Filosofia Da Caixa Preta

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  • 8/6/2019 Filosofia Da Caixa Preta

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    VILEM FLUSSER

    Filosofia da Caixa Preta

    Ensa io s p ara uma fu tu ra filo so fia d a fo to gra fia

    EDITORA HUCITECS ao P au lo , 1 98 5

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    Direitos autorais 1983 de Vilern Flusser. Titulo do original alernao: FO r e in e P hilo so ph ie d erFotograf ie. Traducao do autor. Direitos de publicacao em lingua portuguesa reservadospela Editora de Humanismo, Ciencia e Tecnologia "Hucitec" Ltda., Rua ComendadorEduardo Saccab, 344 - 04602 - Sao Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319.

    Pro je to gra f ico : Estudio Hucitec.

    Capa: Fred Jordan.Fo to da c on tra capa : Sakae Tajima.

    Flusser, Vilern, 1920 -Filosofia da caixa preta - Sao Paulo: Hucitec, 1985.92 p.

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    SUMARIO

    Prefacio a edic;ao brasileiraGlossario para uma futura filosofia da fotografia

    1 A imagem2 A imagem tecnica3 0 aparelho4 0 gesto de fotografar5 A fotografia6 A distribuicao da fotografia7 A recepcao da fotografia8 0 universo fotoqrafico9 A necessidade de uma filosofia da fotografia

    Flusser e a liberdade de pensar, ouFlusser e uma certa gerac;ao 60 Maria Lilia Leao

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    PREFAclO A EDI~AO BRASILEIRA

    o presente ensaio e resumo de algumas conterencias e aulas que pronunciei sobretudo naFranc;a e na Alemanha. A pedido da European Photography, Gtitlingen, foram reunidasneste pequeno livro publicado em alernao em 1983. A reacao do publico (nao apenas dosfotografos, mas sobretudo do interessado em filosofia) foi dividida, porern intensa. Emconsequence a polernica criada, escrevi outro ensaio "Ins Universum der technischenBilder" ( Adentrando 0 universo das imagens tecnicas), publicado em 85, onde procuroampliar e aprofundar as reflexoes aqui apresentadas.

    Estas partem da hip6tese segundo a qual seria possfvel observar duas revolucoesfundamentais na estrutura cultural, tal como se apresenta, de sua origem ate hoje. Aprimeira, que ocorreu aproximadamente em meados do segundo rnilenio a c ., pode sercaptada sob 0 r6tulo "invencao da escrita linear" e inaugura a Hist6ria propria mente dita;a segunda, que ocorre atualmente, pode ser captada sob 0 r6tulo "invencao das imagenstecnicas" e inaugura um modo de ser ainda dificilmente definfvel. A hip6tese admite queoutras revolucoes podem ter ocorrido em passado mais remoto, mas sugere que elas nosescapam.

    Para que se preserve seu carater hipotetico, 0 ensaio nao citara trabalhosprecedentes sobre temas vizinhos, nem contera bibliografia. Espera assim criar atmosferade abertura para campo virgem. Nao obstante, incorporara um breve qlossario de termosexplfcitos e implfcitos no argumento, no intuito de clarear 0 pensamento e provocarcontra-argumentos. As defmicoes no qlossario nao se querem teses para defesas, maship6teses para debates.

    A intencao que move este ensaio e contribuir para um dialoqo filos6fico sobre 0aparelho em funC;ao do qual vive a atualidade, tomando por pretexto 0 tema fotografia.Submeto-o, pois, a apreciacao do publico brasileiro. Fac;a-o com esperance e com receio.Esperanc;a, porque, ao contrario dos demais publicos que me leern, sinto saber para quemestou falando; receio, por desconfiar da possibilidade de nao encontrar reacao crftica. Estepretacio se quer, pois, aceno aos amigos do outro lade do Atlantico e aos crfticos daimprensa. Que me leiam e nao me poupem.

    Percebo que editar este ensaio no contexto brasileiro e empresa aventurosa. Queroagradecer aos que nela mergulharam, sobretudo Maria Lilia teao, por sua coragem eamizade. Que sua iniciativa contribua para 0 dialoqo brasileiro.

    V . F .Sao Paulo, outubro 85

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    GLossARIO PARA UMA FUTURA FILOSOFIA DA FOTOGRAFIA

    Aparelho: brinquedo que sim ula um tipo de pensam ento.Aparelho totoaretico: b rin qu ed o q ue tra du z p en samento co nce itu al em fo to gra fia s.Autome to : aparelho que obedece a program a que se desenvolve ao acaso.Brinquedo: o bje to p ara jo ga r.Codigo: sistema de signos orde nado por re gras.Concei to: e lemen to c on stitu tiv o d e te xto .Conceituar;ao: c ap ac id ad e p ara c ompo r e d ec ifra r te xto s.Consaende histoncs; c on sc ie nc ia d a lin ea rid ad e ( p or e xemp lo , a c au sa lid ad e).Decifrar. revelar 0 s ig nific ad o c on venc io nado de sirnbolos,Entropia: te nd en cia a s itu ac oe s c ad a v ez mais p ro va ve is,Fotografia: im ag em tip o-fo lh eto p ro du zid a e d is trib uid a p or a pa re lh o.Potoqrsto: pe ssoa q ue procura inse rir na im agem inform acoe s im pre vistas pe lo apare lh ofotoqrafico,Funcioneno: pessoa que brinca com aparelho e age em funcao dele.Historia: traducao line arm ente progre ssiva de ide ias em conce itos, ou de im age ns emtextos.Ideia: e lemento c on stitu tiv o d a imag em .Idolatria: incapacidade de de cifrar os significados da ide ta, nao ob stante a capacidade dele -la , p orta nto , a do ra ca o d a imag em .Imagem: superfic ie s ig nific ativ a n a qua l a s id eia s s e in te r-re la cio nam magic amente .Imagem teatics: im ag em p ro du zid a p or a pa re lh o.Imaginar;ao: c ap ac id ad e p ara c ompo r e d ec ifra r im ag en s.Iototmsaio: s i tuacao pouco-provavel.Informar. p ro du zir s itu ac oe s p ou co -p ro va ve is e imprim i-Ia s em o bje to s.Instrumento: sirnulacao de um 6rgao do corpo hum ane que serve ao trabalho.logo: ativ idade que tem fim em si mesm a.Magia: e xis te nc ia n o e sp ac o-te rn po d o e te rn o re to rn o.Maquina: instrum ento no q ual a sirnulacao passou pe lo crivo da te oria.Mem6ria : c ele iro d e in fo rma coes .O b je to : a lg o co ntra 0 qua l esbar ramos .Ob je to cu ltu ra l. ob je to portador de inform acao im pre ssa pe lo h om em .Pos-nlstoris: proce sso circular q ue re traduz te xtos em im age ns.Pre-historia: dom inic de ide ias, ause ncia de con ce itos; ou dom inic de im age ns, ause nciade tex to s.Produr;ao: atividade q ue transporta ob je to da nature za para a cultura.Programa: jogo de com binacao com e leme ntos claros e distintos.Real idade: tu do c on tra 0 q ue e sb arram os no cam inh o a morte, portanto, aquilo que nosinteressa.Redundend. in fo rrn ac ao repe tid a, p orta nto , s itu ac ao p ro va ve l,Rito: c ompo rtamento p r6 prio d a fo rma e xis te nc ia l rn aq lc a.Scanning: movim ento de varredura que decifra um a situacao,Setores primerio e secunaer io : cam pos de ativ idades onde objetos sao produzidos einformados.Seto r tercia r io : c ampo d e a tiv id ad e o n d e in fo rmac oe s s ao p ro du zid as .

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    Significado: meta do signo.Signo: fe n6meno cuja m eta e outro fen6meno .Sfmbolo: s igno convenc ionado consc iente ou in conscientemente.Sintoma: s ig no c au sado pelo s eu s ig nific ad o.Situar;ao: c en a o nd e sa o s ign ifica tiv as as re lac oe s-e ntre -a s-co isa s e na o as co is as -mesmas.Soc iedade indust ria l: s ocie da de o n d e a maioria trab alh a c om rn aq uina s.Sociedade pas- industr ia l. s oc ie da de on de a maioria trab alh a no s eto r te rcia rio.Texto: signos da e scrita em linh as.Textolatr ia: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, nao obstante aca pac ida de de le -los , p ortan to , a do ra ca o a o te xto.Trabalho: ativ idade q ue produz e inform a ob jetos.Traduzir. m udar de um codiqo para outro, portanto, saltar de um universo a outro.Universo: conjunto das cornbinacoes de um codiqo, ou dos significados de um codiqo,Valor. dever-se.Valido: algo que e com o deve ser.

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    1. A IMAGEM

    Imagens sao superffcies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo quese encontra la fora no espaco e no tempo. As imagens sao, portanto, resultado do esforcode se abstrair duas das quatro dirnensoes espado-temporais , para que se conservemapenas as dirnensoes do plano. Devem sua origem a capacidade de abstracao especfficaque podemos chamar de i rnaqinacao, No entanto, a imaginaC;ao tem dois aspectos: se deum lado, permite abstrair duas dirnensoes dos fenomenos, de outro permite reconstituir asduas dirnensoes abstrafdas na imagem. Em outros termos: imaginaC;ao e a capacidade decodificar fenornenos de quatro dirnensoes em sfmbolos pianos e decodificar as mensagensassim codificadas. Irnaqinacao e a capacidade de fazer e decifrar imagens.o fator decisivo no deciframento de imagens e tratar-se de pianos. 0 significado daimagem encontra-se na superffcie e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto,tal metoda de deciframento produzira apenas 0 significado superficial da imagem. Quemquiser "aprofundar" 0 significado e restituir as dirnensoes abstrafdas, deve permitir a suavista vaguear pela superffcie da imagem. Tal vaguear pela superffcie e chamado scanning.o tracado do scanning segue a estrutura da imagem, mas tarnbern impulsos nofntimo do observador. 0 significado decifrado por este metoda sera, pois, resultado desfntese entre duas "intencionalidades": a do emissor e a do receptor. Imagens nao saoconjuntos de sfmbolos com significados inequfvocos, como 0 sao as cifras: nao sao"denotativas". Imagens oferecem aos seus receptores um espaco interpretativo: sfmbolos"conotativos".

    Ao vaguear pela superffcie, 0 olhar vai estabelecendo relacoes temporais entre oselementos da imagem: um elemento e visto apes 0 outro. 0 vaguear do olhar e circular:tende a voltar para contemplar elementos ja vistos. Assim, 0 "antes" se torna "depois", e 0"depois" se torna 0 "antes". 0 tempo projetado pelo olhar sobre a imagem e 0 eternoretorno. 0 olhar diacroniza a sincronicidade imaginfstica por ciclos.

    Ao circular pela superffcie, 0 olhar tende a voltar sempre para elementospreferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais dosignificado. Deste modo, 0 olhar vai estabelecendo relacoes significativas. 0 tempo quecircula e estabelece relacoes significativas e muito especffico: tempo de magia. Tempodiferente do linear, 0 qual estabelece relacoes causais entre eventos. No tempo linear, 0nascer do sol e a causa do canto do galo; no circular, 0 canto do galo da significado aonascer do sol, e este da significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo damagia, um elemento explica 0 outro, e este explica 0 primeiro. 0 significado das imagense 0 contexte rnaqlco das relacoes reversfveis.o carater rnaqico das imagens e essencial para a cornpreensao das suasmensagens. Imagens sao codiqos que traduzem eventos em situacoes, processos emcenas. Nao que as imagens eterna/izem eventos; elas substituem eventos por cenas. E talpoder rnaqico, inerente a estruturacao plana da imagem, domina a dialetica interna daimagem, propria a toda mediacao, e nela se manifesta de forma incornparavel.

