universal a-fundamento em Diferena e repetio. A introduo dessa noo est longe de implicar uma negao da fundao ou do princpio de razo suficiente, mas antes o contrrio. a fundao no processo de se desmantelar, de se recriar, mas, ainda assim, alguma fundao, uma fundao, caosmos (nihil sine ratione est). O sistema de Deleuze gira em torno da concepo da unidade e continuidade do lance de dados, o operador final da univocidade do devir. No tem nada a ver com um novo transcendentalismo. No se pode garantir qualquer status especial ao virtual, como se fosse um reino transcendental das idias. assim que Alain Badiou tende a ler Deleuze em O clamor do ser. No vejo como

  • se poderia concordar58. O classicismo do sistema de Deleuze no se provm de uma transcendncia da ordem, mas de uma continuidade da ordem se bem que uma ordem muito estranha, porque uma ordem do caos, caosmos como razo unificada.

    9 Assuno final: o deleuzeanismo uma defesa da razo moral universal. A razo pela qual assumimos isso , mais uma vez, a univocidade do eterno retorno, mas no no mesmo sentido. O eterno retorno tanto um princpio de seleo tico quanto ontolgico. Este o sentido da dupla afirmao que Deleuze discute em Nietzsche e a filosofia59. O lance de dados o ser em devir, mas deve ser tambm afirmado como ser em devir. Afirmando a afirmao, mudamos do ser para a avaliao. Deleuze faz uma manobra extraordinariamente no moderna quando coloca o eterno retorno como nico princpio dinmico do devir e como nico objeto de toda afirmao tica verdadeira. Esse ainda um paradoxo do classicismo de Deleuze: ele profundamente clssico por causa (e no apesar) de seu nietzscheanismo: construir uma filosofia moral sobre a base de uma afirmao vitalista dos ser, fazer da existncia um valor e da afirmao da existncia, uma virtude. Uma filosofia da avaliao que prope como critrio supremo de seleo tica a afirmao do ser como devir implica um retorno reflexivo ao atalho pr-kantiano do ao deve ser to caracterstico dos metafsicos do perodo clssico. Mas no h erro categorial: uma iluso nominalista acreditar que o pode ser separado do deve, como se o pensamento no afetasse o ser, como se a natureza fosse completamente indiferente aos sujeitos-mquina que a atualizam. O teste tico do eterno retorno um princpio de seleo: ele seleciona tudo, menos o mesmo porque a nica coisa que retorna a prpria seleo ou afirmao da diferena60. o ser selecionando a si mesmo como devir61. Mas o que significa exatamente dizer que o ser seleciona a si mesmo? tudo uma questo de qual sistema a prpria natureza afirma como sendo o sue prprio, e qual sistema da natureza nega a natureza, uma razao delirante que faz a natureza delirar consigo, parafraseando Espinosa. O sistema que a natureza mesma seleciona a prpria definio de recta ratio. No uma questo de se a razo passa no teste ou no, mas que razo passa no teste: ativa ou reativa, reta ou distorcida. Uma virtualidade especfica (um sistema da natureza ou imagem do pensamento) a expresso de uma razo, a sedimentao de um tipo especfico de racionalidade num sistema estendido de pensamento e ser. uma organizao do pensamento de acordo com princpio especfico (ou ratio) designado pelo lance de dados. Esta ratio pode ser avaliada de acordo com critrios imanentes como potncia, alegria, afirmao (Espinosa), ou mais precisamente, de acordo com o critrio do quanto afirma o ser do devir (Nietzsche). H muitos tipos de racionalidade, mas elas no so moralmente indiferentes. Algumas so melhores, mais retas do que outras. E a avaliao de se uma razo reta, ou se ela merece ser afirmada o teste do eterno retorno. Como princpio unvoco de seleo, o teste tico do eterno retorno aspira universalidade. A seleo do eterno retorno um princpio de moralidade que Deleuze no hesita em colocar como alternativa ao imperativo categrico kantiano. Diferente do teste formal proposto por Kant, aspira mesma

  • universalidade. uma nova formulao da sntese prtica: o que voc quiser, voc deve querer de tal maneira que voc queira tambm o seu eterno retorno62. Este teste onto-tico formalmente sempre o mesmo teste: o nico Mesmo que dito de tudo o que difere em si mesmo63. sempre e universalmente a mesma questo que deve ser feita: posso afirmar isto? Posso sempre afirm-lo? Em outras palavras, o teste do lance de dados, ou da dupla afirmao, um princpio universal (mais no transcendental) de tica: razo moral universal.