    Imagens sao rnediacoes entre homem e mundo. 0 homem "existe", isto e, 0mundo nao Ihe e acessfvel imediatamente. Imagens tern 0 proposito de representar 0mundo. Mas, ao faze-lo, entrepoern-se entre mundo e homem. Seu proposito e seremmapas do mundo, mas passam a ser biombos. 0 homem, ao inves de se servir dasimagens em funcao do mundo, passa a viver em funC;aode imagens. Nao mais decifra as

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    cenas da imagem como significados do mundo, mas 0 proprio mundo vai sendo vivenciadocomo conjunto de cenas. Tal inversao da funcao das imagens e idolatria. Para 0 idolatra -o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje,de que forma se processa a magicizar;ao da vida: as imagens tecnicas, atualmenteonipresentes, ilustram a inversao da funcao imag in fs tica e remag ic izam a vida.

    Trata-se de alienacao do homem em relacao a seus proprios instrumentos. 0homem se esquece do motivo pelo qual imagens sao produzidas: servirem deinstrumentos para orienta-le no mundo. Imaginar;ao torna-se alucinacao e 0 homem passaa ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dirnensoes abstraidas, No segundornilenio A . c ., tal alucinacao alcancou seu apogeu. Surgiram pessoas empenhadas no"relembramento" da funcao oriqinaria das imagens, que passaram a rasqa-las, a fim deabrir a visao para 0 mundo concreto escondido pelas imagens. 0 metoda do rasgamentoconsistia em desfiar as superficies da imagens em linhas e alinhar os elementosimaginfsticos. Eis como foi inventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar 0 tempocircular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a consaenc i s h is t6 ric a ,consciencia dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observavel entre os filosotos pre-socraticos e sobretudo entre os profetas judeus.

    A luta da escrita contra a imagem, da conscience historlca contra a conscienciarnaqica caracteriza a Historia toda. E tera consequencias imprevistas. A escrita se fundasobre a nova capacidade de codificar pianos em retas e abstrair todas as dimensoes, comexcecao de uma: a da conce tu ed io , que permite codificar textos e decifra-los, Isto mostraque 0 pensamento conceitual e mais abstrato que 0 pensamento irnaqinativo, poispreserva apenas uma das dirnensoes do espaco-ternpo. Ao inventar a escrita, 0 homem seafastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele seaproximar. A escrita surge de um passe para aquern das imagens e nao de um passe emdirec;ao ao mundo. Os textos nao significam 0 mundo diretamente, mas atraves deimagens rasgadas. Os conceitos nao significam tenornenos, significam ideias, Decifrartextos e descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A funcao dos textos e explicarimagens, ados conceitos e analisar cenas. Em outros termos: a escrita e rneta-codiqo daimagem.

    A relacao texto-imagem e fundamental para a compreensao da historia doOcidente. Na Idade Media, assume a forma de luta entre 0 cristianismo textual e 0paganismo imaginlstico; na Idade Moderna, luta entre a cienda textual e as ideologiasimaginlsticas. A luta, porern, e dialetica. A medida que 0 cristianismo vai combatendo 0paganismo, ele proprio vai absorvendo imagens e se paganizando; a medida que a cienciavai combatendo ideologias, vai ela propria absorvendo imagens e se ideologizando . Porque isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasqa-las, imagens saocapazes de ilustrar textos, a fim de re rnaq ic iza -lo s, G r acas a tal dialetica, imaginac;ao econceituacao que mutuamente se negam, vaG mutuamente se reforcando, As imagens setornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Atualmente 0maior poder conceitual reside em certas imagens, e 0 maior poder irnaqinativo, emdeterminados textos da ciencia exata. Deste modo, a hierarquia dos codiqos vai seperturbando: embora os textos sejam metacodiqo de imagens, determinadas imagenspassam a ser rnetacodiqo de textos.

    No entanto, a situacao se complica ainda mais devido a contradicao interna dostextos. Sao eles rnediacoes tanto quanto 0 sao as imagens. Seu proposito e mediar entrehomem e imagens. Ocorre, porern, que os textos podem tapar as imagens que pretendemrepresentar algo para 0 homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, nao

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    conseguindo reconstituir as imagens abstrafdas. Passa a viver nao mais para se servir dostextos, mas em funC;aodestes.

    Surge textolatria, tao alucinat6ria como a idolatria. Exemplo impressionante detextolatria e "fidelidade ao texto", tanto nas ideologias ( crista, marxista, etc.), quanto nasciencias exatas. Tais textos passam a ser inirnaqinaveis, como 0 e 0 universo das cienciasexatas: nao pode e nao deve ser imaginado. No entanto, como sao imagens 0 derradeirosignificado dos conceitos, 0 discurso cientffico passa a ser composto de conceitos vazios; 0universo da ciencia torna-se universo vazio. A textolatria assumiu proporcoes crfticas nopercurso do seculo passado.

    A crise dos textos implica 0 naufragio da Hist6ria toda, que e, estritamente,processo de recoditicacao de imagens em conceitos. Hist6ria e explicacao progressiva deimagens, desrnaqioacao, concei tuacao, La, onde os textos nao mais significam imagens,nada resta a explicar, e a hist6ria para. Em tal mundo, explicacoes passam a sersuperfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.

    Pois e precisamente em tal mundo que VaGsendo inventadas as imagens tecnicas.E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.

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    2. A IMAGEM TECNICA

    Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos sao produtos da tecnica que, porsua vez, e texto cientffico aplicado. Imagens tecnicas sao, portanto, produtos indiretos detextos - 0 que Ihes confere posicao hist6rica e ontol6gica diferente das imagenstradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares deanos, e as imagens tecnicas sucedem aos textos altamente evolufdos. Ontologicamente, aimagem tradicional e abstracao de primeiro grau: abstrai duas dirnensoes do fen6menoconcreto; a imagem tecnica e abstracao de terceiro grau: abstrai uma das dirnensoes daimagem tradicional para resultar em textos (abstracao de segundo grau); depois,reconstituem a dirnensao abstrafda, a fim de resultar novamente em imagem.Historicamente, as imagens tradicionais sao pre-historicas: as imagens tecnicas sao pos-hist6ricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam 0 mundo; as imagenstecnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam 0 mundo. Essa posicao asimagens tecnicas e decisiva para 0 seu deciframento.

    Elas sao dificilmente decifraveis pela razao curiosa de que aparentemente naonecessitam ser decifradas. Aparentemente, 0 significado das imagens tecnicas se imprimede forma autornatica sobre suas superffcies, como se fossem impressoes digitais onde 0significado (0 dedo) e a causa, e a imagem (0 impresso) e 0 efeito. 0 mundorepresentado parece ser a causa das imagens tecnicas e elas pr6prias parecem ser 0ultimo efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. 0 mundo a serrepresentado reflete raios que VaG sendo fixados sobre superffcies sensfveis, qracas aprocessos 6ticos, qufmicos e rnecanicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois,imagem e mundo se encontram no mesmo nfvel do real: sao unidos por cadeiaininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece nao ser sfmbolo e naoprecisar de deciframento. Quem ve imagem tecnica parece ver seu significado, emboraindiretamente.o carater aparentemente nao-simbolico, objetivo, das imagens tecnicas faz comque seu observador as olhe como se fossem janelas e nao imagens. 0 observador confianas imagens tecnicas tanto quanto confia em seus pr6prios olhos. Quando critica asimagens tecnicas (se e que as critica) , nao 0 faz enquanto imagens, mas enquanto visoesdo mundo. Essa atitude do observador face as imagens tecnicas caracteriza a situacaoatual, on de tais imagens se preparam para eliminar textos. Algo que apresentaconsequencias altamente perigosas.

    A aparente objetividade das imagens tecnicas e ilus6ria, pois na realidade sao taosimb61icas quanto 0 sao todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-Ihes 0 significado. Com efeito, sao elas sfmbolos extrema mente abstratos: codificam textosem imagens, sao metac6digos de textos. A tmaqinacao, a qual devem sua origem, ecapacidade de codificar textos em imagens. Decifra-las e reconstituir os textos que taisimagens significam. Quando as imagens tecnicas sao corretamente decifradas, surge 0mundo conceitual como sendo 0 seu universo de significado. 0 que vemos ao contemplaras imagens tecnicas nao e "0 mundo", mas determinados conceitos relativos ao mundo, adespeito da automaticidade da impressao do mundo sobre a superffcie da imagem.

    No caso das imagens tradicionais, e facil verificar que se trata de sfmbolos: ha umagente humane (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado. Esteagente humane elabora sfmbolos "em sua cabeca", transfere-os para a mao munida de

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    pincel, e de la, para a superffcie da imagem. A codificacao se processa "na cabeca" doagente humano, e quem se propoe a decifrar a imagem deve saber 0 que se passou emtal "cabeca", No caso das imagens tecnicas, a situacao e rnenos evidente. Por certo, hatarnbern um fator que se interpoe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agentehumane que 0 manipula (fotoqrafo, cinegrafista). Mas tal complexo "aparelho-operador"parece nao interromper 0 elo entre a imagem e seu significado. Pelo contra rio, parece sercanal que liga imagem e significado. Isto porque 0 complexo "aparelho-operador" edemasiadamente complicado para que possa ser penetrado: e ca ixa p re ta e 0 que se ve eapenas input e output. Quem ve input e output ve 0 canal e nao 0 processo codificadorque se passa no interior da caix a p re ta . Toda crftica da imagem tecnica deve visar 0branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquantoanalfabetos em relacao as imagens tecnicas, Nao sabemos como decifra-las.

    Contudo, podemos afirmar algumas coisas a seu respeito, sobretudo 0 seguinte: asimagens tecnicas, longe de serem janelas, sao imagens, superffcies que transcodificamprocesses em cenas. Como toda imagem, e tarnbern rnaqica e seu observador tende aprojetar essa magia sobre 0 mundo. 0 fascfnio rnaqico que emana das imagens tecnicas epalpavel a todo instante em nosso entorno. Vivemos, cada vez mais obviamente, emfunc;ao de tal mag ia imag in fs tica: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cadavez mais em func;ao de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia e essa.

    Claro esta que a magia das imagens tecnicas nao pode ser identica a magia dasimagens tradicionais: 0 fascfnio da TV e da tela de cinema nao pode rivalizar com 0 queemana das paredes de caverna ou de um turnulo etrusco. Isto porque TV e cinema nao secolocam ao mesmo nfvel historico e ontoloqico do homem da caverna ou dos etruscos. Anova magia nao precede, mas sucede a consciencia historica, conceitual, desmagicizante.A nova magia nao visa modificar 0 mundo la fora, como 0 faz a pre-historia, mas osnos50S conceitos em relacao ao mundo. E magia de segunda ordem: feitico abstrato. Taldiferenc;a pode ser formulada da seguinte maneira: A magia pre-historica ritualizadeterminados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modele: programas.Mito nao e elaborado no interior da transmissao. ja que e elaborado por um "deus".Programa e modele elaborado no interior mesmo da transmissao. por "funcionarios", Anova magia e ntualizacao de programas, visando programar seus receptores para umcomportamento rnaqico programado. Os conceitos "programa" e "funcionario" seraoconsiderados nos capftulos seguintes deste ensaio. Neste ponto do argumento, trata-se decaptar a funr;ao da magia.