    10 Esses so os componentes precisos que constituem o sistema de Deleuze como um sistema metafsico clssico: define-se como a empresa de defender a razo reta, razo natural, razo unificada, razo moral universal. Essas no so determinaes que normalmente acompanhariam um comentrio sobre um filsofo que geralmente (com alguma justificao) arquivado na caixa com a etiqueta ps-estruturalismo e s vezes (sem nenhuma justificao) colocado mesmo naquela etiquetada ps-modernismo. Na mente de qualquer filsofo ligado ao modernismo e crtica da metafsica, o qudruplo racionalismo de Deleuze seria mais do que suficiente para desqualificar seu pensamento sem maiores esclarecimentos. E os modernistas estariam perfeitamente certos em considerar o pensamento de Deleuze como constitutivamente no moderno. Mas talvez devssemos para de ser modernos e nos tornar um pouco mais clssicos? Talvez seja este o significado da ambgua afirmao de Foucault sobre o sculo se tornar deleuzeano64, ao menos se seguirmos a interpretao do prprio Deleuze acerca da observao: Eu no sei o que Foucault queria dizer, nunca perguntei a ele. Ele tinha um senso de humor diablico. Talvez ele quisesse dizer o seguinte: que eu era o mais ingnuo dos filsofos da nossa gerao. Eu no era o melhor, mas o mais ingnuo, uma espcie de art brut, digamos, no o mais profundo, mas o mais inocente (o que tinha menos sentimento de culpa de fazer filosofia65. Fazer filosofia o que est envolvido na qudrupla determinao do racionalismo deleuzeano que propus acima. Ingenuidade a confiana na razo que esta atividade implica. O Art brut a universalidade sistemtica a que ele aspira, esse ar decepcionante de abstrao pura que emana de Diferena e repetio. Certamente, essas determinaes so tambm, de outra perspectiva, estritamente opostas ao pensamento de Deleuze. Em outros aspectos, al pensamento da disperso mais que da organizao (desenhando linhas de fuga mais que planos de organizao); da singularidade mais que da universalidade (enquanto filosofia do acontecimento); da multiplicidade mais que da unidade (como filosofia das multiplicidades qualitativas), etc. oposto ao princpio mestre de mesmidade que Leibniz evoca freqentemente para ilustrar a harmonia de seu prprio sistema, a afirmao que Arlequim fez depois de uma visita lua: l como aqui, como em todo lugar, partout comme ici66. Em Lgica do sentido, Deleuze exclama: o Ser, o Uno e o Todo so mitos de uma falsa filosofia toda impregnada de teologia67. Zaratustra o adversrio de Arlequim: de acordo com o profeta de Nietzsche, no nunca o mesmo aqui, l ou em qualquer lugar. Ao contrrio, nada o mesmo, exceto pelo fato de que tudo difere. No apenas a lua