    A funcao das imagens tecnicas e a de emancipar a sociedade da necessidade depensar conceitualmente. As imagens tecnicas devem substituir a consciencia historica porconsciencia rnaqica de segunda ordem. Substituir a capacidade conceitual por capacidadeimaginativa de segunda ordem. E e neste sentido que as imagens tecnicas tendem aeliminar os textos. Com essa finalidade e que foram inventadas. Os textos foraminventados, no segundo rnilenio A . c., a fim de desmagiciarem as imagens (embora seusinventores nao se tenham dado conta disto). As fotografias foram inventadas, no seculoXIX, a fim de remagiciarem os textos (em bora seus inventores nao se tenham dado contadisto). A invencao das imagens tecnicas e cornparavel, pois, quanto a sua irnportanciahistorica, a invencao da escrita. Textos foram inventados no momenta de crise dasimagens, a fim de ultrapassar 0 perigo da idolatria. Imagens tecnicas foram inventadas nomomenta de crise dos textos, a fim de ultrapassar 0 perigo da textolatria. Tal intencaoimplfcita das imagens tecnicas precisa ser explicitada.

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    A invencao da imprensa e a introducao da escola obriqatoria generalizaram aconsciencia historica: todos sabiam ler e escrever, passando a viver historicamente,inclusive camadas ate entao sujeitas a vida rnaqica: 0 campesinato proletarizou-se. Talconsdentizacao se deu qracas a textos baratos: livros, jornais, panfletos. Simultaneamentetodos os textos se baratearam (inclusive 0 que esta sendo escrito). 0 pensamentoconceitual barato venceu 0 pensamento magico-imaginfstico com dois efeitos inesperados.De um lado, as imagens se protegiam dos textos baratos, refugiando-se em ghettoschamados "museus" e "exposicoes", deixando de influir na vida cotidiana. De outro lado,surgiam textos herrnetlcos (sobretudo os cientfficos), inacessfveis ao pensamentoconceitual barato, a fim de se salvarem da inflaC;ao textual galopante. Deste modo, acultura ocidental se dividiu em tres ramos: a imaginaC;ao marginalizada pela sociedade, 0pensamento conceitual herrnetico e 0 pensamento conceitual barato. Uma cultura assimdividida nao pode sobreviver, a nao ser que seja reunificada. A tarefa das imagenstecnicas e estabelecer codiqo geral para reunificar a cultura. Mais exatamente: 0 propositodas imagens tecnicas era reintroduzir as imagens na vida cotidiana, tornar irnaqinaveis ostextos hermencos, e tornar visfvel a magia subliminar que se escondia nos textos baratos.Ou seja, as imagens tecnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam constituirdenominador comum entre conhecimento cientffico, experiencia artfstica e vivenda polfticade todos os dias. Toda imagem tecnica devia ser, simultaneamente, conhecimento(verdade), vivencia (beleza) e modele de comportamento (bondade). Na realidade, porern,a revolucao das imagens tecnicas tomou rumo diferente, nao tornam visfvel 0conhecimento cientffico, mas 0 falseiam; nao reintroduzem as imagens tradicionais, masas substituem; nao tornam visfvel a magia subliminar, mas a substituem por outra. Nestesentido, as imagens tecnicas passam a ser "falsas", "feias" e "ruins", alern de nao teremsido capazes de reunificar a cultura, mas apenas de fundir a sociedade em massa amorfa.

    Por que isto se deu? Porque as imagens tecnicas se estabeleceram em barragens.Os textos cientfficos desembocam nas imagens tecnicas, deixam de fluir e passam acircular nelas. As imagens tradicionais desembocam nas tecnicas e passam a serreproduzidas em eterno retorno. E os textos baratos desembocam nas imagens tecnicaspara ai se transformarem em magia programada. Tudo, atualmente, tende para asimagens tecnicas, sao elas a memoria eterna de todo empenho. Todo ate cientffico,artfstico e politico visa eternizar-se em imagem tecnica, visa ser fotografado, filmado,videoteipado. Como a imagem tecnica e a meta de todo ato, este deixa de ser historico,passando a ser um ritual de magia. Gesto eternamente reconstitufvel segundo 0programa. Com efeito, 0 universo das imagens tecnicas vai se estabelecendo comoplenitude dos tempos. E, apenas se considerada sob tal anqulo apocalfptico, e que afotografia adquire seus devidos contornos.

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    3. 0 APARELHO

    As imagens tecnicas sao produzidas por aparelhos. Como primeira delas foi inventada afotografia. 0 aparelho fotoqrafico pode servir de modele para todos os aparelhoscaracterfsticos da atualidade e do futuro imediato. Analisa-lo e metoda eficaz para captaro essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) ate osrnlnusculos (como os chips), que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente suporque todos os traces aparelhfsticos ja estao prefigurados no aparelho fotoqrafico,aparentemente tao in6cuo e "primitivo",

    Antes de mais nada, e preciso haver acordo sobre 0 significado do apare/ho, ja quenao ha consenso para este termo. Etimologicamente, a palavra latina apparatus deriva dosverbos adparare e praeparare. 0 primeiro indica prontidao para algo; 0 segundo,disponibilidade em prol de algo. 0 primeiro verba implica 0 estar a espreita para saltar aespera de algo. Esse carater de animal feroz prestes a lancar-se. implfcito na raiz dotermo, deve ser mantido ao tratar-se de aparelhos.Obviamente, a etimologia nao basta para definirmos aparelhos. Deve-se perguntar,antes de mais nada, por sua posicao ontol6gica. Sem duvida, trata-se de objetosproduzidos, isto e, objetos trazidos da natureza para 0 homem. 0 conjunto de objetosproduzidos perfaz a cultura. Aparelhos fazem parte de determinadas culturas, conferindo aestas certas caracterfsticas. Nao ha duvida que 0 termo aparelho e utilizado, as vezes,para denominar fenornenos da natureza, por exemplo, aparelho diqestivo, por tratar-se de6rgaos complexos que estao a espreita de alimentos para enfim digeri-Ios. Sugiro, porern,que se trata de uso metaf6rico, transporte de um termo cultural para 0 domfnio danatureza. Nao fosse a existencia de aparelhos em nossa cultura, nao poderfamos falar emaparelho dlqestivo.G ro ss o mo do , ha dois tipos de objetos culturais: os que sao bons para seremconsumidos (bens de consumo) e os que sao bons para produzirem bens de consumo.(instrumentos). Todos os objetos culturais sao bans, isto e: sao como devem ser, conternva/ores. Obedecem a determinadas intencoes humanas. Esta, a diferenc;a entre as cienciasda natureza e as da cultura: as ciencias culturais procuram pela intencao que se escondenos fenomenos, por exemplo, no aparelho fotoqrafico, portanto, segundo tal crtterio, 0aparelho fotoqrafico parece ser instrumento. Sua intencao e produzir fotografias. Aquisurge duvida: fotografias serao bens de consumo como bananas ou sapatos? 0 aparelhofotoqrafico sera instrumento como 0 facao produtor de banana, ou a agulha produtora desapato?

    Instrumentos tern a intencao de arrancar objetos da natureza para aproxirna-los dohomem. Ao faze-lo, modificam a forma de tais objetos. Este produzir e informar se chama"trabalho". 0 resultado se chama "obra". No caso da banana, a producao e maisacentuada que a informacao: no caso do sapato, e a informacao que prevalece. Facoesproduzem sem muito informarem, agulhas informam muito mais. Serao os aparelhosagulhas exageradas que informam sem nada produzir, ja que fotografias parecem serinformacao quase pura?

    Instrumentos sao prolonqacoes de 6rgaos do corpo: dentes, dedos, braces, rnaosprolongados. Por serem prolonqacoes, alcancarn mais longe e fundo a natureza, sao maispoderosos e eficientes. Os instrumentos simulam 0 6rgao que prolongam: a enxada, 0

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    dente; a flecha, 0 dedo; 0 martelo, 0 punho. Sao "empfricos". Gracas a revolucaoindustrial, passam a recorrer a teorias cientfficas no curso da sua sirnulacao de orgaos.Passam a ser "tecnicos", Tornam-se, destarte, ainda mais poderosos, mas tarnbernmaiores e mais caros, produzindo obras mais baratas e mais numerosas. Passam achamar-se "rnaquinas". Sera entao, 0 aparelho fotoqrafico rnaquina por simular 0 olho erecorrer a teorias oticas e qufmicas, ao faze-lo?

    Quando os instrumentos viraram rnaquinas, sua relacao com 0 homem se inverteu.Antes da revolucao industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as rnaquinaseram por eles cercadas. Antes, 0 homem era a constante da relacao, e 0 instrumento eraa variavel: depois, a rnaquina passou a ser relativamente constante. Antes osinstrumentos funcionavam em funcao do homem; depois grande parte da humanidadepassou a funcionar em funcao das rnaquinas. Sera isto valido para os aparelhos? Podemosafirmar que os oculos (tomados como proto-aparelhos fotogrMicos) funcionavam emfunC;aodo homem, e hoje, 0 fotoqrafo, em funC;aodo aparelho?o tamanho e 0 preco das rnaquinas faz com que apenas poucos homens aspossuam: os capitalistas. A maioria funciona em funC;ao delas: 0 proletariado. De maneiraque a sociedade se divide em duas classes: os que usam as rnaquinas em seu proprioproveito, e os que funcionam em funC;ao de tal proveito. Isto vale para aparelhos? 0fotoqrafo sera proletario, e havera um foto-capitalista?

    Em tais perguntas sente-se que, embora razoaveis, nao ferem ainda 0 problema doaparelho. Por certo: aparelhos informam, simulam orgaos, recorrem a teorias, saomanipulados por homens, e servem a interesses ocultos. Mas nao e isto que oscaracteriza. As perguntas acima nao sao nada interessantes, quando se trata deaparelhos. Provern, elas todas, do terreno industrial, quando os aparelhos, emboraprodutos industriais, ja apontam para alern do industrial: sao objetos pOs-industriais. Dafperguntas industriais (por exemplo, as marxistas) nao mais serem competentes paraaparelhos. A nossa dificuldade em defini-Ios se explica: aparelhos sao objetos do mundopas-industrial, para 0 qual ainda nao dispomos de categorias adequadas.

    A categoria fundamental do terreno industrial (e tarnbern do pre-industrial) e 0trabalho. Instrumentos trabalham. Arrancam objetos da natureza e os informam.Aparelhos nao trabalham. Sua intencao nao e a de "modificar 0 mundo". Visam modificara vida dos homens. De maneira que os aparelhos nao sao instrumentos no significadotradicional do termo. 0 fotoqrafo nao trabalha e tem pouco sentido charna-Io de"proletario", Ja que, atualmente a maioria dos homens esta empenhada em aparelhos,nao tem sentido falar-se em proletariado. Devemos repensar nossas categorias, sequisermos analisar nossa cultura.