  • diferente da Terra, mas a Terra at difere de si mesma. nulle part comme ici, mme pas ici... Nada volta jamais. Este mesmo um momento de multiplicidade. Mas, pode ser decepcionante opor categoricamente Zaratustra ao princpio de Arlequim. Porque o prprio retorno retorna e permanece o mesmo: o mesmo retorno da diferena que retorna aqui e l, e em todo lugar, o eventum tantum. A prpria diferena universal (afirmao) e deve ser universal (afirmao da afirmao). A univocidade do eterno retorno traz o crculo completo do sistema deleuzeano de volta a uma metafsica da unidade (e no do Uno). o princpio de continuidade ou durao que constitui a filosofia da diferena de Deleuze como um sistema unificado da natureza e como um universalismo moral. 1 A pesquisa para este artigo foi financiada pela Fundao Carlsberg. Agradeo a Hasana Sharp pela correo da lngua inglesa. Quaisquer descuidos restantes so de minha responsabilidade. 2 Cf. A. Badiou. Deleuze. La clameur de ltre. Paris 1997, p. 69. See also A. Villani, Deleuze et lanomalie mtaphysique. Eric Alliez (ed.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique. Paris 1998, p. 51. 3 G. Deleuze. Lettre-prface. J.-C. Martin. Variations. Paris 1993, p. 7. 4 G. Deleuze and F. Guattari. Quest-ce que la philosophie ?. Paris 1991, p.14. Traduo brasileira de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muoz. O que a filosofia?. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 17. 5 Cf. Deleuze cit. in M. Joughin. Translators Preface. G. Deleuze. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York 1992, p. 11. See also Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p. 49, p. 59. 6 G. Deleuze. Pourparlers. Paris 1990, p. 198. 7 G. Deleuze & F. Guattari. Mille plateaux. Paris 1980, p. 190-91. Traduo de Aurlio Guerra Neto. Mil plats, Rio de Janeiro, Ed. 34, pp. 14 e 15. 8 Cf. G. Deleuze. Le Pli. Leibniz et le baroque. Paris 1988. Para Foucault, ver G. Deleuze. Foucault. Paris 1986, p. 101-30 ; p. 133-41. Embora Deleuze persiga dois alvos analticos diferentes nestes dois livros, , na minha opinio, o mesmo conceito de dobra operando em ambos: esssa idia de um sujeito vivendo nas dobras. 9 G. Deleuze. Logique du sens. Paris 1969, p. 200-201. 10 Cf. M. Lrke. Deleuzian becomings and Leibnizian Transubstantiation. Pli.Warwick Journal of Philosophy 12 (2001), p. 104-117. 11 Cf. B. De Spinoza. Trait thologico-politique. Ed. Latim / Francs realizada por F. Akkerman, P.-F. Moreau & J. Lagre ? Paris 1999, chap. XV, p. 482-83. 12 Cf. ibid., Praefatio, p. 58-59. 13 Concerning Deleuze and Badiou, ver tambm o artigo extremamente til de Alberto Toscano. To have done with the end of philosophy. Pli. Warwick Journal of Philosophy 9 (2000), p. 237 sqq. 14 Cf. G. Deleuze. Nietzsche et la philosophie. Paris 1962, 19982, p. 1. 15 Ibid., p. 107. 16 Cf. Foucault, op. cit., p. 54 sqq. 17 Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 9.

  • 18 Cf. M. Foucault: Quest-ce que la critique? [Critique et Aufklrung]. Bulletin de la Socit franaise de philosophie, LXXXIV (1990), p. 35-53. 19 Cf. Foucault, op. cit. 20Cf. Pourparlers, op. cit., p. 15. 21 Cf. A. Villani, op. cit , p. 44. 22 Cf. I. Kant. Was heiszt sich in Denken orientieren. Berlinische Monatsschrift (october 1786). 23 Cf. A. Badiou, op. cit., p. 67 sqq. 24 Cf. Foucault, op. cit., p. 94, p. 131-34; G. Deleuze. Spinoza et le problme de lexpression, Paris 1968, p. 22. 25 Cf. G. Deleuze. Empirisme et subjectivit, Paris 1953, 19982, p. 15, p. 120; Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p. 49; G. Deleuze. Empiricism and Subjectivity, New York 1991, Prefcio edio inglesa, p. x. 26 Cf. M. Foucault. Les mots et les choses. Paris 1966, p. 92-228. 27 Cf. G. W. Leibniz. Discours de mtaphysique, passim. 28 Cf. G. Deleuze and C. Parnet. Dialogues. Paris 1996, 69; G. Deleuze. Hume. F. Chatelet ed. Histoire de la philosophie. Les lumires, le XVIIIme sicle. Paris 1972. See also G. Deleuze. Empirisme et subjectivit. Paris 1953, 19982, p. 120. 29 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 269. 30 Cf. G. Deleuze. A quoi reconnat-on le structuralisme?. F. Chtelet ed. Historie de la philosophie: la philosophie au XXme sicle, Paris 1979, p. 307; Diffrence et rptition, op.cit., p. 269 sq.; Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p. 148.. 31 Cf. A. Badiou, op.cit., p. 69-70. 32 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 134-35; Spinoza et le problme de lexpression, op. cit., p. 103-4; Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p. 50. A distino entre os dois poderes , originalmente, de Espinosa. Ver Ethica II, prop. 7, corol., e a Letter XL to Jarig Jelles. 33 Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p. 41. 34 Cf. Dialogues, op. cit., p. 68-73. 35 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 96-108. 36 Cf. Spinoza et le problme de lexpression, op. cit., p. 99-113. See also G. Deleuze. Spinoza. Philosophie pratique. Paris 1981, p. 92-98. 37 Para a distino entre pensamento e intelecto em Espinosa, ver Ethica I, prop. 31. 38 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 284. 39 Cf. ibid., p. 107-8. 40 Cf. G. Deleuze. Le bergsonisme. Paris 1966, 19972, p. 45-70; G. Deleuze. Proust et les signes. Paris 1964, 19982, p. 75-76, p. 183. 41 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 114, p. 274.. 42 Cf. Le bergsonisme, op. cit., p. 51. 43 Cf. G. Deleuze. Cinema II: Limage temps. Paris 1985, p. 129-30. 44 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 28. 45 Cf. Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 29-31. 46 Cf. ibid., p. 29-30. 47 Cf. Diffrence et rptition, p. 270 sqq., p. 284-85, p. 358. 48 Cf. P. Klossowski. Nietzsche et le cercle vicieux, Paris 1969. 49 Cf. G. W. Leibniz. Essais de Thodice, 9; Nouveaux essais sur lentendement humain, IV, xxi, 4. 50 Le bergsonisme, op. cit., p. 32-36; G. Deleuze. Bergson. 1859-1941. M. Merleau-Ponty (ed.). Les philosophes celbres. Paris 1956, p. 295. 51 Cf. Logique du sens, op. cit., p. 208-211. 52 O absoluto no contm nmeros, mas apenas qualidades. Isto obviamente uma teoria bergsoniana. Mas, encontramos isso tambm em Espinosa (ver Eth, I, prop. 8). 53 Univocidade significa unidade mais no sentido de unio do que no sentido de um carter nico (em ingls, o autor jogou com uma oposio entre unity e oneness), porque a univocidade no uma determinao numrica cf. Spinoza et le problme de lexpression, op. cit., 21-32).. Esta a razo pela qual a controvrsia de Badiou segundo a qual a filosofia de Deleuze seria uma metafsica do Uno (Badiou, op. cit., p. 20) deve ser considerada com muita precauo. Notamos o

  • comentrio ambguo da p. 39: univocidade no significa primeiramente que o ser seja numericamente uno, o que seria uma assero vazia. Esta assero parece de fato implicar que Badiou considera univocidade como uma determinao numrica, embora no seja seu significado primeiro. A respeito desta questo, ver tambm meu artigo The Voice and the Name. Spinoza in the Badioudian critique of Deleuze. Pli. Warwick Journal og Philosophy 8 (1999), p. 86-99, and A. Toscano, op. cit. 54 Logique du sens, op.cit., p. 210. 55 Ibid., p. 207. 56 Ibid. p. 348-49. 57 Diffrence et rptition, op. cit., p. 29. 58 Cf. A. Badiou, op. cit., 68-72. No vou elaborar mais longamente uma crtica da leitura de Deleuze feita por Badiou que publiquei alhures (artigo citado acima). Badiou pode estar certo de se irritar contra todos os pos deleuzeanos (como eu) que passam seu tempo dizendo a ele que ele est lendo mal Deleuze (a respeito do texto no publicado de Badiou Onze notes sur le petit deleuzien, ver A. Toscano, op. cit., p. 229). O objeto dessa explanao simplesmente evitar que minha leitura da filosofia de Deleuze como um sistema clssico seja confundida com a definio dela por Badiou como um platonismo do virtual. Para mim, ela no o . 59 Cf. Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 77-80, p. 217; Nietzsche, Paris 1965, 19972 , p. 37-38. 60 Cf. Diffrence et rptition, op. cit., p. 152, p. 381-82. 61 Cf. G. Deleuze. Le mystre dAriane selon Nietzsche. Critique et clinique. Paris 1993, p. 133-34. 62 Ibid., p. 77. 63 Logique du sens, op. cit., p. 348-49. 64 Cf. M. Foucault. Theatrum Philosophicum. Dits et Ecrits 1970-75. Paris 1994, p. 75-99. 65 Pourparlers, op. cit., p. 122. 66 Cf. G. W. Leibniz. Nouveaux essais sur lentendement humain, IV, xvi, 12. 67 Cf. Logique du sens, op. cit., p. 323.

    ! Mogens Laerke. Nascido em 1971. De nacionalidade dinamarquesa. Doutor (Docteur s Lettres) em Histria da Filosofia pela Universidade de Paris -Sorbonne com uma tese a respeito de Leibniz e Espinosa orientada por P.-F. Moreau. Escreveu alguns artigos acerca de Deleuze, G. W. Leibniz e B. de Espinosa. Publicou recentemente um livro a respeito da presena do cabalismo na filosofia do sculo XVII. ("Kabbalismen i den europaeiske tanke", Modtryk 2005). Atualmente, empregado como pesquisador de ps-doutorado com bolsa da Fundao Carlsberg. Projeto geral: teologia e poltica no racionalismo do sculo XVII. e-mail: [email protected] www.alegrar.com.br