    Embora totoqrafos nao trabalhem, agem. Este tipo de atividade sempre existiu. 0fotoqrafo produz sfmbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, contadores,administradores sempre fizeram 0 mesmo. 0 resultado deste tipo de atividade saomensagens: livros, quadros, contas, projetos. Nao servem para serem consumidos, maspara informarem: serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisoesfuturas. Estas pessoas nao sao trabalhadores, mas informadores. Pois atualmente aatividade de produzir, manipular e armazenar sfmbolos (atividade que nao e trabalho nosentido tradicional) vai sendo exercida por aparelhos. E tal atividade vai dominando,programando e controlando todo trabalho no sentido tradicional do termo. A maioria dasociedade esta empenhada nos aparelhos dominadores, programadores e controladores.Outrora, antes que aparelhos, fossem inventados, a atividade deste tipo se chamava"terciarla", ja que nao dominava. Atualmente, ocupa 0 centro da cena. Querer definir

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    aparelhos e querer elaborar categorias apropriadas a cultura pas-industrial que estasurgindo.

    Se considerarmos 0 aparelho fotoqrafico sob tal prisma, constataremos que 0 estarprogramado e que 0 caracteriza. As superficies sirnbolicas que produz estao, de algumaforma, inscritas previamente ("programadas", "pre-escritas") por aqueles que 0produziram. As fotografias sao realizacoes de algumas das potencialidades inscritas noaparelho. 0 nurnero de potencialidades e grande, mas limitado: e a soma de todas asfotografias fotoqrafaveis por este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui 0 nurnerode potencialidades, aumentando 0 nurnero de realizacoes: 0 programa vai se esgotando eo universo fotoqrafico vai se realizando. 0 fot6grafo age em prof do esgotamento doprograma e em prof da reafizar;aodo universo to toare t ico . Ja que 0 programa e muito"rico", 0 fotoqrafo se esforca por descobrir potencialidades ignoradas. 0 fotoqrafomanipula 0 aparelho, 0 apalpa, olha para dentro e atraves dele, afim de descobrir semprenovas potencialidades. Seu interesse esta concentrado no aparelho e 0 mundo la fora sointeressa em funcao do programa. Nao esta empenhado em modificar 0 mundo, mas emobrigar 0 aparelho a revelar suas potencialidades. 0 fotoqrafo nao trabalha com 0aparelho, mas brinca com ele. Sua atividade evoca a do enxadrista: este tarnbern procuralance "novo", a fim de realizar uma das virtualidades ocultas no programa do jogo. E talcornparacao facilita a definiC;aoque tentamos formular.

    Aparelho e brinquedo e nao instrumento no sentido tradicional. E 0 homem que 0manipula nao e trabalhador, mas jogador: nao mais homo faber, mas homo fudens. E talhomem nao brinca com seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-Ihe 0 programa.Por assim dizer: penetra 0 aparelho a fim de descobrir-Ihe as manhas. De maneira que 0"funcionario" nao se encontra cercado de instrumentos (como 0 artesao pre-industrial),nem esta submisso a rnaquina (como 0 proletario industrial), mas encontra-se no interiordo aparelho. Trata-se de funcao nova, na qual 0 homem nao e constante nem variavel,mas esta indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em toda funC;ao aparelhistica ,funcionario e aparelho se confundem.

    Para funcionar, 0 aparelho precisa de programa "rico". Se fosse "pobre", 0funcionario 0 esgotaria, e isto seria 0 fim do jogo. As potencialidades contidas noprograma devem exceder a capacidade do funcionario para esqota-tas. A competence doaparelho deve ser superior a competence do funcionario, A competence do aparelhofotoqrafico deve ser superior em ruimero de fotografias a competence do fotoqrafo que 0manipula. Em outros termos: a cornpetencia do fotoqrafo deve ser apenas parte dacompetence do aparelho. De maneira que 0 programa do aparelho deve ser irnpenetravelpara 0 fotoqrafo, em sua totalidade. Na procura de potencialidades escondidas noprograma do aparelho, 0 fotoqrafo nele se perde.

    Um sistema assim tao complexo e jamais penetrado totalmente e pode chamar-secaixa preta. Nao fosse 0 aparelho fotoqrafico caixa preta, de nada serviria ao jogo dofotoqrafo: seria jogo infantil, monotone, A pretidao da caixa e seu desafio, porque,embora 0 fotoqrafo se perca em sua barriga preta, consegue, curiosamente, dornina-la. 0aparelho funciona, efetiva e curiosamente em funcao da intencao do fotoqrafo, Istoporque 0 fotoqrafo domina 0 inpute 0 output da caixa: sabe com que alirnenta-la e comofazer para que ela cuspa fotografias. Domina 0 aparelho, sem no entanto, saber 0 que sepassa no interior da caixa. Pelo dominic do input e do output, 0 fotoqrafo domina 0aparelho, mas pela iqnorancia dos processos no interior da caixa, e por ele dominado. Talarnalqarna de dommacoes - funcionario dominando aparelho que 0 domina - caracteriza

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    todo funcionamento de aparelhos. Em outras palavras: funcionarios dominam jogos paraos quais nao podem ser total mente competentes.

    Os programas dos aparelhos sao compostos de sfmbolos perrnutaveis.Funcionar e permutar sfmbolos programados. Um exemplo anacronico pode ilustrar

    tal jogo: 0 escritor pode ser considerado funcionario do aparelho "Ifngua". Brinca comsfmbolos contidos no programa lingUfstico, com "palavras", permutando-os segundo asregras do programa. Destarte, Vai esgotando as potencialidades do programa lingUfstico eenriquecendo 0 universo lingUfstico, a "Iiteratura". 0 exemplo e anacronico porque aIfngua nao e verdadeiro aparelho. Nao foi produzida deliberadamente, nem recorreu ateorias cientfficas, como no caso de aparelhos verdadeiros. Mas serve de exemplo aofuncionamento de aparelhos.o escritor informa objetos durante seu jogo: coloca letras sobre paqinas brancas.Tais letras sao sfmbolos decifraveis, Aparelhos fazem 0 mesmo. H a aparelhos, porern, queo fazem "melhor" que escritores, pois podem informar objetos com sfmbolos que naosignificam fenomenos, como no caso das letras, mas que significam movimentos dosproprios objetos. Tais objetos assim informados VaG decifrando os sfmbolos e passam amovimentar-se. Por exemplo: podem executar os movimentos de trabalho. Podem,portanto, substituir 0 trabalho humano. Emancipam 0 homem do trabalho, liberando-opara 0 jogo.o aparelho fotoqrafico ilustra 0 fato: enquanto objeto, esta programado paraproduzir, automaticamente, fotografias. Neste aspecto, e instrumento inteligente. E 0fotoqrafo, emancipado do trabalho, e liberado para brincar com 0 aparelho. 0 aspectoinstrumental do aparelho passa a ser desprezfvel, e 0 que interessa e apenas 0 seuaspecto brinquedo. Quem quiser captar a essencia do aparelho, deve procurar distinguir 0aspecto instrumental do seu aspecto brinquedo, coisa nem sempre facil, porque implica 0problema da hierarquia de programas, problema central para a captacao dofuncionamento.

    Uma distinc;ao deve ser feita: hardware e software. Enquanto objeto duro, 0aparelho fotoqrafico foi programado para produzir automaticamente fotografias; enquantocoisa mole, irnpalpavel, foi programado para permitir ao fotoqrafo fazer com quefotografias deliberadas sejam produzidas automaticamente. Sao dois programas que seco-implicam. Por tras destes ha outros. 0 da fabrica de aparelhos fotogrMicos: aparelhoprogramado para programar aparelhos. 0 do parque industrial: aparelho programado paraprogramar industrias de aparelhos fotoqraficos e outros. 0 econornico-social: aparelhoprogramado para programar 0 aparelho industrial, comercial e administrativo. 0 politico-cultural: aparelho programado para programar aparelhos econorrucos, culturais,ideoloqicos e outros. Nao pode haver um "ultimo" aparelho, nem um "programa de todosos programas". Isto porque todo programa exige metaprograma para ser programado. Ahierarquia dos programas esta aberta para cima.

    Isto implica 0 seguinte: os programadores de determinado programa saofuncionarios de um metaprograma, e nao programam em funcao de uma decisao sua, masem funcao do metaprograma. De maneira que os aparelhos nao podem ter proprietariesque os utilizem em funC;ao de seus proprios interesses, como no caso das rnaquinas, 0aparelho fotoqrafico funciona em funC;ao dos interesses da tabrica, e esta, em funcao dosinteresses do parque industrial. E assim ad infinitum. Perdeu-se 0 sentido da pergunta:quem e 0 proprietario dos aparelhos. 0 decisivo em relacao aos aparelhos nao e quem ospossui, mas quem esgota 0 seu programa.

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    o aparelho fotoqrafico e, por certo, objeto duro feito de plastico e aco, Mas nao eisso que 0 torna brinquedo. Nao e a madeira do tabuleiro e das pedras que torna 0xadrez, jogo. Sao as virtualidades contidas nas regras: 0 software. 0 aspecto duro dosaparelhos nao e 0 que Ihes confere valor. Ao comprar um aparelho fotoqrafico, nao pagopelo plastico e aco, mas pelas virtualidades de realizar fotografias. De resto, 0 aspectoduro dos aparelhos vai se tornando sempre mais barato e ja existem aparelhospraticamente gratuitos. Eo aspecto mole, irnpalpavel e sirnbolico 0 verdadeiro portador devalor no mundo pas-industrial dos aparelhos. Transvalorizacao de valores; nao e 0 objeto,mas 0 sfmbolo que vale.

    Por conseguinte, nao mais vale a pena possuir objetos. 0 poder passou doproprietario para 0 programador de sistemas. Quem possui 0 aparelho nao exerce 0poder, mas quem 0 programa e quem realiza 0 programa. 0 jogo com sfmbolos passa aser jogo do poder. Trata-se, porern, de jogo hierarquicarnente estruturado. 0 fotoqrafoexerce poder sobre quem ve suas fotografias, programando os receptores. 0 aparelhofotoqrafico exerce poder sobre 0 fotoqrafo, A industria fotoqrafica exerce poder sobre 0aparelho. E assim ad infinitum. No jogo sirnbolico do poder, este se dilui e se desumaniza.Eis 0 que sejam "sociedade informatica" e "imperialismo pas-industrial".

    Tais consideracoes permitem ensaiar definiC;ao do termo aparelho. Trata-se debrinquedo complexo; tao complexo que nao podera jamais ser inteiramente esclarecido.Seu jogo consiste na perrnutacao de sfmbolos ja contidos em seu programa. Tal programase deve a meta-aparelhos. 0 resultado do jogo sao outros programas. 0 jogo do aparelhoimplica agentes humanos, "funcionarios", salvo em casos de autornacao total deaparelhos. Historicamente, os primeiros aparelhos (fotografia e telegrafia) foramproduzidos como sirnulacoes do pensamento humano, tendo, para tanto, recorrido ateorias cientfficas. Em suma: aparelhos sao caixas pretas que simulam 0 pensamentohumano, qracas a teorias cientfficas, as quais, como 0 pensamento humano, permutamsfmbolos contidos em sua "memoria", em seu programa. Caixas pretas que brincam depensar.o aparelho fotoqrafico e 0 primeiro, 0 mais simples e 0 relativamente maistransparente de todos os aparelhos. 0 fotoqrafo e 0 primeiro "funcionario", 0 maisinqenuo e 0 mais viavel de ser analisado. No entanto, no aparelho fotoqraflco e nofotoqrafo ja estao, como germes, contidas todas as virtualidades do mundo pas-industrial.Sobretudo, torna-se observavel na atividade fotoqrafica, a desvalorizacao do objeto e avalorizacao da informacao como sede de poder. Portanto, a analise do gesto de fotografar,este movimento do complexo "aparelho-fotoqrafo", pode ser exercido para a analise daexistencia humana em situacao pas-industrial, aparelhizada.

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    4. 0 GESTO DE FOTOGRAFAR

    Quem observar os movimentos de um fot6grafo munido de aparelho (ou de um aparelhomunido de fot6grafo) estara observando movimento de caca, 0 antiqufssimo gesto docacador paleolftico que persegue a caca na tundra', Com a diferenc;a de que 0 fot6grafonao se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto e,pois, estruturado por essa taiga2 artificial, e toda fenomenologia do gesto fotoqrafico develevar em consideracao os obstaculos contra os quais 0 gesto se choca: reconstituir acondicao do gesto.

    A selva consiste de objetos culturais, portanto de objetos que contern intencoesdeterminadas. Tais objetos intencionalmente produzidos vedam ao fot6grafo a visao dacaca, E cada fot6grafo e vedado a sua maneira. Os caminhos tortuosos do fot6grafo visamdriblar as intencoes escondidas nos objetos. Ao fotografar, avanca contra as intencoes dasua cultura. Por isto, fotografar e gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidadeocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrarfotografias implicaria, entre outras coisas, 0 deciframento das condicoes culturaisdribladas.

    A tarefa e diffcil. Isto porque as condicoes culturais nao transparecem,diretamente, na imagem fotoqrafica, mas atraves a triagem das categorias do aparelho. Afotografia nao permite ver a condicao cultural, mas apenas as categorias do aparelho, porinterrnedio das quais aquela condicao foi "tomada". Em fenomenologia fotogrMica, Kant einevitavel,

    As categorias fotogrMicas se inscrevem no lade outputdo aparelho. Sao categoriasde um espaco-ternpo fotoqrafico, que nao e nem newtoniano nem einsteiniano. Trata-sede espaco-ternpo nitidamente dividido em reqioes, que sao, todas elas, pontos de vistasobre a caca, Espaco-tempo cujo centro e 0 "objeto fotoqrafavel", cercado de regioes depontos de vista. Por exemplo: ha regiao espacial para visoes muito pr6ximas, outra paravisoes intermediaries, outra ainda para visoes amplas e distanciadas. H a reqioes espaciaispara perspectiva de passaro, outras para perspectiva de sapo, outras para perspectiva decrlanca, H a regioes espaciais para visoes diretas com olhos arcaicamente abertos, eregioes para visoes laterais com olhos ironicamente semifechados. H a reqioes temporaispara um olhar-relampaqo. outras para um olhar sorrateiro, outras para um olharcontemplativo. Tais reqioes formam rede, por cujas malhas, a condicao cultural vaiaparecendo para ser registrada.

    Ao fotografar, 0 fot6grafo salta de regiao para regiao por cima de barreiras. Mudade um tipo de espaco e um tipo de tempo para outros tipos. As categorias de tempo eespaco sao sincronizadas de forma a poderem ser permutadas. 0 gesto fotoqrafico e umjogo de perrnutacao com as categorias do aparelho. A fotografia revela os lances dessejogo, lances que sao, precisamente, 0 metoda fotoqrafico para driblar as condicoes dacultura. 0 fot6grafo se emancipa da condicao cultural qracas ao seu jogo com ascategorias. As categorias estao inscritas no programa do aparelho e podem sermanipuladas. 0 fot6grafo pode manipular 0 lade output do aparelho, de forma que, porexemplo, este capte a caca como relarnpaqo lateral vindo de baixo.1 Tundra: pantanal siberiano (N. Ed.)2 Taiga: f/oresta siberiana (N. Ed.)

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    o fotoqrafo "escolhe", dentre as categorias disponiveis, as que Ihe parecem maisconvenientes. Neste sentido, 0 aparelho funciona em func;ao da intencao do fotoqrafo,Mas sua "escolha" e limitada pelo nurnero de categorias inscritas no aparelho: escolhaprogramada. 0 fotoqrafo nao pode inventar novas categorias, a nao ser que deixe defotografar e passe a funcionar na fabrica que programa aparelhos. Neste senti do, apropria escolha do fotoqrafo funciona em funcao do programa do aparelho.

    A mesma involucao engrenada das intencoes do fotoqrafo e do aparelho pode serconstatada na escolha da caca, 0 fotoqrafo registra tudo: um rosto humano, uma pulga,um trace de particula atornica na camera Wilson, 0 interior do seu proprio estornaqo, umanebulosa espiral, seu proprio gesto de fotografar no espelho. De maneira que 0 fotoqrafoere que esta escolhendo livremente. Na realidade, porern, 0 fotoqrafo somente podefotografar 0 fotoqrafavel, isto e, 0 que esta inscrito no aparelho. E para que algo sejafotoqrafavel, deve ser transcodificado em cena. 0 fotoqrafo nao pode fotografarprocessos. De maneira que 0 aparelho programa 0 fotoqrafo para transcodificar tudo emcena, para magicizar tudo. Em tal sentido, 0 fotoqrafo funciona, ao escolher sua caca, emfunc;ao do aparelho. Aparelho-fera.

    Aparentemente, ao escolher sua caca e as categorias apropriadas a ela, 0 fotoqrafopode recorrer a criterios alheios ao aparelho. Por exemplo: ao recorrer a criteriosesteticos, politicos, episternolooicos, sua intencao sera a de produzir imagens belas, oupoliticamente engajadas, ou que tragam conhecimentos. Na realidade, tais criterios estao,eles tarnbern programados no aparelho. Da seguinte maneira: para fotografar, 0 fotoqrafoprecisa, antes de mais nada, conceber sua intencao estetica, politica, etc., porquenecessita saber 0 que esta fazendo ao manipular 0 lade output do aparelho. Amanipulacao do aparelho e gesto tecnico, isto e, gesto que articula conceitos. 0 aparelhoobriga 0 fotoqrafo a transcodificar sua intencao em conceitos, antes de podertranscodifica-la em imagens. Em fotografia, nao pode haver ingenuidade. Nem mesmoturistas ou criancas fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente, porquetecnicamente. Toda intencao estetica, polftica ou episternoloqica deve, necessariamente,passar pelo crivo da conceituacao, antes de resultar em imagem. 0 aparelho foiprogramado para isto. Fotografias sao imagens de conceitos, sao conceitostranscodificados em cenas.

    As possibilidades fotogrMicas sao praticamente inesqotaveis, Tudo 0 que efotoqrafavel pode ser fotografado. A imaginac;ao do aparelho e praticamente infinita. Aimaginac;ao do fotoqrafo, por maior que seja, esta inscrita nessa enorme imaginac;ao doaparelho. Aqui esta, precisamente, 0 desafio. Ha regioes na imaginac;ao do aparelho quesao relativamente bem exploradas. Em tais reqioes, e sempre possivel fazer novasfotografias: porern, embora novas, sao redundantes. Outras reqioes sao quaseinexploradas. 0 fotoqrafo nelas navega, reqioes nunca dantes navegadas, para produzirimagens jamais vistas. Imagens "informativas". 0 fotoqrafo caca, a fim de descobrir visoesate entao jamais percebidas. E quer descobri-Ias no interior do aparelho.

    Na realidade, 0 fotoqrafo procura estabelecer situacoes jamais existentes antes.Quando caca na taiga, nao significa que esteja procurando por novas situacoes la fora nataiga: mas sua busca sao pretextos para novas situacoes no interior do aparelho.Situacoes que estao programadas sem terem ainda sido realizadas. Pouco vale a perguntarnetaffsica: as situacoes, antes de serem fotografadas, se encontram la fora, no mundo,ou c a dentro, no aparelho? 0 gesto fotoqrafico desmente todo realismo e idealismo. Asnovas situacoes se tornarao reais quando aparecerem na fotografia. Antes, nao passam devirtualidades. 0 totoqrato-e-o-aparetho e que as realiza. lnversao do vetor da significac;ao:

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    nao 0 s ign ificado , mas 0 signific an te e a rea lida de . N ao 0 que se passa la fora, nem 0 queesta inscrito no aparelho; a fotografia e a realidade. Tal inversao do vetor da significac;aocaracteriza 0 mundo pas- indus tr ia l, todo funcionamen to .o g esto fotoq rafic o e se rie de sa lto s, 0 fo toqrafo salta por cim a das barreiras queseparam as varias req ioes do espaco-ternpo, E g esto qu an tico , p roc ura saltitante . To davez que 0 fo toqra fo e sb arra con tra b arreiras, se de te rn, p ara de po is d ecidir em qu e re giaodo tem po e do espaco vai saltar a partir deste ponto. Tal parada e subseqUente decisao sem anifestam por rnanipulacao determ inada do aparelho. Esse tipo de procura tem nom e:du vida , M as n ao se tra ta d e du vid a cien tffic a, n em ex iste ncial, nem re ligiosa. E duvida detipo novo, que mol a hesitacao e as decisoes em grao de are ia. Sendo tal duvida umac ara cte rfstic a d e to da e xiste nc ia p as-in du stria l, m ere ce se r e xamin ad a mais d e p erto . T od avez que 0 fo toqra fo e sb arra con tra um lim ite d e d ete rm ina da ca teg oria fotoq rafic a, he sita ,porque esta descobrindo que ha outros pontos de vista disponfve is no programa. Estad esc ob rind o a e qu iva le nc ia d e to do s o s po nto s d e vista pro gram ado s, em relaca o a cena aser p roduz ida . E a descoberta do fato de que toda situacao esta cercada de numerosospontos de vista equivalentes. E que todos esses pontos de vista sao acessfveis. Comefeito: 0 fotoqrafo hesita, porque esta descobrindo que seu gesto de cacar e m ovim entode escolha entre pontos de vista equivalentes, e 0 que vale nao e determ inado ponto dev ista , m as um nurn ero max imo d e p on to s d e v ista . E sc olh a q ua ntita tiv a, n ao -q ua lita tiv a.o tipo novo de duvida pode ser chamado de tenornenoloq ico, porque cerca 0fen6m eno (a cena a ser realizada) a partir de um maxim o de aspectos. M as a mathesis (ae stru tu ra fu ndan te ) des sa duv id a fe no rnenolo qic a e, n o c aso d a fo to gra fia , 0 pro gram a d oa pa re lh o. D uas co isa s d evem ser, p ortan to , re tid as: 1. a praxis fotoqrafica e contra ria atoda ideologia; ideologia e agarrar-se a um unico ponto de vista, tido por referencial,r ecusando todos 0 demais; 0 fotoqrafo age pas ideologicam ente; 2 . A praxis fotoqrafica eprogramada; 0 fotoqrato somente pode agir dentro das categorias programadas noapare lho. Esta ac;ao pos-ideoloq ica e programada, que se funda sobre duvidatenorneloq ica despreconceituada, caracteriza a existencia de todo funcionario etecnocrata.F inalm ente, no gesto fotogrM ico, um a decisao ultim a e tom ada: apertar 0 gatilho(assim como 0 p re sid en te ame ric an o fin alm en te a pe rta 0 botao verm elho). De fato, 0gesto do fotoqrafo e menos catastrotico que 0 do presidente. Mas e decisivo. Narealidade, estas decisoes nao sao sense as ultirnas de um a sene de decisoes parciais. 0ultimo grao de uma sene de graos, que, no caso do presidente pode ser a gota d'aqua,Uma de cisao q uan titativa. N o c aso do fo to qra fo , resulta a pe na s na fotog rafia . Isto e xplic aporque nenhum a fotografia individual pode efetivam ente ficar isolada: apenas series defotografias podem revelar a intencao do fotoqrafo, Porque nenhum a decisao e real mentede cisiva, n em seq uer a d o pre sid en te ou d o se creta rio-q era l do p artid o. T od as a s d eciso esfaz em p arte de se ries "clara s" e "d istinta s". Em o utros term os: sao dec isoe s prog ram ada s.

    Tais consideracoes perm item resum ir as caracterfsticas do gesto de fotografar: egesto cacador no qual apare lho e fotoqrafo se confundem , para form ar unidade funcionalinseparavel, 0 proposito desse gesto unificado e produzir fotografias, isto e, superffciesna s q uais se rea lizam sim bolic am ente c en as. E sta s signific am con ce itos p rog ram ados n am em oria do fotoqrafo e do apare lho. A realizacao se da qracas a um jogo de perrnutacaoentre os conceitos, e qracas a uma autornatlca transcodificacao de tais conceitosperm utados em im agens. A estrutura do gesto e quantica: serie de hesitacoes e decisoesclaras e distintas. Tais hesitacoes e decisoes sao saltos de pontos de vista para pontos devista. 0 m otivo do fotoqrafo, em tudo isto, e realizar cenas jam ais vistas, "inform ativas".

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    Seu interesse esta concentrado no aparelho. Esta descricao nao se aplica, em suas linhasgerais, apenas ao fotoqrafo, mas a qualquer funcionario, desde 0 empregado de banco aopresidente americano.o resultado do gesto fotoqrafico sao fotografias, esse tipo de superficies que noscerca atualmente por todos os lados. De maneira que a consideracao do gesto fotoqraficopode ser a avenida de acesso a tais superficies onipresentes.

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    S. A FOTOG RAFIA

    Fotografias sao onipresentes: coladas em albuns, reproduzidas em jornais, expostas emvitrines, paredes de escritorios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressasem livros, latas de conservas, camisetas. Que significam tais fotografias? Segundo asconsideracoes precedentes, significam conceitos programados, visando programarmagicamente 0 comportamento de seus receptores. Mas nao e 0 que se ve quando paraelas se olha. Vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamentesobre superffcies. Mesmo um observador inqenuo admitiria que as cenas se imprimiram apartir de um determinado ponto de vista. Mas 0 argumento nao Ihe convern, 0 fatorelevante para ele e que as fotografias abrem ao observador visoes do mundo. Todafilosofia da fotografia nao passa, para ele, de qinastica mental para alienados.

    No entanto, se 0 observador inqenuo percorrer 0 universo fotoqrafico que 0 cerca,nao podera deixar de ficar perturbado. Era de se esperar: 0 universo fotoqraficorepresenta 0 mundo la fora atraves deste universo, 0 mundo. A vantagem e permitir quese vejam as cenas inacessfveis e preservar as passageiras ( 0 que, afinal de contas, sejaadmitido, ja e uma filosofia da fotografia rudimentar).

    Mas sera verdade? Se assim for, como explicar que existam fotografias preto-e-branco e fotografias em cores? Havera, la fora no mundo, cenas em preto-e-branco ecenas coloridas? Se nao, qual a relacao entre 0 universo das fotografias e 0 universo lafora? Inadvertidamente, 0 observador inqenuo se encontra mergulhado em plena filosofiada fotografia, a qual pretendeu evitar.

    Nao pode haver, no mundo la fora, cenas em preto-e-branco. Isto porque 0 preto eo branco sao situacoes "ideais", situacoes-limite. 0 branco e presence total de todas asvibracoes luminosas; 0 preto e a ausencia total. 0 preto e 0 branco sao conceitos quefazem parte de uma determinada teoria da Otica. De maneira que cenas em preto-e-branco nao existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas"imaginam" determinados conceitos de determinada teoria, qracas a qual sao produzidasautomaticamente. Aqui, porern, 0 termo au tomat i camente nao pode mais satisfazer 0observador inqenuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crftica dafotografia, eis 0 ponto crftico: ao contrario da pintura, onde se procura decifrar ideies; 0crftico de fotografia deve decifrar, alern disso, c onc ei t o s .o preto e 0 branco nao existem no mundo, 0 que e grande pena. Caso existissem,se 0 mundo la fora pudesse ser captado em preto-e-branco, tudo passaria a serlogicamente explicavel, Tudo no mundo seria entao ou preto ou branco, ou interrnediarioentre os dois extremos. 0 desaqradavel e que tal interrnediario nao seria em cores, mascinzento ... a cor da teoria. Eis como a analise logica do mundo, seguida de sfntese, naoresulta em sua reconstituicao, As fotografias em preto-e-branco 0 provam, sao cinzentas:imagens de teorias (oticas e outras) a respeito do mundo.

    A tentativa de imaginar 0 mundo em preto-e-branco e antiga. Faltavam apenas osaparelhos adequados a tal imaginaC;ao. Dois exemplos desse maniquefsmo pre-totoqraflco:1. Abstraiam-se do universo dos jufzos os verdadeiros e os te lsos. Gracas a tal abstracao,pode ser construfda a logica arlstotellca, com sua identidade, diferenc;a e 0 terceiroexclufdo. Esta logica, por sua vez, vai contribuir para a construcao da cienda moderna.

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    Ora, a ciencia funciona de fato, embora nao existam jufzos inteiramente verdadeiros ouinteiramente falsos, e embora toda analise logica de jufzos os reduza a zero;2. abstraiam-se do universo das acoes as boas e as mas. Gracas a tal abstracao, podemser construfdas ideologias (religiosas, polfticas, etc.). Essas ideologias, por sua vez, VaGcontribuir para a construcao de sociedades sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam defato, embora nao existam acoes inteiramente boas ou inteiramente mas, e embora todaac;ao se reduza, sob analise ideoloqica, a movimentos de fantoche. As fotografias empreto-e-branco sao resultados desse tipo de maniquefsmo munido de aparelho.Funcionam.

    E funcionam da seguinte forma: transcodificam determinadas teorias (em primeirolugar, teorias da Otica) em imagem. Ao faze-lo, magicizam tais teorias. Transformam seusconceitos em cenas. As fotografias em preto-e-branco sao a magia do pensamentoteorico, conceitual, e e precisamente nisto que reside seu fascfnio. Revelam a beleza dopensamento conceitual abstrato. Muitos totoqrafos preferem fotografar em preto-e-branco, porque tais fotografias mostram 0 verdadeiro significado dos sfmbolosfotogrMicos: 0 universo dos conceitos.

    As primeiras fotografias eram, todas, em preto-e-branco, demonstrando que seoriginavam de determinada teoria da Otica. A partir do progresso da Qufmica, tornou-sepossfvel a producao de fotografias em cores. Aparentemente, pois, as fotografiascornecararn a abstrair as cores do mundo, para depois as reconstitufrem. Na realidade,porern, as cores sao tao teoricas quanto 0 preto e 0 branco. 0 verde do bosquefotografado e imagem do conceito "verde", tal como foi elaborado por determinada teoriaqufmica. 0 aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. Ha, porcerto ligaC;aoindireta entre 0 verde do bosque fotografado e 0 verde do bosque la fora: 0conceito cientffico "verde" se apoia, de alguma forma, sobre 0 verde percebido. Mas entreos dois verdes se interpoe toda uma sene de codificacoes complexas. Mais complexasainda do que as que se interpoern entre 0 cinzento do bosque fotografado em preto-e-branco e 0 verde do bosque la fora. De maneira que a fotografia em cores e mais abstrataque a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografias em cores escondem, para 0ignorante em Qufmica, 0 grau de abstracao que Ihe deu origem. As brancas e pretas sao,pois, mais "verdadeiras". E quanto mais "fieis" se tornarem as cores das fotografias, maisestas serao mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade teorica que Ihes deuorigem. (Exemplos: "verde Kodak" contra "verde Fuji".)o que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem.Sao, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser irnpressoes autornaticas domundo la fora. Tal pretensao precisa ser decifrada por quem quiser receber a verdadeiramensagem das fotografias: conceitos programados. Destarte, 0 observador inqenuo se veobrigado, malgre lui, a mergulhar no torvelinho das reflexoes filosoticas que procuroueliminar, por considera-Ias qinastica mental alienada.

    Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deciframento. Que face aodecifrar um texto em alfabeto latino? Decifro 0 significado das letras, esses determinadossons da Ifngua falada? Decifro 0 significado das palavras compostas de tais letras? Decifroo significado das frases compostas de tais palavras? Ou devo procurar, por tras dosignificado das frases, outros significados, como a intencao do autor e 0 contexto culturalno qual 0 texto foi codificado? Para decifrar 0 significado da fotografia do bosque verde,bastaria ter decifrado os conceitos cientfficos que codificaram a fotografia, ou devo ir maislonge? Assim colocada, a questao do deciframento nao tera resposta satisfatorla, ja quetodo nfvel de deciframento assentara sobre mais um a ser decifrado. Mas podemos, no

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    caso da fotografia, evitar este regresso ao infinito. Para decifrar fotografias nao precisomergulhar ate 0 fundo da intencao codificadora, no fundo da cultura, da qual asfotografias, como todo sfmbolo, sao pontas de icebergs. Basta decifrar 0 processocodificador que se passa durante 0 gesto fotoqrafico, no movimento do complexo"fotoqrafo-aparelho", Se consegufssemos captar a involucao inseparavel das intencoescodificadoras do fotoqrato e do aparelho, terfamos decifrado, satisfatoriamente, afotografia resultante. Tarefa aparentemente reduzida, mas na realidade gigantesca.Precisamente por serem tais intencoes lnseparaveis. e por se articularem de formaespecffica em toda e qualquer fotografia a ser criticada.

    No entanto, 0 deciframento de fotografias e possfvel, porque, embora insepareveis,as intencoes do fotoqrato e do aparelho podem ser distinguidas.Esquematicamente, a intencao do fotoqrafo e esta: 1. codificar, em forma de imagens, osconceitos que tem na memoria; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que taisimagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre.Resumindo: A intencao e a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessfveis aoutros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a intencao programada noaparelho e esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma deimagens; 2. servir-se de um fotoqrafo, a rnenos que esteja programado para fotografarautomaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4.fazer imagens sempre mais aperfeicoadas. Resumindo: a intencao programada noaparelho e a de realizar 0 seu programa, ou seja, programar os homens para que Ihesirvam de feed-back para 0 seu continuo aperfeicoamento.

    Mas por tras da intencao do aparelho fotoqrafico ha intencoes de outros aparelhos.o aparelho fotoqrafico e produto do aparelho da industria fotogrMica, que e produto doaparelho do parque industrial, que e produto do aparelho socio-econornico e assim pordiante. Atraves de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma unica e gigantescaintencao, que se manifesta no output do aparelho fotoqrafico: fazer com que osaparelhos programem a sociedade para um comportamento propfcio ao constanteaperfeicoarnento dos aparelhos.

    Se compararmos as intencoes do fotoqrafo e do aparelho, constataremos pontosde converqencia e diverqencia. Nos pontos convergentes, aparelho e fotoqrafo colaboram;nos divergentes, se combatem. Toda fotografia e resultado de tal colaboracao e combate.Ora, colaboracao e combate se confundem. Determinada fotografia so e decifrada, quandotivermos analisado como a colaboracao e 0 combate nela se relacionam.

    No confronto com determinada fotografia, eis 0 que 0 crftico deve perguntar: ateque ponto conseguiu 0 fotoqrafo apropriar-se da intencao do aparelho e subrnete-la a suapropria? Que rnetodos utilizou: astucia, violencia, truques? Ate que ponto conseguiu 0aparelho apropriar-se da intencao do fotoqrafo e desvia-Ia para os propositos neleprogramados? Responder a tais perguntas e ter os criterios para julqa-la. As fotografias"melhores" seriam aquelas que evidenciam a vitoria da intencao do fotoqrafo sobre 0aparelho: a vitoria do homem sobre 0 aparelho. Forc;oso e constatar que, muito emboraexistam tais fotografias, 0 universo fotoqrafico demonstra ate que ponto 0 aparelho jaconsegue desviar os propositos dos totoqratos para os fins programados. A func;ao de todacrftica fotogrMica seria, precisamente, revelar 0 desvio das intencoes humanas em proldos aparelhos. Nao dispomos ainda de uma tal crftica da fotografia, por razoes que seraodiscutidas nos proxirnos capftulos.

    Confesso que 0 presente capitulo, embora se chame "A fotografia", nao consideroualgumas das mais importantes caracterfsticas da fotografia. Minha desculpa e que seu

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    prop6sito era outro: abrir caminho para 0 deciframento de fotografias. Resumo, pois, 0que pretendi dizer: fotografias sao imagens tecnicas que transcodificam conceitos emsuperficies. Decifra-las e descobrir 0 que os conceitos significam. Isto e complicado,porque na fotografia se amalgamam duas intencoes codificadoras: a do fot6grafo e a doaparelho. 0 fot6grafo visa eternizar-se nos outros por interrnedio da fotografia. 0 aparelhovisa programar a sociedade atraves das fotografias para um comportamento que Ihepermita aperfeicoar-se, A fotografia e, pois, mensagem que articula ambas as intencoescodificadoras. Enquanto nao existir critica fotogrMica que revele essa ambigUidade doc6digo fotogrMico, a intencao do aparelho prevalecera sobre a intencao humana.

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    6. A DISTRIBUI~AO DA FOTOGRAF IA

    As caracterlsticas que distinguem a fotografia das demais imagens tecnicas se revelam aoconsiderarmos como sao distribuldas. As fotografias sao superficies irnoveis e mudas queesperam, pacientemente, serem distribuidas pelo processo de rnultiplicacao ao infinito.Sao folhas. Podem passar de mao em mao, nao precisam de aparelhos tecnicos paraserem distribuldas. Podem ser guardadas em gavetas, nao exigem rnemorias sofisticadaspara seu armazenamento. No entanto, antes de considerarmos sua caracterlstica de fo/hade pape/ , refletiremos por pouco que seja, sobre 0 problema da distribuicao deinformacoes.o homem e capaz de produzir informacoes, transmiti-Ias e quarda-las, Talcapacidade humana e antinatural, ja que a natureza como um todo e sistema que tende,conforme 0 segundo princfpio da terrnodinarnica, a se desinformar. Ha tenornenos, porcerto, na natureza (sobretudo os organismos vivos) que sao igualmente capazes deproduzir informacoes e de transmiti-Ias e quarda-las, 0 homem nao e 0 unico epiciclonegativamente entropico, na linha geral da natureza, rumo a entropia. Mas 0 homemparece ser 0 unico fenomeno capaz de produzir informacoes com 0 proposito deliberadode se opor a entropia. Capaz de transmitir e guardar informacoes nao apenas herdadas,mas adquir idas. Podemos chamar tal capacidade especificamente humana: espfrito e seuresultado, cu/tura.o processo dessa rnanipulacao de informacoes e a cornunicacao que consiste deduas fases: na primeira, informacoes sao produzidas; na segunda, informacoes saodistribuldas para serem guardadas. 0 metoda da primeira fase e 0 diB/ogo, pelo qualinformacoes ja guardadas na memoria sao sintetizadas para resultarem em novas (hatarnbern d iB /ogo interno que ocorre em memoria isolada).o metoda da segunda fase e 0 discurso, pelo qual informacoes adquiridas nodialoqo sao transmitidas a outras rnernorias, a fim de serem armazenadas.

    Ha quatro estruturas fundamentais de discurso:1. os receptores cercam 0 emissor em forma de semicfrculo, como no teatro; 2. 0 emissordistribui a inforrnacao entre retransmissores, que a purificam de ruldos, para retransmiti-Iaa receptores, como no exercito ou feudalismo; 3. 0 emissor distribui a informacao entrecfrculos dialoqicos, que a inserem em sinteses de inforrnacao nova, como na ciencia: 4. 0emissor emite a informacao rumo ao espaco vazio, para ser captada por quem nele seencontra, como na radio. A todo metoda discursivo, corresponde determinada situacaocultural: 0 primeiro metoda exige situacao "responsavel"; 0 segundo, "autoritaria": 0terceiro, "progressista"; 0 quarto, "massificada". A distribuicao das fotografias se da peloquarto metoda discursivo.

    Fotografias podem ser manipuladas dialogicamente. Por exemplo: e possiveldesenhar-se em cartazes fotoqraficos bigodes ou outros sirnbolos obscenos, criando,assim, informacao nova. Mas 0 aparelho fotoqrafico e programado para distribuicaodiscursiva rumo ao espaco vazio, como 0 fazem a televisao e 0 radio. Todas as imagenstecnicas sao assim programadas, salvo 0 video, que permite interacao dialoqica,

    Mas 0 que distingue as fotografias das demais imagens tecnicas e que sao folhas.E por isso se assemelham a folhetos. Filmes, para serem distribuldos, necessitam deaparelhos projetores; fitas de video, de aparelhos televisores. Fotografias nada precisam.

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    E verdade que existem dispositivos, e que recentemente foram inventadasfotografias eletronicas, que exigem distribuicao por aparelhos. Porern, 0 que conta emfotografias e a possibilidade de serem distribufdas arcaicamente.Por serem relativamente arcaicas, as fotografias relembram um passado pre-industrial, 0das pinturas irnoveis e caladas, como em paredes de caverna, vitrais, telas. Ao contra riodo cinema, as fotografias nao se movem, nem falam. Seu arcafsmo provern dasubordinacao a um suporte material: papel ou coisa parecida. Mas essa "objetividade"residual engana. Um quadro tradicional e um original: unico e nao rnultiplicavel. Paradistribuir quadros, e preciso transporta-los de proprietario a proprietario, Quadros devemser apropriados para serem distribufdos: comprados, roubados, ofertados. Sao objetos quetern valor enquanto objetos. Prova disto e que os quadros atestam seu produtor: tracesdo pincel por exemplo. A fotografia, por sua vez, e rnultiplicavel. Distribuf-Ia e rnultiplica-la. 0 aparelho produz prototipos cujo destino e serem estereotipados. 0 termo "original"perdeu senti do, por mais que certos fotoqratos se esforcem para transporta-lo da situacaoartesanal a situacao pas-industrial, onde as fotografias funcionam. Ademais, nao sao taoarcaicas quanto parecem.

    A fotografia enquanto objeto tem valor desprezfvel. Nao tem muito sentido quererpossuf-Ia. Seu valor esta na informacao que transmite. Com efeito, a fotografia e 0primeiro objeto pas-industrial: 0 valor se transferiu do objeto para a informacao, Pos-industria e precisamente isso: desejar inforrnacao e nao mais objetos. Nao mais possuir edistribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). Trata-se de dispor de informacoes(sociedade informatica). Nao mais um par de sapato, mais um rnovel, porern, mais umaviagem, mais uma escola. Eis a meta. Transforrnacao de valores, tornada palpavel nasfotografias.

    Certamente objetos carregam informacoes, e e 0 que Ihes confere valores. Sapatoe rnovel sao informacoes armazenadas. Mas em tais objetos, a informacao estaimpregnada, nao pode se descolar, apenas ser gasta. Na fotografia, a informacao esta nasuperffcie e pode ser reproduzida em outras superffcies, tao pouco valorosas quanto asprimeiras. A distribuicao da fotografia ilustra, pois, a decadence do conceito propriedade.Nao mais quem possui tem poder, mas sim quem programa informacoes e as distribui.Neo-imperialismo. Se determinado cartaz rasgar com 0 vento, nem por isso 0 poder daaqencia publicitaria, programadora do cartaz, ficara diminufdo. 0 cartaz nada vale e naotem sentido querer possul-lo, Pode ser substitufdo por outro. A cornparacao da fotografiacom quadros irnpoe repensar valores economicos, polfticos, eticos, estetlcos eepisternoloqicos do passado.

    A decadence do objeto e a ernerqencia da informacao evidenciam-se melhor emfotografias que nas demais imagens tecnicas que nos cercam. 0 receptor de filme ou deprograma de TV nao segura nada em sua mao, mas 0 receptor da fotografia ainda temum objeto entre os dedos, e 0 despreza. Vivencia concretamente 0 quanto ficaramdesprezfveis os objetos. Ao segurar a fotografia entre os dedos, 0 receptor se engajacontra 0 objeto e em favor e em favor da informacao, sfmbolo da superffcie da fotografia.Exatamente como faz 0 receptor de folheto. Apos decifrada a mensagem sirnbolica, afolha pode ser descartada. No entanto, 0 paralelismo entre fotografia e folheto nao deveser exagerado. Ambos sao objetos desprezfveis, por certo. Mas a intencao da fotografia eoposta a do folheto: transcodifica a mensagem linear do folheto em imagem. Quermagiciza-Ia. A fotografia e antifolheto. Para prova-lo, basta considerar como fotografiassao distribufdas.

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    Embora nao necessitem de aparelhos tecnicos para sua distribuicao. as fotografiasprovocaram a construcao de aparelhos de distribuicao gigantescos e sofisticados.Aparelhos que se colam sobre 0 buraco output do aparelho fotoqrafico, a fim de sugaremas fotografias por ele cuspidas, rnultiplica-las e derrarna-Ias sobre a sociedade, pormilhares de canais. 0 aparelho de distribuicao passa a fazer parte integrante do aparelhofotoqrafico, e 0 fot6grafo age em func;ao dele. Tais aparelhos, assim como os demais, saoprogramados para programar os seus receptores em prol de um comportamento propfcioao seu funcionamento, cada vez mais aperfeicoado, Sua distincao dos demais aparelhos eo fato de dividirem as fotografias em vanes braces, antes de distribuf-Ias. Tal divisaodistribuidora caracteriza as fotografias.

    Todas as informacoes podem ser subdivididas em classes. Por exemplo,informacoes indicativas C'A e A''); imperativas (" A deve ser A"); optativas C'que A sejaA"). 0 ideal classico dos indicativos e a verdade; dos irnperativos, a bondade; dosoptatives, a beleza. Na realidade, porern, a classificacao e insustentavel. Todo indicativocientffico tem aspectos polfticos e esteticos; todo imperativo politico tem aspectoscientfficos e esteticos: todo gesto optativo (obra de arte) tem aspectos cientfficos epoliticos. De maneira que toda classiticacao de informacoes e mera teoria.

    Os aparelhos distribuidores de fotografias transformam-nas em praxis. Ha canaispara fotografias indicativas, por exemplo, livros cientfficos e jornais diaries. Ha canais parafotografias imperativas, por exemplo, cartazes de propaganda comercial e polftica. E hacanais para fotografias artfsticas, por exemplo, revistas, exposicoes e museus. No entanto,tais canais dispoern de dispositivos que permitem a determinadas fotografias deslizaremde um canal a outro. Fotografias do homem na lua podem transitar entre revista deastronomia e parede de consulado americano, da i para exposicao artfstica, e da i paraalbum de ginasiano. A cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: decientffica passa a ser polftica, artfstica, privativa. A divisao das fotografias em canais dedistribuicao nao e operacao meramente mecanica: trata-se de operacao detranscodificacao. Algo a ser levado em consideracao por toda crftica de fotografia.o fot6grafo colabora nessa transcodificacao da fotografia pelos aparelhos de distribuicao,e 0 faz de maneira sui generis. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir suafotografia. Fotografa em funcao de determinada publicacao cientffica, determinado jornal,determinada exposicao, ou simplesmente em funcao de seu album. Do ponto de vista dofot6grafo, duas razoes 0 movem: primeira, 0 canal Ihe permitira alcancar grande nurnerode receptores, pois seu engajamento e precisamente eternizar-se num maximo depessoas; segunda, 0 canal vai sustenta-lo economicamente, pois a fotografia, enquantoobjeto desprezfvel, nao tem valor de troca. Em suma: 0 canal e para 0 fot6grafo ummetoda para torna-lo imortal e nao morrer de fome (quanto ao album, por ser canal suigeneris, aparentemente "privado", sera discutido no capitulo seguinte).No canal, a intencao do fot6grafo e do aparelho se co-implicam pela mesma involucao jadiscutida: 0 fot6grafo fotografa em funcao de um jornal determinado, porque este Ihepermite alcancar centenas de milhares de receptores e porque 0 paga. 0 fot6grafo ereestar utilizando 0 jornal como medium, enquanto 0 jornal ere estar utilizando 0 fot6grafoem func;ao de seu programa. Do ponto de vista do jornal, quando a fotografia recodificaos artigos lineares em imagens, "ilustrando-os", esta permitindo a proqrarnacao rnaqicados compradores do jornal em comportamento adequado. Ao fotografar, 0 fot6grafo sabeque sua fotografia sera aceita pelo jornal somente se esta se enquadrar em seu programa.De maneira que vai procurar driblar tal censura, ao contrabandear na fotografia elementosesteticos, polfticos e epistemol6gicos nao previstos no programa. Vai procurar submeter a

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    intencao do jornal a sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal tentativaastuciosa, pode vir a aceitar a fotografia com 0 prop6sito de enriquecer seu programa. Vaiprocurar recuperar a intencao subversiva. Pois bem, 0 que vale para jornais, vale para osdemais canais de distribuicao de fotografias, uma vez que todos revelarao, sob analisecrftica, a luta drarnatica entre a intencao do fot6grafo e a do aparelho distribuidor defotografias.

    Tal crftica e rara. Os crfticos nao reconhecem, via de regra, a funcao codificadorado canal distribuidor na fotografia criticada. Assumem, como um dado nao-criticavel. quecanais cientfficos distribuem fotografias cientfficas; que aqencias de propagandadistribuem fotografias publicitarias; que galerias de arte distribuem fotografias de arte.Desta maneira, os crfticos tornam invisfveis os canais distribuidores de fotografias.Funcionam em func;ao da intencao de tais canais, os quais, precisamente, se quereminvisfveis. Para isto os crfticos sao pagos: eis sua func;ao no interior dos aparelhos. Aocalarem os crfticos sobre a luta entre fot6grafo e canal, colaboram com os aparelhos emsua intencao de absorver a intencao do fot6grafo contra 0 aparelho. Trata-se de"colaboracao" no significado pejorativo de trahison des dercs', e ilustra a func;ao dosintelectuais em situacao onde aparelhos dominam. Ao formularem perguntas do tipo"fotografia e arte?", ou "0 que e fotografia politicamente engajada?", sem admitirem quetais perguntas vaG sendo respondidas automaticamente pelos canais, os crfticoscontribuem para 0 ocultamento dos aparelhos programadores.Ao considerarmos a distribuicao de fotografias, esbarramos naquilo que as distingue dasdemais imagens tecnicas: sao imagens im6veis e mudas do tipo "folha", e podem serinfinitamente reproduzidas; poderiam ser distribufdas como folhetos, no entanto 0 sao poraparelhos gigantescos que as irradiam por discurso massificante; enquanto objetos, asfotografias nao tern valor: este reside na inforrnacao que guardam superficial mente; sao,portanto, objetos p6s-industriais: 0 interesse se desvia para a inforrnacao e nao para 0objeto que se abandona; antes de serem distribufdas, as fotografias sao transcodificadaspelo aparelho de distribuicao, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somentedentro do canal, do medium, adquirem seu ultimo significado; nessa transcodificacao,cooperam tanto 0 fot6grafo quanto 0 aparelho. Este fato e silenciado pela maior parte dacrftica, 0 que torna os aparelhos de distribuicao invisfveis para os receptores dasfotografias. Gracas a tal crftica "funcional", 0 receptor da fotografia vai recebe-la de modonao-crftico, E sera assim que os aparelhos de distribuicao poderao programar 0 receptorpara comportamento rnaqico que sirva de feed-back para seus aparelhos.

    1Do livro de Julien Benda, A tralcao dos cleriqos (N. Ed.)

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    7. A RECEP~AO DA FOTOGRAF IA

    De modo geral, todo mundo possui um aparelho fotoqrafico e fotografa, assim como,praticamente, todo mundo esta alfabetizado e produz textos. Quem sabe escrever, sabeler; logo, quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para captarmos a razaopela qual quem fotografa pode ser analfabeto fotoqrafico, e preciso considerar adernocratizacao do ate fotoqrafico, Tal consideracao podera contribuir, de passagem, anossa compreensao da democracia em seu sentido mais amplo.

    Aparelho fotoqrafico e comprado por quem foi programado para tanto. Aparelhosde publicidade programam tal compra. 0 aparelho fotoqrafico assim comprado sera de"ultimo modelo": menor, mais barato, mais autornatico e eficiente que 0 anterior. 0aparelho deve 0 aperfeicoarnento constante de modelos ao feed-backdos que fotografam.o aparelho da industria fotogrMica vai assim aprendendo, pelo comportamento dos quefotografam, como programar sempre melhor os aparelhos fotoqraficos que produzira.Neste sentido, os compradores de aparelhos fotogrMicos sao tundonerios do aparelho daindustria fotoqrafica.

    Uma vez adquirido, 0 aparelho fotoqrafico vai se revelar um brinquedo curioso.Embora repouse sobre teorias cientificas complexas e sobre tecnicas sofisticadas, e muitofacil rnanipula-lo, 0 aparelho propoe jogo estruturalmente complexo, mas funcionalmentesimples. Jogo oposto ao xadrez, que e estruturalmente simples, mas funcionalmentecomplexo: e facil aprender suas regras, mas dificil joqa-lo bem. Quem possui aparelhofotoqrafico de "ultimo modelo", pode fotografar "bem" sem saber 0 que se passa nointerior do aparelho. Caixa prets.o aparelho e brinquedo sedento por fazer sempre mais fotografias. Exige de seupossuidor (quem por ele esta possesso) que aperte constantemente 0 gatilho. Aparelho-arma. Fotografar pode virar mania, 0 que evoca uso de drogas. Na curva desse jogornanlaco, pode surgir um ponto a partir do qual 0 homem-desprovido-de-aparelho sesente cego. Nao sabe mais olhar, a nao ser e t r e v e s do aparelho. De maneira que nao estaface ao aparelho (como 0 artesao frente ao instrumento), nem esta rodando em torno doaparelho (como 0 proletario roda a rnaquina). Esta dentro do aparelho, engolido por suagula. Passa a ser prolongamento autornatico do seu gatilho. Fotografa automaticamente.

    A mania fotogrMica resulta em torrente de fotografias. Uma torrente memoria quea fixa. Eterniza a automaticidade inconsciente de quem fotografa. Quem contemplaralbum de fotoqrafo amador, estara venda a memoria de um aparelho, nao a de umhomem. Uma viagem para a Italia, documentada fotograficamente, nao registra asvivencias, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde 0 aparelho 0seduziu para apertar 0 gatilho. Albuns sao rnemorias "privadas" apenas no sentido deserem rnernorias de aparelho. Quanto mais eficientes se tornam os modelos dosaparelhos, tanto melhor atestarao os albuns, a vitoria do aparelho sobre 0 homem."Privatividade" no sentido pas-industrial do termo.

    Quem escreve precisa dominar as regras da qrarnatica e ortografia. Fotografoamador apenas obedece a modos de ussr, cada vez mais simples, inscritos ao ladeexterno do aparelho. Democracia e isto. De maneira que quem fotografa como amadornao pode decifrar fotografias. Sua praxis 0 impede de faze-lo, pois 0 fotoqrafo amador ereser 0 fotografar gesto autornatico qracas ao qual 0 mundo vai aparecendo. l rnpoe-se

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    conclusao paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais diffcil se tornarao deciframento de fotografias, ja que todos acreditam saber faze-las.

    Mas ainda nao e tudo. As fotografias que sobre nos se derramam sao recebidascomo se fossem trapos desprezfveis. Podemos recorta-Ias de jornais, rasqa-las, joqa-las,Nossa praxis com a mare fotoqrafica que nos inunda faz crer que podemos fazer delas ecom elas 0 que bem entendermos. Tal desprezo pela fotografia individual distingue a suarecepcao das demais imagens tecnicas, Exemplo: ao contemplarmos cena da guerra nolfbano em cinema ou TV, sabemos que nada podemos fazer a nao ser conternpla-la. Aocontemplarmos cena identica em jornal, podemos recorta-Ia e quarda-la, ou simplesmenterasqa-la para embrulhar sandufche. 1550 leva a crer que podemos agir ao recebermos amensagem de tal guerra, que podemos assumir ponto de vista "historico" face a guerra.Analisemos essa falsa atitude historica face a fotografia.

    A fotografia da guerra no ubano em jornal mostra uma cena. Exige que nossoolhar a escrutine pelo metoda ja discutido anteriormente. 0 olhar vai estabelecendorelacoes especfficas entre os elementos da fotografia. Nao serao relacoes hist6ricas decausa e efeito, mas relacoes magicas do eterno retorno. Por certo, 0 artigo que afotografia ilustra no jornal consiste de conceitos que significam as causas e os efeitos detal guerra. Porern 0 artigo e lido em funC;aoda fotografia, como que atraves dela. Nao e 0artigo que "explica" a fotografia, mas e a fotografia que "ilustra" 0 artigo. Este so e textono curioso sentido de ser pre-texto da fotografia. Tal inversao da relacao "texto-imagem"caracteriza a pas-industria, fim de todo historicismo.

    No curso da Historia, os textos explicavam as imagens, demit izavam-nas.Doravante, as imagens ilustram os textos, remit izando-os. Os capiteis rornanticos serviamaos textos bfblicos com 0 fim de desmeak i zs- t os . Os artigos de jornal servem asfotografias para serem remagicizados. No curso da Hlstorta, as imagens eramsubservientes, podia-se dispense-las. Atualmente, os textos sao subservientes e podemser dispensados. Os pafses assim chamados subdesenvolvidos cornecarn a descobrir talfato. No decorrer da Hlstorta, 0 iletrado era um aleijado da cultura dominada por textos.Atualmente, 0 iletrado p